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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Os ensaios: uma seleção (Parte I) – Michel de Montaigne

Editora: Penguin – Companhia das letras
ISBN: 978-85-63560-06-3
Tradução: Rosa Freire D’aguiar
Opinião★★★★☆
Páginas: 616

“Na verdade, é justo que se faça grande diferença entre os erros que vêm de nossa fraqueza e os que vêm de nossa maldade.”


“Mas qual! Jovens e velhos abandonam a vida da mesma maneira. Dela ninguém sai de outro jeito senão como se tivesse entrado naquele instante, acrescentando-se a isso que não há homem tão decrépito que não pense ainda ter vinte anos no corpo enquanto enxergar Matusalém diante de si.”


“Eu preferiria passar por louco ou por insensato, contanto que meus males me agradem ou ao menos que eu não os veja, a ser sensato e enraivecer-me.” (39 Horácio, Epístolas, II, II, 126-8).


“Entre as festas e a alegria, tenhamos sempre esse refrão da lembrança de nossa condição, e não nos deixemos arrastar tão fortemente pelo prazer que por vezes não nos volte à memória de quantos modos essa nossa alegria está na mira da morte, e por quantos golpes ela nos ameaça. Assim faziam os egípcios, que no meio de seus festins e entre seus melhores banquetes mandavam vir a anatomia seca (uma múmia) de um homem segura por alguém que lhes gritava: “Bebe e alegra-te, pois morto serás como este”, para servir de advertência aos convivas.”


“Assim como experimentei em várias outras ocasiões o que diz César, que as coisas costumam nos parecer maiores de longe que de perto.”


“Conduzidos pela mão da natureza, por uma suave ladeira e como que insensível, pouco a pouco, de degrau em degrau nos envolvemos nesse estado miserável a que nos acostumamos, assim como não sentimos nenhum abalo quando a juventude morre dentro de nós, o que, no fundo e na verdade, é morte mais dura que a morte completa de uma vida languescente e que a morte de velhice.”


“Nossa religião não teve fundamento humano mais seguro que o desprezo pela vida. Não só o argumento da razão nos convida a isso, pois por que temeríamos perder uma coisa que, perdida, não pode ser lamentada? Mas, ademais, já que estamos ameaçados por tantas maneiras de morte, não é melhor enfrentar uma do que temê-las todas? Que importa quando será, já que é inevitável? Àquele que dizia a Sócrates: “Os trinta tiranos te condenaram à morte”, ele respondeu: “E a natureza a eles”. Que tolice nos atormentarmos no momento em que se dá a passagem à isenção de todo tormento! Assim como nosso nascimento nos trouxe o nascimento de todas as coisas, assim nossa morte trará a morte de todas as coisas. Por isso é igualmente loucura chorar porque daqui a cem anos não viveremos mais, assim como chorar porque não vivíamos há cem anos. A morte é a origem de outra vida: custou-nos entrar nesta aqui, e choramos; da mesma forma, ao entrarmos nos despojamos de nosso antigo véu. Nada pode ser importante se o é só uma vez. (...)
A natureza nos força a isso. Saí, diz ela, deste mundo como nele entrastes. A mesma passagem que fizestes da morte à vida, sem paixão e sem temor, refazei-a da vida à morte. Vossa morte é uma das peças da ordem do universo, é uma peça da vida do mundo,
inter se mortales mutua viuunt,
Et quase cursores vitai lampada tradunt.
os mortais partilham a vida assim como os corredores se repassam sua tocha. (Lucrécio, II, 76 e 79)
Mudarei por vós esta bela organização das coisas? É a condição de vossa criação; a morte é uma parte de vós: fugis de vós mesmos. A existência de que desfrutais é igualmente dividida entre a morte e a vida. O primeiro dia de vosso nascimento vos encaminha para morrer como para viver.
Prima, quae vitam dedit, hora, carpsit.
A primeira hora que nos deu a vida tomou-a de nós. (Sêneca, Hércules furioso, III, 874)
Nascentes morimur, finisque ab origine pendet.
Ao nascermos, morremos, e o fim decorre da origem. (Manílio, IV, 16)
Tudo o que viveis estais roubando da vida: e às expensas dela. A contínua obra de vossa vida é construir a morte. Estais na morte enquanto estais em vida, pois estais depois da morte quando não mais estais em vida. Ou, se assim o preferis, estais morto depois da vida, mas durante a vida estais morrendo, e a morte toca bem mais brutalmente o moribundo que o morto, e mais viva e mais essencialmente. Se da vida tirastes proveito, estais saciado; ide-vos satisfeito.
Cur non ut plenus vitae conviva recedis?
Por que não te retiras da vida qual um conviva saciado? (Lucrécio, II, 938)
Se não soubestes usá-la, se ela vos foi inútil, que vos importa tê-la perdido? Para que ainda a quereis?
Cur amplius addere quaeris Rursum quod pereat male, et ingratum occidat omne?
Por que procuras lhe acrescentar um prazo que por sua vez se perderá miseravelmente e desaparecerá inteiro sem fruto? (Lucrécio, III, 941-2)”


