Editora: Fundação Calouste Gulbenkian
ISBN: 978-97-2310-623-7
Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão
Introdução e notas: Alexandre Fradique Morujão
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 682
Sinopse: Ver Parte
I
“Nada nos é efetivamente dado além da percepção
e do progresso empírico desta para outras percepções possíveis. Porquanto, em si
mesmos, os fenômenos, sendo simples representações, só são reais na percepção que,
de fato, é unicamente a realidade de uma representação empírica, isto é, de um fenômeno.
Chamar coisa real a um fenômeno, antes da percepção, ou significa que no progresso
da experiência poderemos chegar a uma tal percepção ou não significa nada. Pois
que só poderia absolutamente dizer-se que existe em si mesma, sem relação com os
nossos sentidos e experiência possível, se se tratasse de uma coisa em si. Trata-se
apenas de um fenômeno no espaço e no tempo, que não é determinação de coisas em
si, mas unicamente da nossa sensibilidade; daí que o que neles se encontra (nos
fenômenos) não seja algo em si, mas simples representações que, quando não dadas
em nós (na percepção), em parte alguma se encontram.
A faculdade de intuição sensível é propriamente
apenas uma simples receptividade que nos torna capazes de ser afetados de certo
modo por representações cuja relação recíproca é uma intuição pura do espaço e do
tempo (meras formas da nossa sensibilidade), e que se denominam objetos,
na medida em que são ligadas e determináveis nessa relação (no espaço e no tempo)
segundo leis da unidade da experiência. A causa não-sensível destas representações
é-nos totalmente desconhecida; não a podemos, por conseguinte, intuir como objeto,
pois tal objeto não poderia ser representado nem no espaço nem no tempo (como simples
condições da representação sensível), condições sem as quais não poderíamos conceber
qualquer intuição. Entretanto, podemos dar o nome de objeto transcendental à causa
simplesmente inteligível dos fenômenos em geral, só para termos algo que corresponda
à sensibilidade considerada como uma receptividade. A este objeto transcendental
podemos atribuir toda a extensão e encadeamento das nossas percepções possíveis
e dizer que é dado em si, anteriormente a qualquer experiência. Os fenômenos, porém,
em relação a ele, não são dados em si, mas unicamente nesta experiência, porque
são simples representações que só enquanto percepções significam um objeto real,
isto é, quando essas percepções se encadeiam com todas as outras, segundo as regras
da unidade da experiência. Assim, pode dizer-se que as coisas reais do tempo passado
são dadas no objeto transcendental da experiência; mas só são objetos para mim e
só são reais no tempo passado, na medida em que me represento que uma série regressiva
de percepções possíveis segundo leis empíricas (quer seja seguindo o fio da história,
quer seguindo na pegada das causas e efeitos) ou, numa palavra, o curso do mundo,
conduz a uma série decorrida de tempo, como condição do tempo presente. Contudo,
esta série não é representada como real a não ser no encadeamento de uma experiência
possível, e não em si mesma, de sorte que todos os acontecimentos decorridos desde
tempos imemoriais, anteriormente à minha existência, significam apenas a possibilidade
de prolongar o encadeamento da experiência, remontando da percepção presente às
condições que a determinam quanto ao tempo.
Quando, por conseguinte, me represento a totalidade
dos objetos dos sentidos, existentes em todo o tempo e em todos os espaços, não
os situo no tempo e no espaço antes da experiência, mas esta representação não é
outra coisa que o pensamento de uma experiência possível em sua integralidade absoluta.
Só nela nos são dados estes objetos (que apenas são meras representações). Quando
se diz, porém, que existem antes de toda a minha experiência, isto significa unicamente
que se devem encontrar na parte da experiência, para a qual tenho, antes de mais,
que avançar a partir da percepção. A causa das condições empíricas deste progresso
e, portanto, que membros posso encontrar na regressão, ou mesmo até onde poderei
encontrá-los, tudo isto é transcendental e, por conseguinte, necessariamente desconhecido
para mim. Não é disto que se trata, porém, mas tão-só da regra do progresso da experiência
em que me são dados os objetos, ou seja, os fenômenos. Também é indiferente, do
ponto de vista do resultado, que eu diga que na progressão empírica no espaço poderia
encontrar estrelas cem vezes mais distantes do que as mais longínquas que diviso;
ou que diga que é possível que se encontrem estrelas no espaço, embora ninguém jamais
as visse ou deva alguma vez vê-las. Com efeito, embora fossem dadas como coisas
em si, sem relação com uma experiência possível em geral, para mim nada são e, por
conseguinte, não são objetos, exceto enquanto contidos na série da regressão empírica.
