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quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Genealogia da Moral: uma polêmica (Parte I) – Friedrich Nietzsche

Editora: Companhia de Bolso
ISBN: 978-85-3591-456-6
Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 176
Sinopse: Escrito como complemento a Além do bem e do mal, este livro é composto de três ensaios que, sob ângulos diversos, tratam da origem dos nossos conceitos morais. Interpretando a evolução da ética como uma história da crueldade, Nietzsche critica as mais caras ideologias da tradição religiosa e filosófica ocidental – a compaixão, a igualdade, a crença na verdade – e expõe algumas de suas teses mais importantes e controversas.
Friedrich Nietzche, em Ecce homo, 1888, afirma: “As três dissertações que compõem esta Genealogia são, no que toca a expressão, intenção e arte da surpresa, talvez o que de mais inquietante até agora se escreveu. Dionísio, como se sabe, é também o deus das trevas. A cada vez um começo calculado para desorientar, frio, científico, irônico mesmo, intencionalmente temporizador. Aos poucos, mais agitação; relâmpagos isolados; verdades bem desagradáveis anunciando-se ao longe com surdo zumbido – até ser enfim alcançado um tempo feroce em que tudo se lança adiante com tremenda tensão. No final, a cada vez, entre detonações terríveis inteiramente, uma verdade nova se faz visível em meio a espessas nuvens”.



“Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos — e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos? Com razão alguém disse: “onde estiver teu tesouro, estará também teu coração”. Nosso tesouro está onde estão as colmeias do nosso conhecimento. Estamos sempre a caminho delas, sendo por natureza criaturas aladas e coletoras do mel do espírito, tendo no coração apenas um propósito — levar algo “para casa”. Quanto ao mais da vida, as chamadas “vivências”, qual de nós pode levá-las a sério? Ou ter tempo para elas? Nas experiências presentes, receio, estamos sempre “ausentes”: nelas não temos nosso coração — para elas não temos ouvidos. Antes, como alguém divinamente disperso e imerso em si, a quem os sinos acabam de estrondear no ouvido as doze batidas do meio-dia, e súbito acorda e se pergunta “o que foi que soou?”, também nós por vezes abrimos depois os ouvidos e perguntamos, surpresos e perplexos inteiramente, “o que foi que vivemos?”, e também “quem somos realmente?”, e em seguida contamos, depois, como disse, as doze vibrantes batidas da nossa vivência, da nossa vida, nosso ser — ah! e contamos errado... Pois continuamos necessariamente estranhos a nós mesmos, não nos compreendemos, temos que nos mal-entender, a nós se aplicará para sempre a frase: “Cada qual é o mais distante de si mesmo” — para nós mesmos somos “homens do desconhecimento”...”


“Eu sou um adversário do amolecimento moderno dos sentimentos.”


“Já se percebe com que facilidade o modo de valoração sacerdotal pode derivar daquele cavalheiresco-aristocrático e depois desenvolver-se em seu oposto; em especial, isso ocorre quando a casta dos sacerdotes e a dos guerreiros se confrontam ciumentamente, e não entram em acordo quanto às suas estimativas. Os juízos de valor cavalheiresco-aristocráticos têm como pressuposto uma constituição física poderosa, uma saúde florescente, rica, até mesmo transbordante, juntamente com aquilo que serve à sua conservação: guerra, aventura, caça, dança, torneios e tudo o que envolve uma atividade robusta, livre, contente. O modo de valoração nobre-sacerdotal — já o vimos — tem outros pressupostos: para ele a guerra é mau negócio! Os sacerdotes são, como sabemos, os mais terríveis inimigos — por quê? Porque são os mais impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. Na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes, também os mais ricos de espírito — comparado ao espírito da vingança sacerdotal, todo espírito restante empalidece. A história humana seria uma tolice, sem o espírito que os impotentes lhe trouxeram — tomemos logo o exemplo maior. Nada do que na terra se fez contra “os nobres”, “os poderosos”, “os senhores”, “os donos do poder”, é remotamente comparável ao que os judeus contra eles fizeram; os judeus, aquele povo de sacerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas através de uma radical tresvaloração dos valores deles, ou seja, por um ato da mais espiritual vingança. Assim convinha a um povo sacerdotal, o povo da mais entranhada sede de vingança sacerdotal. Foram os judeus que, com apavorante coerência, ousaram inverter a equação de valores aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente) se apegaram a esta inversão, a saber, “os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança — mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados!...
Sabe-se quem colheu a herança dessa tresvaloração judaica... A propósito da tremenda, desmesuradamente fatídica iniciativa que ofereceram os judeus, com essa mais radical das declarações de guerra, recordo a conclusão a que cheguei num outro momento (Além do bem e do mal, § 195) — de que com os judeus principia a revolta dos escravos na moral: aquela rebelião que tem atrás de si dois mil anos de história, e que hoje perdemos de vista, porque — foi vitoriosa...”


