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domingo, 21 de agosto de 2016

Uma história da guerra (Parte I) – John Keegan

Editora: Companhia de Bolso
ISBN: 978-85-359-0798-8
Tradução: Pedro Maia Soares
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 544
Sinopse: O que é a guerra? Por que o homem luta contra o homem? Que diferenças há entre um guerreiro ianomâmi, um bárbaro das hostes de Átila e um soldado entrincheirado da Segunda Guerra Mundial? Como foi possível a humanidade chegar à beira da autodestruição total?
Conhecedor profundo de tudo o que diz respeito à história militar, John Keegan aborda neste livro essas e muitas outras questões ligadas à guerra, oferecendo uma visão abrangente da História da humanidade a partir das formas de guerrear e do progresso da tecnologia bélica. Ao mesmo tempo, não esquece que a história da guerra acompanha a história do homem e que a guerra é um testemunho permanente da força de instintos e emoções que o coração humano faz tudo para camuflar.

“A guerra não é a continuação da política por outros meios. O mundo seria mais fácil de compreender se essa frase de Clausewitz fosse verdade. O mais famoso livro sobre a guerra — chamado justamente Da guerra —, na verdade escreveu que a guerra era a “continuação das relações políticas” “com a entremistura de outros meios”. O original alemão expressa uma ideia mais complexa e sutil que a tradução mais frequentemente citada. Nas duas formas, no entanto, o pensamento de Clausewitz está incompleto. Ele implica a existência de Estados, de interesses de Estado e de cálculos racionais sobre como eles podem ser atingidos. Contudo, a guerra precede o Estado, a diplomacia e a estratégia por vários milênios. A guerra é quase tão antiga quanto o próprio homem e atinge os lugares mais secretos do coração humano, lugares em que o ego dissolve os propósitos racionais, onde reina o orgulho, onde a emoção é suprema, onde o instinto é rei. (...)
Na verdade, Clausewitz parecia perceber a política como uma atividade autônoma, o local de encontro das formas racionais e forças emocionais, na qual razão e sentimento são determinantes, mas onde a cultura — o grande carregamento de crenças, valores, associações, mitos, tabus, imperativos, costumes, tradições, maneiras e modos de pensar, discurso e expressão artística que lastreia toda sociedade — não desempenha um papel determinante. (...)
Russell Weigley sustenta que a guerra se mostrou não como “uma continuação eficaz da política por outros meios [...] mas como a falência da política”. A frustração engendrada pelo fracasso em conseguir um resultado decisivo levou, deduz ele, ao “apelo calculado e espontâneo a crueldades maiores e mais torpes” com o correr do tempo, “ao saque das cidades e destruição dos campos, ambos em busca de vingança e na esperança geralmente vã de que crueldades maiores abalariam o espírito do inimigo”.”


“Em sua velhice, o general William Tecumseh Sherman, que incendiara Atlanta e pusera fogo numa grande faixa do Sul dos Estados Unidos, exorcizou com amargura esse mesmo pensamento, em palavras que se tornaram quase tão famosas quanto às de Clausewitz: “Estou farto da guerra. Sua glória é pura quimera [...] A guerra é o inferno”.”


