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quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O Poder do Mito (Parte II) – Joseph Campbell com Bill Moyers

Editora: Palas Athena
ISBN: 978-85-7242-008-2
Organização: Betty Sue Flowers
Tradução: Carlos Felipe Moisés
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 242
Sinopse: Ver Parte I

(Quando não especificado, as falas são de Joseph Campbell.)


“A diferença entre um sacerdote e um xamã é que o primeiro é um funcionário e o segundo é alguém que teve uma experiência. Na nossa tradição é o monge que procura a experiência, enquanto o sacerdote é aquele que estudou para servir à comunidade.
Eu tive um amigo que assistiu a um encontro internacional das ordens meditativas católico romanas, que teve lugar em Bangkok. Ele me contou que os monges católicos não tinham dificuldade em compreender os monges budistas, mas o clero das duas religiões é que era incapaz de entender um ao outro.
A pessoa que teve uma experiência mística sabe que toda tentativa de expressá-la simbolicamente é imperfeita. Os símbolos não traduzem a experiência, apenas a sugerem. Se você não teve a experiência, como saber de que se trata? Tente explicar o prazer de esquiar a alguém que viva nos trópicos e nunca viu neve. É necessário que haja experiência para apreender a mensagem, alguma pista – do contrário você não ouve o que lhe estão dizendo.”


“MOYERS: Você fala do “transcendente”. O que é o transcendente? O que acontece às pessoas no transcendente?
CAMPBELL: “Transcendente” é um termo técnico, filosófico, traduzido de dois modos diferentes. Na teologia cristã, refere se a Deus como um ser além ou fora do campo da natureza. É uma maneira materialista de falar do transcendente, porque leva a pensar em Deus como um fato espiritual, existente em algum lugar, aí fora. Foi Hegel que falou de nosso deus antropomórfico como o vertebrado gasoso – uma ideia de Deus adotada por muitos cristãos. Ou então ele é concebido como um velho barbudo, com um temperamento não muito agradável. Mas “transcendente” significa propriamente aquilo que está além de todos os conceitos. Kant nos ensina que todas as nossas experiências estão limitadas por tempo e espaço. Elas ocorrem no espaço e no curso do tempo.
Tempo e espaço formam as vias sensíveis que moldam as nossas experiências. Nossos sentidos estão limitados pelo campo de tempo e espaço, e nossas mentes estão limitadas pela moldura das categorias de pensamento. Mas a coisa suprema (que não é coisa) com a qual estamos tentando entrar em contato não é limitada desse modo. Nós a limitamos na medida em que pensamos nela.
O transcendente transcende todas essas categorias de pensamento. Ser e não ser são categorias. A palavra “Deus” se refere propriamente àquilo que transcende o pensamento, mas a palavra “Deus”, em si, é algo pensado.
Pois bem, você pode personificar Deus de muitas e muitas maneiras. Existe um deus? Existem vários? Isso são meras categorias de pensamento. Aquilo de que você está falando, e tentando apreender pelo pensamento, transcende tudo isso.
Um dos problemas com Jeová, como se dizia nos velhos textos gnósticos cristãos, é que ele se esqueceu de que era uma metáfora. Ele pensou que era um fato. E quando ele disse “Eu sou Deus”, ouviu se uma voz a dizer: “Você está enganado, Samuel”. “Samuel” significa “deus cego”, cego em termos da Luz infinita da qual ele é uma manifestação histórica, local. Isto é conhecido como a blasfêmia de Jeová – aquele que pensou que era Deus.
MOYERS: Você está dizendo que Deus não pode ser conhecido?
CAMPBELL: Eu digo que a coisa suprema, seja o que for, está além das categorias de ser e não ser. Ela é ou não é? Como disse o Buda, segundo testemunhas: “É e não é ao mesmo tempo; nem é nem deixa de ser”. Deus, como supremo mistério do ser, está além do pensamento.”


