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domingo, 1 de janeiro de 2017

O complexo de Portnoy – Philip Roth

Editora: Companhia de bolso
ISBN: 978-85-8086-620-9
Tradução: Paulo Henriques Brito
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 240 

“Ah, ah, ah — treze anos e já tem uma língua assim! Dizer uma coisa dessas para uma pessoa que só está preocupada com a sua saúde, com o seu bem!” É de tal modo inexplicável aquela situação que seus olhos se enchem de lágrimas. “Alex, por que é que você está ficando assim? Me dá uma pista! Me diz, por favor, que coisas horríveis a gente fez com você a vida toda para você nos tratar assim agora?” Creio que ela julga estar fazendo uma pergunta original. Creio que a pergunta lhe parece irrespondível. E o pior de tudo é que eu concordo com ela. Afinal, o que foi que eles fizeram comigo a vida toda, se não se sacrificar? No entanto, é justamente essa a coisa horrível que não consigo entender — até hoje, doutor! Até hoje!
Reteso os músculos, me preparando para os cochichos. Sei com meia hora de antecedência quando os cochichos vão começar. Agora vamos conversar sobre as dores de cabeça de meu pai.
“Alex, sabe que hoje ele teve uma dor de cabeça tão forte que nem conseguia enxergar direito?” Ela vai ver se meu pai não está mesmo ouvindo. Deus nos livre de ele ouvir comentários sobre o estado crítico de sua saúde, ele vai dizer que é exagero. “Ele não vai fazer exame semana que vem pra ver se está com um tumor?”
“Vai?”
“‘Traga ele aqui’, o médico falou, ‘que eu vou fazer um exame pra ver se ele está com um tumor’.”
Sucesso. Estou chorando. Não há nenhum motivo para eu estar chorando, mas nesta casa todo mundo tenta dar uma boa chorada pelo menos uma vez por dia. Meu pai, é preciso explicar — se bem que certamente o senhor já entendeu: boa parte da humanidade, e da sua clientela também, imagino, é composta de chantagistas —, meu pai está indo fazer esse exame semana que vem desde que me entendo por gente. Se a cabeça dele dói o tempo todo é, naturalmente, porque ele vive com prisão de ventre — e se ele vive com prisão de ventre é porque seu intestino é propriedade da firma Medo, Preocupação & Frustração. É bem verdade que uma vez um médico disse a minha mãe que ia examinar meu pai para ver se ele tinha um tumor — se era isso que ela queria, foi o que o doutor acrescentou, se não me engano; porém observou que seria mais barato, e por certo mais eficiente, investir numa ducha de lavagem. No entanto, mesmo eu sabendo de tudo isso, continua sendo devastadora a imagem de meu pai com o crânio estourado por um tumor maligno.
É, ela me tem na palma da mão, e sabe que tem. Esqueço por completo de meu próprio câncer, dominado que estou pelo sofrimento — agora tal como naquela época —, quando penso que tanta coisa na vida dele sempre esteve (para usar a expressão muito precisa que ele sempre empregava) além de sua compreensão. E do alcance dele também. Não tinha dinheiro, não tinha instrução, não tinha um idioma, não tinha conhecimentos, tinha curiosidade sem cultura, motivação sem oportunidade, experiência sem sabedoria... As limitações de meu pai facilmente me fazem chorar. E, com a mesma facilidade, me enchem de raiva!”