Só numa relação diversa, isto é, se esses fenômenos tiverem de servir para constituir
a ideia cosmológica de um todo absoluto e tratando-se já de um problema que excede
os limites da experiência possível, só então tem importância a distinção da maneira
pela qual se considera a realidade desses objetos dos sentidos, a fim de prevenir
uma opinião ilusória, que seria o inevitável resultado da falsa interpretação dos
nossos conceitos da experiência.”
“Se a razão pode possuir causalidade em relação
aos fenômenos, é porque é uma faculdade, pela qual começa, primeiramente, a condição
sensível de uma série empírica de efeitos. Porque a condição que se encontra na
razão não é sensível e, portanto, ela mesma não começa. Sendo assim, verifica-se
então aqui o que nos faltava em todas as séries empíricas, a saber, que a condição
de uma série sucessiva de acontecimentos possa ser, ela mesma, empiricamente
incondicionada. Porque aqui a condição se encontra fora da série dos fenômenos
(no inteligível) e, por conseguinte, não está submetida a qualquer condição sensível
e a qualquer determinação de tempo mediante uma causa anterior.
A mesma causa, todavia, pertence também, noutro
aspecto, à série dos fenômenos. O próprio homem é fenômeno. O seu arbítrio tem um
carácter empírico que é a causa (empírica) de todas as suas ações. Não há nenhuma
das condições, que determinam o homem de acordo com este carácter, que não esteja
contida na série dos efeitos naturais e não obedeça à lei desses efeitos, mercê
da qual não se encontra nenhuma causalidade empiricamente incondicionada do que
acontece no tempo. Eis porque nenhuma ação dada (porque só pode ser percebida como
fenômeno) pode começar por si absolutamente. Mas não se pode dizer da razão que
o estado, em que ela determina o arbítrio, seja precedido de outro em que esse próprio
estado é determinado. Visto a própria razão não ser um fenômeno e não estar submetida
a quaisquer condições da sensibilidade, não se verifica nela, quanto à sua causalidade,
nenhuma sucessão no tempo, e, por conseguinte, não se lhe pode aplicar a lei dinâmica
da natureza, que determina por regras a sucessão temporal.
A razão é, pois, a condição permanente de todas
as ações voluntárias pelas quais o homem se manifesta. Cada uma delas está determinada
no carácter empírico do homem ainda antes de acontecer. Em relação ao carácter inteligível,
de que aquele é apenas o esquema sensível, nenhum antes ou depois é válido
e toda a ação, independentemente da relação de tempo em que juntamente com outros
fenômenos se insere, é o efeito imediato do carácter inteligível da razão pura.
Esta, por conseguinte, age livremente, sem que seja dinamicamente determinada, na
cadeia das causas naturais, por princípios, externos ou internos, mas precedentes
no tempo; e esta sua liberdade não se pode considerar apenas negativamente, como
independência perante as condições empíricas (de outro modo a faculdade da razão
deixaria de ser uma causa dos fenômenos), mas também, positivamente, como faculdade
de iniciar, por si própria, uma série de acontecimentos, de tal sorte que nela própria
nada começa, mas, enquanto condição incondicionada de toda a ação voluntária não
permite quaisquer condições antecedentes no tempo, muito embora o seu efeito comece
na série dos fenômenos, mas sem poder aí constituir um início absolutamente primeiro.”
“A esperança de um melhor sucesso não abandona
nunca por completo aqueles que uma vez se habituaram à persuasão dogmática.”
