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segunda-feira, 22 de maio de 2017

Carta sobre a tolerância – John Locke

Editora: Edições 70
ISBN: 978-972-44-1674-8
Tradução: João da Silva Gama
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 152
Sinopse: Nesta obra, como em todas as outras, Locke anuncia e prepara o grande movimento do Iluminismo, que culminará com Voltaire. Locke distingue primeiramente as três ordens da força, da razão e da fé. Em seguida, afirma que todos os homens pertencem a duas sociedades. A civil e a religiosa. O problema da intolerância resulta da confusão entre estes dois domínios. A sua confusão é prejudicial quer à saúde do corpo social como à busca da saúde individual. Cabe à força política impedir que interfiram, sem se preocupar com a saúde das almas nem da fé, sobre as quais o governo não tem qualquer direito. O poder do estado não saberia efetivamente estender-se além dos interesses temporais da sociedade; está aqui um princípio cardinal da filosofia liberal, da qual Locke pode ser considerado fundador. Quanto às Igrejas, são instituições privadas, que não afetam em nada a coletividade. O Estado não pode intervir no seu funcionamento ou regulamentar os cultos a não ser que estes se revelem atentatórios do direito das pessoas ou do bom caminho da sociedade. É o princípio da laicidade do estado que é aqui colocado, com uma nitidez sem precedentes. Em nome deste princípio, Locke reclama a igualdade de direitos para todos os cultos, sem diferença.

Raymond Polin – Prefácio
“O Estado nasce da obrigação em que o homem se encontra de obedecer à lei natural e, para assegurar a conservação e a integridade da sua vida, do seu corpo, da sua liberdade e dos seus bens, construir uma sociedade, no seio da qual todos poderemos desfrutar da segurança, da paz e da prosperidade comum, que não deixará de seguir-se. Tal é o bem público, em vista do qual o Estado se constituiu. É uma sociedade estabelecida por um determinado número de homens com o único fim de conservar e promover os seus bens temporais, na medida em que estes são bens civis reconhecidos pela lei, Para levar a cabo a sua função, apesar dos maus, o Magistrado dispõe da força pública “toto scilicet subditorum suorum robore” e age, portanto, pela coacção, pelas sanções, em síntese, pela lei apoiada na sua força. Visa fins estritamente temporais por meios estritamente temporais. Os limites do poder supremo, de que o Magistrado dispõe, são essencialmente limites funcionais: a prerrogativa do Magistrado tem os limites que lhe fixam os fins para os quais esta lhe foi concedida: tem todos os poderes que lhe são necessários para realizar e salvaguardar o bem público e apenas este. A função da força pública é assegurar a paz para todos e a liberdade para cada um.
Uma igreja, pelo contrário, é uma sociedade livre e voluntária ou, segundo a palavra de Locke, uma socíetas spontanea, uma sociedade que não corresponde nem à necessidade, nem até, como a comunidade política, a uma obrigação conforme à lei natural. Nasce da necessidade de afirmar publicamente a sua fé, de servir e honrar a Deus em público e em comum, desfrutando do seu acordo com outrem. Ela própria se forma pelo livre acordo dos que se juntam para professar e praticar em comum e publicamente o que pensam ser a verdadeira religião e o culto agradável a Deus, a fim de assegurar a salvação eterna da sua alma. É por isso que Locke pode escrever que a tolerância é “o principal critério da verdadeira igreja”. A igreja diz respeito ao homem enquanto tem uma alma imortal, capaz de uma felicidade ou de uma infelicidade eterna e enquanto “a sua salvação depende de ter feito o que devia a acreditar no que estava prescrito”. A igreja dirige-se unicamente às almas e visa a sua salvação eterna. É claro que, nestas condições, nenhuma igreja é necessária e cada qual é juiz da igreja a que decide livremente pertencer; em última análise, alguns homens, por mais reduzido que seja o seu número, podem formar, para si próprios, uma igreja.
A fortiori é claro que nenhuma estrutura interna e nenhuma hierarquia é essencial a uma igreja enquanto tal. Sem dúvida, enquanto sociedade, uma igreja tem as suas leis que são necessárias ao seu funcionamento, e o direito de fazer as suas leis pertence à própria sociedade. Mas ela não dispõe de força alguma coativa, de direito algum para atacar os direitos civis, os bens deste mundo. Como arma, dispõe do direito de discutir, de argumentar, de exortar; como sanção, o direito de excluir do seu seio os que considere em desacordo irredutível com ela.
O Estado e a igreja existem, pois, sem um laço comum entre si ou, antes, não deveriam ter qualquer laço comum, se cada qual se ativer estritamente ao seu domínio. Dizem respeito ao Estado apenas este mundo e os seus bens; pode apenas agir sobre eles e tem somente o direito de se ocupar deles. A salvação eterna e o cuidado das almas apenas dizem respeito à igreja; ela unicamente pode agir sobre as almas e apenas tem o direito de se ocupar delas. A tolerância é a consequência direta desta separação, já que cada igreja é independente do Estado e não dispõe de nenhum dos meios temporais de coacção que este possa acionar, já que, por outro lado, o Estado não é abrangido pelo que diz respeito à fé e à salvação das almas, sendo, nestas matérias, tão ineficaz como incompetente.
Com efeito, e este novo argumento é, sem dúvida, o princípio de todos os outros, cada qual é o único capaz, e no seu foro interno, de cuidar da sua alma e assegurar a salvação eterna. Apenas contam a fé pura e a sinceridade interior. É na fé que consiste a força e a eficácia da verdadeira religião. Ninguém pode deixar a outrem, seja príncipe ou papa, o cuidado de decidir quanto à sua fé e de assegurar a salvação. Cada qual é juiz, em última instância, da sua fé e salvação: uma e outra dependem unicamente de si. Por outras palavras, a liberdade do juízo, que é essencial ao homem, que é o meio por excelência graças ao qual se pode cumprir a obrigação do homem face à liberdade e a uma existência verdadeiramente humana, deve poder exercer-se em matéria de religião.”