“O que é que ele tem na cabeça, esse bobalhão! esse idiota! esse garoto dissimulado! Esse tarado! Ele simplesmente não consegue — não quer — controlar o fogo que tem no putz*, a febre que arde no cérebro, o desejo constante pelo que é novo, louco, jamais pensado e, se é possível se imaginar tal coisa, jamais sonhado. Em matéria de boceta, ele vive num estado que nem se atenuou nem sofreu o menor refinamento desde o tempo em que tinha quinze anos e não conseguia se levantar da carteira na sala de aula sem ter de usar o fichário para ocultar o pau duro. Toda garota que vê, ele constata (atenção!), tem entre as pernas... uma boceta. Espantoso! Surpreendente! Até hoje não conseguiu se habituar com a ideia fantástica de que quem olha para uma mulher está olhando para uma pessoa que, sem sombra de dúvida, tem... uma boceta! Todas elas têm bocetas! Debaixo do vestido! Bocetas que servem... para foder! E, doutor, meritíssimo, seja lá como o senhor se chame — pelo visto não faz diferença se o infeliz está se dando bem ou não, porque ele está sonhando com a boceta de amanhã no exato momento em que está comendo a de hoje!
Estou exagerando? Estou me penitenciando só como uma maneira engenhosa de me exibir? Ou de contar vantagem? Será que realmente vivencio essa inquietude, essa excitação, como uma doença — ou como uma proeza? As duas coisas? Talvez. Ou será apenas uma forma de evasão? Olhe, pelo menos não estou, aos trinta e poucos anos, preso num casamento com uma pessoa legal cujo corpo já não me interessa de verdade — pelo menos não sou obrigado a me deitar toda noite com uma pessoa que como mais por obrigação do que por desejo. Porque tem gente que sofre uma depressão horrível na hora de se deitar... Por outro lado, até eu preciso admitir que, de um certo ponto de vista, talvez haja algo um pouco deprimente na minha situação, também. É claro que não se pode ter tudo, ou pelo menos é o que penso — mas a pergunta que estou disposto a enfrentar é a seguinte: eu tenho alguma coisa? Por quanto tempo ainda vou poder continuar realizando esses experimentos com mulheres? Por quanto tempo ainda vou poder viver enfiando esse negócio nos buracos que se oferecem a ele — primeiro este buraco aqui, depois, quando eu cansar dele, aquele outro ali... e assim por diante. Quando é que isso vai acabar? Mas por que tem que acabar? Para (ter filhos e) agradar meu pai e minha mãe? Para me conformar à norma? Por que eu preciso ficar na defensiva por ser aquilo que algum tempo atrás tinha o respeitável nome de solteiro? Porque afinal de contas é só disso que se trata — sou solteiro. Então qual é o crime? Liberdade sexual? No tempo em que vivemos? Por que motivo eu tenho de me submeter à burguesia? Por acaso eu peço que ela se submeta a mim? Está bem, admito que tenho algo de boêmio — o que há de terrível nisso? Quem eu estou prejudicando com a minha volúpia? Nunca dei uma pancada na cabeça de uma mulher para fazê-la desmaiar, nem torci o braço dela para obrigá-la a ir para a cama comigo. Sou, se me permitem dizê-lo, um homem honesto e sensível; falando sério, para um homem sou até bem... Mas por que é que tenho que me explicar! Me desculpar! Por que preciso justificar meus desejos com minha Honestidade e minha Sensibilidade! Está bem, tenho desejos, sim — só que eles são insaciáveis. Insaciáveis! E isso pode não ser uma coisa muito boa, se adotarmos por um momento o ponto de vista psicanalítico... Mas, afinal, a única coisa que o inconsciente sabe fazer, segundo Freud, é desejar. E desejar! E DESEJAR! Ah, Freud, disso sei eu! Esta aqui tem uma bela bunda, mas fala demais. Por outro lado, esta outra não fala nada, ou pelo menos não diz nada que se aproveite — mas como sabe chupar! Vá entender de pica assim! Já esta outra é um amor de menina, com os mamilos mais macios, mais rosados, mais encantadores que meus lábios já tocaram, só que se recusa a me chupar. Não é estranho? E no entanto — vá entender as pessoas! — ela gosta, quando está sendo comida, que eu enfie um ou dois dedos no ânus dela. Que coisa mais misteriosa! O inesgotável fascínio de todas essas aberturas e buracos! Como o senhor vê, eu não consigo parar! Nem me prender a uma apenas. Tenho casos que chegam a durar um ano, um ano e meio, meses e meses de amor, ao mesmo tempo terno e voluptuoso, mas no fim — é uma coisa tão inevitável quanto a morte — o tempo marcha e o desejo murcha. No final, não consigo dar o último passo e me casar. Mas por que tenho que me casar? Por quê? Existe alguma lei que diz que Alex Portnoy tem obrigação de se tornar marido e pai de alguém? Doutor, podem se plantar no patamar de uma janela e dizer que vão se esborrachar na calçada, podem fazer uma pilha de Seconal que chegue até o teto — posso passar semanas e semanas morrendo de medo que essas moças casadouras se joguem debaixo do trem do metrô, mas eu simplesmente não posso, não quero, assinar um contrato estipulando que vou ter que dormir com apenas uma mulher pelo resto da vida. Imagine só: digamos que eu me case com A, a dos peitinhos lindos