““Toda vida é dolorosa” é o primeiro ensinamento budista, e assim é. Não haveria vida sem a implicação da temporalidade, que significa dor, perda. É preciso dizer sim à vida e encará-la como magnificente, do jeito que é; pois foi certamente assim que Deus a concebeu.
MOYERS: Você realmente acredita nisso?
CAMPBELL: Ela é cheia de alegria, tal como é. Não acredito que alguém a tenha concebido assim, mas é assim que ela é. James Joyce tem uma frase inesquecível: “A história é um pesadelo de que estou tentando despertar”. E a maneira de despertar é não ter medo e reconhecer que tudo isso, tal qual é, é a manifestação do horrendo poder contido em toda criação. A finitude das coisas é sempre dolorosa. Mas a dor, em suma, é parte integrante da existência do mundo.”


“Jesus diz: “Não julgue, para não ser julgado”. O que significa dizer: Situe-se de volta na posição do Paraíso, antes de pensar em termos de bem e mal. Não é exatamente o que se ouve nos púlpitos.”


“Eu diria que esse é o tema básico de toda mitologia: o de que existe um plano invisível sustentando o visível.”


“MOYERS: E aquele que viveu essa experiência psicológica, essa experiência traumática, esse êxtase, viria a se tornar, para os demais, o intérprete das coisas invisíveis.
CAMPBELL: Viria a se tornar o intérprete da herança da vida mitológica, você poderia dizer.
MOYERS: E o que o conduz a isso?
CAMPBELL: O melhor exemplo que conheço, e que pode ajudar a responder a essa pergunta, é a experiência de Black Elk.
Black Elk era um jovem sioux de cerca de nove anos de idade. Pois bem, isso aconteceu antes que a cavalaria americana encontrasse os sioux, que eram o grande povo das planícies. O menino ficou doente, psicologicamente doente. Sua família conta, a respeito, uma típica história xamânica. A criança começa a tremer e é imobilizada. A família, muito preocupada, manda vir um xamã (que tinha tido uma experiência semelhante, na juventude) para, como uma espécie de psicanalista, livrar o menino do que o afligia. Mas em vez de livrá-lo das divindades, o xamã trata de adaptá-lo a elas, e vice-versa. É uma perspectiva diferente daquela da psicanálise. Creio que foi Nietzsche quem disse: “Tome cuidado, para que, ao se desfazer dos demônios, você não se desfaça do que há de melhor em você”. Aqui, as divindades que foram encontradas – os poderes, chamemos assim – foram mantidos. A conexão é confirmada e não rompida. E esses homens se tornam conselheiros espirituais e propiciadores de recompensas a seu povo.
Bem, o que aconteceu a esse garoto é que ele teve uma visão profética do terrível futuro da sua tribo. Foi uma visão do que ele chamou “o arco” da nação. Na visão, Black Elk viu o arco da sua nação como um dos muitos arcos – e isso é algo que nós próprios ainda não chegamos a compreender corretamente. Ele viu a cooperação entre todos os arcos, todas as nações, numa grande procissão. Mas, mais do que isso, a visão foi a experiência dele mesmo atravessando reinos das imagens espirituais, formadoras da sua cultura, e assimilando o seu significado. Isso resultou numa afirmação, que é para mim uma afirmação chave para a compreensão do mito e dos símbolos. Ele disse: “Eu vi a mim mesmo na montanha do centro do mundo, o lugar mais alto, e tive uma visão, porque estava vendo do modo sagrado de ver o mundo”. A montanha sagrada do centro do mundo à qual ele se referia era o Harney Peak, na Dakota do Sul. E então ele diz: “Mas a montanha do centro do mundo está em toda parte”.
Isto é, de fato, uma tomada de consciência mitológica. Isso distingue entre a imagem do culto local, o Harney Peak, e sua conotação como centro do mundo. O centro do mundo é o axis mundi [eixo do mundo], o ponto central, o polo ao redor do qual as coisas giram. O ponto central do mundo é o ponto em que o repouso e o movimento se encontram. Movimento é tempo, mas repouso é eternidade. Ter consciência deste momento da sua vida como um momento de eternidade, vivenciar o aspecto eterno do que você está realizando no plano temporal – essa é a experiência mitológica.
Assim, a montanha do centro do mundo está em Jerusalém? Em Roma? Em Benares? Lhasa? Na Cidade do México?
MOYERS: Esse menino sioux estava dizendo que existe um ponto luminoso que é a intersecção de todas as linhas.
CAMPBELL: Foi exatamente isso que ele disse.
MOYERS: E estava dizendo que Deus não tem circunferência?
CAMPBELL: Há uma definição de Deus que tem sido repetida por muitos filósofos. Deus é uma esfera inteligível – uma esfera acessível à mente, não aos sentidos – cujo centro está em toda parte e a circunferência, em parte nenhuma. E o centro se localiza exatamente aí onde você está sentado. E também aqui, onde eu estou sentado.
E cada um de nós é uma manifestação desse mistério. É uma bela compreensão mitológica, do tipo que lhe dá um senso de quem e do que você é.
MOYERS: Então é uma metáfora, uma imagem da realidade.
CAMPBELL: Sim. O que temos aqui poderia ser entendido como puro individualismo, não é verdade?, caso você não se aperceba de que o centro também está exatamente aí, diante de você, na outra pessoa. Essa é a maneira mitológica de ser um indivíduo. Você é a montanha do centro, e a montanha do centro está em toda parte.”