“Há uma grande diferença entre o que é dado à
minha razão como objeto pura e simplesmente e o que é dado somente como objeto
na ideia. No primeiro caso, os meus conceitos têm por fim a determinação do
objeto; no segundo, há na verdade só um esquema, ao qual se não atribui diretamente
nenhum objeto, nem mesmo hipoteticamente, e que serve tão-só para nos permitir a
representação de outros objetos, mediante a relação com essa ideia, na sua unidade
sistemática, ou seja, indiretamente. Assim, afirmo que o conceito de uma inteligência
suprema é uma simples ideia, isto é, que a sua realidade objetiva não consiste na
referência direta a um objeto (porque nesse sentido não poderíamos justificar a
sua validade objetiva); é apenas o esquema de um conceito de uma coisa em geral,
ordenado de acordo com as condições da máxima unidade racional e servindo unicamente
para conservar a maior unidade sistemática no uso empírico da nossa razão, na medida
em que, de certa maneira, o objeto da experiência se deriva do objeto imaginário
dessa ideia, como de seu fundamento ou causa. Em tal caso, diz-se, por exemplo,
que as coisas do mundo têm de ser consideradas como se derivassem a sua existência
de uma inteligência suprema. Deste modo, a ideia é, em verdade, somente um conceito
heurístico e não um conceito ostensivo e indica, não como é constituído um objeto,
mas como, sob a sua orientação, devemos procurar a constituição e ligação
dos objetos da experiência em geral. Desde que se possa, então, mostrar que., apesar
das três espécies transcendentais (psicológicas, cosmológicas e teológicas)
não poderem referir-se diretamente a nenhum objeto que lhes corresponda, nem à sua
determinação, todas as regras do uso empírico da razão conduzem, no entanto,
à sua unidade sistemática, mediante o pressuposto de um tal objeto na ideia,
e dilatam sempre o conhecimento da experiência, sem nunca lhe poder ser contrárias;
proceder de acordo com essas ideias será, por conseguinte, uma máxima necessária
da razão. E esta é a dedução transcendental de todas as ideias da razão especulativa,
não enquanto princípios constitutivos da ampliação do nosso conhecimento,
mas enquanto princípios reguladores da unidade sistemática do diverso do
conhecimento empírico em geral, que desse modo melhor se corrige e consolida nos
seus limites próprios, do que sem essas ideias e pelo simples uso dos princípios
do entendimento.”
“Podemos agora confirmar esta afirmação, à primeira
vista ousada, relativamente aos dois problemas em que a razão pura põe o maior interesse
e, deste modo, completarmos as nossas considerações sobre a dialética da razão pura.
Se perguntarmos então (no que respeita a uma teologia
transcendental, em primeiro lugar, se há alguma coisa distinta do mundo que
contenha o fundamento da ordem do mundo e do seu encadeamento segundo leis universais,
a resposta será: sem dúvida. Efetivamente, o mundo é um somatório de fenômenos;
deve portanto existir, para esses fenômenos, um fundamento transcendental, isto
é, um fundamento simplesmente pensável pelo entendimento puro. Se perguntarmos,
em segundo lugar, se esse ser é uma substância e se essa substância possui
a realidade máxima, se é necessária, etc., respondo que essa pergunta não tem
significação alguma. Realmente, todas as categorias, mediante as quais
procuro formar um conceito de um tal objeto, apenas são de uso empírico e não têm
mesmo sentido algum se não forem aplicadas a objetos da experiência possível, isto
é, ao mundo sensível. Fora deste campo, são meros títulos de conceitos, que se podem
admitir, mas por seu intermédio nada se pode compreender. Finalmente, em terceiro
lugar, à pergunta, se não podemos pelo menos pensar esse ser distinto do mundo,
por analogia com os objetos da experiência, a resposta é a seguinte: sem
dúvida, mas apenas como objeto na ideia e não na realidade; ou seja, unicamente
na medida em que é um substrato, para nós desconhecido, da unidade sistemática,
da ordem e da finalidade da constituição do mundo, da qual a razão deve fazer princípio
regulador para a sua investigação da natureza. Mais ainda, podemos admitir nessa
ideia, francamente e sem receio de censura, certos antropomorfismos, que são necessários
ao princípio regulador de que aqui se trata. Com efeito, é sempre apenas uma ideia,
que não se encontra diretamente referida a um ser distinto do mundo, mas ao princípio
regulador da unidade sistemática do mundo, o que só pode ter lugar por intermédio
de um esquema desta unidade, ou seja, de uma inteligência suprema que seja causa
do mundo segundo desígnios de sabedoria. Com isto não pode ser concebido o que seja
em si mesmo esse fundamento originário da unidade do mundo, mas apenas como o devemos
utilizar, ou melhor, utilizar a sua ideia, relativamente ao uso sistemático da razão,
com vista às coisas do mundo.
