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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Os ensaios: uma seleção (Parte II) – Michel de Montaigne

Editora: Penguin – Companhia das letras
ISBN: 978-85-63560-06-3
Tradução: Rosa Freire D’aguiar
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 616 

“Os homens são tão ligados à sua existência miserável que não há condição tão dura que não aceitem para conservá-la. (...)
Tamerlão encobria com uma tola humanidade a fantástica crueldade que exercia contra os leprosos, mandando matar tantos quantos chegavam a seu conhecimento, para (dizia) livrá-los da vida tão penosa que viviam. Pois não havia nenhum deles que não preferisse ser três vezes leproso a não existir. E Antístenes, o estoico, estando muito doente, exclamava: “Quem me livrará desses males?”. E Diógenes, que fora vê-lo, ao apresentar-lhe uma faca dizendo: “Esta, se quiseres, e bem depressa”, o outro replicou: “Não falo da vida, falo dos males”.”


“Não temas teu último dia nem o desejes.” (Marcial, X, XLVII, 13).


“Todas as tendências que nascem em nós sem razão são viciosas: é uma espécie de doença que se deve combater.”


“Perguntava-se a um lacedemônio quem o fizera viver saudável por tanto tempo: “a ignorância da medicina”, respondeu. E o imperador Adriano gritava sem parar, ao morrer, que a profusão de médicos o matara. Um mau lutador se tornou médico: “Coragem”, disse-lhe Diógenes, “tens razão, agora jogarás à terra os que te jogaram outrora”. Mas eles têm essa sorte, segundo Nícocles, de que o sol ilumina seus êxitos e a terra esconde seus erros. E além disso têm um modo bem vantajoso de se servirem de todo tipo de acontecimentos, pois o que a sorte, o que a natureza ou qualquer outra causa alheia (cujo número é infinito) produz em nós de bom e salutar é privilégio da medicina atribuir a si. Todos os felizes êxitos que ocorrem com o paciente que está sob seu controle sempre se deve a ela. As circunstâncias que me curaram, a mim, e que curam mil outros que não chamam os médicos em seu socorro, são, em seus pacientes, por eles usurpadas. (...)
Platão dizia bem a propósito que só aos médicos cabia mentir em absoluta liberdade, já que nossa salvação depende da vanidade e da falsidade de suas promessas. Esopo, autor de raríssima excelência, e de quem poucas pessoas descobrem todas as belezas, é engraçado ao representar-nos essa autoridade tirânica que os médicos usurpam das pobres almas enfraquecidas e combalidas pela doença e pelo temor; pois conta que um doente, sendo interrogado por seu médico sobre que efeito sentia dos medicamentos que lhe dera, respondeu: “Suei muito”. “Isso é bom”, disse o médico. Outra vez lhe perguntou como passara desde então: “Senti um frio extremo”, disse, “e tremi muito”. “Isso é bom”, prosseguiu o médico. Na terceira vez, perguntou-lhe de novo como se sentia: “Sinto-me”, disse, “inchar e intumescer, como se fosse hidropisia”. “Isso é muito bom”, acrescentou o médico. A um de seus domésticos que foi depois perguntar-lhe sobre seu estado, respondeu: “Na verdade, meu amigo, de tanto ir bem estou morrendo”. (...)
Um médico se vangloriava com Nícocles de que sua arte tinha grande poder: “De fato, sem a menor dúvida, pois pode matar impunemente tantas pessoas”.


“Foi, parece-me, Péricles que, tendo sido indagado como estava passando, disse: “Podeis julgar por isto”, e mostrou os amuletos que prendera no pescoço e no braço. Queria indicar que estava bastante doente já que chegara ao ponto de recorrer a coisas tão vãs e deixar-se guarnecer daquele jeito. Não digo que um dia eu não possa ser levado a essa ideia ridícula de confiar minha vida e minha saúde à mercê e à orientação dos médicos; poderei cair nessa loucura, não posso responder por minha firmeza futura; mas, então, se alguém indagar de mim como estou passando, também poderei dizer, como Péricles: “Podeis julgar por isto”, mostrando minha mão carregada de seis dracmas de opiato: será um sinal bastante evidente de uma doença violenta e estarei com meu juízo completamente deteriorado. Se o pavor e a intolerância com a dor ganharem isso de mim poderá se concluir por uma febre bem violenta em minha alma.”


