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sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A interpretação da Bíblia na Igreja – Pontifícia Comissão Bíblica

Editora: Paulinas

ISBN: 978-85-3561-401-5

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 162

Sinopse: A interpretação dos textos bíblicos continua a suscitar em nossos dias um vivo interesse e provoca importantes discussões; elas adquiriram dimensões novas nestes últimos anos; dada a importância fundamental da Bíblia para a fé cristã, para a vida da Igreja e para as relações dos cristãos com os fiéis das outras religiões, a Pontifícia Comissão Bíblica foi solicitada a se pronunciar a esse respeito.



“A Bíblia não é simplesmente enunciação de verdades. É uma mensagem dotada de uma função de comunicação em um certo contexto, uma mensagem que comporta um dinamismo de argumentação e uma estratégia retórica.”

 

 

“A Bíblia é a Palavra sobre o real, que Deus pronunciou em uma história e que ele nos dirige hoje por intermédio de autores humanos.”

 

 

“As tradições judaicas antigas permitem particularmente conhecer melhor a Bíblia judaica dos Setenta, que em seguida tornou-se a primeira parte da Bíblia cristã durante pelo menos os quatro primeiros séculos da Igreja, e no Oriente até nossos dias. A literatura judaica extra-canônica, chamada apócrifa ou intertestamentária, abundante e diversificada, é uma fonte importante para a interpretação do Novo Testamento. Os procedimentos variados de exegese praticados pelo judaísmo das diferentes tendências reencontram-se no próprio Antigo Testamento, por exemplo nas Crônicas em relação aos Livros dos Reis, e no Novo Testamento, por exemplo, em certos raciocínios escriturísticos de são Paulo. A diversidade das formas (parábolas, alegorias, antologia e florilégios, releituras, pesher, comparações entre textos distantes, salmos e hinos, visões, revelações e sonhos, composições sapienciais) é comum ao Antigo e ao Novo Testamento assim como à literatura de todos os ambientes judaicos antes e após o tempo de Jesus. Os Targumim e os Midrashim representam a homilética e a interpretação bíblica de grandes setores do judaísmo dos primeiros séculos.

Além disso, numerosos exegetas do Antigo Testamento pedem aos comentadores, gramáticos e lexicógrafos judeus medievais e mais recentes, luzes para a inteligência de passagens obscuras ou de palavras raras e únicas. Mais frequentes que antigamente, aparecem hoje referências a essas obras judaicas na discussão exegética.

A riqueza da erudição judaica colocada a serviço da Bíblia, desde suas origens na antiguidade até nossos dias, é uma ajuda muito valiosa para o exegeta dos dois Testamentos, à condição, no entanto, de empregá-la com conhecimento de causa. O judaísmo antigo era de uma grande diversidade. A forma farisaica, que prevaleceu em seguida no rabinismo, não era a única. Os textos judeus antigos se escalonam por vários séculos; é importante situá-los cronologicamente antes de fazer comparações. Sobretudo, o quadro geral das comunidades judaicas e cristãs é fundamentalmente diferente: do lado judeu, segundo formas muito variadas, trata-se de uma religião que define um povo e uma prática de vida a partir de um escrito revelado e de uma tradição oral, enquanto que do lado cristão é a fé ao Senhor Jesus, morto, ressuscitado e doravante vivo, Messias e Filho de Deus, que reúne uma comunidade. Esses dois pontos de partida criam, para a interpretação das Escrituras, dois contextos que, apesar de muitos contatos e semelhanças, são radicalmente diferentes.”

 

 

“O conhecimento dos dados sociológicos que contribuem a fazer compreender o funcionamento econômico, cultural e religioso do mundo bíblico é indispensável à crítica histórica. A tarefa da exegese, de bem compreender o testemunho de fé da Igreja apostólica, não pode ser levada a termo de maneira rigorosa sem uma pesquisa científica que estude os estreitos relacionamentos dos textos do Novo Testamento com a vivência social da Igreja primitiva.”

 

 

“A religião, sabe-se, é sempre em uma situação de debate com o inconsciente. Ela participa, em uma larga medida, à correta orientação das pulsões humanas.”

 

 

“O Deus da Bíblia não é projeção de uma mentalidade patriarcal. Ele é Pai, mas ele é também Deus de ternura e de amor maternais.”