“Onde quer que vossa vida acabe, ela está toda aí. A utilidade do viver não está na duração: está no uso que dele fizemos. Uma pessoa viveu muito tempo e pouco viveu. Atentai para isso enquanto estais aqui. Ter vivido bastante está em vossa vontade, não no número dos anos.”


“Por que temeis vosso último dia? Ele não conduz à vossa morte mais que cada um dos outros. O último passo não vos traz a lassidão: revela-a. Todos os dias levam à morte: o último a alcança. Eis as boas advertências de nossa mãe Natureza.”


“Nessa escola de comércio com os homens, volta e meia reparei nessa perversão de que, em vez de aprendermos sobre os outros, só nos empenhamos em ensinar-lhes coisas sobre nós, e preocupamo-nos bem mais em vender nossa mercadoria do que em adquirir novas. O silêncio e a modéstia são qualidades muito úteis na conversação. Essa criança será educada para poupar e moderar seu saber, quando o adquirir, para não se melindrar com as tolices e fábulas que serão ditas em sua presença; pois é descortês e inoportuno criticar tudo o que não é de nosso gosto. Que se contente em corrigir a si mesmo. E não aparente recriminar o outro por tudo o que se nega a fazer, nem se oponha aos costumes públicos. Licet sapere sine pompa, sine invidia¹. Pode-se ser sábio sem pompa nem arrogância.] Que fuja dessas maneiras magistrais e indelicadas; e dessa ambição pueril de querer parecer mais arguto para ser diferente; e como se críticas e novidades fossem mercadoria delicada, querer usá-las para criar um nome de valor singular.”
1: Sêneca, Cartas a Lucílio, CIII, 5


“Os embaixadores de Samos foram ver Cleômenes, rei de Esparta, tendo preparado uma bela e longa oração para incitá-lo à guerra contra o tirano Polícrates; ele os deixou falar bastante e depois respondeu: “Quanto a vosso preâmbulo e exórdio, não me lembro mais dele, nem, por conseguinte, do meio; e quanto à vossa conclusão, não quero fazer nada disso”. Eis uma bela resposta, parece-me, e arengadores bem atrapalhados. E que tal este outro? Os atenienses estavam a escolher entre dois arquitetos para dirigir uma grande construção; o primeiro, mais afetado, apresentou-se com um belo discurso preparado sobre o trabalho a ser feito, e ia puxando a seu favor o julgamento do povo; mas o outro só retrucou com umas três palavras: “Senhores atenienses, o que ele disse eu farei”.


“Foi o que respondeu Menandro quando, aproximando-se o dia para o qual prometera uma comédia em que ainda não tinha posto a mão, o criticaram: “Ela está composta e pronta, basta acrescentar os versos”. Com o tema e a matéria arrumados na alma, ele tinha o restante em pouca conta.”


“Não é talvez sem razão que atribuímos à ingenuidade e à ignorância a facilidade de crer e de se deixar convencer, pois me parece que aprendi outrora que a crença era como uma impressão gravada em nossa alma; e à medida que ela estava mais mole e com menor resistência, mais fácil era imprimir-lhe alguma coisa.”


“Quanto mais vazia a alma, e sem contrapeso, mais facilmente se verga sob a carga da primeira persuasão.”


“Receio que tenhamos os olhos maiores que a barriga, e mais curiosidade que capacidade. Tudo abraçamos, mas só vento agarramos.”


“A verdadeira vitória reside no combate, não na salvação, e a honra da virtude consiste em combater, não em abater.”