“Mas vocês não compreendem? Não têm olhos para algo que necessitou dois mil anos para alcançar a vitória?... Não é de admirar: tudo o que é longo é difícil de ver, ver inteiro. Mas isto é o que aconteceu: do tronco daquela árvore da vingança e do ódio, do ódio judeu — o mais profundo e sublime, o ódio criador de ideais e recriador de valores, como jamais existiu sobre a terra —, dele brotou algo igualmente incomparável, um novo amor, o mais profundo e sublime de todos os tipos de amor — e de que outro tronco poderia ele ter brotado?... Mas não se pense que tenha surgido como a negação daquela avidez de vingança, como a antítese do ódio judeu! Não, o contrário é a verdade! O amor brotou dele como sua coroa, triunfante, estendendo-se sempre mais na mais pura claridade e plenitude solar, uma coroa que no reino da luz e das alturas buscava as mesmas metas daquele ódio, vitória, espólio, sedução, com o mesmo impulso com que as raízes daquele ódio mergulhavam, sempre mais profundas e ávidas, em tudo que possuía profundidade e era mau. Esse Jesus de Nazaré, evangelho vivo do amor, esse “redentor” portador da vitória e da bem-aventurança aos pobres, aos doentes e aos pecadores — não era ele a sedução em sua forma mais inquietante e irresistível, a sedução e a via sinuosa para justamente aqueles valores judeus e inovações judaicas do ideal? Não teria Israel alcançado, por via desse “redentor”, desse aparente antagonista e desintegrador de Israel, a derradeira meta de sua sublime ânsia de vingança? Não seria próprio da ciência oculta de uma realmente grande política da vingança, de uma vingança longividente, subterrânea, de passos lentos e premeditados, o fato de que Israel mesmo tivesse de negar e pregar na cruz o autêntico instrumento de sua vingança, ante o mundo inteiro, como um inimigo mortal, para que o “mundo inteiro”, ou seja, todos os adversários de Israel, pudesse despreocupadamente morder tal isca? E porventura seria possível, usando-se todo o refinamento do espírito, conceber uma isca mais perigosa? Algo que em força atrativa, inebriante, estonteante, corruptora, igualasse aquele símbolo da “cruz sagrada”, aquele aterrador paradoxo de um “Deus na cruz”, aquele mistério de uma inimaginável, última, extrema crueldade e autocrucificação de Deus para salvação do homem?... Certo é, quando menos, que sob este signo, com sua vingança e sua tresvaloração dos valores, Israel até agora sempre triunfou sobre todos os outros ideais, sobre todos os ideais mais nobres.”