Mas desta maneira (continuar-se-á a perguntar)
podemos admitir um autor do mundo, único, sábio e omnipotente? Sem dúvida
alguma. E não só podemos como ainda devemos admiti-lo. Não iremos, assim,
estender o nosso conhecimento para além do campo da experiência possível? De
modo algum, pois apenas admitimos algo, do qual não possuímos conceito algum
do que seja em si mesmo (um objeto puramente transcendental); mas, em relação à
ordem sistemática e final da fábrica do mundo, que temos de pressupor quando estudamos
a natureza, pensamos aquele ser, que nos é desconhecido, só por analogia com
uma inteligência (um conceito empírico), isto é, com relação aos fins e à perfeição
que se fundam nele, dotamo-lo precisamente daquelas qualidades que, conforme as
condições da nossa razão, podem conter o fundamento de uma tal unidade sistemática.
Esta ideia é, portanto, perfeitamente fundada, quanto ao uso da nossa razão no
que respeita ao mundo. Mas se quisermos atribuir-lhe um valor absolutamente
objetivo, esqueceríamos que é simplesmente um ser na ideia que nós pensamos e, começando
então por um fundamento, de nenhum modo determinável pela consideração do mundo,
estaríamos por isso postos fora da possibilidade de aplicar convenientemente este
princípio ao uso empírico da razão.
Mas (perguntar-se-á ainda) posso eu, deste modo,
fazer uso do conceito e do pressuposto de um ser supremo na consideração racional
do mundo? Sim e é propriamente para isso que essa ideia foi posta como fundamento
pela razão. Simplesmente, ser-me-á lícito considerar como fins intencionais, disposições
análogas a finalidades, derivando-as da vontade divina, embora mediante disposições
particulares estabelecidas para esse efeito no mundo? Sim, também o podeis fazer,
mas com a condição de vos ser indiferente que alguém diga que a sabedoria divina
tudo assim ordenou para os seus fins supremos ou que a ideia da sabedoria suprema
é alguma coisa de regulador na investigação da natureza e um princípio da sua unidade
sistemática e teleológica segundo leis universais da natureza, mesmo no caso em
que não as apercebamos; isto é, deve ser-vos perfeitamente indiferente, quando observardes
essa unidade, dizer que Deus assim o quis na sua sabedoria ou que a natureza assim
o ordenou sabiamente. Com efeito, a maior unidade sistemática e finalista que a
vossa razão queria dar por fundamento a toda a ciência da natureza, como princípio
regulador, era precisamente o que vos autorizava a pôr, como fundamento, a ideia
de uma inteligência suprema como esquema do princípio regulador. E quanto mais finalidade
encontrardes no mundo, conforme a este princípio, tanto mais tereis a confirmação
da legitimidade da vossa ideia. Como, porém, esse princípio não tinha outra função
que não fosse procurar a unidade necessária e a maior possível, da natureza, teremos
que agradecer esta unidade, na medida em que a atingimos, à ideia de um Ser supremo.
O que não podemos, sem entrar em contradição conosco, é descurar as leis universais
da natureza, em relação às quais somente foi essa ideia posta como fundamento, a
fim de considerar a finalidade da natureza, como contingente e de origem hiperfísica,
pois não estamos autorizados a admitir acima da natureza, um ser dotado dos atributos
referidos, mas tão-somente a tomar como fundamento a ideia desse ser, para podermos
considerar os fenômenos como sistematicamente encadeados entre si, por analogia
com uma determinação causal.