“Você pode ter uma ideia do que enforma uma sociedade pelo seu edifício mais alto. Ao se aproximar de uma cidade medieval, você vê que a catedral se eleva acima de tudo. Ao se aproximar de uma cidade do século XVIII, o palácio do governo é o prédio mais alto. E ao se aproximar de uma cidade moderna, os edifícios mais altos são os prédios de escritórios, os centros da vida econômica.”


“MOYERS: Quem interpreta a divindade inerente à natureza, para nós, hoje? Quem são nossos xamãs? Quem interpreta, para nós, as coisas que não são vistas?
CAMPBELL: Essa é a função do artista. O artista é aquele que transmite os mitos, hoje. Mas ele precisa ser um artista que compreenda a mitologia e a humanidade, e não simplesmente um sociólogo com um programa.
MOYERS: E quanto aos vulgares, os que não são poetas nem artistas, ou que nunca tiveram um êxtase transcendente? Como distingui-los?
CAMPBELL: Vou lhe dizer uma maneira, uma maneira muito boa. Sente se numa sala e leia – leia, leia, leia. E leia os livros certos escritos pelas pessoas certas. Sua mente será levada a esse nível, e você terá, o tempo todo, um enlevo agradável, suave, cálido. Essa compreensão da vida pode ser uma compreensão constante em seu viver. Quando você encontrar um autor que o prenda de verdade, leia tudo o que ele escreveu. Não diga: “Ah, preciso conhecer o que fulano ou beltrano fizeram”, e nunca perca tempo com as listas de best-sellers. Leia apenas o que esse determinado autor tem a lhe oferecer. Depois você poderá ler o que ele tenha lido. Então o mundo se abrirá, em coerência com um certo ponto de vista. Mas quando você salta de um autor para outro, isso o habilita a dizer em que data cada um deles escreveu este ou aquele poema – mas nenhum deles lhe terá dito nada.”


 “A sociedade é sempre patriarcal. A natureza é sempre matrilinear.”


“Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo.”


“Todas as religiões foram verdadeiras, para o seu tempo. Quem for capaz de reconhecer o aspecto não perecível da sua verdade e separá-lo do que é circunstancial, terá apreendido isso.”


“Ama os teus inimigos porque eles são os instrumentos do teu destino.”