“Não detesto as opiniões contrárias às minhas. Estou muito longe de me assustar ao ver a discordância entre meus julgamentos e os dos outros e não me torno incompatível com a sociedade dos homens por terem outra opinião e partido que não o meu. Ao contrário, acho bem mais raro ver concordarem nossos temperamentos e nossos desígnios. E nunca houve no mundo duas opiniões parecidas, como tampouco dois pelos ou dois grãos. Sua qualidade mais universal é a diversidade.”


“Cada homem traz a forma inteira da condição humana.”


“Nós, principalmente, que vivemos uma vida interior que só está à mostra para nós, devemos ter estabelecido um modelo interior que seja a pedra de toque de nossos atos, pelo qual ora nos lisonjeamos, ora nos castigamos. Tenho minhas leis e meu tribunal para julgar a mim mesmo, e a eles me dirijo mais que a outro lugar. Restrinjo minhas ações em função dos outros, mas só as estendo em função de mim. Só vós é que sabeis se sois covarde e cruel, ou leal e devotado: os outros não vos veem, adivinham-vos por conjecturas incertas; veem não tanto vossa natureza como vossa arte. Por isso, não confiais em sua sentença, confiais na vossa.”


“Um homem pode ter sido extraordinário no mundo e sua mulher e seu criado nele nada enxergarem de, pelo menos, digno de nota. Poucos homens foram admirados por seus domésticos. Ninguém foi profeta não só em sua casa mas em seu país, diz a experiência das histórias.”


“O valor da alma não consiste em ir alto, mas ir ordenadamente. Sua grandeza não se exerce na grandeza mas na mediocridade. Assim como os que nos julgam e nos avaliam internamente não fazem muito caso do brilho de nossas ações públicas e veem que são apenas filetes e pingos de água limpa brotados de um fundo, afinal, lodoso e pesado, assim também os que nos julgam por essa bela aparência externa concluem o mesmo de nossa constituição interna, e não conseguem acoplar faculdades ordinárias e semelhantes às suas com essas outras faculdades que os espantam, tão distantes de seu alcance. Por isso damos aos demônios formas selvagens.”


“Todo saber que não se adapta à insipiência comum é insípido.”


“De resto, impus-me dizer tudo o que ouso fazer, e até me desagrada ter pensamentos impublicáveis. A pior de minhas ações ou qualidades não me parece tão feia como acho feio e covarde não poder confessá-la. Todo mundo é discreto na confissão, na ação é que deveríamos ser. A ousadia de cometer um erro é de certa forma compensada e refreada pela ousadia de confessá-lo. Quem se obrigasse a tudo dizer obrigar-se-ia a nada fazer do que é forçado a calar.”


“Quando Arquelau, rei da Macedônia, passou por uma rua, alguém despejou-lhe água: os que assistiam disseram que ele devia puni-lo. “É possível”, disse, “mas ele não jogou água em mim, e sim naquele que pensava ser eu.” Sócrates disse a quem lhe avisou que falavam mal dele: “De jeito nenhum. Não há nada de mim no que dizem”. Quanto a mim, a quem me elogiasse por ser bom navegador, por ser tão modesto ou tão casto, eu não deveria dizer muito obrigado. E da mesma forma, se me chamassem de traidor, ladrão ou bêbado, eu me estimaria muito pouco ofendido. Os que não se conhecem bem podem repastar-se de falsos elogios: não eu, que me vejo e me procuro até nas entranhas, que bem sei o que me pertence. Agrada-me ser menos elogiado, contanto que seja mais conhecido. Poderiam me ter como um sábio, mas me atribuindo uma sabedoria que considero uma tolice.”


“Indagado sobre o que era mais conveniente, tomar ou não tomar mulher, Sócrates respondeu: “Qualquer dos dois que façamos nos arrependeremos”.”


“Não é por odiar a superstição que me jogo incontinente na irreligião.”


“Os deuses, diz Platão, forneceram-nos um membro desobediente e tirânico: que, como um animal furioso, empreende, pela violência de seu apetite, tudo submeter a si. Da mesma forma, proveram as mulheres de um animal glutão e ávido que, se lhe recusamos alimentos no momento adequado, enlouquece, impaciente com a demora; e soprando sua fúria nos corpos delas, entope-lhes os condutos e interrompe a respiração, causando mil tipos de males: até que, tendo provado o fruto da sede comum, lhes haja largamente regado e semeado o fundo do útero.”