“É por isso – trata-se menos de um argumento do que de uma condenação radical – que Locke denuncia todos os que a seus olhos é manifestamente o maior número – tomam a religião como pretexto para satisfazer o seu desejo de riqueza e de poder, ou até para dar livre curso ao seu fanatismo, corroído de vícios e crueldade. É este farisaísmo que está na origem dos piores excessos da intolerância. É ele que ameaça todos os que, dispondo de um poder temporal, são tentados a dele abusar.
Importa sublinhar aqui que Locke insiste tão fortemente no tema da autonomia do juízo – é, com efeito, um dos temas maiores da sua filosofia, a explicação do seu combate contra o inatismo e o dogmatismo – que deixa de lado uma das argumentações mais tradicionais a favor da tolerância. Quase não alude ao facto de reinar, em matéria de religião, uma extrema diversidade de opiniões. Os defensores da tolerância deduziam, ordinariamente, que, no estado de ignorância em que os homens se encontram, naturalmente fracos e cegos, e na falta de certeza e até de saber, era necessário proibir impor aos outros, pela força, as suas próprias crenças como verdades. É insensato esperar que algum homem se submeta sincera e lucidamente a uma autoridade que o seu entendimento não reconhece. A necessidade em que nos encontramos de crer sem saber, no estado de hesitação e de cegueira em que estamos, deveria tornar-nos mais cuidadosos em nos informarmos e informar os outros – mediante processos delicados e leais – do que em os constranger.”