“O verdadeiro trabalho da guerra na época de Clausewitz era realmente de matadouro. Os soldados ficavam silenciosos e inertes em fileiras para serem abatidos, às vezes durante horas; em Borodino, diz-se que os corpos de infantaria de Ostermann-Tolstoi ficaram diante do fogo à queima-roupa da artilharia por duas horas, “durante as quais o único movimento era a agitação das linhas provocada pelos corpos que caíam”. Sobreviver à matança não significava o fim do matadouro. Larrey, o cirurgião mais antigo de Napoleão, realizou duas centenas de amputações na noite seguinte a Borodino, e seus pacientes eram felizardos. Eugène Labaume descreveu “o interior das valas” que entrecruzavam o campo de batalha: “quase todos os feridos, por um instinto natural, tinham se arrastado para lá em busca de proteção [...] empilhados uns sobre os outros e nadando desamparadamente no próprio sangue, alguns pediam aos que passavam que os livrassem de sua miséria”.
Essas cenas de matadouro eram o resultado inevitável de uma forma de guerrear que fazia os povos que Clausewitz considerava selvagens, como os cossacos, fugirem quando ameaçavam envolvê-los, mas, se não as tivessem testemunhado, rirem quando alguém as descrevia. O treinamento europeu, quando demonstrado pela primeira vez por Takashima, o reformador militar japonês, a alguns samurais de alta patente em 1841, provocou escárnio; o mestre da artilharia disse que o espetáculo de “homens levantando e manipulando suas armas todos ao mesmo tempo e com o mesmo movimento parecia que estavam participando de alguma brincadeira de criança”. Era a reação de guerreiros que lutavam corpo a corpo, para quem lutar era um ato de auto-expressão pelo qual um homem exibia não apenas sua coragem, mas também sua individualidade. Osklephts gregos — meio bandidos, meio rebeldes contra o domínio turco, cujos simpatizantes, filelenos franceses, alemães e britânicos, muitos deles ex-oficiais das guerras napoleônicas, tentaram instruir em exercícios de ordem unida no início da guerra de independência da Grécia, em 1821 — também reagiram com zombaria, mas antes com descrença que com desprezo. Seu estilo de luta — muito antigo, encontrado por Alexandre, o Grande, em sua invasão da Ásia menor — era construir pequenos muros no lugar mais provável de encontro com o inimigo e então provocá-lo à ação com motejos e insultos; quando o inimigo atacava, fugiam. Sobreviviam para lutar outro dia, mas não para ganhar a guerra, objetivo que não conseguiam entender. Os turcos também tinham uma maneira própria de lutar: avançavam numa carga desconexa com desdém fanático pelas baixas. Os filelenos argumentavam que, se os gregos não enfrentassem os turcos, jamais ganhariam uma batalha; os gregos objetavam que, se fizessem frente ao inimigo à maneira europeia, peito aberto aos mosquetes turcos, seriam todos mortos e perderiam a guerra de qualquer modo.”


“Todos nós achamos difícil tomar distância suficiente de nossa própria cultura para perceber como ela faz de nós, como indivíduos, o que somos.”


“A guerra abarca muito mais que a política, que é sempre uma expressão de cultura, com frequência um determinante de formas culturais e, em algumas sociedades, é a própria cultura.”


“E, contudo, o deus da guerra não é um arremedo. Quando os regimentos de recrutas da Europa marcharam para a guerra, em 1914, carregando sua retaguarda de reservistas, a guerra que os enredou foi, de longe, a pior que os cidadãos pudessem esperar. Na Primeira Guerra Mundial, a “guerra real” e a “guerra verdadeira” logo se tornaram indistintas; as influências moderadoras que Clausewitz, como observador desapaixonado dos fenômenos militares, declarara sempre entrarem em ação para ajustar a natureza potencial e o propósito real da guerra reduziram-se à invisibilidade; alemães, franceses, ingleses e russos descobriram-se aparentemente travando uma guerra pela guerra. Os objetivos políticos da guerra — já difíceis de definir desde o início — foram esquecidos, as restrições políticas foram atropeladas, os políticos que apelavam para a razão foram execrados, a política, mesmo nas democracias liberais, logo se reduziu a uma mera justificação de batalhas maiores, listas de baixas mais longas, orçamentos mais caros, um excesso de miséria humana.
A política não desempenhou papel algum digno de menção na condução da Primeira Guerra Mundial. Essa guerra foi, ao contrário, uma aberração cultural monstruosa, a consequência de uma decisão inadvertida de europeus no século de Clausewitz — que começou com seu retorno da Rússia em 1813 e terminou em 1913, o último ano da longa paz europeia — de transformar a Europa numa sociedade de guerreiros.”