Precisamente por isso estamos no direito de pensar
na ideia a causa do mundo, não só conforme a um antropomorfismo mais subtil (sem
o qual nada se poderia pensar dela), ou seja, como um ser dotado de entendimento,
capaz de prazer e desprazer e, por consequência, de desejo e de vontade, etc., mas
ainda de lhe atribuir uma perfeição infinita que, por conseguinte, ultrapassa largamente
aquela que nos podia autorizar o conhecimento empírico da ordem do mundo. Na verdade,
a lei reguladora da unidade sistemática quer que estudemos a natureza como se
por toda a parte, até ao infinito, se encontrasse uma unidade sistemática e
finalista na maior variedade possível. Pois, embora descubramos ou alcancemos apenas
pouco dessa perfeição do mundo, é próprio da legislação da nossa razão procurá-la
e supô-la por toda a parte e deve-nos ser sempre vantajoso, sem que alguma vez nos
possa ser nocivo, orientar, de acordo com este princípio, a consideração da natureza.
Mas é, porém, claro nesta representação da ideia de um autor supremo, posta como
fundamento, que não é a existência e o conhecimento de um tal ser, mas apenas a
sua ideia, que me serve de fundamento e, por conseguinte, não derivo propriamente
nada deste ser, mas simplesmente da sua ideia, isto é, da natureza das coisas do
mundo consideradas de acordo com uma tal ideia. Também uma certa consciência, embora
não desenvolvida, do verdadeiro uso deste nosso conceito de razão, parece ter dado
origem à linguagem discreta e razoável dos filósofos de todos os tempos, pois eles
falam da sabedoria e da providência da natureza ou da sabedoria divina como de expressões
sinônimas; preferimos mesmo a primeira expressão, na medida em que se trata da razão
meramente especulativa, porque modera a nossa pretensão de afirmar mais do que estamos
autorizados e, ao mesmo tempo, reconduz a razão ao seu próprio campo, a natureza.
Assim, a razão pura, que ao princípio parecia
prometer-nos nada menos do que a extensão do conhecimento para além dos limites
da experiência, não contém, se a entendermos bem, senão princípios reguladores que,
sem dúvida, prescrevem uma maior unidade do que a que pode alcançar o uso empírico
do entendimento; mas, precisamente porque recuam para tão longe a meta de que este
procura aproximar-se, levam ao mais alto grau, graças à unidade sistemática, o acordo
desse uso empírico consigo mesmo. Porém, se forem entendidos mal estes princípios
e considerados como princípios constitutivos de conhecimentos transcendentes, produzem,
por uma aparência brilhante, mas enganosa, uma persuasão e um saber imaginário e,
deste modo, eternas contradições e conflitos.”
“Assim, todo o conhecimento humano começa por
intuições, daí passa a conceitos e termina com ideias. Embora possua, relativamente
a estes três elementos, fontes a priori de conhecimento, que, à primeira
vista, parecem desprezar os limites de toda a experiência, uma crítica integral
convence-nos, no entanto, de que toda a razão, no uso especulativo, nunca pode ultrapassar,
com esses elementos, o campo da experiência possível e de que o verdadeiro destino
dessa faculdade suprema do conhecer é o de se servir de todos os métodos e princípios
desses métodos apenas para indagar a natureza, até ao mais íntimo, segundo todos
os princípios possíveis da unidade, entre os quais o da unidade dos fins é o mais
elevado, mas nunca para ultrapassar os seus limites, fora dos quais só há, para
nós, o espaço vazio.”
“Em todos os seus empreendimentos deve a razão
submeter-se à crítica e não pode fazer qualquer ataque à liberdade desta, sem se
prejudicar a si mesma e atrair sobre si uma suspeita desfavorável. Nada há de tão
importante, com respeito à utilidade, nem nada de tão sagrado que possa furtar-se
a esta investigação aprofundada que não faz exceção para ninguém. É mesmo sobre
esta liberdade que repousa a existência da razão; esta não tem autoridade ditatorial
alguma, mas a sua decisão outra coisa não é que o acordo de cidadãos livres, cada
um dos quais deve poder exprimir as suas reservas e mesmo exercer o seu veto
sem impedimentos.
Ora, se bem que a razão nunca possa furtar-se
à crítica, também não tem sempre motivo para a temer. Mas a razão pura
no seu uso dogmático (não matemático) não tem de tal maneira consciência de observar
rigorosamente as suas leis supremas que não deva comparecer com timidez e mesmo
despida de todos os ares pretensamente dogmáticos perante o tribunal de uma razão
mais elevada que a examina com o olhar crítico de um juiz.”
