Editora: Global
ISBN: 978-85-2600-869-4
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Opinião: ★★★★★
Páginas: 736
Sinopse: Ver Parte I
“No Brasil pode-se afirmar que nas áreas mais
características o sistema da grande plantação foi, desde os primeiros anos de colonização,
misto: pré-capitalista e capitalista, feudal e comercial. E também: criador de valores
ao mesmo tempo que devastador do solo e dos homens.”
“Mas esse sadismo de senhor e o correspondente
masoquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica, têm-se feito
sentir através da nossa formação, em campo mais largo: social e político. Cremos
surpreendê-los em nossa vida política, onde o mandonismo tem sempre encontrado vítimas
em quem exercer-se com requintes às vezes sádicos; certas vezes deixando até nostalgias
logo transformadas em cultos cívicos, como o do chamado marechal-de-ferro. A nossa
tradição revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada a focos
de fácil profilaxia política: no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar “povo
brasileiro” ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente
autocrático. Mesmo em sinceras expressões individuais – não de todo invulgares nesta
espécie de Rússia americana que é o Brasil” – de mística revolucionária, de messianismo,
de identificação do redentor com a massa a redimir pelo sacrifício de vida ou de
liberdade pessoal, sente-se o laivo ou o resíduo masoquista: menos a vontade de
reformar ou corrigir determinados vícios de organização política ou econômica que
o puro gosto de sofrer, de ser vítima, ou de sacrificar-se.
Por outro lado, a tradição conservadora no Brasil
sempre se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em “princípio de Autoridade”
ou “defesa da Ordem”. Entre essas duas místicas – a da Ordem e a da Liberdade, a
da Autoridade e a da Democracia – é que se vem equilibrando entre nós a vida política,
precocemente saída do regime de senhores e escravos.”
“Com a intrusão europeia desorganiza-se entre
os indígenas da América a vida social e econômica; desfaz-se o equilíbrio nas relações
do homem com o meio físico.
Principia a degradação da raça atrasada ao contato
da adiantada; mas essa degradação segue ritmos diversos, por um lado conforme a
diferença regional de cultura humana ou de riqueza do solo entre os nativos – máxima
entre os incas e astecas e mínima nos extremos do continente; por outro lado, conforme
as disposições e recursos colonizadores do povo intruso ou invasor.
Os espanhóis apressam entre os incas, astecas
e maias a dissolução dos valores nativos na fúria de destruírem uma cultura já na
fase de semicivilização; já na segunda muda; e que por isso mesmo lhes pareceu perigosa
ao cristianismo e desfavorável à fácil exploração das grandes riquezas minerais.
Apressam-na entre gentes mais atrasadas, os puritanos ingleses querendo conservar-se
imaculados do contato sexual e social de povos que lhes repugnavam pela diferença
de cor e de costumes e que evocavam à sua consciência de raça e de cristãos o espantalho
da miscigenação e do paganismo dissoluto.
Os portugueses, além de menos ardentes na ortodoxia
que os espanhóis e menos estritos que os ingleses nos preconceitos de cor e de moral
cristã, vieram defrontar-se na América, não com nenhum povo articulado em império
ou em sistema já vigoroso de cultura moral e material – com palácios, sacrifícios
humanos aos deuses, monumentos, pontes, obras de irrigação e de exploração de minas
– mas, ao contrário, com uma das populações mais rasteiras do continente.
De modo que não é o encontro de uma cultura exuberante
de maturidade com outra já adolescente, que aqui se verifica; a colonização europeia
vem surpreender nesta parte da América quase que bandos de crianças grandes; uma
cultura verde e incipiente; ainda na primeira dentição; sem os ossos nem o desenvolvimento
nem a resistência das grandes semicivilizações americanas. (...)
Mas entre os indígenas das terras de pau-de-tinta
outras foram as condições de resistência ao europeu: resistência não mineral mas
vegetal. Por sua vez o invasor pouco numeroso foi desde logo contemporizando com
o elemento nativo; servindo-se do homem para as necessidades de trabalho e principalmente
de guerra, de conquista dos sertões e desbravamento do mato virgem; e da mulher
para as de geração e de formação de família.”
“Antes, porém, de salientarmos a contribuição
da cunha (dos indígenas) ao desenvolvimento social do Brasil, procuremos fixar a
do homem. Foi formidável: mas só na obra de devastamento e de conquista dos sertões,
de que ele foi o guia, o canoeiro, o guerreiro, o caçador e pescador. Muito auxiliou
o índio ao bandeirante mameluco, os dois excedendo ao português em mobilidade, atrevimento
e ardor guerreiro; sua capacidade de ação e de trabalho falhou, porém, no rame-rame
tristonho da lavoura de cana, que só as reservas extraordinárias de alegria e de
robustez animal do africano tolerariam tão bem. Compensou-se o índio, amigo ou escravo
dos portugueses, da inutilidade no esforço estável e contínuo pela extrema bravura
no heroico e militar. Na obra de sertanismo e de defesa da colônia contra espanhóis,
contra tribos inimigas dos portugueses, contra corsários.