“Em nosso tempo, a guerra não tem sido apenas um modo de resolver disputas entre Estados, mas também um veículo por meio do qual os amargurados, os esbulhados, os descamisados, as massas famintas ansiosas por respirar com liberdade expressam sua raiva, seu ciúme e seu impulso encurralado à violência.”


“O conceito de transformação cultural tem armadilhas para o incauto. As expectativas de que mudanças benignas — padrões de vida melhores, alfabetização, medicina científica, a disseminação do bem-estar social — iriam alterar o comportamento humano para melhor foram tantas vezes frustradas que pode parecer irrealista prever a chegada de atitudes efetivamente antibélicas ao mundo.”


“As causas subjacentes à ação dos fatores “permanentes” e “contingentes” sobre a guerra podem, portanto, ser consideradas extremamente complexas. O homem guerreiro não é agente de uma vontade irrestritamente livre, mesmo que na guerra rompa os limites que a convenção e a prudência material impõem normalmente ao seu comportamento. A guerra é sempre limitada, não porque o homem escolha fazê-la assim, mas porque a natureza determina que assim seja. O rei Lear, atacando seus inimigos, pode ter ameaçado “fazer coisas — as quais ainda não sei o que são —, mas que serão os terrores da terra”; mas, como outros potentados passando dificuldades descobriram, os terrores da terra são difíceis de conjurar. Faltam recursos, o tempo piora, a estação muda, a vontade de amigos e aliados fraqueja, a própria natureza pode se revoltar contra as dificuldades exigidas pela porfia.
Metade da humanidade — a metade feminina — é, de qualquer modo, muito ambivalente em relação à guerra. As mulheres podem ser causa e pretexto da guerra — o roubo de esposas é a principal fonte de conflitos nas sociedades primitivas — e podem ser as instigadoras de violência em sua forma extrema: lady Macbeth é um tipo reconhecido universalmente; elas podem também ser mães de guerreiros notavelmente empedernidas, algumas preferindo aparentemente as dores da perda à vergonha de aceitar a volta de um covarde. Ademais, as mulheres podem constituir líderes guerreiros messiânicos, obtendo, com a interação da química complexa da feminilidade com reações masculinas, um grau de fidelidade e auto sacrifício de seus seguidores masculinos que um homem é bem capaz de não conseguir. Apesar disso, a guerra é uma atividade humana da qual as mulheres, com exceções insignificantes, sempre e em todos os lugares ficaram excluídas. As mulheres procuram os homens para protegê-las do perigo e censuram-nos amargamente quando eles não conseguem defendê-las. As mulheres têm seguido os tambores, cuidado dos feridos, lavrado os campos e pastoreado os rebanhos quando o homem da família vai atrás de seu líder; elas até mesmo cavaram trincheiras para os homens defenderem e trabalharam nas oficinas para mandar-lhes armas. As mulheres, porém, não lutam. Elas raramente lutam entre si e jamais, em qualquer sentido militar, lutam com os homens. Se a guerra é tão antiga quanto a história e tão universal quanto a humanidade, devemos agora acrescentar a limitação mais importante: trata-se de uma atividade inteiramente masculina.”


“Há indicações, a partir dos instrumentos de pedra encontrados, de que seus habitantes tinham começado a colher ervas silvestres e a moer os grãos extraídos para comer; há indicações mais sutis de que tinham pelo menos começado a domesticar e a cuidar de animais dos quais dependiam para viver. Estavam à beira do pastoreio e da agricultura, as duas atividades que transformam a relação do homem com seu habitat. Caçadores e coletores podem ter “território”; os pastores têm locais de pasto e água; os agricultores têm terra. Depois que investe suas expectativas em um retorno periódico de seus esforços sazonais em um determinado lugar — de criar, pastorear, plantar, colher —, o homem desenvolve rapidamente os sentimentos de direitos e propriedade. Em relação aos que invadem os lugares onde investe seu tempo e esforço, ele pode, da mesma forma, desenvolver rapidamente o sentimento de hostilidade que o usuário e ocupante tem em relação ao usurpador e intruso. Expectativas arraigadas favorecem reações arraigadas. O pastoreio e mais ainda a agricultura favorecem a guerra.”


