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sexta-feira, 29 de julho de 2016

A caminho de Cabul e Bagdá: Relatos do conflito no mundo islâmico – Jason Burke

Editora: Zahar
ISBN: 978-85-378-0086-7
Tradução: Roberto Franco Valente
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 320
Sinopse: Nas ruelas de um povoado curdo, um jovem britânico é encurralado por seus perseguidores e se salva no último minuto. Um homem corre por uma árida estrada iraquiana desviando-se das bombas que caem ao seu redor. O jornalista Jason Burke enfrentou essas e muitas outras situações que parecem cenas de um filme de ação, nos dez anos em que cobriu os eventos do sudoeste asiático e do Oriente Médio. Em seus encontros com centenas de pessoas – de refugiados miseráveis e atiradores norte-americanos a ministros de alto escalão –, Burke percebe a multiplicidade oculta sob o rótulo de “mundo islâmico”. A caminho de Cabul e Bagdá relata uma jornada em busca de respostas para questões que estão entre as mais importantes do nosso tempo: como devemos, por exemplo, entender o Islã e o radicalismo islâmico? E oferece poderosas lições de humanidade.



“Quando regressei no outono de 2001 depois de fazer a cobertura da guerra no Afeganistão, fiquei chocado ao verificar como fora seriamente mal interpretada a natureza das causas daqueles ataques (contra as torres gêmeas). Por uma grande variedade de razões, que vão desde a mentira praticada por diversos governos até antigos preconceitos sociais e culturais sobre a natureza da ação violenta – tanto religiosa quanto política –, eles estavam sendo atribuídos a um sombrio grupo radical militante, rigorosamente estruturado, chamado Al-Qaeda, liderado por um mentor terrorista de nome Osama bin Laden. Declarava-se amplamente que esse grupo era responsável por violência no mundo inteiro. Dezenas de militâncias antigas, com raízes profundas em fatores econômicos, culturais e religiosas no mundo islâmico e além dele, estavam sendo simplesmente descartadas em favor da obra de um único dissidente saudita maluco e de alguns seguidores seus. Fiquei tão irritado diante da preguiça intelectual deste tipo de análise – e tão preocupado com as potenciais consequências disso – que comecei a escrever meu primeiro livro. Nele eu analisava a estrutura da militância islâmica contemporânea e ao mesmo tempo investigava algumas das suas raízes ideológicas e históricas. A Al-Qaeda, dizia eu, era uma ideia, não uma organização.”


“Todas as religiões importantes têm recursos em seu interior que podem ser explorados para diferentes usos, sejam belos ou pacíficos, tolerantes ou intolerantes. Mas era só aquele elemento minoritário dentro de uma minoria cujo epítome era Osama bin Laden e seus correligionários extremistas – homens que minaram o Islã através de tudo que havia de mais inflexível, violento e amargo –, que representava aquela fé nos tenebrosos dias que se seguiram a atrocidade dos ataques a Nova Iorque e Washington. E não foram apenas os radicais de direita ou os religiosos conservadores dos Estados Unidos que sentiram o que estava acontecendo como uma batalha existencial entre o bem e o mal, o certo e o errado, o verdadeiro e o falso. Vários colegas e amigos meus pouco se esforçavam para disfarçar sua certeza de que o Islã era uma religião retrógrada, e que os “muçulmanos” constituíam um perigo claro e atual para quaisquer valores básicos da democracia liberal. Isso também me deixou aturdido, preocupado e irritado. E me entristeceu muito.
Talvez a característica mais deprimente do argumento do choque de civilizações, que poderia ser ironicamente engraçado se não fosse tão perigoso, seja a coincidência entre os pontos de vista e as ideias dos seus proponentes, tanto no mundo islâmico quanto no Ocidente. Neste, colunistas de jornal costumam referir-se ao “mundo islâmico” como algo monolítico. Os conservadores muçulmanos fazem semelhantes afirmações sobre o “Ocidente de orientação norte-americana”. Fala-se sobre o modo de pensar “dos árabes”, ou “dos islâmicos”, de um lado, e da “mente” ocidental, cristã ou judaica, de outro. No Ocidente, senadores americanos falaram em bombardear Meca em represália aos ataques contra os Estados Unidos, enquanto na Arábia Saudita e em outros lugares os radicais exigiam o bombardeio dos Estados Unidos em represália aos ataques contra a Palestina, a Chechênia, a Caxemira, o Iraque e o Afeganistão. E os dois lados acreditavam fazer parte de um grupo religioso definido, que deveria combater violentamente, numa competição hobbesiana, pelos escassos recursos morais, intelectuais e físicos da Terra. Acreditavam também estar se engajando em uma batalha sem limites e sem trégua contra um inimigo fanático e irracional, agressivo, beligerante e decidido a se expandir até que todos os outros sistemas de cultura, de sociedades e de crenças fossem erradicados. Todos apresentavam um leque de referências históricas e culturais espúrias para justificar o que constituía fundamentalmente uma visão preconceituosa e ignorante, distorcendo a realidade para adequá-la às suas ideias.”