etc. O que vai acontecer quando aparecer B, que tem peitos ainda mais lindos — ou, pelo menos, novos? Ou C, que sabe mexer o rabo de uma maneira especial que nunca provei antes; ou D, ou E, ou F. Estou tentando ser sincero com o senhor, doutor — porque em matéria de sexo a imaginação humana vai até Z, e além! Peitos, bocetas, pernas, lábios, bocas, línguas, cus! Como posso abrir mão do que nem cheguei a provar, em troca de uma garota que, por mais deliciosa e provocante que tenha sido, inevitavelmente vai acabar se tornando algo tão conhecido para mim quanto um pão? Por amor? Que amor? Será isso que mantém unidos todos esses casais que conhecemos — esses que se dão ao trabalho de se manter unidos? Não seria mais fraqueza? Não seria mais conveniência e apatia e sentimento de culpa? Não seria medo, exaustão, inércia, covardia pura e simples, muito, muito mais do que o tal “amor” que os conselheiros matrimoniais e compositores populares e psicoterapeutas vivem alardeando? Por favor, não me venham com essa embromação de “amor” duradouro. É por isso que eu pergunto: como posso me casar com uma pessoa que “amo” sabendo muito bem que daqui a cinco, seis, sete anos vou estar na rua à cata de uma boceta nova — enquanto minha esposa dedicada, que criou um lar tão caprichado, etcétera e tal, suporta com estoicismo a solidão e a rejeição? Como poderia eu enfrentar as lágrimas terríveis dela? Não poderia. Como enfrentar as crianças tão agarradas comigo? E depois o divórcio, não é? A pensão alimentícia. A pensão dos filhos. O direito de visita. Uma maravilha, realmente. E se alguma mulher se matar porque eu me recuso a fingir que não enxergo o futuro, bom, isso é problema dela — só dela! Não há motivo, não faz sentido uma pessoa ameaçar se matar só porque sou sensato e sei muito bem as frustrações e recriminações que me esperam... Meu amor, por favor, não fique urrando desse jeito não, por favor — vão achar que alguém está estrangulando você. Ah, meu amor (eu me vejo implorando, ano passado, este ano, todos os anos da minha vida!), vai ser bom para você, sabe, vai ser bom; você vai se recuperar e vai ser bem melhor para você, então, por favor, volte para dentro do quarto, sua babaca, e me deixe ir embora! “Você! Você e essa sua pica imunda!”, grita a minha mais recente futura esposa desiludida (e autoiludida), essa minha amiga estranha, magricela e completamente pirada, que ganhava em uma hora, posando para anúncios de lingerie, o que o pai analfabeto levava uma semana para ganhar nas minas de carvão da Virgínia Ocidental: “Eu pensava que você fosse uma pessoa superior, seu filho da puta chupador de boceta!”. Essa linda menina, que me entendeu tão mal, tem o apelido de Macaca, cuja origem é uma pequena perversão a que ela se entregava pouco antes de me conhecer e adotar outras, mais grandiosas. Doutor, nunca tive uma mulher como ela na minha vida, ela era a realização de meus sonhos de adolescência mais lascivos — mas daí a me casar...? Será que ela esta falando sério? O senhor entende, apesar de ela se emperiquitar e se perfumar, sua autoimagem é muito ruim, e ao mesmo tempo — e eis a origem de muitos dos nossos problemas — a imagem que ela faz de mim é absurdamente elevada. E, ao mesmo tempo, absurdamente negativa! Trata-se de uma Macaca muito confusa, e, a meu ver, não muito inteligente. “Um intelectual!”, ela grita. “Uma pessoa instruída, espiritual! Seu cachorro, mesquinho, tarado, você liga mais pras crioulas do Harlem que você nem conhece do que pra mim, que estou chupando você há um ano!” Confusa, arrasada e também enlouquecida. Pois tudo isso acontece na varanda do nosso quarto de hotel em Atenas, enquanto estou parado na porta, com as malas na mão, pedindo por favor que ela venha para dentro do quarto para que eu possa pegar o avião e ir embora dali. Então o gerente, um homenzinho irritado, todo azeite de oliva, bigode e respeitabilidade indignada, sobe a escada correndo agitando os braços — e aí, respirando bem fundo, eu digo: “Olha, se você quer pular, pula!” e saio do quarto — e as últimas palavras que sou obrigado a ouvir em relação a toda essa história são que foi só por amor a mim (“Amor!”, ela grita) que ela se permitiu fazer as coisas degradantes que eu abre aspas a obriguei fecha aspas a fazer.
O que não é verdade, doutor! Não é verdade, mesmo! Isso não passa de uma tentativa dessa vigarista esperta de me atormentar de culpa — e desse modo arranjar marido. Porque aos vinte e nove anos de idade, o senhor entende, é isso que ela quer — mas isso não significa que eu tenha de querer também. “Em setembro, seu filho da puta, eu vou fazer trinta anos!” Correto, Macaca, correto! E é justamente por isso que você, e não eu, é quem é responsável por suas expectativas e seus sonhos! Entendeu? Você! “Eu vou contar pra todo mundo como você é, seu puto desalmado! Vou contar que espécie de tarado você é, as porcarias que você me obrigou a fazer!”
Que filha da puta! Ainda bem que consegui escapar dessa história vivo. Se é que consegui mesmo!”
* Putz: pênis.