“Três (índios trazidos da América), ignorando quanto custará um dia ao seu repouso e à sua felicidade o conhecimento das corrupções daqui, e que desse comércio nascerá sua ruína, como pressuponho que já esteja avançada (por terem miseravelmente se deixado embair pelo desejo da novidade e terem largado a suavidade de seu céu para virem ver o nosso), estiveram em Rouen na época em que o finado rei Carlos IX lá estava. O rei falou com eles por muito tempo, fizeram-nos ver nossos modos, nossa pompa, a forma de uma bela cidade; depois disso, alguém lhes pediu sua opinião e quis saber o que tinham achado de mais admirável. Responderam três coisas, e estou muito aborrecido por ter esquecido a terceira, mas ainda tenho duas na memória. Disseram que em primeiro lugar achavam muito estranho que tantos homens grandes usando barba, fortes e armados, que estavam em volta do rei (é provável que falassem dos suíços de sua guarda), se sujeitassem a obedecer a uma criança, e que não escolhessem, de preferência, alguém entre eles para comandar. Em segundo (eles têm uma tal maneira de se expressar na sua linguagem que chamam os homens de “metade” uns dos outros) que tinham visto que havia entre nós homens repletos e abarrotados de toda espécie de comodidades, e que suas metades eram mendigos às suas portas, descarnados de fome e pobreza; e achavam estranho como essas metades daqui, necessitadas, podiam suportar tal injustiça, que não pegassem os outros pela goela ou ateassem fogo em suas casas. Falei com um deles por muito tempo, mas eu tinha um intérprete que me seguia tão mal, e cuja estupidez tanto o impedia de entender minhas ideias, que não pude tirar dessa conversa nada que prestasse. Quando lhe perguntei que proveito tirava da superioridade que tinha entre os seus (pois era um capitão, e nossos marinheiros o chamavam de rei), disse-me que era estar à frente dos que marchavam para a guerra; quando perguntei de quantos homens era seguido, mostrou-me um espaço aberto para significar que era de tantos quantos caberiam em tal espaço, podiam ser 4 mil ou 5 mil homens; quando perguntei se fora da guerra toda a sua autoridade estava extinta, disse que lhe restava o fato de que, quando visitava as aldeias que dependiam dele, abriam-lhe picadas através das moitas de seus bosques por onde pudesse passar bem confortavelmente. Tudo isso não é tão mau assim: mas ora! eles não usam calças.”


“Por isso, diz Platão, é bem mais fácil satisfazer as pessoas ao falar da natureza dos deuses que da natureza dos homens, pois a ignorância dos ouvintes permite ao manejo de tais matérias secretas uma bela e longa carreira, em absoluta liberdade.”


“Basta a um cristão crer que todas as coisas vêm de Deus para recebê-las com o reconhecimento de Sua divina e inescrutável sapiência; por conseguinte, aceitá-las com gosto, sob qualquer aspecto que lhe sejam enviadas. Mas acho errado o que vejo em prática, de procurar firmar e apoiar nossa religião na prosperidade de nossos empreendimentos. Nossa fé tem muitos outros fundamentos sem ser necessário legitimá-la pelos acontecimentos; pois estando o povo acostumado com esses argumentos plausíveis e propriamente a seu gosto, há o perigo de que isso abale sua fé quando os acontecimentos, por sua vez, se apresentam contrários e desvantajosos.”


“Em suma, é difícil trazer as coisas divinas para a nossa balança sem que sofram depreciação.”


“Ora, o objetivo, creio eu, é um só: viver mais à vontade e a gosto. Mas nem sempre procuramos bem o caminho: volta e meia pensamos ter abandonado os negócios e apenas os mudamos. Não há menos tormento no governo de uma família que no de um Estado inteiro; onde quer que a alma esteja ocupada, ali está por inteiro; e por serem os afazeres domésticos menos importantes, nem por isso são menos importunos.”


“Diziam a Sócrates que alguém não tinha se emendado durante uma viagem: “Bem creio”, disse, “levou a si mesmo junto consigo”.”


“Quando a cidade de Nola foi destruída pelos bárbaros, Paulino, que era seu bispo, tendo tudo perdido e sendo prisioneiro deles, rezava assim a Deus: “Livrai-me, Senhor, de sentir essa perda, pois sabeis que eles ainda não tocaram em nada do que é meu”. As riquezas que o faziam rico e os bens que o tornavam bom ainda estavam por inteiro.”