“Estávamos sentados no refeitório da unidade de oficiais, uma grande barraca de lona armada junto à curva de um rio, afastada cerca de 1 km e meio da linha de frente. O jantar era galinha tikka seguida de pudim de claras, e foi servido na prataria do regimento por soldados usando luvas brancas. Durante o prato principal, as bombas indianas explodiam suficientemente perto para que os estilhaços batessem nas paredes. Eu não estava com tanto apetite assim. Herl, um homem forte e elegante de quarenta e poucos anos, dentes proeminentes, nariz grande, olhar alegre e bigode curto e espesso, mostrava-se muito expansivo. “A Índia e o Paquistão têm disputado a Caxemira por talvez mais de 50 anos, e ainda não conseguimos resolver a questão”, disse ele. “A guerra não pode prosseguir indefinidamente. Deve-se encontrar alguma outra forma de solucionar o caso”.
Ele serviu-se de um pouco mais de pudim. “Comer bem é um dom de Deus”, disse sorrindo, e fez um sinal para o soldado com a calda.
Dei um pulo quando uma bomba indiana explodiu perto dali. “E a guerra?”, perguntei.
“Isso é obra dos homens”, respondeu ele, com uma piscadela.”


“O fenômeno do Talibã começara bem perto de Khandahar, no verão de 1994, quando Omar, um veterano da guerra contra soviéticos, decidiu que o banditismo, o roubo e as violações, endêmicos na região naquela época tinham de acabar. Reuniu então um grupo de aldeões e atacou o acampamento do chefão local, que recentemente sequestrara e violentara uma jovem; o sujeito foi pendurado ao canhão de um tanque e enforcado. Rapidamente outros homens da região se juntaram ao grupo, e mais outros recrutas apareceram dentre os milhares de estudantes das escolas religiosas do Paquistão. Esses estudantes, muitas vezes refugiados afegãos ou filhos destes, receberam o nome de “talibãs”, que no idioma persa significa “os que procuram”. Passados dois anos do ataque surpresa de Omar em Khandahar, o Talibã já governava o país inteiro. Entretanto, esse sucesso impressionante não se devia apenas ao simples fato de o povo afegão já estar farto de guerras e banditismo. Omar e seu bando de vigilantes começaram sua campanha no momento em que os astros geopolíticos estavam perfeitamente alinhados a seu favor. Os generais paquistaneses consideraram os talibãs como seus legítimos representantes, e lhes enviaram especialistas e armas. Homens como Javed Parachar, da província da Fronteira noroeste, viram-nos como uma força contra o mal, e mandaram-lhes de suas escolas religiosas maciços reforços. Devotos comerciantes e príncipes da Arábia Saudita enviaram caixas de dinheiro, enquanto os Estados Unidos mantiveram-se quietos, distraídos pelos Bálcãs e receosos em relação aos assuntos internacionais de modo geral – e, de certa forma, felizes por ver o Afeganistão estabilizado, ainda que fosse por um bando de radicais linha-dura.”