“MOYERS: A maioria dos mitos não diz que o sofrimento é parte integrante da vida e não há como livrar se dele?
CAMPBELL: Não sei de nenhum mito que diga que você não vai sofrer, se viver. Os mitos nos dizem como enfrentar, como suportar e interpretar o sofrimento, mas nenhum diz que na vida não pode ou não deve haver sofrimento.
Quando o Buda declara que há uma saída para o padecimento, essa saída é o nirvana, que não é um lugar, como o céu, mas um estado psicológico da mente, no qual você se libera do desejo e do medo.
MOYERS: E a sua vida se torna...
CAMPBELL: ...harmoniosa, concentrada, afirmativa.
MOYERS: Mesmo com sofrimento?
CAMPBELL: Exato. Os budistas falam do bodhisattva, aquele que conhece a imortalidade, não obstante ingresse voluntariamente no campo da fragmentação temporal e participe, intencionalmente, com alegria, das dores do mundo. E isso significa não apenas sofrer dores em si mesmo, mas participar, com compaixão, das dores alheias. Quando o coração desperta e transita do egoísmo bestial para a verdadeira humanidade, aí se dá a compaixão. A palavra “compaixão” significa, literalmente, “sofrer com”.”


“Nenhum de nós estaria aqui se não estivéssemos comendo continuamente. O que você come é sempre algo que, um momento antes, estava vivo. Este é o mistério sacramental do alimento e da comida, que raramente nos vem à mente, quando nos sentamos para comer. Se dizemos graças, antes das refeições, agradecemos a essa figura provinda da Bíblia, pelo nosso alimento. Mas, nas mitologias primitivas, quando se preparavam para comer, as pessoas agradeciam ao animal, que estavam prestes a consumir, por ter se doado, em sacrifício voluntário.
Há um dito magnífico, num dos Upanixades: “Oh maravilhoso, oh maravilhoso, oh maravilhoso, eu sou alimento, eu sou alimento, eu sou alimento! Eu sou um comedor de alimento, eu sou um comedor de alimento, eu sou um comedor de alimento!” Já não pensamos assim, hoje, a respeito de nós mesmos. Mas agarrando-se a você mesmo, e não se permitindo ser alimento, você pratica o ato negativo primordial, enquanto negação da vida. Você interrompe o fluxo! E a liberação do fluxo é a grande experiência do mistério, inerente ao ato de agradecer a um animal, que está prestes a ser comido, por ter se doado. Você também será doado, quando chegar o momento.”


“MOYERS: E, apesar disso, um dos meus mitos favoritos é uma história persa, que diz que Satã foi condenado ao inferno porque amava demasiado a Deus.
CAMPBELL: Sim, essa é uma ideia básica do islamismo, a de que Satã é o maior dos amantes de Deus. Há várias maneiras de pensar em Satã, mas esta se baseia na questão: Por que Satã foi lançado ao inferno? A história convencional diz que, tendo criado os anjos, Deus disse lhes que não se curvassem senão diante dele. E então criou o homem, que ele concebeu como uma forma mais elevada que os anjos, pedindo a estes que o servissem. E Satã não se curvaria diante do homem.
Pois bem, isso é interpretado na tradição cristã, conforme me lembro do que aprendi na infância, como sendo o orgulho de Satã. Ele não se curvaria diante do homem. Mas, na história persa, ele não se curvaria diante do homem por causa do seu amor a Deus; ele só se curvaria diante de Deus. Deus mudou os sinais, você percebe? Mas Satã estava tão envolvido com o primeiro conjunto de sinais que não poderia transgredi-los, e em seu... não sei se Satã tem ou não um coração... mas em sua mente ele não podia curvar-se diante de ninguém, exceto Deus, a quem ele amava. Então Deus diz: “Saia da minha vista”.
Bem, o pior dos padecimentos do inferno, a julgar pelo que sabemos dele, é a ausência do Bem-amado, que é Deus. Então, como Satã se mantém no inferno? Pela memória do eco da palavra de Deus, que lhe disse: “Vá para o inferno”. Isso é um grande indício de amor.
MOYERS: Bem, na vida, não há dúvida de que o pior dos infernos que alguém pode suportar é estar separado de quem ama. Por isso me tocou o mito persa. Satã é amante de Deus...
CAMPBELL: ...e está separado de Deus; essa é a sua verdadeira dor.”


“MOYERS: Alegria e sofrimento se reúnem no amor.
CAMPBELL: Sim. O amor é o ponto de combustão da vida; como a vida é dolorosa, assim é o amor. Quanto maior o amor, maior o sofrimento.
MOYERS: Mas o amor resiste a tudo.
CAMPBELL: O amor em si é dor, você poderia dizer, a dor de estar verdadeiramente vivo.”