“Admitamos a verdade, não há entre nós quem não receie mais a vergonha que sente pelos vícios de sua mulher que pelos seus; quem não se preocupe mais (admirável caridade!) com a consciência de sua boa esposa que com a sua própria; que não preferisse ser ladrão e sacrílego, e que sua mulher fosse assassina e herege, a saber que ela não era mais casta que o marido. Iníqua avaliação dos vícios. Nós e elas somos capazes de mil corrupções mais prejudiciais e desnaturadas do que a lascívia. Mas praticamos e avaliamos os vícios, não segundo sua natureza e sim segundo nosso interesse.”


“Parece-me que foi um entendido quem disse que um bom casamento era feito entre uma mulher cega e um marido surdo.”


“Nosso mundo acaba de descobrir um outro (e quem nos responde se é o último de seus irmãos, já que até agora os Demônios, as Sibilas e nós ignoramos este?), não menos vasto, pleno e bem-dotado do que ele [a América]; todavia, tão novo e tão criança que ainda lhe ensinam o seu á-bê-cê. Não faz cinquenta anos ele não conhecia as letras, nem os pesos, nem as medidas, nem as roupas, nem o trigo, nem as vinhas. Ainda estava todo nu, no colo, e só vivia dos recursos de sua mãe nutriz. Se inferimos corretamente nosso fim, assim como aquele poeta inferiu a juventude de seu século, este outro mundo apenas estará vindo à luz quando o nosso sair dela. O universo cairá em paralisia: um de seus membros ficará entrevado, o outro, vigoroso. Receio que tenhamos apressado muito fortemente seu declínio e sua ruína por nosso contágio, e que lhe tenhamos vendido muito caro nossas opiniões e nossas artes. Era um mundo criança: porém, não o açoitamos nem o submetemos à nossa disciplina apenas pela virtude de nosso valor e de nossas forças naturais, nem o conquistamos por nossa justiça e bondade, nem o subjugamos por nossa magnanimidade. A maioria das respostas deles e das negociações feitas com eles atestam que nada nos devem em natural clareza de espírito e em pertinência. A espantosa magnificência das cidades de Cuzco e México, e entre muitas coisas semelhantes o jardim daquele rei onde todas as árvores, as frutas e todas as plantas, segundo a ordem e a grandeza que ocupam num jardim, eram excelentemente figuradas em ouro, assim como o eram em seu gabinete todos os animais que nasciam em seu Estado e em seus mares; e a beleza de seus trabalhos em pedraria, plumas, algodão e em pintura mostram que na indústria eles também não eram inferiores a nós. Mas quanto a devoção, observância das leis, bondade, liberalidade, lealdade, franqueza, muito nos valeu não termos tanto quanto eles: pois perderam-se por essa vantagem e venderam-se e traíram a si mesmos. Quanto à audácia e à coragem, quanto à firmeza, à constância, à resolução contra as dores e a fome e a morte, eu não recearia em contrapor os exemplos que encontrasse entre eles e os mais famosos exemplos dos antigos que guardamos nos anais de nosso mundo de cá. Pois quanto aos que os subjugaram, que retirem os ardis e as artimanhas de que se serviram para enganá-los, e o justo espanto que provocava naquelas nações ver chegar tão inopinadamente pessoas barbudas, diferentes na língua, religião, na forma e na aparência, de um lugar do mundo tão afastado e onde eles não sabiam que houvesse qualquer habitação, montados sobre grandes monstros desconhecidos confrontando aqueles que nunca tinham visto não só um cavalo mas nenhum animal adestrado para carregar e transportar homem ou outra carga; homens guarnecidos de uma pele reluzente e dura, de uma arma cortante e resplandecente; confrontando os que pelo milagre do reflexo de um espelho ou de uma faca iam trocando uma grande riqueza em ouro e em pérolas e que não tinham conhecimento nem material com que, com todo o vagar, soubessem furar nosso aço; acrescentem-se a isso os raios e trovões de nossos canhões e arcabuzes, capazes de desorientar o próprio César, se hoje o surpreendessem tão inexperiente a esse respeito, e opondo-se a povos nus, salvo ali onde havia chegado a invenção de algum tecido de algodão; sem, na maioria, outras armas além de arcos, pedras, porretes e escudos de madeira; povos surpreendidos por aquela aparência de amizade e boa-fé, e com curiosidade de ver coisas estrangeiras e desconhecidas: retire-se, digo, dos conquistadores essa disparidade e tirada lhes será qualquer ocasião de tantas vitórias. Quando olho para esse ardor indomável com que tantos milhares de homens, mulheres e crianças apresentam-se e atiram-se tantas vezes aos perigos inevitáveis, para a defesa de seus deuses e de sua liberdade: essa generosa obstinação em sofrer todos os extremos e as dificuldades, e a morte, com mais gosto do que em se submeterem à dominação daqueles por quem foram tão vergonhosamente iludidos: e alguns, ao serem pegos, preferindo se deixar matar de fome e de jejum a aceitar víveres das mãos de seus inimigos tão vilmente vitoriosas, prevejo que se os tivessem atacado de igual para igual, tanto em armas como em experiência e em número, teria sido um conflito tão perigoso, ou mais, que outra guerra que conhecemos. Por que não caiu nas mãos de Alexandre, ou nas dos antigos gregos e romanos, uma tão nobre conquista? E uma tão grande mutação e alteração de tantos impérios e povos, em mãos que tivessem suavemente polido e desbravado o que ali havia de selvagem, e tivessem fortalecido e fomentado as boas sementes que a natureza ali produzira, mesclando não só ao