 

 

“A leitura fundamentalista parte do princípio de que a Bíblia, sendo Palavra de Deus inspirada e isenta de erro, deve ser lida e interpretada literalmente em todos os seus detalhes. Mas por “interpretação literal” ela entende uma interpretação primária, literalista, isto é, excluindo todo esforço de compreensão da Bíblia que leve em conta seu crescimento histórico e seu desenvolvimento. Ela se opõe assim à utilização do método histórico-crítico, como de qualquer outro método científico, para a interpretação da Escritura.

Se bem que o fundamentalismo tenha razão em insistir sobre a inspiração divina da Bíblia, a inerrância da Palavra de Deus e as outras verdades bíblicas inclusas nos cinco pontos fundamentais (a inerrância verbal da Escritura, a divindade de Cristo, seu nascimento virginal, a doutrina da expiação vicária e a ressurreição corporal quando da segunda vinda de Cristo), sua maneira de apresentar essas verdades esta enraizada em uma ideologia que não é bíblica, apesar do que dizem seus representantes. Ela exige uma forte adesão a atitudes doutrinárias rígidas e impõe, como fonte única de ensinamento a respeito da vida cristã e da salvação, uma leitura da Bíblia que recusa todo questionamento e toda pesquisa crítica.

O problema de base dessa leitura fundamentalista é que recusando de levar em consideração o caráter histórico da revelação bíblica, ela se torna incapaz de aceitar plenamente a verdade da própria Encarnação. O fundamentalismo foge da estreita relação do divino e do humano no relacionamento com Deus. Ele se recusa em admitir que a Palavra de Deus inspirada foi expressa em linguagem humana e que ela foi redigida, sob a inspiração divina, por autores humanos cujas capacidades e recursos eram limitados. Por esta razão, ele tende a tratar o texto bíblico como se ele tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Espírito e não chega a reconhecer que a Palavra de Deus foi formulada em uma linguagem e uma fraseologia condicionadas por uma ou outra época. Ele não dá nenhuma atenção às formas literárias e às maneiras humanas de pensar presentes nos textos bíblicos, muitos dos quais são fruto de uma elaboração que se estendeu por longos períodos de tempo e leva a marca de situações históricas muito diversas.

O fundamentalismo insiste também de uma maneira indevida sobre a inerrância dos detalhes nos textos bíblicos, especialmente em matéria de fatos históricos ou de pretensas verdades científicas. Muitas vezes ele torna histórico aquilo que não tinha a pretensão de historicidade, pois ele considera como histórico tudo aquilo que é reportado ou contado com os verbos em um tempo passado, sem a necessária atenção à possibilidade de um sentido simbólico ou figurativo.

O fundamentalismo tem muitas vezes tendência a ignorar ou a negar os problemas que o texto bíblico comporta na sua formulação hebraica, aramaica ou grega. Ele é muitas vezes estreitamente ligado a uma tradição determinada, antiga ou moderna. Ele se omite igualmente de considerar as “releituras” de certas passagens no interior da própria Bíblia.

No que concerne os Evangelhos, o fundamentalismo não leva em consideração o crescimento da tradição evangélica, mas confunde ingenuamente o estágio final desta tradição (o que os evangelistas escreveram) com o estágio inicial (as ações e as palavras do Jesus da história). Ele negligencia assim um dado importante: a maneira com a qual as próprias primeiras comunidades cristãs compreenderam o impacto produzido por Jesus de Nazaré e sua mensagem. Ora, aqui está um testemunho da origem apostólica da fé cristã e sua expressão direta. O fundamentalismo desnatura assim o apelo lançado pelo próprio Evangelho.

O fundamentalismo tem igualmente tendência a uma grande estreiteza de visão, pois ele considera conforme à realidade uma antiga cosmologia já ultrapassada, só porque encontra-se expressa na Bíblia; isso impede o diálogo com uma concepção mais ampla das relações entre a cultura e a fé. Ele se apoia sobre uma leitura não-crítica de certos textos da Bíblia para confirmar ideias políticas e atitudes sociais marcadas por preconceitos, racistas, por exemplo, simplesmente contrários ao Evangelho cristão.