“MOYERS: Tendo entrado em contato com diversas visões de mundo, tendo mergulhado em tantas culturas, civilizações e religiões, você encontrou algo, comum a todas elas, que gere a necessidade de Deus?
CAMPBELL: Todo indivíduo que teve uma experiência com o mistério sabe que há uma dimensão do universo que não corresponde àquela avaliável pelos sentidos. Há uma afirmação pertinente em um dos Upanixades: “Quando, diante da beleza do pôr do sol ou de uma montanha, você para e exclama ‘Ah’, você está participando da divindade”. Tal momento de participação envolve uma percepção da prodigiosa e pura beleza da existência. As pessoas que vivem no mundo da natureza experimentam isso todos os dias. Elas experimentam o reconhecimento de algo muito maior do que a dimensão humana. A tendência do homem, contudo, é personificar essas experiências para antropomorfizar forças naturais.
Em nosso modo ocidental de pensar, Deus é visto como fonte última ou causa das energias e do mistério do universo. Mas na maior parte do pensamento oriental, e também no primitivo, os deuses são manifestações e provimento de uma energia que é, na verdade, impessoal. Eles não são a fonte dessa energia. São o veículo dela. E a força ou qualidade da energia por eles representada determina o caráter e a função do deus. Há deuses da violência, há deuses da compaixão, há deuses que unem os mundos do invisível e do visível e há deuses que simplesmente são os protetores de reis ou nações em suas campanhas de guerra. São personificações da energia posta em jogo. Mas a fonte última da energia permanece um mistério.”


“MOYERS: Mas se Deus é o deus que somente imaginamos, como podemos ficar amedrontados diante de nossa própria criação?
CAMPBELL: Como podemos ficar aterrorizados com um sonho? Você tem que ultrapassar a sua imagem de Deus para atingir a iluminação conotada. O psiquiatra Jung tem uma frase relevante: “A religião é uma defesa contra a experiência de Deus”.
O mistério tem sido reduzido a uma série de conceitos e ideias e enfatizá-los pode provocar um curto circuito no transcendente, na experiência conotada. O que se deve almejar como experiência religiosa final é uma intensa experiência do mistério.”
MOYERS: Há muitos cristãos que acreditam que, para descobrir o que é Jesus, é preciso ultrapassar a fé cristã, a doutrina cristã, a Igreja cristã...
CAMPBELL: Você deve ultrapassar a imagem idealizada de Jesus. Tal imagem de Deus torna se um bloqueio, uma barreira para a pessoa. Você se agarra à sua própria ideologia, à sua maneira estreita de pensar e, quando se aproxima uma experiência maior de Deus, uma experiência bem maior do que a que você está preparado para receber, você foge dela e se apega à imagem que tem em sua mente. Isso é conhecido como a preservação da sua fé.
Você conhece a ideia da ascensão do espírito através de diferentes centros ou estágios arquetípicos de experiência. Começa-se com experiências animais elementares de fome e voracidade, depois furor sexual, e assim vai, passando se de um domínio físico a outro. Todos são estágios fortalecedores da experiência. Mas, depois, quando o centro do coração é tocado e um sentimento de compaixão se ergue em direção a uma outra pessoa, e você percebe que vocês dois são criaturas que participam de uma mesma vida, abre-se no espírito todo um novo estágio de vida. Essa abertura do coração para o mundo é mitologicamente simbolizada como nascimento virginal, que significa o nascimento de uma vida espiritual onde havia inicialmente uma forma humana animal elementar, vivendo para atender apenas a necessidades físicas de saúde, procriação, poder e alguma diversão.
Mas aqui chegamos a algo mais significativo. Experimentar esse sentimento de compaixão, acordo ou mesmo identidade com alguém ou algum princípio que transcenda o ego e seja aceito como digno de ser reverenciado e servido, é o começo, em definitivo, do apropriado modo de vida e experiência religiosos; e isso pode, então, conduzir à busca de uma experiência completa daquele Ser dos seres, do qual todas as formas temporais são o reflexo – busca essa que leva a vida toda.
Ora, esse fundamento último de todos os seres pode ser experimentado em dois sentidos, um em que há forma e outro que não contém forma ou a excede. Quando você experimenta seu deus como forma, há a sua mente, que contempla, e há o deus. Há um sujeito e um objeto. Mas o objetivo místico final é unir se a deus. Com isso, a dualidade é superada e as formas desaparecem. Não há ninguém, nem deus, nem você. Sua mente, ultrapassando todos os conceitos, dissolveu se na identificação com o fundamento de seu próprio ser, porque aquilo a que se refere a imagem metafórica de seu deus é o mistério último do seu próprio ser, o qual é também o mistério do ser do mundo.”