Índios e mamelucos formaram a muralha movediça,
viva, que foi alargando em sentido ocidental as fronteiras coloniais do Brasil ao
mesmo tempo que defenderam, na região açucareira, os estabelecimentos agrários dos
ataques de piratas estrangeiros. Cada engenho de açúcar nos séculos XVI e XVII precisava
de manter em pé de guerra suas centenas ou pelo menos dezenas de homens prontos
a defender contra selvagens ou corsários a casa de vivenda e a riqueza acumulada
nos armazéns: esses homens foram na sua quase totalidade índios ou caboclos de arco
e flecha.
A enxada é que não se firmou nunca na mão do índio
nem na do mameluco; nem o seu pé de nômade se fixou nunca em pé-de-boi paciente
e sólido. Do indígena quase que só aproveitou a colonização agrária no Brasil o
processo da coivara, que infelizmente viria a empolgar por completo a agricultura
colonial. O conhecimento de sementes e raízes, outras rudimentares experiências
agrícolas, transmitiu-as ao português menos o homem guerreiro que a mulher trabalhadora
do campo ao mesmo tempo que doméstica.
Se formos apurar a colaboração do índio no trabalho
propriamente agrário, temos que concluir, contra Manuel Bonfim – indianófllo até
a raiz dos cabelos – pela quase insignificância desse esforço. O que não é de estranhar,
se considerarmos que a cultura americana ao tempo da descoberta era a nômade, a
da floresta, e não ainda a agrícola; que o pouco da lavoura – mandioca, cará, milho,
jerimum, amendoim, mamão – praticado por algumas tribos menos atrasadas, era trabalho
desdenhado pelos homens – caçadores, pescadores e guerreiros – e entregue às mulheres,
diminuídas assim na sua domesticidade pelo serviço de campo tanto quanto os homens
nos hábitos de trabalho regular e contínuo pelo de vida nômade. Daí não terem as
mulheres índias dado tão boas escravas domésticas quanto as africanas, que mais
tarde as substituíram vantajosamente como cozinheiras e amas de menino do mesmo
modo que os negros aos índios como trabalhadores de campo.”
“Havia entre os ameríndios desta parte do continente,
como entre os povos primitivos em geral, certa fraternidade entre o homem e o animal,
certo lirismo mesmo nas relações entre os dois. Karsten encontrou entre os Jibaro
o mito de ter havido época em que os animais falaram e agiram do mesmo modo que
os homens. E ainda hoje – acrescenta – “o índio não faz distinção definida entre
o homem e o animal. Acredita que todos os animais possuam alma, em essência da mesma
qualidade que a do ser humano; que intelectual e moralmente seu nível seja o mesmo
que o do homem.” Daí, e independentemente mesmo do totemismo de que adiante nos
ocuparemos, a intimidade por assim dizer lírica do primitivo habitante do Brasil
com numeroso grupo de animais, principalmente pássaros, por ele amansados ou criados
em casa, sem nenhum propósito de servir-se de sua carne ou dos seus ovos para alimento,
nem de sua energia para o trabalho doméstico ou agrícola ou para a tração, nem do
seu sangue para sacrifício religioso.”
“Considerando neste ensaio o choque das duas culturas,
a europeia e a ameríndia, do ponto de vista da formação social da família brasileira
– em que predominaria a moral europeia e católica – não nos esqueçamos, entretanto,
de atentar no que foi para o indígena, e do ponto de vista de sua cultura, o contato
com o europeu. Contato dissolvente. Entre as populações nativas da América, dominadas
pelo colono ou pelo missionário, a degradação moral foi completa, como sempre acontece
ao juntar-se uma cultura, já adiantada, com outra atrasada.
Sob a pressão moral e técnica da cultura adiantada,
esparrama-se a do povo atrasado. Perde o indígena a capacidade de desenvolver-se
autonomamente tanto quanto a de elevar-se de repente, por imitação natural ou forçada,
aos padrões que lhe propõe o imperialismo colonizador. Mesmo que se salvem formas
ou acessórios de cultura, perde-se o que Pitt-Rivers considera o potencial,
isto é, a capacidade construtora da cultura, o seu elã, o seu ritmo.
A história do contato das raças chamadas superiores
com as consideradas inferiores é sempre a mesma. Extermínio ou degradação. Principalmente
porque o vencedor entende de impor ao povo submetido a sua cultura moral inteira,
maciça, sem transigência que suavize a imposição. O missionário tem sido o grande
destruidor de culturas não europeias, do século XVI ao atual; sua ação mais dissolvente
que a do leigo.”
“Quanto ao asseio do corpo, os indígenas do Brasil
eram decerto superiores aos cristãos europeus aqui chegados em 1500. Não nos esqueçamos
de que entre estes exaltavam-se por essa época santos como Santo Antão, o fundador
no monaquismo, por nem os pés dar-se à vaidade de lavar; ou como São Simeão, o Estilita,
de quem de longe se sentia a inhaca do sujo. E não seriam os portugueses os menos
limpos entre os europeus do século XVI, como a malícia antilusitana talvez esteja
a imaginar; mas, ao contrário, dos mais asseados, devido à influência dos mouros.