Enfim, em sua adesão ao princípio do “sola Scriptura”, o fundamentalismo separa a interpretação da Bíblia da Tradição guiada pelo Espírito, que se desenvolve autenticamente em ligação com a Escritura no seio da comunidade de fé. Falta-lhe entender que o Novo Testamento tomou forma no interior da Igreja cristã e que ele é Escritura Santa desta Igreja, cuja existência precedeu a composição de seus textos. Assim, o fundamentalismo é muitas vezes anti-eclesial; ele considera negligenciáveis os credos, os dogmas e as práticas litúrgicas que se tornam parte da tradição eclesiástica, como também a função de ensinamento da própria Igreja. Ele se apresenta como uma forma de interpretação privada, que não reconhece que a Igreja é fundada sobre a Bíblia e tira sua vida e sua inspiração das Escrituras.

A abordagem fundamentalista é perigosa, pois ela é atraente para as pessoas que procuram respostas bíblicas para seus problemas da vida. Ela pode enganá-las oferecendo-lhes interpretações piedosas mas ilusórias, ao invés de lhes dizer que a Bíblia não contém necessariamente uma resposta imediata a cada um desses problemas. O fundamentalismo convida, sem dizê-lo, a uma forma de suicídio do pensamento. Ele coloca na vida uma falsa certeza, pois ele confunde inconscientemente as limitações humanas da mensagem bíblica com a substancia divina dessa mensagem.”

 

 

“Na tradição eclesial, os primeiros intérpretes da Escritura, os Padres da Igreja, consideravam que a exegese que faziam dos textos só era completa quando eles evidenciavam o sentido para os cristãos do tempo deles e na situação em que viviam. Só se é fiel à intencionalidade dos textos bíblicos na medida que se tenta reencontrar no coração de sua formulação a realidade de fé que eles exprimem, e se esta se liga à experiência dos fiéis do nosso mundo.”

 

 

“A contribuição moderna das hermenêuticas filosóficas e os desenvolvimentos recentes do estudo científico das literaturas, permitem à exegese bíblica de aprofundar a compreensão de sua tarefa, cuja complexidade tornou-se mais evidente. A exegese antiga, que evidentemente não podia levar em consideração as exigências científicas modernas, atribuía a todo texto da Escritura sentidos de vários níveis. A distinção mais corrente se fazia entre sentido literal e sentido espiritual. A exegese medieval distinguiu no sentido espiritual três aspectos diferentes que se relacionam, respectivamente, à verdade revelada, à conduta a ser mantida e à realização final. Daí o célebre dístico de Agostinho da Dinamarca (século XIII): “Littera gesta docet, quid credas allegoria, moralis quid agas, quid speres anagogia”.

Como reação a esta multiplicidade de sentidos, a exegese histórico-crítica adotou, mais ou menos abertamente, a tese da unicidade de sentidos, segundo a qual um texto não pode ter simultaneamente vários significados. Todo esforço da exegese histórico-crítica é de definir “o” sentido preciso de um ou outro texto bíblico nas circunstâncias de sua produção. Mas esta tese choca-se agora com as conclusões das ciências da linguagem e das hermenêuticas filosóficas, que afirmam a polissemia dos textos escritos. O problema não é simples e ele não se apresenta da mesma maneira para todos os gêneros de textos: relatos históricos, parábolas, oráculos, leis, provérbios, orações, hinos, etc. Pode-se, entretanto, dar alguns princípios gerais, levando-se em conta a diversidade das opiniões.”

 

 

“Não se deve concluir que se possa atribuir a um texto bíblico qualquer sentido, interpretando-o de maneira subjetiva. É preciso, ao contrário, rejeitar como inautêntica toda interpretação que seja heterogênea ao sentido expresso pelos autores humanos e no texto escrito por eles. Admitir sentidos heterogêneos equivaleria a cortar a mensagem bíblica de sua raiz, que é a Palavra de Deus comunicada historicamente, e a abrir a porta a um subjetivismo incontrolável.”