“A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” — e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores — este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si — é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto — sua ação é no fundo reação. O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão — seu conceito negativo, o “baixo”, “comum”, “ruim”, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico, positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, “nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes!”. Quando o modo de valoração nobre se equivoca e peca contra a realidade, isso ocorre com relação à esfera que não lhe é familiar, que ele inclusive se recusa bruscamente a conhecer: por vezes não reconhece a esfera por ele desprezada, a do homem comum, do povo baixo; por outro lado, considere-se que o afeto do desprezo, do olhar de cima para baixo, do olhar superiormente, a supor que falseie a imagem do desprezado, em todo caso estará muito longe do falseamento com que o ódio entranhado, a vingança do impotente, atacará — in effigie, naturalmente — o seu adversário. De fato, no desprezo se acham mescladas demasiada negligência, demasiada ligeireza, desatenção e impaciência, mesmo demasiada alegria consigo, para que ele seja capaz de transformar seu objeto em monstro e caricatura. (...) Os “bem-nascidos” se sentiam mesmo como os “felizes”; eles não tinham de construir artificialmente a sua felicidade, de persuadir-se dela, menti-la para si, por meio de um olhar aos seus inimigos (como costumam fazer os homens do ressentimento); e do mesmo modo, sendo homens plenos, repletos de força e portanto necessariamente ativos, não sabiam separar a felicidade da ação — para eles, ser ativo é parte necessária da felicidade (nisso tem origem fazer bem: estar bem) — tudo isso o oposto da felicidade no nível dos impotentes, opressos, achacados por sentimentos hostis e venenosos, nos quais ela aparece essencialmente como narcose, entorpecimento, sossego, paz, “sabbat”, distensão do ânimo e relaxamento dos membros, ou, numa palavra, passivamente. Enquanto o homem nobre vive com confiança e franqueza diante de si mesmo (γενναος, “nobre de nascimento”, sublinha a nuance de “sincero”, e talvez também “ingênuo”), o homem do ressentimento não é franco, nem ingênuo, nem honesto e reto consigo. Sua alma olha de través; ele ama os refúgios, os subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo, sua segurança, seu bálsamo; ele entende do silêncio, do não-esquecimento, da espera, do momentâneo apequenamento e da humilhação própria. Uma raça de tais homens do ressentimento resultará necessariamente mais inteligente que qualquer raça nobre, e venerará a inteligência numa medida muito maior: a saber, como uma condição de existência de primeira ordem, enquanto para os homens nobres ela facilmente adquire um gosto sutil de luxo e refinamento — pois neles ela está longe de ser tão essencial quanto a completa certeza de funcionamento dos instintos reguladores inconscientes, ou mesmo uma certa imprudência, como a valente precipitação, seja ao perigo, seja ao inimigo, ou aquela exaltada impulsividade na cólera, no amor, na veneração, gratidão, vingança, na qual se têm reconhecido os homens nobres de todos os tempos. Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos. Não conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus malfeitos inclusive — eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento (no mundo moderno, um bom exemplo é Mirabeau, que não tinha memória para os insultos e baixezas que sofria, e que não podia desculpar, simplesmente porque — esquecia). Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos vermes que em outros se enterrariam; apenas neste caso é possível, se for possível em absoluto, o autêntico “amor aos inimigos”. Quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! — e tal reverência é já uma ponte para o amor... Ele reclama para si seu inimigo como uma distinção, ele não suporta inimigo que não aquele no qual nada existe a desprezar, e muito a venerar! Em contrapartida, imaginemos “o inimigo” tal como o concebe o homem do ressentimento — e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu “o inimigo mau”, “o mau”, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um “bom” — ele mesmo!...”


“Pois assim é: o apequenamento e nivelamento do homem europeu encerra nosso grande perigo, pois esta visão cansa... Hoje nada vemos que queira tornar-se maior, pressentimos que tudo desce, descende, torna-se mais ralo, mais plácido, prudente, manso, indiferente, medíocre, chinês, cristão — não há dúvida, o homem se torna cada vez “melhor”... E precisamente nisso está o destino fatal da Europa — junto com o temor do homem, perdemos também o amor a ele, a reverência por ele, a esperança em torno dele, e mesmo a vontade de que exista ele. A visão do homem agora cansa — o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do homem...”


“O problema da outra origem do “bom”, do bom como concebido pelo homem do ressentimento, exige sua conclusão. — Que as ovelhas tenham rancor às grandes aves de rapina não surpreende: mas não é motivo para censurar às aves de rapina o fato de pegarem as ovelhinhas. E se as ovelhas dizem entre si: “essas aves de rapina são más; e quem for o menos possível ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha — este não deveria ser bom?”, não há o que objetar a esse modo de erigir um ideal, exceto talvez que as aves de rapina assistirão a isso com ar zombeteiro, e dirão para si mesmas: “nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nada mais delicioso do que uma tenra ovelhinha”. — Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força.”