“A tolerância tal como a concebe não é uma tolerância qualquer. Aplica-se ao exercício da liberdade, que não é a licença para fazer tudo o que se deseja, mas o direito de obedecer à obrigação, essencial a cada homem, de realizar a sua natureza humana. A liberdade do homem só tem sentido em relação à lei da sua natureza, que é uma lei racional. Uma tal liberdade não pode ser garantida e salvaguardada a não ser no quadro do estado civil. É neste quadro que a tolerância deve, pois, necessariamente exercer-se; deve excluir-se tudo o que vai contra a existência da comunidade política e da paz civil.
A sua doutrina sobre a tolerância funda-se na distinção radical entre o domínio da política e o da fé; as religiões que infringem esta distinção não são puras religiões, não têm o direito de obter os benefícios desta distinção que elas não respeitam; não têm nenhum direito à tolerância e isto tanto menos quanto procuram ter influência sobre o Estado. A condenação do catolicismo submetido ao Papado por laços políticos, como a do ateísmo, fundamentalmente inadequado para manter os laços morais necessários à vida política, mostram bem que a tolerância não está fundada por Locke nos direitos da consciência, mas na defesa da liberdade essencial ao homem e na salvaguarda da paz no Estado. Eis o seu princípio e o seu limite.”


“Do tema da autonomia da fé, Locke conserva aqui, sobretudo, dois aspectos: por um lado, que o culto de Deus consiste essencialmente nas virtudes interiores, amor, respeito, temor de Deus, esperança, fé; que o que conta aqui é o coração e o respeito, e que Deus colocou no homem uma alma para lhe prestar homenagem, sendo ele o único adorador que lhe é agradável. Por outro lado, observa que este culto tácito e secreto escapa e deve escapar às leis humanas. Deus é o único escrutinador e único juiz dos corações. A fé é um assunto entre cada homem e Deus.”


“Locke provou que o indivíduo humano, princípio e fim de todo o Estado, é essencialmente social, inseparável de toda a sociedade e que aí reside o princípio e a obrigação do seu acordo, apesar dos conflitos suscitados pelas paixões e loucuras do homem. O homem é essencialmente social, excepto num ponto; pois, o homem, perante a lei e a sua salvação eterna, é um indivíduo perfeitamente solitário, um indivíduo absoluto; não um número fraccionário, como diz Rousseau, mas um número inteiro absoluto. Nenhuma participação numa sociedade religiosa lhe é essencial; nem nenhuma manifestação pública da fé, por essencial que seja à religião. Ao fim e ao cabo, é unicamente a este indivíduo absoluto face a face perante Deus, através das sociedades religiosas, sempre contingentes, sempre a formar-se, que a tolerância diz respeito. A meditação sobre a tolerância foi coextensiva à meditação política em Locke, porque procurou resolver um problema que escapava inicialmente à justiça do Estado, porque visava, no cidadão, um indivíduo absoluto fora de toda a comunidade política e até de toda a sociedade humana. Ao estabelecer o princípio de que a fé não tem qualquer relação com a política e que a igreja não deve ter qualquer contacto com o Estado, Locke quis garantir, em virtude da sua exterioridade recíproca, o respeito do Estado pelas religiões e seus fiéis e o respeito da fé do indivíduo pelo Estado. É por isso que o problema da tolerância não é um problema religioso, nem sequer um problema de consciência, para Locke, mas exclusivamente um problema prático.
É necessário, além disso, dar à palavra política o seu pleno sentido e não esquecer aqui que Locke sempre concebeu a política apenas como a expressão e a aplicação de uma filosofia e, quanto possível, como o esforço empreendido para prolongar e aperfeiçoar uma moral. Ora, pode dizer-se que a sua filosofia teve como meio e por fim assegurar, no homem, a liberdade, princípio de todas as outras liberdades. “É, em última instância, o meu próprio juízo que me determina e não poderei ser livre se a minha vontade não estiver determinada pelo meu próprio desejo, guiado pelo meu próprio juízo”. Em toda a sua obra, Locke procurou libertar, no homem, o entendimento, a reflexão e o Juízo, dos obstáculos e das coacções que tendem a impor-lhe, in foro interno, a inquietude e a precipitação, e in foro externo, o espírito do domínio, o espírito de posse e das violências dos outros homens. As lutas de Locke contra o inatismo, contra o entusiasmo, contra as teorias do poder do direito divino, contra o exercício sem limites, sem regras e sem controlo, do poder supremo ou, da mesma maneira, da liberdade contra todo o dogmatismo não fundado na razão, enfim, contra a intolerância, não tem outro objecto. E a sua defesa da paz sob todas as formas, que é o espaço de eleição da liberdade, não tem outro sentido.
O homem que, por natureza, nasceu capaz de razão e capaz de liberdade, não se pode tomar um homem completo se efectivamente não se tomar um homem livre, a free man, a moral man. O homem despojado da sua liberdade ou incapaz de amadurecer e tornar efectiva, propriamente falando, degenera; encontra-se excluído da condição humana ou incapaz de ter acesso a um estado verdadeiramente humano. É por isso que nenhum homem tem o poder de renunciar à sua liberdade, despojar-se da sua liberdade; a fortiori, é contrário à lei da sua natureza de homem e não tem o direito a isso. Ora, a liberdade realiza-se na obrigação de pensar e agir segundo a lei da razão. A lei da razão, como toda a lei digna deste nome, (isto é, a lei da razão deveria ser o princípio de todas as leis, a lei da natureza) não impõe à liberdade outros limites além dos que lhe asseguram o desenvolvimento e a salvaguarda. A liberdade é verdadeiramente esta lei e esta razão. A liberdade de pensar, de julgar e de agir, para um homem, está fundada no facto de ser dotado de razão assim como em ter razão, razão que lhe permite descobrir a lei segundo a qual tem de se governar livremente. Eis finalmente o verdadeiro, o único fundamento da tolerância, tal como Locke a estabeleceu, liberdade racional, sem a qual o homem não pode realizar a sua humanidade, não pode tornar-se um ser humano completo.”