“Tudo o que a própria natureza estabelece é bom
para qualquer fim. Mesmo os venenos servem para vencer outros venenos que se engendram
nos nossos humores, e por isso não devem faltar numa coleção completa de remédios
(farmácia). As objeções às persuasões e à presunção da nossa razão meramente especulativa
são dadas pela própria natureza dessa razão e, consequentemente, devem ter um bom
destino e um fim que não se deve desdenhar. Para que nos colocou a Providência tantos
objetos, não obstante estarem ligados aos nossos interesses supremos, a uma altura
tal que quase só nos é permitido conhecê-los numa percepção obscura e para nós próprios
incerta, pela qual a curiosidade é mais excitada do que satisfeita? Será útil arriscar,
com estas perspectivas, resoluções ousadas? É pelo menos incerto e talvez mesmo
perigoso. Em todo o caso, porém, é sem dúvida alguma vantajoso dar à razão que procura,
tanto como à razão que examina, plena liberdade a fim de ela poder, sem entraves,
ocupar-se do seu próprio interesse, o progresso do qual requer que tanto ponha limites
às suas especulações, como exige que as amplie e que sempre padece quando mãos estranhas
interferem, desviando-a do caminho natural, para a impelirem forçadamente para fins
que não os seus.
Deixai, pois, o vosso adversário falar em nome
da razão e combatei-o simplesmente com as armas da razão.”
“Há na natureza humana uma certa insinceridade
que, no fim de contas, como tudo o que vem da natureza, deve conter uma disposição
para bons fins. Quero referir-me à inclinação que temos para esconder os verdadeiros
sentimentos e manifestar certos outros, considerados bons e honrosos. É muito certo
que os homens, por esta inclinação tanto para ocultar os sentimentos como para tomar
uma aparência que lhes seja vantajosa, não só se civilizam, como pouco a
pouco, em certa medida, se moralizam, pois não podendo ninguém penetrar
através do disfarce da decência, da honorabilidade e da moralidade, encontra cada
qual nos pretensos bons exemplos, que vê à sua volta, uma escola de aperfeiçoamento
para si próprio. Simplesmente, essa disposição para se fazer passar por melhor do
que se é, e a exteriorizar sentimentos que não se possuem, serve apenas provisoriamente
para despojar os homens da sua rudeza e fazer-lhes tomar, pelo menos ao princípio,
as maneiras do bem que conhece; porque seguidamente, logo que os princípios
legítimos se desenvolveram e se transformaram em modos de pensar, essa falsidade
deve, pouco a pouco, ser combatida com vigor, pois de outra maneira corrompe o coração
e abafa os bons sentimentos debaixo da erva daninha da boa aparência.
É-me penoso observar precisamente esta falsidade,
esta dissimulação e esta hipocrisia, mesmo nas manifestações do pensamento especulativo,
onde contudo os homens encontram menos obstáculos para fazer, aberta e francamente,
a confissão dos seus pensamentos e não têm mesmo nenhum interesse em escondê-los.
Pois que pode haver, efetivamente, de mais funesto aos conhecimentos, do que comunicarem-se
reciprocamente simples pensamentos falsificados, do que esconder a dúvida que sentimos
levantar-se em nós contra as nossas próprias afirmações ou dar um verniz de evidência
aos argumentos que não nos satisfazem a nós próprios? Porém, enquanto a simples
vaidade privada suscita estes artifícios secretos (que é ordinariamente o caso nos
juízos especulativos, que não têm nenhum interesse especial e não são facilmente
susceptíveis de uma certeza apodítica), chocam-se estes com a vaidade dos outros,
ajudada pelo consentimento público e as coisas acabam por chegar ao ponto
a que as teriam conduzido bem mais cedo a maior sinceridade de espírito e a lealdade.