“Quanto a Bin Laden, os fatos mais básicos eram bem conhecidos e tinham sido amplamente divulgados após os bombardeios contra as embaixadas, em agosto de 1998. Nascido na Arábia Saudita em 1957, filho de um devoto iemenita magnata da construção, Bin Laden viajara para o Paquistão no início dos anos 1980 para ajudar os afegãos a combater os soviéticos, e usara seus contatos no Golfo para levantar grandes somas de dinheiro vivo, que ele encaminhara para diversas facções. Perto do fim da guerra, decidira criar o próprio grupo a fim de reunir o pequeno número de belicosos militantes estrangeiros que lutavam ao lado dos afegãos e levar a luta para além das fronteiras daquele país. Decidira que esse grupo agiria como “Al-Qaeda” ou “base” ou “vanguarda” na língua árabe – para futuras operações e expansão. Bin Laden retornara depois à Arábia Saudita, onde não fizera nada digno de nota até Saddam Hussein invadir o Kuwait em 1990. Como súdito leal que era, oferecera-se para organizar uma legião de militantes árabes com o propósito de proteger a Arábia Saudita do ditador iraquiano. Sua proposta fora rejeitada, o que não o surpreendera, e logo em seguida ele deixara a terra natal e fora para o Sudão, onde passara os cinco anos seguintes experimentando de tudo, desde o financiamento de militantes islâmicos nos Bálcãs e no extremo oriente até a arboricultura e construção de estradas de rodagem.”


“Finalmente, começamos a compreender que a verdadeira força do círculo de Bin Laden – em termos intelectuais, é claro – era Ayman al-Zawahiri*, um pediatra egípcio que muito cedo se passara para a militância, e que fora preso e torturado em sua terra natal antes de partir para o Paquistão, no início dos anos 1980, para apoiar a guerra contra os soviéticos. Al-Zawahiri experimentara diretamente os rigores do ativismo militante, era um poderoso pensador e empregara de muitas maneiras o dinheiro e o indiscutível carisma de Bin Laden para desenvolver suas ambições pessoais e as fortunas do seu próprio grupo, a Jihad Islâmica egípcia. Embora Al-Zawahiri fosse frequentemente descrito como um simples representante de Bin Laden, logo ficou evidente para nós que seu papel era muito mais importante do que isso.
Em seguida, concentramos nossa atenção nos acontecimentos posteriores ao retorno de Bin Laden ao Afeganistão, em 1996. Mais uma vez percebemos que a versão oficial da carreira de Bin Laden fora sutilmente distorcida, se bem que de forma significativa. Descobrimos também que a relação dele com o Talibã era muito mais complicada do que se pensava. Em 1996, por exemplo, ele fora expulso do Sudão e convidado a voltar para o Afeganistão – não pelo Talibã, como tanto se disse, mas por três chefes guerreiros. Quando seus protetores foram derrotados, Bin Laden, usando seu dinheiro e seu carisma, conseguira convencer parcialmente os novos governantes do país de que ele não representava um risco, mas uma vantagem. Pelo que soubemos, porém, o Talibã permaneceu sempre cauteloso. Eles eram afegãos, e Bin Laden, um árabe, um forasteiro. Eles estavam interessados em livrar seu país da corrupção, e ele, em uma campanha para reforçar todo o mundo islâmico. Todo esse mal-estar tinha sido demonstrado da forma mais evidente apenas alguns meses antes, em setembro de 1998, quando o mula Omar, o líder do Talibã, deixara claro que os bombardeios às embaixadas norte-americanas na África Oriental, sobre os quais ele não fora consultado, haviam usurpado a sua própria autoridade. O Talibã, preocupado com a rejeição internacional acarretada pela concessão de abrigo a Bin Laden, decidiu que seria melhor o saudita “desaparecer”. Começaram a declarar, de forma bastante implausível, que não tinham a menor ideia do destino que ele tomara.”
*: Depois da morte de Bin Landen (destaque-se que este livro, escrito anos antes da captura dele, apontava o Paquistão como seu provável refúgio), Ayman al-Zawahiri assumiu a liderança da Al-Qaeda.