cultivo das terras e ao ornamento das cidades as artes de cá, conforme fossem necessárias, mas também mesclando as virtudes gregas e romanas às originais do país? Que conserto teria sido, e que aperfeiçoamento para toda a máquina deste mundo se os primeiros exemplos e comportamentos nossos que se apresentaram no lado de lá tivessem convidado aqueles povos à admiração e à imitação da virtude, e tivessem construído entre eles e nós uma fraternal aliança e compreensão? Como teria sido fácil tirar proveito de almas tão novas, tão famintas de aprendizado, tendo na maioria tão belas disposições naturais? Ao contrário, nós nos servimos da ignorância e da inexperiência deles para dobrá-los mais facilmente à traição, à luxúria, à avareza, e a todo tipo de desumanidade e de crueldade, seguindo o exemplo e modelo de nossos costumes. Quem jamais fixou em tal preço o serviço da mercancia e do tráfico? Tantas cidades arrasadas, tantas nações exterminadas, tantos milhões de indivíduos passados pelo fio da espada, e a mais rica e bela parte do mundo tumultuada pela negociação das pérolas e da pimenta: ignóbeis vitórias! Nunca a ambição, nunca as inimizades públicas impeliram os homens, uns contra os outros, a tão horríveis hostilidades e calamidades tão miseráveis. Costeando o mar em busca de suas minas, alguns espanhóis pisaram terra numa região fértil e amena, muito habitada, e fizeram àquele povo suas advertências costumeiras: que eram pessoas pacíficas, vindas em longuíssimas viagens, enviadas pelo rei de Castela, o maior príncipe da terra habitável, a quem o papa, representando Deus na Terra, dera o principado de todas as Índias. Que se eles quisessem lhe ser tributários seriam muito bondosamente tratados: pediam-lhes víveres para sua alimentação e ouro para a necessidade de algum remédio. Anunciavam-lhes, de resto, a crença em um só Deus e a verdade de nossa religião, que os aconselhavam a aceitar, e a isso acrescentando certas ameaças. A resposta foi esta: que quanto a serem pacíficos, eles não tinham essa aparência, se é que o eram. Quanto ao rei deles, já que estava pedindo devia ser indigente e necessitado; e aquele que lhe fizera essa distribuição de terras era homem amante da dissensão, por ir dar a um terceiro coisa que não era sua e metê-lo em contenda contra os antigos possuidores. Quanto aos víveres, que lhes forneceriam; ouro, tinham pouco, e que era coisa pela qual não tinham nenhuma estima, visto que era inútil para o serviço de sua vida, a qual só se preocupavam em passar de modo feliz e agradável: portanto, o que eles conseguissem encontrar, salvo o que era empregado no serviço de seus deuses, que o tomassem sem medo. Quanto a um só Deus, o discurso lhes agradara mas não queriam mudar de religião, tendo dela se servido tão utilmente e por tanto tempo: e que só estavam acostumados a receber conselho de seus amigos e conhecidos. Quanto às ameaças, era sinal de falta de juízo ir ameaçando aqueles cuja natureza e recursos eram desconhecidos. Assim, que se apressassem prontamente em sair de sua terra pois não estavam acostumados a ver com bons olhos as cortesias e advertências de gente armada e estrangeira: do contrário, fariam com eles o mesmo que com aqueles outros, e mostraram-lhes as cabeças de uns homens justiçados em volta da cidade. Eis um exemplo do balbucio dessa infância. Mas o certo é que os espanhóis nem se detiveram nem fizeram ataques naquele lugar nem em vários outros onde não encontraram as mercadorias que procuravam, quaisquer que fossem as outras vantagens que lá houvesse: como provam meus Canibais. Os dois mais poderosos monarcas daquele mundo de lá e talvez deste aqui, reis de tantos reis, foram os últimos que eles expulsaram. O do Peru foi preso numa batalha e posto a um resgate tão excessivo que ultrapassa tudo o que é crível, mas que ele fielmente pagou: e tendo dado por sua conversação sinal de uma coragem franca, livre e constante e de um entendimento claro e tranquilo, os vencedores, depois de terem tirado 1 325 500 onças (37.577 quilos) de ouro, além da prata e outras coisas que não montaram a menos (tanto assim que os cavalos deles só andavam ferrados de ouro maciço), tiveram vontade de ver também, à custa de qualquer traição que fosse, qual podia ser o resto dos tesouros daquele rei e aproveitar-se livremente do que ele preservara. Assacaram-lhe uma falsa acusação e uma falsa prova: que ele tramava fazer suas províncias se sublevarem para reconquistar a liberdade. Com isso, por um belo julgamento feito por aqueles mesmos que lhe tinham imputado essa traição, condenaram-no a ser enforcado e estrangulado publicamente, tendo-o feito remir-se do tormento de ser queimado vivo pelo batismo que lhe deram durante o próprio suplício. Acontecimento horrível e inaudito, que ele suportou, porém, sem se desmentir, nem por atitude nem por palavra, de forma e gravidade verdadeiramente régias. E depois, para aplacar os povos espantados e estarrecidos com coisa tão estranha, simularam um grande luto por sua morte e ordenaram para ele suntuosos funerais. O outro, rei do México, tendo por muito tempo defendido sua cidade sitiada e mostrado nesse cerco tudo o que podem tanto a resistência como a perseverança, se algum dia príncipe e povo as demonstraram; e tendo seu infortúnio o entregado vivo nas mãos dos inimigos, com o compromisso de ser tratado como rei, de modo que na prisão ele nada demonstrou de indigno desse