“Evidentemente, a força militar já estava estabelecida como um princípio antes da chegada dos povos montados mas como recurso disponível apenas para os governos e as populações sedentárias que dirigiam, além de limitada pela produção das economias que controlavam.
Exércitos alimentados com excedentes agrícolas e limitados em alcance de manobra pelo ritmo e resistência da marcha a pé simplesmente não podiam empreender campanhas amplas de conquista. Nem precisavam disso: os inimigos, com restrições semelhantes, podiam ameaçá-los com derrotas em batalhas, mas não com uma Blitzkrieg.
Os povos montados eram diferentes. Átila mostrara uma capacidade de mudar seu centro estratégico de ação — Schwerpunkt, como a doutrina do Estado-maior prussiano denominou-o mais tarde — do Leste da França para o Norte da Itália, numa distância de oitocentos quilômetros em linha reta e muito maior na prática, pois estava operando ao longo de linhas externas. Uma manobra estratégica como essa jamais fora tentada nem seria possível antes. Essa escala de liberdade de ação estava no centro da “revolução da cavalaria”.
Os povos montados lutavam sem constrangimentos ainda em outro sentido: não queriam, como os godos, herdar ou se adaptar às civilizações entendidas pela metade que invadiam. E, apesar da sugestão de que Átila pensou em se casar com a filha do imperador romano do Ocidente, também não queriam superar a autoridade política dos outros. Queriam os despojos de guerra sem laços. Eram guerreiros por amor à guerra, pelo butim, pelos riscos, as emoções, a satisfação animal do triunfo. Oitocentos anos depois da morte de Átila, Gengis Khan, ao perguntar a seus companheiros de armas mongóis sobre o maior prazer da vida e receber como resposta que era a falcoaria, retrucou: “Vocês se enganam. A maior fortuna do homem é perseguir e derrotar seu inimigo, tomar todas as suas posses, deixar sua esposa chorando e gemendo, montar seu capão [e] usar os corpos de suas mulheres como camisola e apoio”. Átila poderia ter dito a mesma coisa; com certeza, agia dentro desse espírito.
Juntas, a crueldade humana e a equina transformaram assim a guerra, fazendo dela, pela primeira vez, “uma coisa em si mesma”. Podemos a partir de então falar de “militarismo”, um aspecto das sociedades no qual a mera capacidade de guerrear, rápida e lucrativamente, se torna um motivo em si mesmo para fazê-lo.”


“Todos os povos montados que abriram uma trilha de conquistas das estepes até as terras civilizadas travavam “guerras verdadeiras” segundo todos os critérios — falta de limites no uso da força, singularidade de objetivo e nenhuma disposição de aceitar menos que a vitória total. Contudo, sua guerra não tinha objetivo político no sentido clausewitziano e nenhum efeito transformador cultural. Não se tratava de um meio de progresso material ou social; na verdade, era exatamente o contrário, um processo pelo qual obtinham a riqueza para sustentar um modo de vida imutável, para permanecer exatamente como eram desde que seus ancestrais atiraram uma flecha de cima de uma sela pela primeira vez.”