“Quando um repórter chega a uma cidade desconhecida, existem vários lugares aonde ele pode se dirigir para recolher histórias. Normalmente, não são os ministérios ou as embaixadas, mas os hospitais, os postos policiais e as escolas.”


“Saddam podia ser visto por toda a parte no Iraque. Dei-me conta de que totalitarismo significa exatamente o que parece querer dizer. O poder de Saddam dependia do medo, e esse medo dependia da ideia de não haver ninguém no país que pudesse estar fora do seu alcance pessoal, ou do alcance de seus comandados. Assim, seu controle era total. A rede de informantes por todo o território significava que ninguém poderia ter certeza de que o presidente não estivesse pessoalmente escutando suas palavras. Sem dúvida, Saddam estava constantemente vigiando. Em qualquer muro, em qualquer estrada, via-se a sua imagem, umas vezes sorrindo, outras sombrio, mas sempre vigiando.”


“Certamente, a história e a situação atual dos palestinos vivendo na Margem Ocidental e na Faixa de Gaza poderiam ter sido propositadamente designadas para criar os diversos elementos que levavam à frustração e à hostilidade. Pode não haver nenhuma conexão direta entre pobreza e militância, mas uma relação indireta existe: uma situação de pobreza gera o sentimento de injustiça, que torna muito mais provável o ativismo violento. Os palestinos dos territórios Ocupados estavam sujeitos a humilhações diárias, e tinham de conviver com a constante consciência de lhes ter sido negado muito do que consideravam legitimamente seu.  Sabiam que eram mal governados pelos próprios líderes e traídos seguidamente pela comunidade internacional, além de por outros árabes e muçulmanos. O padrão de vida muito mais elevado dos israelenses, bem ali ao lado – ou mesmo nas colônias, bem ali no meio –, era uma constante lembrança de como poderiam ter sido as coisas. E o que era pior, o processo de paz do início dos anos 1990 gerara expectativas que foram completamente frustradas. A vida, exceto para uma pequena elite, continuava sendo extremamente dura. E, para completar, não havia qualquer meio não-violento de protesto que fosse eficaz, quer contra os israelenses, quer contra os próprios líderes palestinos, ineficientes e venais.”


“Quanto mais eu aprendia sobre a guerra na Argélia, mais me convencia de que ela tinha uma lição extremamente importante sobre a natureza da militância islâmica como um todo. Na Argélia eu pude ver muitas coisas que já testemunhara no Paquistão, no Afeganistão, no Iraque e na Palestina, ou seja: como a religião podia atrair as pessoas simplesmente por ser útil a elas, de forma positiva ou negativa; como os sistemas baseados na fé podiam fornecer uma alternativa atraente quando outras ideologias eram consideradas um fracasso ou uma ameaça, ou ambas as coisas; como a propaganda funcionava melhor quando conectava-se a desconfianças e ressentimentos latentes que aguardavam  uma linguagem e um canal para se expressarem, principalmente quando muitos já tinham um forte sentimento de humilhação e de injustiça, ou de aspirações frustradas. Mas a Argélia também me ensinou algo novo. Enquanto eu viajava pelo país, ou melhor, pela estreita faixa habitada ao longo da costa norte, comecei a perceber toda a importância do meio-termo, do conjunto da opinião moderada, do imenso peso daquela parte da população que só desejava uma vida decente para si, seus amigos e familiares. Pois foi o apoio inicial que ela deu aos islamitas que, de certa forma, acarretou a guerra. E foi seu desgosto final pelos militantes que pôs fim à mesma.”