 

 

“Em definitivo, poder-se-ia considerar o “sentido pleno” como uma outra maneira de designar o sentido espiritual de um texto bíblico, no caso onde o sentido espiritual se distingue do sentido literal. Seu fundamento é o fato de que o Espírito Santo, autor principal da Bíblia, pode guiar o autor humano na escolha de suas expressões de tal forma que estas últimas expressem uma verdade da qual ele não percebe toda a profundidade. Esta é revelada mais completamente no decorrer do tempo, graças, de um lado, a realizações divinas ulteriores que manifestem melhor o alcance dos textos e graças também, de outro lado, à inserção dos textos no Cânon das Escrituras. Assim é constituído um novo contexto, que faz aparecer potencialidades de sentido que o contexto primitivo deixava na obscuridade.”

 

 

“A exegese católica não procura se diferenciar por um método científico particular. Ela reconhece que um dos aspectos dos textos bíblicos é o de ser a obra de autores humanos, que se serviram de suas próprias capacidades de expressão e meios que a época e o ambiente deles colocavam-lhes à disposição. Consequentemente, ela utiliza sem subentendidos todos os métodos e abordagens científicos que permitem melhor apreender o sentido dos textos no contexto linguístico, literário, sociocultural, religioso e histórico deles, iluminando-os também pelo estudo de suas fontes e levando em conta a personalidade de cada autor (cf Divino afflante Spiritu, E. B., 557). Ela contribui ativamente ao desenvolvimento dos métodos e ao progresso da pesquisa.

O que a caracteriza é que ela se situa conscientemente na tradição viva da Igreja, cuja primeira preocupação é a fidelidade à revelação atestada pela Bíblia. As hermenêuticas modernas colocaram em destaque, lembremo-nos, a impossibilidade de interpretar um texto sem partir de uma “pré-compreensão” de um gênero ou de um outro. A exegese católica aborda os escritos bíblicos com uma pré-compreensão que une estreitamente a cultura moderna científica e a tradição religiosa proveniente de Israel e da comunidade cristã primitiva. Sua interpretação encontra-se, assim, em continuidade com o dinamismo de interpretação que se manifesta no interior da própria Bíblia e que se prolonga em seguida na vida da Igreja. Ela corresponde à exigência de afinidade vital entre o intérprete e seu objeto, afinidade que constitui uma das condições de possibilidade do trabalho exegético.

Toda pré-compreensão comporta, entretanto, seus perigos. No caso da exegese católica o risco existe de atribuir a textos bíblicos um sentido que eles não exprimem, mas que é o fruto de um desenvolvimento ulterior da tradição. A exegese deve evitar este perigo.”

 

 

“Dado que os textos da Santa Escritura têm algumas vezes relações de tensão entre eles, a interpretação deve necessariamente ser múltipla. Nenhuma interpretação particular pode esgotar o sentido do conjunto, que é uma sinfonia a várias vozes. A interpretação de um texto particular deve assim evitar de ser exclusivista.”

 

 

“Os Padres praticam de maneira mais ou menos frequente o método alegórico afim de dissipar o escândalo que poderia ser provocado em certos cristãos e nos adversários pagãos do cristianismo diante de uma ou outra passagem da Bíblia. Mas a literalidade e a historicidade dos textos são muito raramente esvaziadas.

Em suas explicações da Bíblia, os Padres misturam e entrelaçam as interpretações tipológicas e alegóricas de uma maneira mais ou menos inextricável, sempre com finalidade pastoral e pedagógica. Tudo o que esta escrito o foi para nossa instrução (cf 1 Co 10,11).

Persuadidos de que se trata do livro de Deus, portanto inesgotável, os Padres creem poder interpretar uma passagem segundo um determinado esquema alegórico, mas eles estimam que cada um permanece livre para propor outra coisa, contanto que respeite a analogia da fé.”

 

 

“Os exegetas devem explicar também a relação que existe entre a Bíblia e a Igreja. A Bíblia veio à luz em comunidades de fiéis. Ela exprime a fé de Israel e aquela das comunidades cristãs primitivas. Unida à Tradição viva que a precedeu, a acompanha e da qual se alimenta (cf Dei Verbum, 21), ela é o meio privilegiado do qual Deus se serve para guiar, ainda hoje, a construção e o crescimento da Igreja enquanto Povo de Deus. Inseparável da dimensão eclesial esta a abertura ecumênica.