“Não é de espantar que os afetos entranhados que ardem ocultos, ódio e vingança, tirem proveito dessa crença, e no fundo não sustentem com fervor maior outra crença senão a de que o forte é livre para ser fraco, e a ave de rapina livre para ser ovelha — assim adquirem o direito de imputar à ave de rapina o fato de ser o que é... Se os oprimidos, pisoteados, ultrajados exortam uns aos outros, dizendo, com a vingativa astúcia da impotência: “sejamos outra coisa que não os maus, sejamos bons! E bom é todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a Deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, que foge de toda maldade e exige pouco da vida, como nós, os pacientes, humildes, justos” — isto não significa, ouvido friamente e sem prevenção, nada mais que: “nós, fracos, somos realmente fracos; convém que não façamos nada para o qual não somos fortes o bastante”; mas esta seca constatação, esta prudência primaríssima, que até os insetos possuem (os quais se fazem de mortos para não agir “demais”, em caso de grande perigo), graças ao falseamento e à mentira para si mesmo, próprios da impotência, tomou a roupagem pomposa da virtude que cala, renuncia, espera, como se a fraqueza mesma dos fracos — isto é, seu ser, sua atividade, toda a sua inevitável, irremovível realidade — fosse um empreendimento voluntário, algo desejado, escolhido, um feito, um mérito. Por um instinto de autoconservação, de autoafirmação, no qual cada mentira costuma purificar-se, essa espécie de homem necessita crer no “sujeito” indiferente e livre para escolher. O sujeito (ou, falando de modo mais popular, a alma) foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-assim como mérito.”


“— “Eu nada vejo, mas por isso ouço muito bem. É um cochichar e sussurrar cauteloso, sonso, manso, vindo de todos os cantos e quinas. Parece-me que mentem; uma suavidade visguenta escorre de cada som. A fraqueza é mentirosamente mudada em mérito, não há dúvida — é como você disse” —
— Prossiga!
— “e a impotência que não acerta contas é mudada em ‘bondade’; a baixeza medrosa, em ‘humildade’; a submissão àqueles que se odeia em ‘obediência’ (há alguém que dizem impor esta submissão — chamam-no Deus). O que há de inofensivo no fraco, a própria covardia na qual é pródigo, seu aguardar-na-porta, seu inevitável ter-de-esperar, recebe aqui o bom nome de ‘paciência’, chama-se também a virtude; o não-poder-vingar-se chama-se não-querer-vingar-se, talvez mesmo perdão (‘pois eles não sabem o que fazem — somente nós sabemos o que eles fazem!’). Falam também do ‘amor aos inimigos’ — e suam ao falar disso.”
— Prossiga!
— “São miseráveis, não há dúvida, esses falsificadores e cochichadores dos cantos, embora se mantenham aquecidos agachando-se apertados — mas eles me dizem que sua miséria é uma eleição e distinção por parte de Deus, que batemos nos cães que mais amamos; talvez essa miséria seja uma preparação, uma prova, um treino, talvez ainda mais — algo que um dia será recompensado e pago com juros enormes, em ouro, não! em felicidade. A isto chamam de ‘bem-aventurança’, ‘beatitude’.”
— Prossiga!
— “Agora me dão a entender que não apenas são melhores que os poderosos, os senhores da terra cujo escarro têm de lamber (não por temor, de modo algum por temor! e sim porque Deus ordena que seja honrada a autoridade) — que não apenas são melhores, mas também ‘estão melhores’, ou de qualquer modo estarão um dia. Mas basta, basta! Não aguento mais. O ar ruim! O ar ruim! Esta oficina onde se fabricam ideais — minha impressão é de que está fedendo de tanta mentira!”“