“A legenda inscrita na moeda judaica — no corpo de cada criança judia! — não é EM DEUS CONFIAMOS, e sim UM DIA VOCÊ VAI SER PAI E VER COMO É. (...)
Jesus Cristo, um homem judeu com os pais vivos continua sendo um menino de quinze anos, e vai continuar sendo até eles morrerem!
Enfim, a essa altura Sophie já segurou minha mão e, baixando a vista, espera eu terminar de mencionar a última realização minha de que me lembro, o último ato virtuoso que já pratiquei, e então diz: “Mas para nós você continua sendo um bebê, meu amor”. E daí começam os cochichos, os famosos cochichos de Sophie, que todos que estiverem na sala podem ouvir sem nenhum esforço, pois ela não quer excluir ninguém: “Pede desculpa pra ele (por eu ter ralhado com meu pai). Dá um beijo nele. Um beijo seu é capaz de mudar o mundo”.
Um beijo meu é capaz de mudar o mundo! Doutor! Doutor! Eu disse quinze? Desculpe, eu quis dizer dez! Eu quis dizer cinco! Eu quis dizer zero! Um homem judeu com os pais vivos é um recém-nascido indefeso! Por favor, me ajude — e depressa! Me liberte desse papel de filho sufocado numa piada judaica! Porque está começando a perder a graça, aos trinta e três anos!”