Pelo fato de que a Bíblia exprime uma oferta de salvação apresentada por Deus a todos os homens, a tarefa dos exegetas comporta uma dimensão universal, que requer uma atenção às outras religiões e aos anseios do mundo atual.”

 

 

“A exegese suscita particularmente uma consciência mais viva e mais precisa do caráter histórico da inspiração bíblica. Ela mostra que o processo da inspiração é histórico não apenas porque ele teve seu lugar no decorrer da história de Israel e da Igreja primitiva, mas também porque ele se realizou através da mediação de pessoas humanas marcadas cada uma pela sua época e que, sob a guia do Espírito, tiveram um papel ativo na vida do povo de Deus.

Aliás, a afirmação teológica da relação estreita entre Escritura inspirada e Tradição da Igreja viu-se confirmada e precisada graças ao desenvolvimento dos estudos exegéticos, que levou os exegetas a dar uma atenção maior à influência que teve sobre os textos o ambiente vital onde eles se formaram.”

 

 

“Os exegetas podem ajudar os dogmáticos a evitar dois extremos: de um lado o dualismo, que separa completamente uma verdade doutrinal de sua expressão linguística, considerada como sem importância; de outro lado o fundamentalismo que, confundindo o humano e o divino, considera como verdade revelada mesmo os aspectos contingentes das expressões humanas.

Para evitar esses dois extremos é preciso distinguir sem separar, e assim aceitar uma tensão persistente. A Palavra de Deus exprimiu-se na obra de autores humanos. Pensamento e palavras são ao mesmo tempo de Deus e do homem, de maneira que tudo na Bíblia vem ao mesmo tempo de Deus e do autor inspirado. Não se conclui, no entanto, que Deus tenha dado um valor absoluto ao condicionamento histórico de sua mensagem. Esta é suscetível de ser interpretada e atualizada, isto é, de ser separada, pelo menos parcialmente, de seu condicionamento histórico passado para ser transplantada no condicionamento histórico presente. O exegeta estabelece as bases desta operação que o dogmático continua, levando em consideração os outros loci theologici que contribuem ao desenvolvimento do dogma.”

 

 

“Muitas vezes os textos bíblicos não se preocupam em distinguir preceitos morais universais, prescrições de pureza ritual e ordens jurídicas particulares. Tudo é posto junto. De outro lado, a Bíblia reflete uma evolução moral considerável, que encontra sua perfeição no Novo Testamento. Não é suficiente que uma certa posição em matéria de moral seja atestada no Antigo Testamento (por exemplo, a prática da escravidão ou do divórcio, ou aquela das exterminações em caso de guerra), para que esta posição continue a ser válida. Um discernimento deve ser feito, levando em conta o necessário progresso da consciência moral. Os escritos do Antigo Testamento contêm elementos “imperfeitos e caducos” (Dei Verbum, 15), que a pedagogia divina não podia eliminar de uma só vez. O Novo Testamento mesmo não é fácil de interpretar no domínio da moral, pois muitas vezes ele se exprime através de imagem, ou de maneira paradoxal, ou mesmo provocadora, e a relação dos cristãos com a Lei judaica é objeto aqui de ásperas controvérsias.”

 

 

“Os pontos de vista, efetivamente, são diferentes e devem sê-lo. A primeira tarefa da exegese é discernir com precisão o sentido dos textos bíblicos no próprio contexto deles, isto é, primeiramente no contexto literário e histórico particular desses mesmos textos e em seguida no contexto do Cânon das Escrituras. Realizando esta tarefa, o exegeta coloca em evidência o sentido teológico dos textos, desde que eles tenham um alcance dessa natureza. Uma relação de continuidade é, assim, feita possível entre a exegese e a reflexão teológica ulterior. Mas o ponto de vista não é o mesmo, pois a tarefa da exegese é fundamentalmente histórica e descritiva e limita-se à interpretação da Bíblia.”

 

 

“Textos mais antigos foram relidos à luz de circunstâncias novas e aplicados à situação presente do Povo de Deus. Esta atualização é possível, pois a plenitude do sentido do texto bíblico dá-lhe valor para todas as épocas e todas as culturas (cf Is 40,8; 66,18-21; Mt 28,19-20). A mensagem bíblica pode ao mesmo tempo tornar relativos e fecundar os sistemas de valores e as normas de comportamento de cada geração.