Dos primeiros cronistas são os franceses os que
mais se espantam da frequência do banho entre os caboclos: Ives d'Evreux e Jean
de Léry. E um higienista francês, Sigaud, atribuiria aos banhos frios o fato de
sofrerem os indígenas do Brasil – os já influenciados pela civilização europeia
– de desordens do aparelho respiratório, desde o simples catarro à pleurisia aguda
e à bronquite. Aos banhos frios e ao hábito de andarem quase nus. Quando pelos estudos
modernos de higiene o que se apura é exatamente o contrário: que essas moléstias
do sistema respiratório desenvolvem-se entre populações selvagens pela imposição
de vestuário e de resguardos europeus a gente habituada a andar inteiramente nua.
O século da descoberta da América – o XV – e os
dois imediatos, de colonização intensa, foram por toda a Europa época de grande
rebaixamento nos padrões de higiene. Em princípios do século XIX – informa um cronista
alemão citado por Lowie – ainda se encontravam pessoas na Alemanha que em toda a
sua vida não se lembravam de ter tomado banho uma única vez. Os franceses não se
achavam, a esse respeito, em condições superiores às dos seus vizinhos. Ao contrário.
O autor de Primitive society recorda que a elegante rainha Margarida de Navarra
passava uma semana inteira sem lavar as mãos; que o rei Luís XIV quando lavava as
suas era com um pouco de álcool perfumado, uns borrifos apenas; que um manual francês
de etiqueta do século XVII aconselhava o leitor a lavar as mãos uma vez por dia
e o rosto quase com a mesma frequência; que outro manual, do século anterior, advertia
os jovens da nobreza a não assoarem o nariz à mesa com a mão que estivesse segurando
o pedaço de carne; que em Erasmo considerava
decente assoar-se a pessoa a dedo, uma vez que esfregasse imediatamente com a sola
do sapato o catarro que caísse no chão; que um tratado de 1539 trazia receitas contra
os piolhos, provavelmente comuns em grande parte da Europa.
Pela Europa os banhos à romana, ou de rio, às
vezes promíscuos, contra os quais por muito tempo a voz da Igreja clamara em vão,
haviam cessado quase de todo, depois das Cruzadas e dos contatos comerciais mais
íntimos com o Oriente. O europeu se contagiara de sífilis e de outras doenças, transmissíveis
e repugnantes. Daí resultará o medo ao banho e o horror à nudez.
Em contraste com tudo isso é que surpreendeu aos
primeiros portugueses e franceses chegados nesta parte da América um povo ao que
parece sem mancha de sífilis na pele; e cuja maior delícia era o banho de rio. Que
se lavava constantemente da cabeça aos pés; que se conservava em asseada nudez;
que fazia uso de folhas de árvores, como os europeus mais limpos de toalhas de enxugar
as mãos e de panos de limpar menino novo; que ia lavar no rio a sua roupa suja,
isto é, as redes de algodão – trabalho esse, a cargo dos homens.
Ainda que urinando de ordinário dentro das ocas,
os Tupi – observou Léry – “[...] vont néant moins fort loín faíre leurs excremens”
(no entanto, muito longe fazer seus excrementos). Dos indígenas parece ter ficado
no brasileiro rural ou semi-rural o hábito de defecar longe de casa; em geral no
meio de touça de bananeiras perto do rio. E de manhã, antes do banho. Um gole de
cachaça com caju e às vezes um pelo-sinal para guardar o corpo precedem ordinariamente
esse banho higiênico. O caju, para limpar o sangue. Toda uma liturgia ou ritual
sanitário e profilático.
Nas mulheres a cargo de quem se achava toda a
série de cuidados de higiene doméstica entre os indígenas, com exceção da lavagem
das redes sujas, era ainda maior que nos homens o gosto pelo banho e pelo asseio
do corpo. São asseadíssimas, nota Gabriel Soares. E Léry atribui a esse maior amor
da cunha à água e à higiene do corpo enfeitarem-se elas menos que os homens. Na
verdade, segundo o depoimento do escrupuloso protestante (que revela invulgar senso
crítico através de toda sua relação de viagem e, logo às primeiras páginas, nas
retificações que opõe, não sem certo ódio teológico, ao livro de frei André Thévet
sobre o Brasil), na verdade foi nas mulheres que os europeus encontraram maior resistência
à imposição do vestuário moralizador, mas para elas anti-higiênico: “des rohhes
de frise & des chemises”. O que alegavam é que tanto pano por cima do corpo
dificultava-lhes o costume de se lavarem livre e frequentemente no rio; às vezes
quase de hora em hora. Dez, doze banhos por dia. As tentativas de conservar as cunhas
vestidas à europeia foram por elas frustradas sistematicamente nos primeiros tempos;
quando obrigadas pelos calvinistas franceses a andarem vestidas durante o dia claro,
às primeiras sombras da noite despiam saias e camisas e largavam-se nuas pelas praias
em delicioso à-vontade.”
“O mais civilizado dos homens guarda dentro de
si a predisposição a muitos desses grandes medos primitivos; em nós brasileiros,
eles apenas atuam com mais força por ainda nos acharmos à sombra do mato virgem.