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John Locke

“Já que me pedis a opinião sobre a tolerância recíproca entre os cristãos, eis a minha breve resposta: é para mim o principal critério da verdadeira Igreja. Podem uns vangloriar-se da antiguidade dos lugares e títulos ou do esplendor do culto, outros da reforma de sua disciplina, e todos em geral da ortodoxia da sua fé (com efeito, cada qual é ortodoxo aos seus próprios olhos); estas e outras coisas do mesmo gênero são mais características da luta dos homens pelo poder e autoridade do que sinais da Igreja de Cristo. Quem tudo isto possui, mas carece de caridade, de mansidão e de benevolência para com todos os homens em geral, mesmo que não professem a fé cristã, ainda não é cristão. “Os reis das nações dominam sobre elas; quanto a vós, não será assim” (Lc XXII), diz o nosso Salvador aos seus discípulos. É outro o objetivo da verdadeira religião, que não foi instituída para a pompa exterior, nem para o poder eclesiástico, nem finalmente para a violência, mas para viver reta e piedosamente. Antes de mais, deve combater os seus próprios vícios, o orgulho e amor ao prazer, quem deseja combater na Igreja de Cristo; quem não pratica a santidade da vida, a castidade dos costumes, a bondade e a mansidão da alma, em vão procura o nome de cristão. “Tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos” (Lc XXII), disse o Senhor a Pedro. Com efeito, quem negligencia a sua salvação dificilmente se persuadirá de que se preocupa muito com a alheia: ninguém pode consagrar, com um coração puro, todas as suas forças a fazer dos outros cristãos, se ainda não abraçou verdadeiramente com a sua alma a religião de Cristo. Se é necessário acreditar no Evangelho, nos Apóstolos, ninguém pode ser cristão, sem a caridade, sem a fé que age, não pela força, mas pelo amor.”