“É preciso ter mulheres, filhos, bens e sobretudo saúde, se possível, mas não se apegar a eles de maneira que nossa felicidade disso dependa. É preciso reservar um canto todo nosso, todo livre, e lá estabelecer nossa verdadeira liberdade e nosso principal retiro e solidão. Aí devemos praticar nossa conversa habitual, de nós para nós mesmos, e tão privada que nenhum convívio ou comunicação com as coisas externas encontre espaço: discorrer e rir, como se sem mulher, sem filhos e sem bens, sem séquito, sem criados, a fim de que, quando chegar o momento de sua perda, não nos seja novidade dispensá-los. Temos uma alma capaz de recolher-se em si mesma; ela pode se fazer companhia, tem com que atacar e com que se defender, com que receber e com que dar: não temamos nessa solidão embotar-nos em uma penosa ociosidade, In solis sis tibi turba locis. Nesses locais solitários sê para ti mesmo a multidão¹]. A virtude contenta-se consigo mesma: sem disciplina, sem palavras, sem ações.”
1: Tibulo, IV, XIII, 12.


“Já vivemos bastante para o outro, vivamos para nós ao menos neste fim de vida, voltemos para nós e para nosso bem-estar nossos pensamentos e intenções: não é jogada fácil organizar a própria retirada com segurança; ela já nos é bastante pesada sem lhe misturarmos outros projetos. Visto que Deus nos dá tempo para cuidar de nossa partida, preparemo-nos para ela; arrumemos as malas, façamos logo as despedidas da companhia; desvencilhemo-nos desses laços violentos que nos arrastam alhures e afastam-nos de nós. Há que desatar essas obrigações tão fortes, e doravante amar isto ou aquilo mas só desposar a si mesmo; isto é, que o restante seja nosso, mas não unido e colado de modo que não possamos soltá-lo sem nos esfolarmos e arrancar um pedaço de nós mesmos. A maior coisa do mundo é saber ser de si mesmo. É tempo de desligarmo-nos da sociedade, posto que nada podemos lhe conceder. E quem não pode emprestar, que se livre de pedir emprestado. Nossas forças estão nos faltando: retiremo-las e estreitemo-las dentro de nós. Quem puder inverter e reunir em si os papéis da amizade e da companhia, que o faça. Nesse declínio, que torna o homem inútil, pesado e importuno para os outros, que ele evite ser importuno, pesado e inútil para si mesmo. Que se louve e se afague, e sobretudo se governe, respeitando e temendo sua razão e sua consciência, de tal modo que não possa dar um passo em falso na presença dos outros sem se envergonhar. Rarum est enim, ut satis se quisque vereatur¹. De fato é raro quem respeita a si mesmo o suficiente.]”
1: Quintiliano, Instituição oratória, X, VII, 24.


“O humor mais contrário ao retiro é a ambição, a glória e o repouso não podem morar sob o mesmo teto.”


“Lembrai-vos daquele a quem se perguntava com que finalidade se esforçava tanto numa arte que só podia chegar ao conhecimento de poucas pessoas: ‘Bastam-me poucos’, respondeu, ‘basta-me um, basta-me nenhum’. Ele disse a verdade: vós e um companheiro sois teatro suficiente um para o outro, ou vós para vós mesmos. Que o público vos seja um, e um vos seja todo o público.”


“Estava recentemente pensando de onde nos vinha esse erro de recorrer a Deus em todos os nossos projetos e empreendimentos, e de chamá-Lo em toda sorte de necessidade, e em qualquer lugar em que nossa fraqueza deseja ajuda, sem considerar se a ocasião é justa ou injusta; e de invocar Seu nome e Seu poder em qualquer situação e ação que pratiquemos, por mais pecadora que seja. Ele é de fato nosso só e único protetor, e para ajudar-nos pode todas as coisas, mas, conquanto se digne a honrar-nos com essa doce aliança paterna, é, porém, tão justo como bom e poderoso. Mas usa bem mais frequentemente Sua justiça do que Seu poder, e favorece-nos de acordo com essa justiça e não segundo nossos pedidos.”