título; e não encontrando eles, em seguida a essa vitória, todo o ouro que tinham prometido a si mesmos, depois de tudo remexer e revistar, começaram a buscar informações infligindo aos prisioneiros que mantinham as mais acerbas torturas que conseguiram imaginar. Mas, nada tendo obtido, pois encontraram coragens mais fortes que seus tormentos, chegaram no final a tamanha raiva que, contra sua fé e contra qualquer direito das gentes, condenaram à tortura o próprio rei e um dos principais senhores de sua corte, em presença um do outro. Esse senhor, achando-se dominado pela dor, cercado de braseiros ardentes, voltou no final os olhos lamentosos para seu amo, como para lhe pedir perdão por não aguentar mais: o rei, cravando altiva e severamente os olhos nele, como crítica à sua covardia e pusilanimidade, disse-lhe somente estas palavras, com uma voz dura e firme: “E eu, estou no banho? Estarei mais à vontade que tu?”. O outro, logo em seguida, sucumbiu às dores e morreu no local. O rei, semiassado, foi levado dali, não tanto por piedade (pois que piedade jamais tocou almas tão bárbaras que, pela duvidosa informação de alguma botija de ouro a pilhar, faziam grelhar diante dos próprios olhos um homem, e ainda mais um rei tão grande em fortuna e em mérito?), mas sim porque sua constância tornava mais e mais vergonhosa a crueldade deles. Depois, enforcaram-no, tendo ele corajosamente tentado se livrar, armado, de tão longo cativeiro e sujeição: no que tornou seu fim digno de um príncipe magnânimo. Em outra ocasião, puseram para queimar de uma só vez, na mesma fogueira, 460 homens vivos, quatrocentos do povo, sessenta entre os principais senhores de uma província, que eram simplesmente prisioneiros de guerra. Deles mesmos é que nos vêm essas narrativas: pois não só as confessam como delas se vangloriam e as publicam. Seria como prova de sua justiça, ou zelo por sua religião? Certamente, são vias muito diversas e muito hostis para um objetivo tão sagrado. Se tivessem se proposto propagar nossa fé, teriam considerado que não é com a possessão de terras que ela se amplia, mas com a possessão de homens, e teriam se contentado o suficiente com as mortes que as necessidades da guerra impõem, sem a isso acrescentar indiscriminadamente uma carnificina universal, como se fossem animais selvagens, de tantos quantos o ferro e o fogo conseguiram atingir, e só conservando, voluntariamente, os que quiseram transformar em miseráveis escravos para o trabalho e o serviço em suas minas. E vários chefes foram punidos com a morte no próprio local de sua conquista, por decreto dos reis de Castela, com justa razão ofendidos pelo horror de seu comportamento, e quase todos desestimados e detestados. Deus permitiu merecidamente que essas grandes pilhagens fossem tragadas pelo mar ao ser transportadas, ou pelas guerras intestinas com que eles se devoraram entre si: e a maior parte foi enterrada ali mesmo, sem nenhum fruto de sua vitória. Quanto ao fato de a receita, mesmo colocada nas mãos de um príncipe econômico e prudente, corresponder tão pouco à esperança dada a seus predecessores e àquela primeira abundância de riquezas que se encontrou ao abordarem as novas terras (pois mesmo que retirem muito, vemos que não é nada em comparação com o que era de esperar), foi porque o uso da moeda era lá inteiramente desconhecido e, por conseguinte, o ouro deles estava todo acumulado, não tendo outro uso além da ostentação e da pompa, como um móvel preservado de pai para filho por vários reis poderosos, que sempre esgotavam suas minas para fazer aquele grande amontoado de vasos e estátuas que ornam seus palácios e templos, ao passo que nosso ouro está todo empregado ou no comércio. Nós o fragmentamos e alteramos de mil formas, o espalhamos e dispersamos. Imaginemos se nossos reis acumulassem assim todo o ouro que conseguissem encontrar em vários séculos e o guardassem inativo! Os do reino do México eram de certo modo mais civilizados e mais artistas do que as outras nações de lá. Assim, julgavam, como nós, que o universo estivesse próximo do fim, e interpretaram como sinal a devastação que lhes levamos. Acreditavam que a existência do mundo se reparte em cinco idades, cada uma tão longa como a vida de cinco sóis consecutivos, dos quais quatro já tinham esgotado seu tempo, e aquele que os iluminava era o quinto. O primeiro morreu junto com todas as outras criaturas por uma inundação universal das águas. O segundo, pela queda do céu sobre nós, que sufocou todas as coisas vivas: atribuíam a essa idade os gigantes cujas ossadas mostraram aos espanhóis, em tal proporção que a estatura deles vinha a ser vinte palmos de altura. O terceiro, pelo fogo que incendiou e consumiu tudo. O quarto, por uma fúria de ar e vento que abateu até mesmo várias montanhas: os homens não morreram mas foram transformados em macacos (a que imaginações não se sujeita a frouxidão da credulidade humana!). Depois da morte desse quarto sol, o mundo ficou por 25 anos em perpétuas trevas, sendo que no 15º foram criados um homem e uma mulher que refizeram a raça humana. Dez anos depois, em determinado dia que observaram, o sol apareceu, tendo sido recriado, e desde então começa a contagem de seus anos, a partir daquele dia. No terceiro dia da criação morreram os deuses antigos: os novos foram nascendo depois, de vez em quando. De como eles consideram o modo como este último sol perecerá, meu autor nada soube.”