A sombra também da cultura da floresta tropical – da América e da África
– que o português incorporou e assimilou à sua como nenhum colonizador moderno,
sujeitando-nos, por isso, a frequentes relapsos na mentalidade e nos pavores e instintos
primitivos. Hall escreveu que todo civilizado guarda em si, da ancestralidade selvagem,
a tendência para acreditar em fantasmas, almas do outro mundo, duendes: “a prepotent
bias, which haunsts the very nerves and pulses of the most cultured to helieve in
ghosts”. O brasileiro é por excelência o povo da crença no sobrenatural: em
tudo o que nos rodeia sentimos o toque de influências estranhas; de vez em quando
os jornais revelam casos de aparições, mal-assombrados, encantamentos. Daí o sucesso
em nosso meio do alto e do baixo espiritismo.”
“É natural que na noção de propriedade como na
de outros valores, morais e materiais, inclusive o da vida humana, seja ainda o
Brasil um campo de conflito entre antagonismos os mais violentos. No tocante à propriedade
para nos fixarmos nesse ponto, entre o comunismo do ameríndio e a noção de propriedade
privada do europeu. Entre o descendente do índio comunista, quase sem noção de posse
individual, e o descendente do português particularista que até princípios do século
XIX viveu, entre alarmes de corsários e ladrões, a enterrar dinheiro em botija,
a esconder bens e valores em subterrâneos, a cercar-se de muros de pedra e estes,
ainda por cima, ouriçados de cacos de vidro contra os gatunos.”
“Gabriel Soares, com a sua sagacidade de homem
prático, apresenta os caboclos aqui encontrados em 1500 como “engenhosos para tomarem
quanto lhes ensinam os brancos”; excetuando precisamente aqueles exercícios mnemônicos
e de raciocínio e abstração, que os padres da S. J. (jesuítas) insistiram, a princípio,
em ensinar aos índios em seus colégios; “coisa de conta” ou de “sentido”, nas palavras
do cronista. A Ler, contar, escrever, soletrar, rezar em latim. Em tais exercícios
se revelariam os indígenas sem gosto nenhum de aprender; sendo fácil de imaginar
a tristeza que deve ter sido para eles o estudo nos colégios dos padres. Tristeza
apenas suavizada pelas lições de canto e música; pela representação de milagres
e de autos religiosos; pela aprendizagem de um ou outro ofício manual. Daí concluir
Anchieta pela “falta de engenho” dos indígenas; o próprio Gabriel Soares descreve
os Tupinambá como “muitos bárbaros” de entendimento.
Gabriel Soares encontrou nos mesmos Tupinambá
“uma condição muito boa para frades franciscanos”: possuírem tudo em comum. Poderia
mencionar outra: a sua queda ou pendor para os ofícios manuais; a sua repugnância
pelas muitas letras. O indígena do Brasil era precisamente o tipo de neófito ou
catecúmeno que uma vez fisgado pelos brilhos da catequese não correspondia à ideologia
jesuítica. Um entusiasta da Ordem Seráfica poderia sustentar a tese: o missionário
ideal para um povo comunista nas tendências e rebelde ao ensino intelectual como
o indígena da América teria sido o franciscano. Pelo menos o franciscano em teoria;
inimigo do intelectualismo; inimigo do mercantilismo; lírico na sua simplicidade;
amigo das artes manuais e das pequenas indústrias; e quase animista e totemista
na sua relação com a Natureza, com a vida animal e vegetal.
Para São Francisco dois grandes males afligiam
o mundo cristão do seu tempo: a arrogância dos ricos e a arrogância dos eruditos.
Diz-se que informado de haver certo doutor parisiense, dos finos, dos sutis, entrado
como frade em um convento franciscano, teria dito: “Estes doutores, meus filhos,
serão a destruição da minha vinha”. Os jesuítas tornaram-se precisamente os doutores
da Igreja; os seus mais agudos intelectuais. Os seus grandes homens de ciência.
Tornaram-se notáveis pelas suas gramáticas, pelos seus compêndios de retórica, pelos
seus relógios, mapas e globos geográficos. E entretanto, como observa Arthur S. B. Freer, “with
ali their self confidence they failed, for, unlike the Franciscans, their spirit
was not the spirit of the coming ages”.
O seu grande fracasso pode-se afirmar ter sido
na América. No Paraguai. No Brasil. Aos índios do Brasil parece que teria beneficiado
mais a orientação do ensino missionário dos franciscanos. Estes – salienta em sugestivo
livro frei Zephyrin Engelhardt – onde tiveram o encargo de missões junto a ameríndios,
orientaram-nas em sentido técnico ou prático. Sentido que faltou ao esforço jesuítico
no Brasil.