“Fé em quê? Amor a quê? Esperança de quê? — Esses fracos — também eles desejam ser os fortes algum dia, não há dúvida, também o seu “reino” deverá vir algum dia — chamam-no simplesmente “o Reino de Deus”, como vimos: são mesmo tão humildes em tudo! Para vivenciar isto é preciso viver uma vida longa, que ultrapasse a morte — é preciso a vida eterna para ser eternamente recompensado no “Reino de Deus” por essa existência terrena “no amor, na fé, na esperança”. Recompensado pelo quê? E como?... Parece-me que Dante se enganou grosseiramente, quando, com apavorante ingenuidade, colocou sobre a porta do seu inferno a inscrição “também a mim criou o eterno amor” — em todo caso, seria mais justificado se na entrada do paraíso cristão e sua “beatitude eterna” estivesse a inscrição “também a mim criou o eterno ódio” — supondo que uma verdade pudesse ficar sobre a porta que leva a uma mentira! Pois o que é a beatitude desse paraíso?... Talvez já pudéssemos adivinhar; mas é melhor o testemunho de alguém cuja autoridade na matéria não se pode subestimar: Tomás de Aquino, o grande mestre e santo. “Beati in regno coelesti”, diz ele, suave como um cordeiro, “videbunt poenas damnatorum, ut beatitudo illis magis complaceat” [Os abençoados no reino dos céus verão as penas dos danados, para que sua beatitude lhes dê maior satisfação]. Ou, querendo-se ouvir o mesmo num tom mais forte, da boca de um triunfante Pai da Igreja, por exemplo, desaconselhando aos seus cristãos as volúpias cruéis dos espetáculos públicos — mas por quê? “Pois a fé nos oferece muito mais” — diz ele, De spectaculis, cap. 29 ss. — “coisas muito mais fortes; graças à Redenção, dispomos de alegrias bem diversas; em lugar dos atletas temos nossos mártires; se queremos sangue, ora, temos o sangue de Cristo... mas que coisas nos esperam no dia do seu retorno, do seu Triunfo!” — e ele continua, o visionário extasiado:
 Mas restam outros espetáculos, aquele último e perpétuo dia do juízo, aquele dia não esperado pelos povos, dia escarnecido, quando tamanha antiguidade do mundo e tantas gerações serão consumidas num só fogo. Quão vasto será então o espetáculo! Como admirarei! Como rirei! Lá me alegrarei! Lá exultarei, vendo tantos e tão grandes reis, de quem se dizia estarem no céu, gemendo nas mais fundas trevas, junto ao próprio Júpiter e suas testemunhas. Do mesmo modo os líderes (os governadores das províncias), perseguidores do nome do Senhor, derretendo-se em chamas mais cruéis do que aquelas com que eles maltrataram os cristãos! E também aqueles sábios filósofos, que diante dos seus discípulos tornam-se rubros ao se consumirem no fogo, juntamente com eles, a quem persuadiam que nada pertence a Deus, a quem asseguravam que as almas ou não existem ou não retornarão aos corpos antigos! Os poetas também, a tremer, não diante do tribunal de Radamanto ou de Minos, mas daquele do Cristo inesperado! Então se escutará melhor os trágicos, a saber, melhor serão ouvidas as suas vozes (melhor a voz, maiores os gritos) em sua própria desgraça; então serão conhecidos os histriões, mais dissolutos no fogo, então se verá o auriga, todo rubro no carro flamejante, então se contemplarão os atletas, não no ginásio, mas no fogo lançando seus dardos, a não ser que eu nem queira esses espetáculos vivos, e antes prefira dirigir um olhar insaciável àqueles que maltrataram o Senhor: “Eis”, direi, “o filho do artesão e da prostituta (o que segue, e em especial esta designação para a mãe de Jesus, conhecida do Talmud, mostra que a partir daqui Tertuliano se refere aos judeus), o destruidor do Sábado, o Samaritano, o que tem o demônio. Eis aquele que comprastes de Judas, eis aquele que foi golpeado com a vara e com bofetadas, que foi humilhado com escarros, a quem foi dado de beber fel e vinagre. Eis aquele que os discípulos roubaram às escondidas, para que se dissesse que havia ressuscitado, ou aquele a quem o hortelão arrastou, para que suas alfaces não fossem machucadas pelo grande número de passantes”. Tais visões, tais alegrias, que pretor, ou cônsul, ou questor, ou sacerdote, te poderia oferecê-las, da sua própria generosidade? E no entanto, de certo modo já as possuímos mediante a fé, representadas no espírito que imagina. De resto, como são aquelas coisas que nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem subiram ao coração do homem? (1 Cor. 2,9) Creio que são mais agradáveis que o circo, que ambos os teatros, e todos os estádios.”