“Seria bom, disse ela, não ter que voltar, não é?
Seria bom, não é, um dia morar no campo, com uma pessoa de quem a gente gosta de verdade?
Seria bom, não é, acordar cheia de energia quando o dia começa a clarear e ir se deitar exausta quando começa a escurecer?
Seria bom, não é, ter um monte de obrigações a cumprir e passar o dia inteiro fazendo o que se tem que fazer e nem se dar conta de que são obrigações?
Seria bom, não é, passar dias e mais dias sem pensar em si própria, semanas inteiras, meses a fio? Andar com roupa velha, sem se pintar, e não ter que ser durona o tempo todo?
Passou um tempo. Ela assobiou. “Seria muito legal, não é?””


“Sempre gostei mais de beleza e sensualidade do que de feiura e frieza — qual o problema?”


“A culpa toda é dos seus pais, não é, Alex? Tudo o que é ruim, a culpa é deles — tudo o que é bom, foi você que fez sozinho!”


“Há uma expressão na língua, “bom dia”, segundo me dizem, que nunca utilizei por falta de necessidade. Usá-la para quê? Lá em casa, no café da manhã, os outros moradores me conhecem como “Mister Mau Humor” ou “o ranzinza”. Porém aqui em Iowa na casa de meus sogros, me vejo de repente imitando os habitantes da região e me transformo num verdadeiro gêiser de bons-dias. Nessa casa todo mundo só sabe dizer isso — sentem o sol no rosto e é como se desencadeasse uma espécie de reação química: Bom dia! Bom dia! Bom di-a! cantado com meia dúzia de melodias diferentes! Em seguida, um pergunta ao outro se “dormiu bem essa noite”. Perguntam até a mim! Eu dormi bem essa noite? Realmente, não sei; tenho que pensar — a pergunta me surpreende um pouco. Eu Dormi Bem Essa Noite? E não é que dormi? É, acho que sim! E o senhor? “Dormi feito uma pedra”, responde o sr. Campbell. E pela primeira vez na vida compreendo com perfeição o sentido de um símile. Esse homem, que é corretor imobiliário e vereador de Davenport, diz que dormiu feito uma pedra, e eu realmente vejo uma pedra. Entendi! Imóvel, pesado, como uma pedra! “Bom dia”, diz ele, e agora me ocorre que a palavra “dia”, tal como ele a usa, se refere especificamente às horas em que o sol está à mostra. Ele de fato quer que esse período em que o sol está à mostra seja bom para nós, isto é, divertido, prazeroso, benéfico! Todos estamos desejando uns aos outros várias horas de prazer e realização. Mas que coisa fantástica! Isso é muito simpático! Bom dia! E o mesmo se aplica a “boa tarde”! E “boa noite”! Meu Deus! A língua inglesa é uma forma de comunicação! A conversação não é apenas uma espécie de fogo cruzado, em que você atinge os outros e os outros atingem você! Em que é necessário ficar o tempo todo se esquivando e atirando para matar! As palavras não são apenas bombas e balas — não, são pequenos presentes, que contêm significados!
Espere, ainda não terminei — como se a experiência de ver de dentro e não de fora uma daquelas cortinas goyische não fosse suficientemente estarrecedora, como se a experiência inacreditável de estar desejando muitas horas de prazer a uma casa cheia de góis¹ não fosse motivo suficiente de perplexidade, além disso, para acentuar o êxtase da desorientação, o nome da rua em que a minha namorada foi criada! correu! patinou! brincou de amarelinha! andou de trenó! enquanto eu sonhava com a existência dela a cerca de dois mil e quinhentos quilômetros dali, num país que, todos me garantem, é o mesmo que este — qual é o nome da rua? Não Xanadu, não; é muito melhor que isso, e muito, muito mais exótico: Elm, “olmo”. Elm! Uma rua cheia de árvores — que devem ser olmos!
Para dizer a verdade, devo admitir que não consigo tirar essa conclusão logo que salto do automóvel dos Campbell na noite de quarta-feira: afinal de contas, levei dezessete anos para aprender a reconhecer um carvalho, e mesmo assim só se ele estiver carregado de bolotas. A primeira coisa que vejo numa paisagem não é a flora, falando sério — é a fauna, a oposição humana, quem está comendo quem. A vegetação, deixo para os passarinhos e as abelhinhas, que têm lá os problemas deles; eu tenho os meus. Lá em casa, quem é que sabe o nome daquela coisa que tem na calçada em frente do nosso prédio? É uma árvore — e pronto. A espécie é algo inteiramente desprovido de importância; ninguém quer saber que tipo de árvore é, desde que ela não caia na cabeça de ninguém. No outono (ou será na primavera? O senhor entende dessas coisas? Só sei que no inverno é que não