Os franciscanos preocuparam-se acima de tudo em
fazer dos índios artífices e técnicos, evitando sobrecarregá-los da “mental exertion
which the Indians hated more than manual labor.” “Acrescenta frei Engelhardt
sobre o método franciscano de cristianizar os índios: “we do not find that Chtist
directed His Apostles to teach reading, writing and arithmetic”. Ironia que
vai, evidentemente, cravar-se nas iniciais S. J. E rebatendo a acusação de que os
franciscanos só se teriam preocupado nas suas missões em formar aprendizes ou técnicos:
“they gave the Indians the education wich was adapted to their present needs
and probable future condition in society”. Enquanto os primeiros jesuítas no
Brasil quase que se envergonham, através das suas crônicas, do fato de lhes ter
sido necessário exercer ofícios mecânicos. Seu gosto teria sido se dedicarem por
completo a formar letrados e bachareizinhos dos índios. Pelo que escreve o padre
Simão de Vasconcelos na sua Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil
e do que obraram seus filhos nesta parte do Brasil vê-se que os padres da Companhia
aqui chegaram sem nenhum propósito de desenvolver entre os caboclos atividades técnicas
ou artísticas; e sim as literárias e acadêmicas. Tiveram de improvisar-se em artífices;
de franciscanizar-se. Do que os justifica o padre Simão como de uma fraqueza: “e
deste tempo ficou introduzido trabalharem os irmãos em alguns officios mechanicos,
e proveitosos a communidade, por razão da grande pobreza, em que então viviam. Nem
deve parecer cousa nova, e muito menos indecente, que religiosos se occupem em officios
semelhantes; pois nem São José achou que era cousa indigna de um pae de Christo
(qual elle era na commum estimação dos homens); nem São Paulo de um apóstolo do
Collegio de Jesus, ganhar o que haviam de comer, pelo trabalho de suas mãos, e suor
de seu corpo: antes foi exemplo, que imitaram os mais perfeitos religiosos da antigüidade,
acostumando, com esta traça, o corpo ao trabalho, e a alma a humildade; chegou a
ser regra vinda do céo, que os anjos dictaram a Pacomio abbade santo”. Entre os
primeiros jesuítas do Brasil parece que só o padre Leonardo trouxera do século o
ofício de ferreiro; quase todos os outros, puros acadêmicos ou doutores da espécie
que São Francisco de Assis tanto temia, precisaram de improvisar-se em carpinteiros
ou sangradores. Mas sem gosto nem entusiasmo pelo trabalho manual ou artístico,
antes desculpando-se dele pela alegação de imprescindível nas rudes circunstâncias
da catequese.
Que para os indígenas teria sido melhor o sistema
franciscano que o dos jesuítas parece-nos evidente. Gabriel Soares descreve os Tupinambá
como tendo “grande destino para saberem logo estes officios”, isto é, os de “carpinteiros
de machado, serradores, oleiros”; e “para todos os officios de engenhos de assucar";
e, ainda para “criarem vaccas”. As mulheres para “criar galinhas”, “coser e lavar”,
fazer “obras de agulha” etc.
Inserindo-se na vida dos colonizadores como esposas
legítimas, concubinas, mães de família, amas-de-leite, cozinheiras, puderam as mulheres
exprimir-se em atividades agradáveis ao seu sexo e à sua tendência para a estabilidade.
O homem indígena, porém, quase que só encontrou, nos adventícios, senhores de engenho
para os fazerem trabalhar na lavoura da cana e padres para os obrigarem a aprender
a contar, a ler e a escrever; mais tarde a mourejar nas plantações de mate e de
cacau. Qualquer dessas atividades impostas ao índio cativo ou ao catecúmeno vinha
torcer-lhes ou desviar-lhes a energia em direções as mais repugnantes à sua mentalidade
de primitivos; a imposta pelos padres afastando-os do contato, que tanto os atraía
aos adventícios, das ferramentas europeias, para fixá-los na tristeza dos cadernos
e dos exercícios de gramática; as outras afetando-os no que é tão profundo nos selvagens
quanto nos civilizados – a divisão sexual do trabalho; obrigando-os a uma sedentariedade
letal para homens tão andejos; segregando-os; concentrando-os nas plantações ou
nas aldeias em grandes massas de gente, por um critério inteiramente estranho a
tribos acostumadas à vida comunária mas em pequenos grupos, e estes exógamos e totêmicos.
Quando o que mais convinha a selvagens arrancados ainda tão crus da floresta e sujeitos
a condições deletérias de sedentariedade era a lide com as ferramentas europeias;
um doce trabalho manual que não os extenuasse como o outro, o da enxada, mas preparasse
neles a transição da vida selvagem para a civilizada.
Realizar essa transição deveria ter sido a grande,
a principal missão dos catequistas. Por semelhante processo muito da habilidade
manual, da aptidão artística, do talento decorativo, que quase se perdeu de todo
nos indígenas do Brasil, se teria recolhido e prolongado em novas formas e através
de amplos e plásticos recursos de técnica europeia. A verdade, porém, é que dominou
as missões jesuíticas um critério, ora exclusivamente religioso, os padres querendo
fazer dos caboclos uns dóceis e melífluos seminaristas; ora principalmente econômico
de se servirem os missionários dos índios, seus aldeados, para fins mercantis; para
enriquecerem, tanto quanto os colonos, na indústria e no comércio de mate, de cacau,
de açúcar e de drogas.
Campeões da causa dos índios, deve-se em grande
parte aos jesuítas não ter sido nunca o tratamento dos nativos da América pelos
portugueses tão duro nem tão pernicioso como pelos protestantes ingleses. Ainda
assim os indígenas nesta parte do continente não foram tratados fraternal ou idilicamente
pelos invasores, os mesmos jesuítas extremando-se às vezes em métodos de catequese
os mais cruéis. Da boca de um deles, e logo do qual, do mais piedoso e santo de
todos, José de Anchieta, é que vamos recolher estas duras palavras: “espada e vara
de ferro, que é a melhor pregação”.