“A posição de um homem que mistura a devoção com uma vida execrável parece ser bem mais condenável que a de um homem coerente consigo mesmo e inteiramente dissoluto.”


“O Livro Sagrado dos mistérios de nossa fé não é estudo para todo mundo: é estudo para pessoas que a isso se dedicaram, que Deus chama para tal; os maus, os ignorantes tornam-se piores com isso.”


“Flutuamos entre diversas opiniões: nada queremos livremente, nada absolutamente, nada constantemente. Em quem tivesse prescrito e estabelecido no espírito certas leis e certo projeto, veríamos tudo, em toda a sua vida, reluzir uma uniformidade de comportamentos, uma ordem e uma relação infalível de umas coisas com as outras. (Empédocles observava essa deformidade entre os agrigentinos, que se entregavam às delícias como se devessem morrer amanhã, e construíam como se nunca devessem morrer.) Seria muito fácil dar uma explicação a isso. Como se vê com Catão, o Moço, quem nele toca uma tecla toca todas, pois há uma harmonia de sons muito bem afinados que ninguém pode negar. Conosco, ao contrário, são tantas ações quantos juízos particulares. O mais seguro, a meu ver, seria referi-las às circunstâncias próximas, sem entrar em pesquisa mais longa e sem disso tirar outra conclusão. Durante as desordens de nosso pobre país, contaram-me que uma moça, bem perto daqui onde me encontro, se jogara do alto de uma janela para evitar a brutalidade do soldado pulha acampado em sua casa; não morreu na queda e, para repetir a tentativa, quis enfiar uma faca na garganta mas a impediram; depois de ter se ferido bastante, ela mesma confessou que o soldado ainda não a havia pressionado a não ser com pedidos, solicitações e presentes, mas que ela ficara com medo de que no final ele a violentasse. Daí os gritos, a atitude e aquele sangue, prova de sua virtude, à verdadeira moda de uma outra Lucrécia¹. Ora, eu soube que, na verdade, antes e depois ela fora moça não tão difícil nem arisca. Como diz o conto, “por mais belo e honesto que sejas, quando tiveres falhado em teu ataque não concluas, incontinente, por uma castidade inviolável de tua amante: isso não quer dizer que o arreeiro não tenha vez com ela”. Antígono, que se afeiçoara a um de seus soldados por sua virtude e valentia, mandou seus médicos tratarem dele por uma doença longa e interna que o atormentara muito tempo; percebendo que, depois da cura, ele cumpria as tarefas muito mais friamente, perguntou-lhe quem o modificara assim e o acovardara: “Vós mesmo, senhor”, respondeu-lhe, “tendo me aliviado dos males que me faziam não levar em conta minha vida”. Um soldado de Lúculo, ao ser roubado pelos inimigos, organizou contra eles, para se vingar, um belo ataque. Quando se recuperou da perda, Lúculo, que o tinha em boa conta, empregou-o em uma façanha perigosa, com todas as exortações mais belas que podia imaginar:
Verbis quae timido quoque possent addere mentem
Com palavras que poderiam dar coragem até mesmo ao covarde (Horácio, Epístolas, II, III, 39-40):
“Mandai para isso”, ele respondeu, “algum pobre soldado roubado.”
quantumvis rusticus ibit,
Ibit eu, quo vis, qui zonam perdidit, inquit
por mais rústico que fosse, ele respondeu: “Irá, irá aonde queres aquele que perdeu sua bolsa” (Horácio, Epístolas, II, II, 39).
e recusou-se terminantemente a ir. Lemos que Maomé,² tendo injuriosamente maltratado Xasan, chefe dos seus janízaros, por ver sua tropa derrotada pelos húngaros e por ter ele se portado covardemente no combate, teve como única resposta ver Xasan precipitar-se furioso, sozinho, no estado em que se encontrava, armas em punho, sobre o primeiro pelotão inimigo que se apresentou, pelo qual foi repentinamente tragado. Talvez não o tenha movido tanto o desejo de se justificar como uma reviravolta de sentimentos; não tanto a valentia natural como um despeito. Quem ontem vistes tão corajoso, não achais estranho vê-lo no dia seguinte tão poltrão: ou a cólera, ou a necessidade, ou a companhia, ou o vinho, ou o som de uma trombeta, infundiram-lhe coragem no coração; não foi o raciocínio que lhe deu coragem, mas aquelas circunstâncias que o fortaleceram; não espanta se for transformado em outro por outras circunstâncias contrárias. Essa variação e essa contradição que vemos em nós, tão mutáveis, levaram alguns a imaginar que temos duas almas, outros, duas forças que nos acompanham e atuam, cada uma à sua maneira, uma para o bem, outra para o mal: uma diversidade tão brusca não pode associar-se a um sujeito simples. Não só o vento dos acontecimentos me agita conforme sua inclinação, como, além disso, eu mesmo me agito e me atormento pela instabilidade de minha postura; e quem se observa de perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado por onde a examino. Se falo de mim de diversos modos é porque me observo de diversos modos. Em mim encontram-se, de um jeito ou de outro, todas as contradições: envergonhado, insolente, casto, libidinoso, tagarela, taciturno, trabalhador, lânguido, engenhoso, tolo, triste, jovial, mentiroso, sincero, sábio, ignorante, e generoso, e avarento e pródigo: vejo tudo isso em mim de certa maneira, conforme eu me examino. E quem se estuda bem atentamente encontra em si, e até em seu próprio julgamento, essa volubilidade e essa discordância. Não tenho nada a dizer de mim, integralmente, simplesmente, e solidamente, sem confusão e sem mistura, nem numa só palavra.”
1: Lucrécia, mulher de Tarquínio Colatino, foi violentada por Sexto Tarquínio. Desonrada, mandou buscar o pai e o marido, revelou o crime e matou-se na frente deles com um punhal.
2: O sultão Maomé II, que em 1453 acabou com o Império Bizantino e tomou Constantinopla, fez em 1479 uma expedição contra os húngaros, que terminou em fracasso.