“Criar um animal que pode fazer promessas — não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?... O fato de que este problema esteja em grande parte resolvido deve parecer ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que atua de modo contrário, a do esquecimento. Esquecer não é uma simples força inercial, como creem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”. Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tábula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) — eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento.”


““Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” — eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra. Pode-se mesmo dizer que em toda parte onde, na vida de um homem e de um povo, existem ainda solenidade, gravidade, segredo, cores sombrias, persiste algo do terror com que outrora se prometia, se empenhava a palavra, se jurava: é o passado, o mais distante, duro, profundo passado, que nos alcança e que reflui dentro de nós, quando nos tornamos “sérios”. Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de crueldades) — tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o mais poderoso auxiliar da mnemônica. Em determinado sentido isso inclui todo o ascetismo: algumas ideias devem se tornar indeléveis, onipresentes, inesquecíveis, “fixas”, para que todo o sistema nervoso e intelectual seja hipnotizado por essas “ideias fixas” — e os procedimentos e modos de vida ascéticos são meios para livrar tais ideias da concorrência de todas as demais, para fazê-las “inesquecíveis”. Quanto pior “de memória” a humanidade, tanto mais terrível o aspecto de seus costumes; em especial a dureza das leis penais nos dá uma medida do esforço que lhe custou vencer o esquecimento e manter presentes, nesses escravos momentâneos do afeto e da cobiça, algumas elementares exigências do convívio social. (...) Com ajuda de tais imagens e procedimentos, termina-se por reter na memória cinco ou seis “não quero”, com relação aos quais se fez uma promessa, a fim de viver os benefícios da sociedade — e realmente! com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente “à razão”! — Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto o seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as “coisas boas”!...”


“Ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda — eis uma frase dura, mas um velho e sólido axioma, humano, demasiado humano, que talvez até os símios subscrevessem: conta-se que na invenção de crueldades bizarras eles já anunciam e como que “preludiam” o homem. Sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do homem — e no castigo também há muito de festivo!”


“O que revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas a sua falta de sentido: mas nem para o cristão, que interpretou o sofrimento introduzindo-lhe todo um mecanismo secreto de salvação, nem para o ingênuo das eras antigas, que explicava todo sofrimento em consideração a espectadores ou a seus causadores, existia tal sofrimento sem sentido. Para que o sofrimento oculto, não descoberto, não testemunhado, pudesse ser abolido do mundo e honestamente negado, o homem se viu então praticamente obrigado a inventar deuses e seres intermediários para todos os céus e abismos, algo, em suma, que também vagueia no oculto, que também vê no escuro, e que não dispensa facilmente um espetáculo interessante de dor. Foi com ajuda de tais invenções que a vida conseguiu então realizar a arte em que sempre foi mestra: justificar a si mesma, justificar o seu “mal”; agora ela talvez necessite de outros inventos (por exemplo, vida como enigma, vida como problema do conhecimento). “É justificado todo mal cuja visão distrai um deus”: assim falava a primitiva lógica do sentimento — e apenas a primitiva? Os deuses como amigos de espetáculos cruéis — oh, até onde essa antiquíssima ideia ainda hoje não permeia a nossa humanização europeia! Consulte-se Calvino e Lutero, por exemplo. É certo, de todo modo, que tampouco os gregos sabiam de condimento mais agradável para juntar à felicidade dos deuses do que as alegrias da crueldade. Com que olhos pensam vocês que os deuses homéricos olhavam os destinos dos homens? Que sentido tinham no fundo as guerras de Troia e semelhantes trágicos horrores? Não há como duvidar: eram festivais para os deuses; e, na medida em que os poetas sejam nisso mais “divinos” que os outros homens, eram também festivais para os poetas... De igual modo os filósofos morais da Grécia imaginaram depois os olhos do deus a observar a luta moral, o heroísmo e o autossuplício do virtuoso: o “Hércules do dever” estava sobre um palco, e sabia disso; a virtude sem testemunhas era algo impensável para esse povo de atores.”