é) caem dos galhos umas vagens compridas, em forma de crescente, que contêm umas pelotinhas duras. Pois bem. Eis um fato científico a respeito da nossa árvore, que chegou até mim via minha mãe, Sophie Linnaeus: se você colocar uma dessas pelotas num canudinho e soprar, pode cair no olho de uma pessoa e cegá-la para o resto da vida. Pois é mais ou menos essa toda a minha bagagem intelectual em matéria de botânica quando, naquela tarde de domingo, estamos indo embora da casa dos Campbell em direção à estação ferroviária e tenho meu momento de Arquimedes: Elm Street, rua dos olmos... então... as árvores são olmos! Como é simples! Quer dizer, não precisa ter meu Q.I. de 158, não precisa ser um gênio para compreender este mundo. Na verdade, tudo é muito simples!
Um fim de semana memorável na minha vida, o equivalente na história humana, eu diria, à passagem da humanidade por toda a idade da pedra. Cada vez que o sr. Campbell chamava a mulher de “Mary”, a temperatura de meu corpo chegava a quarenta graus. Eu me dava conta de que estava comendo em pratos que haviam sido tocados pelas mãos de uma mulher chamada Mary. Por favor — rezo no trem seguindo rumo ao oeste —, que não haja imagens de Jesus Cristo na casa dos Campbell. Que eu possa passar o fim de semana sem ter que ver sua punim² patética — nem ter de lidar com pessoas que andam com cruzes penduradas no pescoço! Quando as tias e os tios vierem para o jantar de Ação de Graças, por favor, que não haja nenhum antissemita entre eles! Porque, se alguém começar a falar em “judeu metido a besta” ou em “judeu pão-duro” ou “judiação” — quem me vier com esse tipo de conversa vai sentir na carne o que é judiação, o filho da puta! Não, nada de violência (como se eu fosse capaz de tal coisa), eles que sejam violentos, eles é que são assim. Não, eu me levanto da cadeira — e aí (vuh den?³) faço um discurso! Envergonho e humilho todos eles por serem preconceituosos! Cito a Declaração de Independência durante a sobremesa! Quem é que eles pensam que são, esses putos, para se acharem donos do Dia de Ação de Graças!
Então, na estação ferroviária, o pai dela diz: “Muito prazer, meu rapaz”. Eu, naturalmente, revido com: “Obrigado”. Por que será que ele esta sendo tão simpático? Porque ele já foi previamente avisado (o que não sei se devo considerar um insulto ou uma bênção) ou porque ele ainda não sabe? Devo contar a ele então, antes mesmo de entrarmos no carro? Isso mesmo, é melhor dizer! Não posso prolongar uma situação falsa! “É, para mim é um prazer estar aqui em Davenport, senhor e senhora Campbell, ainda por cima eu sendo judeu.” Não, não é categórico o bastante. “Bom, como amigo da Kay, senhor e senhora Campbell, e como judeu, gostaria de agradecer por me convidarem...” Chega de embromação! Então o quê? Falar em iídiche? Como? Só conheço vinte e cinco palavras — metade é palavrão, metade não sei pronunciar direito! Porra, cale a boca e entre no carro. “Obrigado, obrigado”, digo eu, pegando minha mala, e seguimos todos em direção à caminhonete.
Eu e Kay vamos para o banco de trás, junto com o cachorro. O cachorro de Kay! Com o qual ela fala como se falasse com um ser humano! Puxa, ela é mesmo uma gói. Que coisa mais idiota, falar com um cachorro — só que Kay não é nada idiota! Na verdade, acho que ela é mais inteligente do que eu. E no entanto fala com um cachorro? “Quanto aos cachorros, senhor e senhora Campbell, de modo geral nós, judeus...” Ah, deixe isso pra lá. Não é necessário. De qualquer modo, você está ignorando (ou tentando o máximo ignorar) aquele eloquente apêndice que é o seu nariz. Para não mencionar o cabelo afro-judaico. É claro que eles sabem. Paciência, não há como fugir ao destino, bubi, a cartilagem de um homem é seu destino.
Assim que entro na casa, começo (discretamente, e surpreendendo a mim mesmo um pouco) a farejar: como será o cheiro daqui? Será cheiro de purê de batata? De vestido de velha? De cimento fresco? Farejo, farejo, tentando captar o cheiro. Pronto! Será isso, será esse o cheiro do cristianismo, ou será apenas cheiro de cachorro?”
1. Góis: Gentios
2. Punim: cara.
3. Vuh den: o que mais haveria de ser?


     ““Vou lá no campo, mãe, volto lá pra uma hora...”. “Espera aí. Que horas? Onde?” “Lá no campo”, eu grito, adoro gritar para que me ouçam, é como ficar zangado, sem as consequências desagradáveis.”

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