“Os povos cavaleiros, tais como os aurigas antes deles, trouxeram para a guerra o conceito elétrico de fazer campanhas de longa distância e, quando a campanha se resolvia em batalha, de manobrar em campo com velocidade — pelo menos cinco vezes mais veloz que homens a pé. Como protetores de seus rebanhos e manadas contra predadores, preservavam também o espírito do caçador, perdido pelos agricultores, com exceção da classe senhorial; de seu modo costumeiro de cuidar dos animais — reunir, conduzir, apartar, abater para comer — tiravam lições sobre como massas de gente a pé, ou mesmo de cavaleiros inferiores, podiam ser perseguidas, flanqueadas, encurraladas e finalmente mortas sem risco. Eram práticas que os caçadores primitivos, com sua relação empática com a caça e respeito místico pela presa atingida, teriam julgado intrinsecamente estranhas. Para os povos montados, equipados com o arco composto, ele mesmo um produto de tecidos animais, que sustentava seu modo de vida, matar à distância — tanto física quanto emocional — constituía uma segunda natureza.
Era o desprendimento emocional dos guerreiros montados, manifestado cabalmente em sua prática deliberada de atrocidades, que os povos sedentários achavam tão aterrorizante. Isso todavia desgastou-os. Com as duas características da guerra “primitiva” que persistiram por muito tempo no desenvolvimento da civilização — o caráter tentativo do choque e a associação de ritual e cerimônia com combate e seu resultado —, os povos montados não tinham nada a ver. Podem ter tornado um hábito recuar diante de um inimigo que procurasse a luta, mas tratava-se apenas de uma manobra para tirar o adversário de sua posição, desorganizar suas fileiras e expô-lo a um contra-ataque arrasador. De forma alguma revelavam a falta de disposição do guerreiro primitivo de chegar à luta de fato. Quando se aproximava para o golpe final, a horda a cavalo matava sem compaixão. Ademais, não havia sinal de rito ou cerimônia nas ações de uma horda montada. Elas lutavam para vencer — completamente, com rapidez e sem heroísmo. Com efeito, abster-se de exibições de heroísmo era quase uma regra dos nômades. O próprio Gengis, embora tenha sido ferido por uma flecha nos primórdios de sua ascensão ao poder, era fisicamente tímido e deixou depois de se expor nas batalhas em que estava nominalmente no comando. Os guerreiros ocidentais achavam absolutamente desconcertante não poder identificar a posição do líder na formação em crescente típica da tática dos nômades, uma vez que ele ficava discretamente longe do centro, comportamento oposto ao de um Alexandre ou Ricardo Coração de Leão.”


“Sobretudo, ele não leva em conta o fascínio que a vida de guerreiro exerce sobre a imaginação masculina. Essa é uma falha comum dos acadêmicos que se interessam por assuntos militares, mas jamais saem de seu ambiente universitário. (...)
É a admiração dos outros soldados que o satisfaz — se ele puder conquistá-la; a maioria dos soldados fica contente apenas com a companhia dos outros, com o desprezo compartilhado por um mundo mais suave, com a libertação da materialidade estreita trazida pela caserna e pela linha de marcha, com os confortos rudes do bivaque, com a competição na resistência, com a perspectiva do répos du guerrier junto às mulheres que os esperam.
A excitação da trilha da guerra ajuda a explicar o ethos do guerreiro primitivo. O sucesso no combate explica também por que alguns primitivos se tornaram povos guerreiros. As recompensas do êxito — se não conquista direta, apropriação de território e sujeição dos outros, então saque ou ao menos o direito de ditar os termos do comércio — são suficientes em si mesmas para validar a rejeição dos meios conciliatórios. Contudo, é importante não exagerar os impulsos para a vida guerreira. Como vimos, muitos primitivos buscavam conter o impulso à violência, enquanto até os povos mais ferozes erguiam suas pirâmides de crânios nas pegadas mais experimentais de outros; Tamerlão não teria sido o que foi se povos montados anteriores não tivessem testado os limites do poder de resistência da civilização. Aldous Huxley disse que um intelectual era uma pessoa que tinha descoberto algo mais interessante que o sexo. Um homem civilizado, pode-se dizer, é alguém que descobriu algo mais satisfatório que o combate. Depois que o homem superou o estágio primitivo, a proporção dos que preferiram outra coisa a lutar — arar o solo, fazer ou vender coisas, construir, ensinar, pensar ou tratar com outro mundo — aumentou tão rapidamente quanto permitiram os recursos da economia. Não se deve idealizar; os menos afortunados viram-se presos ao serviço ou até à servidão, enquanto os privilegiados, como observa Andreski, sempre basearam sua posição no poder das armas, exercido pessoalmente ou por fiéis subordinados. Porém o homem pós-primitivo dava um valor particular à vida não violenta, exemplificada pela do artista, do estudioso e, sobretudo, do homem e mulher santos. Foi por esse motivo que as atrocidades dos vikings, saqueadores de mosteiros e conventos, provocaram tanta repulsa no mundo cristão; até mesmo Tamerlão, que tinha recebido com respeito o grande sábio árabe Ibn Khaldun, não desceu ao nível sanguinário deles.”