“Comete-se muito abuso no mundo: ou, para dizer mais ousadamente, todos os abusos do mundo são gerados pelo fato de que nos ensinam a temer confessarmos nossa ignorância; e somos obrigados a aceitar tudo o que não conseguimos refutar. Falamos de todas as coisas por preceitos e formas categóricas. O estilo jurídico em Roma rezava que até mesmo o depoimento de uma testemunha que viu com os próprios olhos e a sentença de um juiz baseada em seu mais seguro saber fossem expressos com esta forma de falar: “parece-me”. Fazem-me odiar as coisas verossímeis quando as apresentam como infalíveis. Gosto destas palavras que amolecem e moderam a temeridade de nossas proposições: “talvez”, “de certa forma”, “algum”, “dizem”, “penso”, e semelhantes. E se tivesse de educar crianças, tanto lhes teria posto na boca esse modo de responder inquiridor e não decisivo: “o que quer dizer?”, “não estou entendendo”, “poderia ser”, “é verdade?”, que elas mais teriam conservado o jeito de aprendizes aos sessenta anos do que se apresentado como doutores aos dez anos, como fazem. Quem quer curar a ignorância deve confessá-la. Íris é filha de Taumante. O assombro é o fundamento de toda filosofia; a inquirição é como ela avança; a ignorância, seu final.”