“Digo que é preciso, antes de mais nada, distinguir entre os assuntos da cidade e os da religião e definir os limites exactos entre a Igreja e o Estado. Se tal não se fizer, nenhuma solução se pode estabelecer para os conflitos levantados entre os que sinceramente se empenham, ou fingem empenhar-se, na salvação das almas ou do Estado.
Parece-me que o Estado é uma sociedade de homens constituída unicamente com o fim de conservar e promover os seus bens civis.
Chamo bens civis à vida, à liberdade, à integridade do corpo e à sua protecção contra a dor, à propriedade dos bens externos tais como as terras, o dinheiro, os móveis, etc.
É dever do magistrado civil assegurar a todo o povo e a cada súdito em particular, mediante leis impostas igualmente a todos, a boa conservação e a posse de todas as coisas que se relacionam com esta vida; se alguém quisesse violar estas leis com prejuízo do que é permitido, e lícito, a sua audácia deve ser reprimida com o temor do castigo, que consiste em privá-lo totalmente ou parte de seus bens de que, de outro modo, teria podido desfrutar. Mas como ninguém sofre de bom ânimo ser privado de uma parte dos seus bens e ainda menos da liberdade ou da vida, o magistrado, para castigar os que violam o direito alheio, está armado de uma força, a saber, a força conjunta de todos os súbditos.
A igreja parece-me ser uma sociedade livre de homens voluntariamente reunidos para adorar publicamente a Deus da maneira que julguem ser agradável à divindade em vista da salvação das almas.
Digo que é uma sociedade livre e voluntária. Ninguém nasce membro de qualquer igreja, caso contrário, a religião do pai e dos avós passaria para os filhos por direito hereditário simultaneamente com as terras, e cada um deveria a fé ao seu nascimento: nada de mais absurdo se pode pensar. Eis, pois, como importa conceber as coisas. O homem não está, por natureza, obrigado a fazer parte de uma igreja, a ligar-se a uma seita; junta-se espontaneamente à sociedade em cujo seio julga que se pratica a verdadeira religião e um culto agradável a Deus. Porque a esperança da salvação que aí encontra é a única causa da sua entrada na igreja, será também a única razão de nela permanecer. Se vier a descobrir depois algum erro na doutrina ou qualquer incongruência no culto, é necessário que a mesma liberdade com que entrou, lhe faculte sempre a saída; nenhum laço é, com efeito, indissolúvel, a não ser os que se prendem com a esperança certa da vida eterna. Uma igreja congrega em si membros espontaneamente unidos em vista desse fim.”


“O ferro e o fogo não são instrumentos adequados para combater os erros e instruir ou converter os espíritos dos homens.”


“Seja qual for a origem da sua autoridade, porque é eclesiástica, deve exercer-se no interior das fronteiras da igreja e não pode de modo algum alargar-se às questões civis, uma vez que a própria igreja é absolutamente distinta e separada do Estado e dos assuntos civis. Os respectivos limites estão fixos e imutáveis.
Quem confunde duas sociedades tão diferentes pela sua origem, pelo seu fim, pelo seu objecto, mistura as coisas mais diametralmente opostas, o céu e a terra.”


“Quem professa ser sucessor dos Apóstolos e se arroga o ofício de ensinar é obrigado a recordar os seus dois deveres de paz e benevolência para com todos os homens; a todos, quer estejam no erro ou na ortodoxia, sejam da sua opinião ou deles se diferenciem pela fé e pelos ritos, sejam particulares ou governantes, se é que alguns destes se encontram na sua igreja, a todos devem exortar à caridade, à mansidão e à tolerância; devem apaziguar e abrandar o seu ódio e o ardor da sua animosidade contra os heterodoxos, que um zelo furioso pela sua religião e seita, ou que a habilidade de alguns acenderam nos seus espíritos.”


“Não é fácil convencer homens cordatos de que desejamos ardente e sinceramente libertar o seu irmão, na vida futura, do fogo do inferno, se, com os olhos secos e a alma satisfeita, o entregarmos vivo aqui na terra ao carrasco para ser queimado.”