“Retrospectivamente, é fácil ver que a principal contribuição de Roma para a compreensão da humanidade de como a vida pode ser tornada civilizada foi sua instituição de um exército disciplinado e profissional. Evidentemente, os romanos não tinham esse fim em vista quando começaram suas campanhas de expansão na Itália e travaram as guerras contra Cartago; o exército foi transformado de uma milícia de cidadãos em uma força expedicionária de longo alcance devido às exigências do campo de batalha, não por decisão consciente. Sua adoção de um sistema de alistamento regular, oferecendo “uma carreira aberta aos talentos” igualmente a cidadãos e não-cidadãos de todo o Império, originou-se na necessidade; as reformas de Augusto apenas racionalizaram uma situação já existente. No entanto, como se estivesse em ação uma mão invisível, a evolução do exército serviu exatamente à da própria civilização romana. Ao contrário da Grécia clássica, Roma foi uma civilização da lei e da realização física, não de ideias especulativas e criatividade artística. A imposição de suas leis e a incansável ampliação de sua extraordinária infraestrutura física exigia menos esforço intelectual que energia ilimitada e disciplina moral. Era dessas qualidades que o exército era a fonte última e, com frequência, em particular na engenharia de obras públicas, o instrumento direto. Portanto, era inevitável que o declínio dos poderes do exército — mesmo se provocado tanto por fracassos administrativos e econômicos internos quanto por crises militares nas fronteiras — trouxesse consigo o do próprio Império, e que o colapso do exército significasse a queda do Império do Ocidente.
Os reinos que se sucederam no Ocidente não aprenderam quão valiosa era a instituição que tinham destruído e como seria difícil substituí-la. Todavia, a autoridade moral na Europa pós-romana não perdeu completamente seu lar: ela migrou para as instituições da Igreja cristã, firmemente estabelecidas em sua forma romana, em vez de nestoriana, graças à conversão dos francos em 496; na Igreja, a ideia, se não a substância, do Império encontrou uma continuidade. Porém, sem espadas, os bispos não podiam dar força ao pacto cristão; e embora seus protetores reais tivessem espadas, usavam-nas antes para guerrearem-se uns aos outros que para estabelecer e manter uma paz cristã.”

Um comentário:

  1. Há de se fazer dois comentários sobre a obra. O primeiro, é que o autor se antagoniza ideologicamente ao livro Da Guerra, de Carl von Clausewitz. Sendo, portanto, muito interessante a leitura prévia desta outra obra antes deste livro que aqui vai.
    O segundo aspecto a se destacar é que John Keegan, a despeito da impressionante erudição, não consegue se desfazer da visão infantilizada e burlesca ao avaliar todos os conflitos oriundos de revoluções socialistas como, de alguma maneira, negativos – quando não catastróficos. Basicamente o autor não faz valoração moral sobre nenhum dos grandes líderes militares que descreve, independente do arraso e das consequências mais nefastas que perpetraram (Hitler, Napoleão, Gengis Khan, Alarico, etc.). Já em relação aos socialistas, falta pouco para descrevê-los como comedores de criancinhas.
    Em uma obra tão completa e douta, portar-se desta maneira infantil, deixando que sua avaliação ideológica interfira na forma como avalia os conflitos militares é sobremaneira pueril (pra não dizer patético).

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