A melhor atenção do jesuíta no Brasil fixou-se
vantajosamente no menino indígena. Vantajosamente sob o ponto de vista, que dominava
o padre da S. J., de dissolver no selvagem, o mais breve possível, tudo o que fosse
valor nativo em conflito sério com a teologia e com a moral da Igreja. O eterno
critério simplista do missionário que não se apercebe nunca do risco enorme de ser
incapaz de reparar ou substituir tudo quanto destrói. Ainda hoje se observa o mesmo
simplismo nos missionários ingleses na África e em Fiji.
O culumim, o padre ia arrancá-lo verde à vida
selvagem: com dentes apenas de leite para morder a mão intrusa do civilizador: ainda
indefinido na moral e vago nas tendências. Foi, pode-se dizer, o eixo da atividade
missionária: dele o jesuíta fez o homem artificial que quis.
O processo civilizador dos jesuítas consistiu
principalmente nesta inversão: no filho educar o pai; no menino servir de exemplo
ao homem; na criança trazer ao caminho do Senhor e dos europeus a gente grande.
O culumim tornou-se o cúmplice do invasor na obra
de tirar à cultura nativa osso por osso, para melhor assimilação da parte mole aos
padrões de moral católica e de vida europeia; tornou-se o inimigo dos pais, dos
pajés, dos maracás sagrados, das sociedades secretas. Do pouco que havia de duro
e de viril naquela cultura e capaz de resistir, ainda que fracamente, à compreensão
europeia. Longe dos padres quererem a destruição da raça indígena: queriam era vê-la
aos pés do Senhor, domesticada para Jesus. O que não era possível sem antes quebrar-se
na cultura moral dos selvagens a sua vértebra e na material tudo o que estivesse
impregnado de crenças e tabus difíceis de assimilar ao sistema católico. As vezes
os padres procuraram, ou conseguiram, afastar os meninos da cultura nativa, tornando-a
ridícula aos seus olhos de catecúmenos: como no caso do feiticeiro referido por
Montoya. Conseguiram os missionários que um velho feiticeiro, figura grotesca e
troncha, dançasse na presença da meninada: foi um sucesso. Os meninos acharam-no
ridículo e perderam o antigo respeito ao bruxo, que daí em diante teve de contentar-se
em servir de cozinheiro dos padres.
A posse do culumim significava a conservação,
tanto quanto possível, da raça indígena sem a preservação de sua cultura. Quiseram,
entretanto, os jesuítas ir além e em um ambiente de estufa – o dos colégios do século
XVI ou das missões guaranis – fazer dos indígenas figuras postiças, desligadas não
já das tradições morais da cultura nativa mas do próprio meio colonial e das realidades
e possibilidades sociais e econômicas desse meio. Foi onde o esforço educativo e
civilizador dos jesuítas artificializou-se, não resistindo mais tarde seu sistema
de organização dos índios em “aldeia” ou “missões” aos golpes da violenta política
antijesuítica do marquês de Pombal.
Mesmo realizada artificialmente, a civilização
dos indígenas do Brasil foi obra quase exclusiva dos padres da Companhia; resultado
de esforço seu a cristianização, embora superficial e pela crosta, de grande número
de caboclos.
Essa cristianização, repetimos, processou-se através
do menino índio, do culumim, de quem foi grande o valor na formação social de um
Brasil diverso das colônias portuguesas na África; orientado em sentido oposto ao
das feitorias africanas. Joaquim Nabuco, apologeta, como Eduardo Prado, do esforço
jesuítico, ou antes, católico, no Brasil, pouco exagera quando afirma: “Sem os jesuítas
a nossa história colonial não seria outra coisa senão uma cadeia de atrocidades
sem nome, de massacres como os das Reduções; o país seria cortado de estradas, como
as que iam do coração da África aos mercados das costas, por onde só passavam as
longas filas de escravos”.
No Brasil o padre serviu-se principalmente do
culumim, para recolher de sua boca o material com que formou a língua tupi-guarani
– o instrumento mais poderoso de intercomunicação entre as duas culturas: a do invasor
e a da raça conquistada. Não somente de intercomunicação moral como comercial e
material. Língua que seria, com toda a sua artificialidade, uma das bases mais sólidas
da unidade do Brasil. Desde logo, e pela pressão do formidável imperialismo religioso
do missionário jesuíta, pela sua tendência para uniformizar e estandardizar valores
morais e materiais, o tupi-guarani aproximou entre si tribos e povos indígenas,
diversos e distantes em cultura, e até inimigos de guerra, para, em seguida, aproximá-los
todos do colonizador europeu. Foi a língua, essa que se formou do colonizador do
culumim com o padre, das primeiras relações sociais e de comércio entre as duas
raças, podendo-se afirmar do povo invasor que adotou para o gasto ou o uso corrente
a fala do povo conquistado, reservando a sua para uso restrito e oficial. Quando
mais tarde o idioma português – sempre o oficial – predominou sobre o tupi, tornando-se,
ao lado deste, língua popular, já o colonizador estava impregnado de agreste influência
indígena; já o seu português perdera o ranço ou a dureza do reinol; amolecera-se
em um português sem rr nem ss; infantilizara-se quase, em fala de menino, sob a
influência do ensino jesuítico de colaboração com os culumins. (...)