Mas, quando o público imagina que subtis sofistas a nada menos tendem do que fazer
abalar os fundamentos do bem público, não parece apenas conforme à prudência, mas
ainda permitido e perfeitamente honroso, vir em socorro da boa causa com razões
especiosas, de preferência a deixar sequer aos seus pretensos adversários a vantagem
de nos forçar a baixar o nosso tom à moderação de uma convicção puramente prática
e obrigar-nos a confessar a falta de certeza especulativa e apodítica. Contudo,
devo pensar que nada no mundo concorda pior com a intenção de sustentar uma boa
causa do que a manha, a dissimulação e a mentira. Que na apreciação dos princípios
racionais de uma simples especulação tudo deva processar-se lealmente é, de certo,
o mínimo que se deve exigir. Mas se pudéssemos contar com esse pouco, a luta da
razão especulativa em torno das importantes questões de Deus, da imortalidade (da
alma) e da liberdade, ou estaria há muito terminada, ou não tardaria a sê-lo. Assim,
está muitas vezes a pureza de sentimentos em relação inversa com a bondade da causa
e esta última talvez tenha mais adversários sinceros e de boa fé do que defensores.
Suponho, pois, que haja leitores que não queiram
que uma boa causa seja defendida com más razões. Para esses decide-se agora, segundo
os princípios da nossa Crítica, que se olharmos, não ao que acontece, mas ao que
deveria com justiça acontecer, não pode haver, para falar com propriedade, uma polêmica
da razão pura. Efetivamente, como é possível duas pessoas conduzirem uma discussão
sobre uma coisa, cuja realidade nenhuma de ambas pode mostrar numa experiência real
ou somente possível, mas apenas são obrigadas a meditar na sua ideia para dela fazer
sair alguma coisa mais do que ideia, a saber, a realidade do próprio objeto? De
que maneira querem sair da controvérsia, se nenhuma das duas pode tornar a sua causa
diretamente concebível e certa, mas apenas atacar e contradizer a do adversário?
Tal é, efetivamente, o destino de todas as afirmações da razão pura; como transcendem
as condições de toda a experiência possível, fora das quais não se encontra nenhum
documento da verdade, e são obrigadas, contudo, a recorrer às leis do entendimento,
que são determinadas simplesmente para uso empírico e sem as quais nenhum passo
se pode dar no pensamento sintético, podem sempre descobrir o seu lado fraco ao
adversário e, por sua vez, atacar o lado fraco deste.”
“A consciência da minha ignorância (se esta ignorância
não é, ao mesmo tempo, reconhecida como necessária), em vez de pôr termo às minhas
investigações é, pelo contrário, a verdadeira causa que as suscita. Toda a ignorância
ou diz respeito às coisas ou à determinação e aos limites do meu conhecimento. Quando
a ignorância é acidental deve levar-me, no primeiro caso, a investigar dogmaticamente
as coisas (objetos); no segundo caso, a investigar criticamente os limites
do meu conhecimento possível. Mas que a minha ignorância seja absolutamente necessária,
e, portanto, me dispense de toda a investigação posterior, não se pode estabelecer
empiricamente por observação, mas apenas de uma maneira crítica, por aprofundamento
das fontes primeiras do nosso conhecimento. Portanto, a determinação dos limites
da nossa razão só pode ser feita segundo fundamentos a priori, mas podemos
conhecer também a posteriori que a nossa razão é limitada, observando o que,
em toda a ciência, nos resta ainda por saber, embora este conhecimento de uma ignorância,
que nunca se suprimirá inteiramente, seja indeterminado para nós. O primeiro conhecimento
da própria ignorância, unicamente possível graças à própria crítica da razão, é,
pois, uma ciência; mas este último não é senão percepção, não se podendo
dizer até onde se estendem as ilações que dela se podem extrair.”
“Por esta observação preliminar a crítica das
afirmações da razão vem reduzida a bem pouca coisa. Onde a razão executa a sua obra,
mediante simples conceitos, uma só prova é possível, se for possível alguma. Por
isso, quando se vê avançar o dogmático com dez provas, pode-se acreditar com segurança
que não tem nenhuma. Pois se tivesse uma que demonstrasse apoditicamente (como deve
acontecer nos assuntos da razão pura) para que necessitava de mais? A sua intenção
é apenas a de um advogado no parlamento: ter um argumento para este, outro para
aquele, isto é, aproveitar da fraqueza dos seus juízes que, sem aprofundarem a causa
e para se libertarem rapidamente da questão, agarram o primeiro argumento que lhes
vem às mãos e decidem em consequência.”