“Na Cabília, assim como no centro de Argel, os muros das moradias estavam cobertos de slogans políticos grafitados com spray. “Os que estão mortos não temem a morte”, dizia um.”


“O problema era que ninguém estava muito certo de quem – ou o quê – era o inimigo. Pouco se discutira, em nível mais elevado, sobre a Al-Qaeda antes do 11 de setembro ou durante o outono de 2001, e pouco havia para dar conteúdo, de modo sensato e não partidário, à discussão que se seguiu ao fim da campanha no Afeganistão. O resultado foi um vazio preenchido por análises baseadas em fontes insuficientes e parciais, e definido por posições ideológicas prévias. Enquanto estive no Paquistão e no Afeganistão, eu ignorava muito do que se falava na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos sobre a militância islâmica. Quando retornei, surpreendi-me ao perceber que aquilo que eu julgava fortemente ser uma ideia completamente equivocada sobre a natureza da Al-Qaeda se estabelecera como senso comum. A Al-Qaeda era considerada uma organização monolítica, muito ao estilo dos grupos terroristas tradicionais dos anos 1960 e 1970, com uma hierarquia definida, membros, quadros de funcionários, células e agentes por todo o mundo. Pior ainda, toda uma série de grupos espalhados pelo mundo islâmico, sem a menor relação com Bin Laden e cuja existência era quase desconhecida do Ocidente antes do 11 de setembro, era agora designada como Al-Qaeda ou filiais desta. Bin Laden era agora universalmente representado como um vilão à James Bond, sentado em uma caverna, diante de uma mesa de computador, orquestrando uma campanha mundial em prol da violência. De um modo mais generalizado, o terrorismo – ou pelo menos sua variação “muçulmana” – era frequentemente descrito como um ato de raiva irracional ou de ódio visceral contra a riqueza e a liberdade, integrando um plano para conquistar o mundo. Claramente, concluía-se que o importante não era a busca pelas “causas originais” do problema, e que aqueles que o fizessem estariam sendo “indulgentes”. Dizia-se que os homens-bomba eram loucos ou motivados por alguma disfunção sexual, e os tomadores de decisão aparentemente precisavam ter em mente que apenas uma ação resoluta e decidida deteria os terroristas, enquanto uma demonstração de fraqueza os encorajaria.
Esse pacote de ideias – o discurso “linha-dura” do antiterrorismo – dominou o debate, por uma grande variedade de razões. Em primeiro lugar, ele refletia as simpatias daqueles que formulavam as estratégias na Casa Branca e dos que os elegeram, repercutindo amplamente em uma cultura que enfatizava a ação e o esforço individuais, tanto na “sociedade” quanto no “ambiente”, como determinantes do comportamento, do sucesso, do fracasso e da história. Em segundo lugar, favoreciam-no a instituição da defesa e da indústria de segurança, que eram esmagadoramente conservadores nos Estados Unidos, na Europa e por todo o mundo. A natureza dos homens especializados em antiterrorismo e segurança, muitos dos quais são ex-soldados ou ex-policiais, leva coletivamente a um forte viés direitista em sua participação nas tomadas de decisão e nos debates públicos. Um terceiro motivo para o domínio do paradigma de direita foi a sua esmagadora popularidade entre governos desmoralizados de todo o mundo. Para sistemas de governo tais como o da Argélia, do Uzbequistão, das Filipinas e da Rússia, atribuir à Al-Qaeda – esse recém-descoberto grupo de bichos-papões internacionais – a responsabilidade por insurgências regionais há muito existentes era de extrema utilidade: desencadeava uma enxurrada de ajudas diplomáticas, militares e financeiras de Washington e ao mesmo tempo obscurecia o papel que a própria corrupção, nepotismo, repressão e administração incompetente haviam desempenhado no fomento à violência. Um quarto fator foi a ampla cumplicidade da mídia, tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos. Com poucas exceções, os jornalistas – fosse por ignorância, deferência ou preguiça – sentiam-se felizes em poderem acreditar em tudo que diziam os políticos e os “especialistas em segurança”. E estavam satisfeitos com o novo e brilhante rótulo para aquela ameaça que, muito pelo contrário, era extremamente obscura. Também estavam contentes por poderem atribuir à Al-Qaeda a culpa por qualquer ataque, em qualquer parte do mundo. Um derradeiro motivo para a prevalência do discurso direitista foi a fragilidade da resposta da esquerda, que ia desde um antiamericanismo fácil até o uso de teorias liberais amplas, carentes de rigor e clareza. Além disso, eram poucas as vozes na esquerda, ou mesmo no centro, que podiam falar com tanta autoridade e certeza quanto os seus adversários.