O padre Simão de Vasconcelos esclarece-nos sobre
o sistema de intercurso intelectual adotado pelos jesuítas com relação ao culumim.
E assim que de Anchieta nos informa: “no mesmo tempo era mestre & era discípulo”;
e dos culumins: “lhe serviam de discípulos & mestres”; sucedendo que o padre
“na mesma classe falando latim alcançou da fala dos que o ouviam a mor parte da
lingua do Brasil.” (...)
E Varnhagen comenta a emulação provocada entre
o gentio pelos jesuítas com as suas procissões de culumins cristianizados: “Feitos
acólitos os primeiros piás mansos, todos os mais caboclinhos lhes tinham inveja,
do que aproveitaram os jesuítas, entrando com eles pelas aldeias em procissões de
cruz alçada, entoando a ladainha, cantando rezas e arrebanhando muitos; com o que
se honravam às vezes os pais”. Procissão que o padre Américo Novais, baseado em
Southey, evoca em cores ainda mais vivas: meninos e adolescentes vestidos de branco,
uns com açafates de flores, outros com vasos de perfume, outros com turíbulos de
incenso, todos louvando Jesus triunfante entre repiques de sino e roncos de artilharia.
Eram as futuras festas de igreja, tão brasileiras, com incenso, folha de canela,
flores, cantos sacros, banda de música, foguete, repique de sino, vivas a Jesus
Cristo, esboçando-se nessas procissões de culumins. Era o cristianismo, que já nos
vinha de Portugal cheio de sobrevivências pagãs, aqui se enriquecendo de notas berrantes
e sensuais para seduzir o índio. Nóbrega chegava a ser de opinião que pela música
conseguiria trazer ao grêmio católico tudo quanto fosse índio nu das florestas da
América; e pelo impulso que deu à música tornou-se – diz Varnhagen – “quase um segundo Orfeu”.”
“Outro traço simpático, nas primeiras relações
dos jesuítas com os culumins, para quem aprecie a obra missionária, não com olhos
devotos de apologeta ou sectário da Companhia mas sob o ponto de vista brasileiro
da confraternização das raças: a igualdade em que parece terem eles educado, nos
seus colégios dos séculos XVI e XVII, índios e filhos de portugueses, europeus e
mestiços, caboclos arrancados às tabas e meninos órfãos vindos de Lisboa. As crônicas
não indicam nenhuma discriminação ou segregação inspirada por preconceito de cor
ou de raça contra os índios; o regime que os padres adotaram parece ter sido o de
fraternal mistura dos alunos. O colégio estabelecido por Nóbrega na Bahia dá Varnhagen
como frequentado por filhos de colonos, meninos órfãos vindos de Lisboa e piás da
terra.”
““Quanto a nós”, escreve sobre o sistema dos jesuítas
o cônego Fernandes Pinheiro, “grande erro era o daniquilar inteiramente a vontade
dos catechumenos e neophytos, reduzindo-os ao mesquinho papel de machinas ambulantes.
Considerando os indios como meninos que necessitam de guias para se não despenharem
nos abysmos do vicio, de tutores para não dissiparem a própria fazenda, entenderam
os varões apostólicos que primeiro os chamaram ao grêmio da Igreja e da civilização,
que deveram ser elles esses guias; no que não se enganaram. Levando, porém, mais
longe o zelo que pela família espiritual tinham, transmitiram intacto tão grande
poder aos seus successores, esquecendo que era elle por sua natureza precário, e
apenas próprio para a primeira phase de transição da vida selvagem para a civilizada.
Daqui nasceu o abuso que assignalamos, daqui proveio que jamais teve o indio autonomia,
jamais pensou em dirigir-se por suas inspirações, em assumir a responsabilidade
de seus atos: daqui originou-se finalmente a destruição total da obra da catechese,
que tão prospera e vivaz parecia, logo que faltou-lhe o braço jesuítico que de pé
a sustinha”.”
“Arouche, nomeado em 1798 Diretor-Geral das Aldeias
dos índios, no Brasil, acusaria os missionários – tanto os jesuítas como os franciscanos
– “de promover o casamento de índios com pretas e pretos, batizando os filhos como
servos”. Os padres teriam se deixado escorregar para as delícias do escravagismo
ao mesmo tempo que para os prazeres do comércio. Não fossem eles bons portugueses
e talvez até bons semitas, cuja tradicional tendência para a mercancia não se modificara
sob a roupeta de jesuíta nem com os votos de pobreza seráfica.