“Assim, encontramos na história da razão humana
que, antes de serem purificados e determinados os conceitos morais e de se ter considerado
a unidade sistemática dos fins segundo estes conceitos, o conhecimento da natureza
e mesmo a cultura da razão, elevada a um grau notável em muitas outras ciências,
apenas puderam produzir, por um lado, conceitos grosseiros e vagos da divindade,
e por outro deixaram uma indiferença espantosa relativamente a este problema. Uma
elaboração mais aprofundada das ideias morais, que foi tornada necessária pela lei
moral, infinitamente pura, da nossa religião, obrigou a razão a ser mais penetrante
no que toca a este objeto pelo interesse que neste foi obrigada a tomar; e, sem
que para isso contribuíssem conhecimentos naturais mais extensos nem compreensões
transcendentais exatas e seguras (que sempre têm faltado), produziu um conceito
de natureza divina que hoje consideramos verdadeiro, não porque a razão especulativa
nos convença da sua exatidão, mas porque coincide completamente com os princípios
morais da razão. E assim, no final de contas, é sempre à razão pura, mas apenas
no seu uso prático, que pertence o mérito de ligar ao nosso interesse supremo um
conhecimento, que a simples especulação pode apenas imaginar, mas não torna válido,
e deste modo fazer dele não um dogma demonstrado, mas um pressuposto absolutamente
necessário para os seus fins essenciais.
Mas quando a razão prática atingir este ponto
sublime, ou seja, o conceito de um Ser supremo e único como o Bem supremo, não tem
o direito de se comportar como se estivesse elevada acima de todas as condições
empíricas da sua aplicação e tivesse chegado ao conhecimento imediato de novos objetos,
isto é, de partir desse conceito e deduzir dele as próprias leis morais. Com efeito,
foi precisamente a necessidade prática interna destas leis que nos levou
ao pressuposto de uma causa subsistente por si mesma ou de um sábio governador do
mundo para dar efeito a essas leis e, por consequência, não as podermos considerar
contingentes e derivadas da simples vontade, sobretudo de uma vontade da qual não
teríamos absolutamente nenhum conceito se não o tivéssemos formado conforme a essas
leis. Por mais longe que a razão prática tenha o direito de nos conduzir, não consideramos
as ações obrigatórias por serem mandamentos de Deus; pelo contrário, considerá-las-emos
mandamentos divinos porque nos sentimos interiormente obrigados a elas. Estudaremos
a liberdade subordinada à unidade final segundo princípios da razão, e apenas acreditaremos
conformar-nos com a vontade divina quando considerarmos santa a lei moral que a
razão nos ensina com base na natureza das próprias ações e somente acreditarmos
servi-la, promovendo o bem do mundo em nós e nos outros. A teologia moral é, portanto,
apenas de uso imanente, a saber, para cumprirmos o nosso destino neste mundo, adaptando-nos
ao sistema de todos os fins, e não para abandonar, com exaltação e temeridade, o
fio condutor de uma razão moralmente legisladora da boa conduta da vida, a fim de
ligar imediatamente esta maneira de viver à ideia do Ser Supremo, o que daria um
uso transcendente, mas que, tal como o da pura especulação, deve perverter e tornar
vãos os fins últimos da razão.”
“A natureza, naquilo que interessa a todos os
homens sem distinção, não pode ser acusada de ter distribuído com parcialidade os
seus dons e que, em relação aos fins essenciais da natureza humana, a mais alta
filosofia não pode levar mais longe do que o faz a direção que a natureza confiou
ao senso comum.”
No livro segundo, “Dos raciocínios dialécticos da razão pura”, em seu capítulo III “O ideal da razão pura”, existem cinco seções particularmente interessantes, respectivamente:
ResponderExcluir3 - Dos argumentos da razão especulativa em favor da existência de um ser supremo / Só há três provas possíveis da existência de Deus para a razão especulativa
4 - Da impossibilidade de uma prova ontológica da existência de Deus
5 - Da impossibilidade de uma prova cosmológica da existência de Deus
6 - Da impossibilidade da prova físico-teológica
7 - Crítica de toda a teologia fundada em princípios especulativos da razão
Infelizmente tais trechos não poderão ser citados por conta do tamanho, mas fica aqui o registro de sua particular importância.