A atualização é necessária, pois, se bem que a mensagem dos textos da Bíblia tenha um valor durável, estes foram redigidos em função de circunstâncias passadas e em uma linguagem condicionada por diversas épocas. Para manifestar o alcance que eles têm para os homens e as mulheres de hoje, é necessário aplicar a mensagem desses textos às circunstâncias presentes e exprimi-la em uma linguagem adaptada à época atual. Isso pressupõe um esforço hermenêutico que visa discernir através do condicionamento histórico os pontos essenciais da mensagem.

A atualização deve constantemente levar em consideração as relações complexas que existem na Bíblia cristã entre o Novo Testamento e o Antigo, pelo fato de que o Novo se apresenta ao mesmo tempo como realização e ultrapassagem do Antigo. A atualização efetua-se em conformidade com a unidade dinâmica assim constituída.

A atualização realiza-se graças ao dinamismo da tradição viva da comunidade de fé. Esta situa-se explicitamente no prolongamento das comunidades onde a Escritura nasceu e foi conservada e transmitida. Na atualização, a tradição tem um papel duplo: ela procura, de um lado uma proteção contra as interpretações aberrantes; ela assegura de outro lado a transmissão do dinamismo original.

Atualização não significa assim a manipulação dos textos. Não se trata de projetar sobre os escritos bíblicos opiniões ou ideologias novas, mas de procurar sinceramente a luz que eles contêm para o tempo presente. O texto da Bíblia tem autoridade em todos os tempos sobre a Igreja cristã e, se bem que passaram-se séculos desde os tempos de sua composição, ele conserva seu papel de guia privilegiado que não se pode manipular. O Magistério da Igreja “não esta acima da Palavra de Deus, mas ele a serve, ensinando somente aquilo que foi transmitido; por mandato de Deus, com a assistência do Espírito Santo, ele a escuta com amor, conserva-a santamente e explica-a com fidelidade” (Dei Verbum , 10). (...)

Graças à atualização, a Bíblia vem iluminar inúmeros problemas atuais, por exemplo: a questão dos ministérios, a dimensão comunitária da Igreja, a opção preferencial pelos pobres, a teologia da libertação, a condição da mulher. A atualização pode também estar atenta a valores cada vez mais reconhecidos pela consciência moderna como os direitos da pessoa, a proteção da vida humana, a preservação da natureza, a aspiração à paz universal.”

 

 

“Uma importante contribuição é trazida por associações e movimentos eclesiais, que colocam em primeiro plano a leitura da Bíblia em uma perspectiva de fé e de engajamento cristão. Numerosas “comunidades de base” centralizam suas reuniões sobre a Bíblia e se propõem um triplo objetivo: conhecer a Bíblia, construir a comunidade e servir o povo. Aqui também a ajuda de exegetas é útil para evitar atualizações mal fundadas. Mas deve-se alegrar em ver a Bíblia tomada por mãos de gente humilde, dos pobres, que podem trazer à sua interpretação e à sua atualização uma luz mais penetrante do ponto de vista espiritual e existencial do que aquela que vem de uma ciência segura dela mesma (cf Mt 11,25).”

 

 

“Se o ecumenismo, enquanto movimento específico e organizado, é relativamente recente, a idéia de unidade do povo de Deus, que esse movimento se propõe de restaurar, é profundamente enraizado na Escritura. Tal objetivo era a preocupação constante do Senhor (Jo 10,16; 17,11.20-23). Ele supõe a união dos cristãos na fé, na esperança e na caridade (Ef4,2-5), no respeito mútuo (Fil 2,1-5) e a solidariedade (1 Co 12,14-27; Rm 12,4-5) mas também e sobretudo a união orgânica ao Cristo, à maneira dos sarmentos e da vinha (Jo 15,4-5), dos membros e da cabeça (Ef 1,22-23; 4,12-16). Esta união deve ser perfeita, à imagem daquela do Pai e do Filho (Jo 17,11.22); a Escritura define seu fundamento teológico (Ef 4,4-6; Gal 3,27-28). A primeira comunidade apostólica é um modelo concreto e vivo dessa união (At 2,44; 4,32).