“Nenhum vento serve para quem não tem porto de chegada.”


“Não demonstra entendimento experiente quem nos julga simplesmente por nossas ações externas: cumpre sondar até o fundo e ver quais engrenagens fazem as coisas se moverem. Mas como é tarefa elevada e arriscada, gostaria que menos pessoas nela se intrometessem.”


“É perigoso confundir a ordem e a importância dos pecados: os assassinos, os traidores, os tiranos, têm muito interesse nisso; não é justo que possam aliviar suas consciências porque um outro é ocioso, ou lascivo, ou menos assíduo na devoção. Cada um insiste no pecado do companheiro e alivia o seu próprio.”


“Como nas façanhas da guerra, o calor do combate costuma impelir os soldados corajosos a passar por lugares tão arriscados que, voltando a si, são os primeiros a ficar transidos de espanto.”


“Hesíodo corrige assim o dito de Platão, para quem o castigo segue de bem perto o pecado, pois diz que ele nasce no mesmo instante e junto com o pecado. Esperar pelo castigo é sofrê-lo; merecê-lo é esperar por ele. A maldade fabrica tormentos contra si mesma.”


“Nenhum esconderijo serve aos maus, dizia Epicuro, porque eles não podem ter certeza de que estão escondidos, já que a consciência os revela a si mesmos.”


“Não conseguir absolver-se em seu foro íntimo é a primeira punição do culpado.” (Juvenal, XIII, 2)


“As torturas são uma perigosa invenção, e parecem ser mais um ensaio de resistência humana que de verdade. E quem consegue suportá-las esconde a verdade, tanto quanto quem não consegue suportá-las. Pois por que a dor me fará confessar o que é verdade, mais do que me forçará a dizer o que não é?”


“Devemos adaptar-nos um pouco à simples autoridade da natureza, mas não nos deixar tiranicamente levar por ela: só a razão deve governar nossas inclinações.”


“Uma verdadeira afeição, e bem regrada, deveria nascer e aumentar com o conhecimento que nossos filhos nos dão de si; e então, se o merecem, como a propensão natural anda a par com a razão, podemos dedicar-lhes uma afeição verdadeiramente paternal; e, da mesma forma, julgá-los, se forem diferentes, rendendo-nos sempre à razão, não obstante a força da natureza. Muitas vezes é o inverso que acontece, e mais comumente nos sentimos mais comovidos com os pulos, brincadeiras e tolices pueris de nossos filhos do que, depois, com suas ações bem pensadas: como se os amássemos como nosso passatempo, como macaquinhos e não como homens.”