“Os homens creem mais no que não compreendem. A propensão do espírito humano faz que se atribua mais facilmente fé aos mistérios”. (Tácito, Histórias, I, XXII, 4)


“Sigo a opinião de Santo Agostinho: mais vale tender para a dúvida do que para a certeza nas coisas de difícil comprovação e perigosa crença.”


“Tenho tamanha queda pela liberdade que se alguém me proibisse o acesso a algum canto das Índias eu viveria de certa forma menos à vontade.”


“As leis mantêm-se em vigor não porque são justas mas porque são leis. É o fundamento místico de sua autoridade: não têm outro. O que muito lhes serve. É frequente que sejam feitas pelos tolos. Mais frequentemente por pessoas que, em seu ódio à igualdade, têm falta de equidade. Mas sempre por homens, autores vãos e incertos. Não há nada tão grosseira e amplamente, nem tão correntemente falível como as leis. Quem lhes obedece porque são justas não lhes obedece justamente pelo que deveria. As nossas francesas, por sua imperfeição e deformidade, auxiliam de certa forma a desordem que vemos em sua aplicação e a corrupção que vemos em sua execução. A autoridade delas é tão confusa e inconsistente que, de certo modo, desculpa tanto a desobediência como o vício de interpretação, de administração e de observância.”


“Oh! como a ignorância e a despreocupação são um suave, macio e saudável travesseiro para repousar uma cabeça bem formada. Eu preferiria compreender bem a mim mesmo a compreender Cícero.”


“A vida de César não é mais exemplo para nós do que a nossa.”


“Nós nos dizemos tudo de que mais precisamos: basta escutarmos.”


“Quando vejo que me convenci, pela razão de outro, de uma ideia falsa, o que aprendo não é tanto o que ele me disse de novo, nem é de grande proveito a minha ignorância especial, mas em geral aprendo minha debilidade e a traição de meu entendimento, e com isso posso melhorar todo o conjunto. Com todos os meus outros erros faço o mesmo: e sinto nessa regra grande utilidade para a vida. Não olho para a espécie de erro nem para o erro individual como uma pedra em que tropecei. Aprendo a temer meu comportamento em qualquer lugar e trato de melhorá-lo. Saber que dissemos ou fizemos uma tolice é apenas isso; precisamos aprender que não passamos de um tolo, ensinamento bem mais amplo e importante. Os passos em falso que minha memória me causou tão amiúde, quando justamente me parecia mais segura de si, não foram perdidos em vão. Por mais que agora ela me jure e me garanta, eu balanço a cabeça: a primeira objeção que fizerem a seu testemunho deixa-me em suspenso. E nela não ousaria me fiar em coisa de peso, nem avalizá-la a respeito de outrem. E se não fosse porque o que faço por falta de memória os outros o fazem ainda mais frequentemente por falta de sinceridade, eu sempre consideraria como coisa de fato a verdade na boca de outro, mais que na minha.”


““Nada é mais vergonhoso do que colocar a asserção e a decisão antes do conhecimento e da percepção.” (Cícero, Academica posteriora, I, XII, 45) Aristarco dizia que na Antiguidade mal se encontravam sete sábios no mundo, e que em sua época mal se encontravam sete ignorantes. Não teríamos mais razão que ele de dizer isso em nossa época? A afirmação e a obstinação são sinais manifestos de tolice. Este homem aqui deu com o nariz no chão cem vezes num só dia: ei-lo levantando a crista, tão decidido e inteiro como antes.”


“Assim como afirmam que a virtude não é maior por ser mais duradoura, assim considero que a verdade não é mais sábia por ser mais velha. Costumo dizer que é pura tolice que nos faz correr atrás dos exemplos estrangeiros e dos ensinados na escola. A fertilidade deles é a mesma neste momento como era no tempo de Homero e Platão. Mas não será porque procuramos mais a honra da citação do que a verdade do discurso?”


“Quem teme sofrer já sofre porque teme.”


“Se eu tivesse filhos homens, lhes desejaria com gosto a minha sorte. O bom pai que Deus me deu (que de mim só tem o reconhecimento por sua bondade, mas certamente muito vigoroso) enviou-me desde o berço para ser criado num vilarejo pobre de sua senhoria, e ali me manteve enquanto eu estava sendo amamentado e mesmo mais tarde, habituando-me assim ao mais modesto e ordinário modo de viver: Magna pars libertatis est bene moratus venter¹. Um ventre sóbrio garante uma boa parte de liberdade.] Jamais deveis assumir, e menos ainda vossas mulheres, o encargo de educá-los: deixai os garotos formarem-se pela fortuna, segundo leis populares e naturais, deixai aos costumes criá-los na frugalidade e na austeridade; que tenham de descer de uma vida rude em vez de subir a ela. A conduta de meu pai ainda visava à outra finalidade: ligar-me ao povo e àquele gênero de homens que precisam de nossa ajuda, e considerava que eu devia olhar mais para quem me estende os braços do que para quem me vira as costas. E foi também essa a razão pela qual me entregou na pia batismal a pessoas de fortuna mais modesta, para me obrigar e ligar-me a elas. Seu objetivo não foi malsucedido: dedico-me com gosto aos humildes; seja porque há mais glória nisso, seja por compaixão inata, que em mim é infinitamente poderosa.”
1: Sêneca, Cartas a Lucílio, CXXIII, 3.