“Nenhum caminho que eu siga contra a minha consciência me conduzirá alguma vez à morada dos bem-aventurados. Posso enriquecer numa profissão que detesto, posso curar-me graças a remédios em que não confio, mas não posso salvar-me por uma religião de que duvido, por um culto que abomino. É em vão que o incrédulo afeta um comportamento exterior honesto, se, para agradar a Deus, tem necessidade de fé e sinceridade interior. A mais miraculosa e experimentada medicina é em vão administrada se, logo depois de tomada, for rejeitada pelo estômago, e nunca se deve obrigar alguém a tomar, contrariado, um remédio que a sua idiossincrasia transforma em veneno. Seja o que for que se possa pôr em dúvida em matéria de religião, uma coisa pelo menos é certa; é que nenhuma religião, que não tome como verdadeira, pode ser para mim verdadeira ou útil. Logo, é em vão que, sob o pretexto de salvar a alma dos seus súditos, o magistrado os obriga a aderir à sua própria religião: se nela acreditam, virão espontaneamente; se não acreditam, ainda que venham, não deixarão de se perder. Por muito bem que queirais a outrem, por mais que façais pela sua salvação, não o podeis forçar a salvar-se: depois de tudo, deve deixar-se entregue a si próprio e à sua consciência.”


“Uma pequena e insignificante multidão de cristãos chega a um país pagão; falta-lhes tudo: os estranhos pedem aos indígenas, homens pedem aos homens, como é justo, uma ajuda para sobreviver: o necessário é-lhes dado, são-lhes concedidas terras; os dois povos fundem-se num só. A religião cristã lança raízes, espalha-se, ainda não é mais forte; ainda se cultiva a paz, a amizade, a lealdade; e direitos iguais são salvaguardados: por fim, com a passagem do magistrado para o seu lado, os cristãos tornam-se mais fortes; então, os pactos são calcados aos pés, os direitos violados, a fim de expulsar a idolatria, e se todos estes inocentes pagãos, tão respeitadores do direito, não quiserem abandonar os seus ritos antigos e adoptar novos e estranhos, devem ser privados da vida, dos seus bens e terras ancestrais, embora não pequem nem contra os bons costumes, nem contra a lei civil; e por fim, constata-se o que o fanatismo por uma igreja, aliado ao desejo de dominar, aconselha abertamente; e com que facilidade a religião e a salvação das almas servem de pretexto à rapina e à ambição.”


“Além da alma imortal, o homem tem uma vida na terra, perecível e de duração incerta, a que importa prover com os bens terrestres, que deve conquistar ou já conquistou pelo trabalho e diligência. Não nasce espontaneamente o que é necessário para bem viver. Daí, para o homem, a preocupação com essas coisas. Mas é tal a maldade dos homens que a maioria prefere aproveitar-se do produto do trabalho alheio em vez de se lançar a trabalhar; por isso, a fim de proteger os produtos do seu trabalho, como as riquezas e os poderes, ou o que serve para os adquirir, como a liberdade e a força do corpo, os homens devem constituir com os outros uma sociedade de modo a que, ajudando-se mutuamente e reunindo as suas forças, tomem segura e privada, para cada um a posse destas coisas úteis à vida; entretanto, deixam a cada um o cuidado da sua salvação eterna, pois a aquisição da felicidade eterna não pode ser ajudada pela diligência alheia, nem a sua perda trazer dano a outrem, nem a esperança lhe pode ser arrebatada pela violência. Embora, por outro lado, os homens formem um Estado para garantir, mediante a ajuda material, a defesa dos bens desta vida, podem, todavia, ser deles desalojados, quer pela rapina e pela fraude dos concidadãos, quer pela agressão dos inimigos do exterior; para remediar este mal, são necessárias armas, riquezas e a multidão dos cidadãos; para remediar aquele, são necessárias leis; o poder e o cuidado de prover a todas estas coisas foi confiado aos magistrados pela sociedade. Tal é a origem, tais são os usos pelos quais se constitui o poder legislativo de todo o Estado, e tais são os limites que os circunscrevem: velar sempre pelas posses privadas dos indivíduos, pelo povo inteiro e utilidades públicas, a fim de que todos prosperem e cresçam em paz e riqueza, e se conservem em segurança pelas suas próprias forças contra as invasões alheias, quanto for possível.”


“Uma única coisa une o povo para a revolta: a opressão.”

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