“Pedro sacou sua espada e cortou a orelha do servo, e Jesus disse: “Guarda tua espada, Pedro”. Mas Pedro continuou com sua espada e seu trabalho, desde então.”


“MOYERS: Portanto, a experiência de Deus está além do que podemos descrever, mas nos sentimos compelidos a tentar descrevê-la?
CAMPBELL: Correto. Schopenhauer, em seu esplêndido ensaio intitulado “Sobre a aparente intencionalidade no destino do indivíduo”, assinala que, quando você alcança uma idade avançada e olha para o tempo de vida que ficou para trás, pode lhe parecer que este teve uma ordem e um plano consistentes, como se concebidos por algum romancista. Acontecimentos que, quando ocorreram, pareciam acidentais e passageiros transformam se em fatores indispensáveis na composição do enredo. Então, quem compôs esse enredo? Schopenhauer sugere que, assim como os seus sonhos se engendram a partir de um aspecto seu que é ignorado por sua consciência, toda a sua vida é engendrada pela vontade que há em você. E, assim como as pessoas que você teria conhecido por mero acaso transformam-se em agentes importantes na estruturação da sua vida, você também terá servido, sem o saber, como um agente atribuidor de significação às vidas de outras pessoas. O sistema todo movimenta-se e ajusta-se como uma grande sinfonia, em que cada coisa inconscientemente estrutura as demais. E Schopenhauer conclui que é como se nossas vidas fossem as imagens do grande sonho de um único sonhador, em que todos os personagens do sonho sonhassem também; desse modo, tudo se liga a tudo, movido por uma vontade de vida que é a vontade universal da natureza.
É uma ideia magnífica. Ela aparece na índia, na imagem mítica da Rede de Indra, uma rede de pedras preciosas na qual, em cada cruzamento de um fio com outro, há uma pedra refletindo todas as demais. Cada coisa emerge em mútua relação com as outras, de modo que você não pode censurar ninguém por coisa alguma. É exatamente como se houvesse uma única intenção atrás de tudo, sempre com algum sentido, embora nenhum de nós saiba que sentido é, nem tenha vivido a vida que de fato tencionou viver.”

Um comentário:

  1. - Aos leitores deste livro, convém a apreciação da obra “Ortodoxia” (http://listadelivros-doney.blogspot.com.br/2017/03/ortodoxia-parte-i-g-k-chesterton.html e http://listadelivros-doney.blogspot.com.br/2017/03/ortodoxia-parte-ii-g-k-chesterton.html), de G. K. Chesterton, por defender um ponto de vista inverso ao de Joseph Campbell.
    São duas boas defesas de distintas opiniões.
    *
    - Alguns trechos do livro “O Poder do Mito” são embrenhados, de maneira muito patente, de uma furiosa ideologia neoliberal – chegando ao extremo ridículo de dizer que o vilão de Star Wars, Darth Wader, na verdade representa o Estado (!).
    A ideologia neoliberal, de fato, comumente é mais patética do que vulgar.
    De qualquer forma, trechos assim explicitam o nível, o poder que a ideologia de tal sistema pode – e pretende – chegar. Da biologia (e o tal gene egoísta), a religião (teologia da prosperidade), e até mesmo o misticismo/mitologia, parece que não há nada que o neoliberalismo não consiga corromper.

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