“É loucura e injustiça privar os filhos crescidos da familiaridade com os pais e querer manter com eles uma arrogância austera e desdenhosa, esperando com isso deixá-los temerosos e obedientes. Pois é uma farsa inútil que torna os pais muito aborrecidos para os filhos, e, o que é pior, ridículos. Eles têm a juventude e as forças nas mãos, e por conseguinte o vento e a simpatia do mundo; e recebem com zombaria essas caras orgulhosas e tirânicas de um homem que não tem mais sangue no coração nem nas veias: verdadeiros espantalhos de campos de cânhamo. Mesmo se pudesse me fazer temido, gostaria mais ainda de me fazer amado. Há tantas espécies de fraquezas na velhice, tanta impotência, ela é tão sujeita ao desprezo, que a melhor conquista que pode fazer é a afeição e o amor dos seus: o comando e o temor não são mais suas armas.”


“De todos os operários o poeta é precisamente o mais apaixonado por sua obra.” (Aristóteles)


“Parece-me que a virtude é outra coisa, e mais nobre, do que essas tendências à bondade que nascem em nós. As almas bem autocontroladas por si mesmas e bem-nascidas seguem o mesmo passo e representam em suas ações a mesma face que as virtuosas. Mas a virtude soa um não sei quê de maior e mais ativo do que se deixar conduzir tranquila e pacificamente pelo rastro da razão graças a um feliz temperamento. Quem, por ter um caráter naturalmente fácil e suave, desprezasse as ofensas recebidas faria coisa muito bonita e digna de elogio; mas quem, picado em carne viva e indignado por uma ofensa, se munisse das armas da razão contra esse furioso apetite de vingança e por fim o controlasse depois de um grande conflito faria sem dúvida muito mais. Aquele agiria bem, e este agiria virtuosamente; uma ação poderia se chamar bondade, a outra, virtude. Pois parece que a palavra virtude pressupõe dificuldade e oposição, e não pode ser exercitada sem combate. É talvez por isso que dizemos que Deus é bom, forte, e generoso e justo, mas não o chamamos de virtuoso. Suas operações são todas naturais e sem esforço.”


“As índoles sanguinárias em relação aos animais atestam uma propensão natural à crueldade. Em Roma, depois que se acostumaram aos espetáculos de mortes dos animais, chegaram aos homens e aos gladiadores. A própria natureza (temo) fixou no homem um instinto de desumanidade. Ninguém sente prazer em ver os animais brincando entre si e acariciando-se; e ninguém deixa de senti-lo ao vê-los se dilacerarem e se desmembrarem.”


“Diz que não era o gato ou o boi (por exemplo) que os egípcios adoravam; mas que adoravam nesses bichos uma imagem das faculdades divinas: neste, a paciência e a utilidade, naquele, a vivacidade, ou, como nossos vizinhos borguinhões e em toda a Alemanha, a incapacidade de suportar a clausura, o que representava para eles a liberdade que amavam e adoravam além de qualquer outra faculdade divina, e assim por diante.”


“Em nosso século, mais comumente as esposas preferem mostrar seus bons ofícios e a veemência de seu amor quando os maridos já estão mortos: então, procuram pelo menos dar prova de sua boa vontade. Tardia prova, e fora de época. Com isso, mais demonstram que só os amam mortos. A vida é cheia de material inflamável, a morte, de amor e cortesia. Assim como os pais escondem o amor pelos filhos para se manterem honrados e respeitados, de bom grado elas escondem o seu pelo marido. Esse mistério não é de meu gosto. Por mais que se descabelem e se arranhem, vejo-me ao ouvido de uma camareira ou de um secretário: “Como eles eram? Como viveram juntos?”. Sempre me lembro desta tirada:
jactantius moerent, quae minus dolent.
elas choram com mais ostentação quanto menos sentem tristeza. (Tácito, Annales, II, LXXVII.)
Suas choradeiras são odiosas para os vivos e inúteis para os mortos; permitiremos com gosto que riam depois, contanto que riam para nós durante a vida. Não é para ressuscitar de raiva se quem tiver me cuspido na cara enquanto eu vivia vier me esfregar os pés quando eu não estiver mais aqui? Se existe certa honra em prantear os maridos, esta só pertence àquelas que lhes sorriram; as que choraram durante a vida deles, então que riam na morte, tanto por fora como por dentro.”

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