Acresce que, fugindo não só à sedentariedade da
segregação como às violências civilizadoras praticadas nas próprias aldeias de missionários,
muitos dos indígenas cristianizados deram para ganhar o mato “sem se lembrarem”,
diz Arouche, “das mulheres e filhos que deixaram [...].” Situação que mais se aguçou
quando, desmontada a possante máquina de civilização dos jesuítas, os índios se
encontraram, por um lado presos, pela moral que lhes fora imposta, à obrigação de
sustentar mulher e filhos, por outro lado em condições econômicas de não se poderem
manter nem a si próprios. Ao contrário: pretendeu-se sistematizar de tal modo a
exploração do trabalhador indígena em benefício dos brancos e da Igreja, que de
um salário de 100 réis por dia apenas recebia o índio aldeado para se sustentar
a si, mulher e filhos a miserável quantia de 33 réis. Ocorreu então a dissolução
de muita família cristã de caboclo pela falta de base ou apoio econômico: aumentando
dentro de tais circunstâncias a mortalidade infantil (dada a miséria a que ficaram
reduzidos numerosos lares cristãos, artificialmente organizados) e diminuindo a
natalidade, não só pela “falta de propagação”, como pelos abortos praticados, na
ausência de maridos e pais, por mulheres já eivadas de escrúpulos cristãos de adultério
e de virgindade. Por onde se vê que o sistema jesuítico de catequese e civilização
impondo uma nova moral de família aos indígenas sem antes lançar uma permanente
base econômica, fez trabalho artificial, incapaz de sobreviver ao ambiente de estufa
das missões: e concorreu poderosamente para a degradação da raça que pretendeu salvar.
Para o despovoamento do Brasil de sua gente autóctone.
Esse despovoamento, os processos de simples captura
dos indígenas, e não já de segregação e de trabalho, forçado ou excessivo, nas fazendas
e nas missões, precipitaram de maneira infernal. Eram processos que se faziam acompanhar
de grande desperdício de gente: talvez maior que na captura e transporte de africanos.
Quando as expedições de captura eram bem-sucedidas, informa João Lúcio de Azevedo,
referindo-se às realizadas no Amazonas para suprir de escravos, ou “administrados”,
as fazendas do Maranhão e do Pará, que “chegava somente a metade: imagine-se o que
seria nas outras.” E recorda o historiador estas palavras de Vieira: “Por mais que
sejam os escravos que se fazem, mais são sempre os que morrem”. “Para isso concorria”,
explica João Lúcio, “o trabalho das fazendas, sobretudo a cultura de cana-de-açúcar
e de tabaco, tarefa em demasia pesada aos índios mal habituados à continuidade dos
serviços penosos. Além das doenças que estas raças inferiores sempre adquirem ao
contato dos brancos, os maus-tratos que recebiam eram outras tantas causas de moléstia
e morte, não obstando a isso as leis repressivas repetidamente promulgadas. Dos
tormentos a que os sujeitavam basta lembrar que era corrente marcarem-se os cativos
com ferro em brasa, para distingui-los dos forros, e também para serem reconhecidos
pelos donos.”
Causa de muito despovoamento foram ainda as guerras
de repressão ou de castigo levadas a efeito pelos portugueses contra os índios,
com evidente superioridade técnica. Superioridade que os triunfadores não raras
vezes ostentaram contra os vencidos, mandando amarrá-los à boca de peças de artilharia
que, disparando, “semeavam a grandes distâncias os membros dilacerados”; ou infligindo-lhes
suplícios adaptados dos clássicos às condições agrestes da América. Um desses o
de Tulo Hostüio, de prender-se o paciente a dois fogosos cavalos, logo soltos em
rumos opostos. Esse horrível suplício foi substituído no extremo-norte do Brasil
pelo de amarrar-se o índio a duas canoas, correndo estas, à força de remos, em direções
contrárias até partir-se em dois o corpo do supliciado. No Maranhão e no Pará as
crueldades contra os indígenas não foram menores do que as exercidas no Sul pelos
paulistas: estes chegavam a incumbir-se de “guerras contra os índios” como de uma
especialização macabra. O resgate, ou fosse a venda de índios, capturados e trazidos
dos sertões às fazendas em condições tais que só chegava a metade ou a terça parte,
praticava-o o próprio governo em beneficio da construção de igrejas.
Dos efeitos da escravidão do índio no Maranhão
informa João Lúcio de Azevedo: “Absolutamente entregues [os colonos] à exploração
do índio, nada sabiam nem podiam fazer, senão por ele e com ele”. Isto no segundo
século de colonização. Fora a mesma coisa no primeiro. O senhor de engenho, parasita
do índio. O funcionário reinol, parasita do senhor de engenho. Os dois desadorados
na “conjugação do verbo mpio”, de que falaria o pregador no seu célebre sermão
na Misericórdia.
Tudo se processou através do escravo ou do “administrado”
cujo braço possante era “a só riqueza, o único objeto a que tendiam as ambições
dos colonizadores.” Até que essa riqueza se foi corrompendo sob os efeitos disgênicos
do novo regime de vida. O trabalho sedentário e contínuo, as doenças adquiridas
ao contato dos brancos, ou pela adoção, forçada ou espontânea, dos seus costumes
a sífilis, a bexiga, a disenteria, os catarros foram dando cabo dos índios: do seu
sangue, da sua vitalidade, da sua energia.”
Peço sinceras desculpas à Editora Global pelo excesso de trechos aqui no blog, mas não consegui me conter. Nesta intensa e belíssima obra de Gylberto Freire, vemos o Brasil em estado puro, na sua essência, na sua história, no seu sangue, na sua carne, com suas dores e deleites. Recomendo decididamente a leitura do livro em sua integralidade. Aqui vão belas pepitas, mas o tesouro é bem mais farto.
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