O resultado daquele distorcido debate sobre a natureza da ameaça que, aparentemente, surgira de repente em setembro de 2001 foi imediatamente perceptível em termos de políticas. A principal investida da “Guerra Contra o Terrorismo” foi, naturalmente, determinada pela Casa Branca, e se baseava quase exclusivamente nas tradicionais táticas “duras” do antiterrorismo. Os Estados Unidos buscavam transformar-se em uma fortaleza, enquanto fora dali agentes e tropas da inteligência se organizavam, com todo magnífico hardware, para saírem à caça dos maus elementos e os eliminarem. Fizeram-se promessas hipócritas de se incentivar a democracia e o crescimento econômico no Oriente Médio, mas quase não foram discutidas as complexas raízes do terrorismo islâmico, a diversidade do mundo muçulmano, a importância de se chegar ao tão crucial meio-termo e de se contrapor à ideologia que alimentava o apoio aos militantes. As lições de décadas de guerra contra rebeliões, como também as dos recentes acontecimentos na Argélia, no Afeganistão, no conflito Israel-Palestina e em outros lugares, foram esquecidas, ou ignoradas. A força, de um modo geral, deveria ser combatida com força.
Para lançar mais lenha na fogueira – ou, quase literalmente, acrescentando insulto à injúria –, a opinião pública no mundo islâmico foi seguidamente ofendida, e de uma forma que deve ter deliciado Bin Laden. Uma sequência de gafes do presidente Bush – suas insistentes referências à “cruzada” contra o terrorismo sendo apenas uma entre muitas – deixaram ultrajadas plateias já extremamente sensíveis. Regimes opressores foram cortejados e apoiados. A “limpidez moral” – o velho termo da Guerra Fria que significava não estar comprometido com “valores liberais superados” – foi seguida diretamente por uma série de horríveis abusos contra os direitos humanos nas novas prisões da Baía de Guantánamo e do Afeganistão. Isso manchou o nome dos Estados Unidos e deu credibilidade a uma velha acusação, tão difundida no mundo islâmico, do uso de dois pesos e duas medidas. Uma vez que o tema mais evidente, em anos de conversa que tive com militantes islâmicos, era a ideia de que eles estavam sendo atacados, o impacto cumulativo desses vários erros foi, como se pode imaginar, catastrófico. O vasto apoio que os Estados unidos desfrutaram no período posterior ao 11 de Setembro, até mesmo no mundo islâmico, rapidamente se transformou em – ou voltou a ser – hostilidade profunda. E o pior ainda estava por vir.
As implicações subjacentes à estratégia antiterrorista adotada pela Casa Branca – e, portanto, por grande parte dos aliados dos Estados Unidos depois dos ataques de 11 de Setembro – foram muito influenciadas pelo legado da Guerra Fria. Naquela ocasião os conservadores americanos e europeus também haviam atribuído o terrorismo ou a violência rebelde por todo mundo a sombrias redes dirigidas por um comitê central. Além disso, ao negarem que as insatisfações socioeconômicas tais como a pobreza ou a repressão fossem relevantes para a acolhida das ideologias de esquerda, sugeriam que o apoio estatal ao terrorismo é que era, em vez disso, o elemento importante. Uma vez que a administração de Bush tinha tantos membros com histórico de envolvimento na disputa com os soviéticos – como o próprio Rumsfeld –, essa continuidade era previsível. Não eram apenas os soldados e os repórteres em Bagram que estavam reencenando antigas guerras em suas mentes.
Em situação diversa, isso poderia não ter sido um grande problema. Na sobrecarregada atmosfera de 2002, porém, as consequências foram muito graves. A ênfase nos Estados que apoiavam o terrorismo, em vez de em suas causas originárias mais gerais, levou os tomadores de decisão norte-americanos a uma conclusão. Nas mentes de muitos estrategistas veteranos e influentes, a maior ameaça ao “mundo civilizado” não vinha de uma amorfa e confusa constelação de grupos radicais islâmicos independentes que articulavam antigas insatisfações sociais, culturais, políticas e econômicas em linguagem religiosa. Vinha, sim, de uma única nação: o Iraque.”