“Vejo a má consciência como a profunda doença que o homem teve de contrair sob a pressão da mais radical das mudanças que viveu — a mudança que sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz. (...)
Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos instintos de liberdade — os castigos, sobretudo, estão entre esses bastiões — fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição — tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência. Esse homem que, por falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem “amansar”, que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente, consumido pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de converter em aventura, câmara de tortura, insegura e perigosa mata — esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da “má consciência”. Com ela, porém, foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo: como resultado de uma violenta separação do seu passado animal, como que um salto e uma queda em novas situações e condições de existência, resultado de uma declaração de guerra aos velhos instintos nos quais até então se baseava sua força, seu prazer e o temor que inspirava. Acrescentemos, de imediato, que com uma alma animal voltada contra si mesma, tomando partido contra si mesma, algo tão novo surgia na terra, tão inaudito, tão profundo, enigmático, pleno de contradição e de futuro, que o aspecto da terra se alterou substancialmente. De fato, necessitava-se de espectadores divinos, para fazer justiça ao espetáculo que então começava e cujo fim não se prevê — espetáculo demasiado fino, portentoso e paradoxal, para que pudesse acontecer absurdamente despercebido, num astro ridículo qualquer! O homem se inclui, desde então, entre os mais inesperados e emocionantes lances no jogo da “grande criança” de Heráclito, chame-se ela Zeus ou Acaso — ele desperta um interesse, uma tensão, uma esperança, quase uma certeza, como se com ele algo se anunciasse, algo se preparasse, como se o homem não fosse uma meta, mas apenas um caminho, um episódio, uma ponte, uma grande promessa...”


“Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro — isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua “alma”.”


“A inserção de uma população sem normas e sem freios numa forma estável, assim como tivera início com um ato de violência, foi levada a termo somente com atos de violência — que o mais antigo “Estado”, em consequência, apareceu como uma terrível tirania, uma maquinaria esmagadora e implacável, e assim prosseguiu seu trabalho, até que tal matéria-prima humana e semianimal ficou não só amassada e maleável, mas também dotada de uma forma. Utilizei a palavra “Estado”: está claro a que me refiro — algum bando de bestas louras, uma raça de conquistadores e senhores, que, organizada guerreiramente e com força para organizar, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma população talvez imensamente superior em número, mas ainda informe e nômade. Deste modo começa a existir o “Estado” na terra: penso haver-se acabado aquele sentimentalismo que o fazia começar com um “contrato”. Quem pode dar ordens, quem por natureza é “senhor”, quem é violento em atos e gestos — que tem a ver com contratos! Tais seres são imprevisíveis, eles vêm como o destino, sem motivo, razão, consideração, pretexto, eles surgem como o raio, de maneira demasiado terrível, repentina, persuasiva, demasiado “outra”, para serem sequer odiados. Sua obra consiste em instintivamente criar formas, imprimir formas, eles são os mais involuntários e inconscientes artistas — logo há algo novo onde eles aparecem, uma estrutura de domínio que vive, na qual as partes e as funções foram delimitadas e relacionadas entre si, na qual não encontra lugar o que não tenha antes recebido um “sentido” em relação ao todo. Eles não sabem o que é culpa, responsabilidade, consideração, esses organizadores natos; eles são regidos por aquele tremendo egoísmo de artista, que tem o olhar de bronze, e já se crê eternamente justificado na “obra”, como a mãe no filho. Neles não nasceu a má consciência, isto é mais do que claro — mas sem eles ela não teria nascido, essa planta hedionda, ela não existiria se, sob o peso dos seus golpes de martelo, da sua violência de artistas, um enorme quantum de liberdade não tivesse sido eliminado do mundo, ou ao menos do campo da visão, e tornado como que latente. Esse instinto de liberdade tornado latente à força — já compreendemos —, esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus começos a má consciência.”

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