“Não se viu coisa mais notável em Sócrates do que o fato de que, bem velho, encontrasse tempo para aprender a dançar e tocar instrumentos, e o considerasse bem empregado. Foi visto em êxtase, de pé, um dia e uma noite inteiros, em presença de todo o exército grego, surpreendido e capturado por algum pensamento profundo. Foi o primeiro entre tantos homens valentes do exército a correr em socorro de Alcibíades, prostrado pelos inimigos; cobriu-o com seu corpo e livrou-o da multidão à viva força e com armas. E na batalha de Delos, levantou e salvou Xenofonte, derrubado de seu cavalo. E de todo o povo de Atenas, revoltado da mesma forma que ele com tão indigno espetáculo, foi o primeiro a apresentar-se para libertar Terâmenes, que os trinta tiranos mandavam os esbirros conduzir à morte; e, conquanto apenas dois homens no total o tivessem seguido, só desistiu dessa ousada iniciativa diante da admoestação do próprio Terâmenes. Foi visto, procurado por uma beldade por quem estava apaixonado, manter quando necessário uma severa abstinência. Foi visto continuamente marchando na guerra e pisando no gelo de pés descalços, usando a mesma roupa no inverno e no verão, superando todos os companheiros em resistência ao cansaço, não comendo no banquete de outra forma que não a habitual. Foi visto durante 27 anos, com o mesmo semblante, suportar a fome, a pobreza, a indocilidade dos filhos, as garras da mulher. E no fim, a calúnia, a tirania, a prisão, as correntes e o veneno. Mas esse homem, que por dever de cortesia aceitou, como convidado, beber de um só gole¹, era também aquele do exército que teve melhor desempenho. E não se recusava a brincar de pedrinhas com as crianças nem a correr com elas num cavalo de madeira, o que fazia de boa vontade, pois todas as ações, diz a filosofia, caem igualmente bem no sábio e igualmente o honram. Nunca devemos nos cansar de apresentar a imagem desse personagem para todos os modelos e formas de perfeição, e temos razões para isso. Há pouquíssimos exemplos de vida plenos e puros. E prejudicamos nossa educação ao nos propormos todos os dias exemplos fracos e falhos: bons apenas por um só lado, que mais nos puxam para trás, corrompendo mais que corrigindo.”
1: Durante uma brincadeira para se ver quem bebia mais.


“Aceito de bom grado e reconhecido o que a natureza fez por mim, e alegro-me e sinto-me satisfeito com isso. Somos injustos com esse grande e todo-poderoso Doador ao recusarmos Seu dom, anulá-lo e desfigurá-lo: tudo é bom, Ele fez tudo bom.
Omnia quae secundum naturam sunt; aestimatione digna sunt.579
Tudo o que é conforme à natureza é digno de consideração. (Cícero, De finibus, III, VI, 20)
Abraço com mais gosto os princípios da filosofia que são os mais sólidos: isto é, os mais humanos e nossos. Minhas opiniões correspondem ao meu comportamento, humildes e modestas. A meu ver, a filosofia finge-se de criança quando levanta a crista para nos pregar que é uma aliança selvagem casar o divino com o terrestre, o sensato com o insensato, o severo com o indulgente, o honesto com o desonesto. Que o prazer é qualidade bestial, indigna de ser provada pelo sábio. E que o único prazer que ele tira da fruição de uma bela jovem esposa é o prazer de sua consciência por estar praticando uma ação segundo as regras. Como calçar suas botas para uma cavalgada útil. Possam os sequazes dessa filosofia ter, no desvirginamento de suas mulheres, tão pouca firmeza, e nervos e suco quanto têm seus argumentos! Não é o que diz Sócrates, preceptor deles e nosso. Ele aprecia, como deve ser, o prazer corporal, mas prefere o do espírito, por ter mais força, constância, facilidade, variedade, dignidade. Este não anda sozinho, segundo ele (que não é tão fantasioso assim), mas é apenas o primeiro. Para ele, a temperança é moderadora, não adversária dos prazeres. A natureza é um guia gentil, mas não mais gentil do que sábio e justo.”

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