A maior parte dos problemas que enfrenta o diálogo ecumênico tem relação com a interpretação de textos bíblicos. Alguns desses problemas são de ordem teológica: a escatologia, a estrutura da Igreja, o primado e a colegialidade, o casamento e o divórcio, a atribuição do sacerdócio ministerial às mulheres, etc. Outros são de ordem canônica e jurisdicional; eles concernem à administração da Igreja universal e das Igrejas locais. Outros, enfim, são de ordem estritamente bíblica: a lista dos livros canônicos, algumas questões hermenêuticas, etc.

Se bem que ela não possa ter a pretensão de resolver sozinha todos esses problemas, a exegese bíblica é chamada a trazer ao ecumenismo uma importante contribuição. Progressos notáveis já foram realizados. Graças à adoção dos mesmos métodos e de metas hermenêuticas análogas, os exegetas de diversas confissões cristãs chegaram a uma grande convergência na interpretação das Escrituras, como o mostram o texto e as notas de diversas traduções ecumênicas da Bíblia, assim como em outras publicações.

Deve-se reconhecer, aliás, que em pontos particulares as divergências na interpretação das Escrituras são muitas vezes estimulantes e podem se revelar complementares e enriquecedoras. É o caso quando elas exprimem os valores das tradições particulares de diversas comunidades cristãs e traduzem assim os múltiplos aspectos do Mistério de Cristo.

Como a Bíblia é a base comum da regra de fé, o imperativo ecumênico comporta para todos os cristãos um apelo premente a reler os textos inspirados na docilidade ao Espírito Santo, na caridade, na sinceridade, na humildade, a meditar esses textos e a vivê-los de maneira a chegar à conversão do coração e à santidade de vida, as quais, unidas à oração para a unidade dos cristãos, são a alma de todo o movimento ecumênico (cf. Unitatis redintegratio, 8). Seria preciso para isso tornar acessível ao maior número possível de cristãos a aquisição da Bíblia, encorajar as traduções ecumênicas — pois um texto comum ajuda uma leitura e uma compreensão comuns — promover grupos de oração ecumênicos afim de contribuir com um testemunho autêntico e vivo à realização da unidade na diversidade (cf Rm 12,4-5).”

 

 

“A exegese bíblica preenche, na Igreja e no mundo, uma tarefa indispensável. Querer se dispensar dela para compreender a Bíblia seria ilusão e manifestaria urna falta de respeito para com a Escritura inspirada.

Pretendendo reduzir os exegetas ao papel de tradutores (ou ignorando que traduzir a Bíblia já é fazer obra de exegese) e recusando de segui-los em seus estudos, os fundamentalistas não se dão conta de que, por um louvável cuidado de inteira fidelidade à Palavra de Deus, em realidade eles entram em caminhos que os afastam do sentido exato dos textos bíblicos assim como da plena aceitação das consequências da Encarnação. A Palavra eterna encarnou-se em uma época precisa da história, em um ambiente social e cultural bem determinado. Quem deseja entendê-la deve humildemente procurá-la lá onde ela se tornou perceptível, aceitando a ajuda necessária do saber humano. Para falar aos homens e às mulheres, desde a época do Antigo Testamento, Deus explorou todas as possibilidades da linguagem humana, mas ao mesmo tempo ele teve também que submeter sua palavra a todos os condicionamentos dessa linguagem. O verdadeiro respeito pela Escritura inspirada exige que sejam realizados todos os esforços necessários para que se possa compreender bem seu sentido. Seguramente não é possível que cada cristão faça pessoalmente as pesquisas de todos os gêneros que permitam compreender melhor os textos bíblicos. Esta tarefa é confiada aos exegetas, responsáveis nesse setor pelo bem de todos. (...)

A natureza mesma dos textos bíblicos exige que para interpretá-los, continue-se o emprego do método histórico-crítico, ao menos em suas operações principais. A Bíblia, efetivamente, não se apresenta como uma revelação direta de verdades atemporais, mas como a atestação escrita de uma série de intervenções pelas quais Deus se revela na história humana. A diferença de doutrinas sagradas de outras religiões, a mensagem bíblica é solidamente enraizada na história. Conclui-se que os escritos bíblicos não podem ser corretamente compreendidos sem um exame de seu condicionamento histórico.”

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