“Como a maioria dos curdos, ele era sunita, da escola de Shafai. Explicou-me que, quase dois mil anos antes, o Islã sunita fora dividido por autoridades religiosas dos impérios árabes islâmicos em quatro principais correntes, todas diferindo entre si na prática e na teoria. Essas correntes, cujos nomes vinham dos seus juristas mais eminentes, ainda determinavam a prática em grande parte do mundo islâmico. A mais rigorosa e conservadora, a corrente Hambali, predominava na Arábia Saudita e no Golfo, e era mais bem representada por movimentos como o wahabismo. A escola menos conservadora, a hanafista, abrangia o Iraque, a Turquia e a maior parte do sul e do sudoeste da Ásia. Os malikis encontravam-se no Magreb e na África subsaariana. Segundo Ismael Mohammed, os shafais eram conhecidos por sua moderação, mas, embora fossem fortes no Extremo Oriente, eram minoria no Oriente Médio.”


“A pergunta que todos faziam era: Como se pôde chegar a isso? Quais foram as razões que levaram, tão depressa, à insurreição armada no Iraque (pós-ocupação americana) em toda parte? Não era fácil responder.
Algumas razões para a violência eram óbvias. Foram cometidos erros cruciais pela Autoridade Provisória da Coalizão, e também por importantes figuras políticas de Washington, que transformaram um trabalho já difícil em algo muito, muito mais difícil. Imediatamente após a queda de Bagdá, a incapacidade das tropas americanas de deter a pilhagem na capital chocara muita gente. Depois, houvera uma série de decisões radicais – tais como a desmobilização total do Exército iraquiano e um esforço agressivo para excluir do Partido Baath todos os membros veteranos e muitos outros ocupando postos médios da administração civil – que criaram um vasto acúmulo de homens desempregados, humilhados e enraivecidos, grande parte dos quais pertenciam à minoria muçulmana sunita do país. Além disso, graças aos fracassos da inteligência, pelo menos tão graves quanto os que levaram à conclusão de que Saddam tinha armas de destruição em massa, não houvera quase nenhuma avaliação realista das maciças necessidades de infraestrutura do Iraque pós-Saddam, e por isso o ritmo da reconstrução se tornara espantosamente lento. E à medida que a situação da segurança ia se deteriorando, esse processo ficava ainda mais lento, provocando novas ondas de ressentimento. Dessa forma, mais recrutas se apresentavam aos insurgentes. Tampouco a mídia local de língua árabe facilitou a tarefa da Autoridade da Coalizão, pois, embora muitas vezes contestasse a versão dos acontecimentos de forma útil, frequentemente permitia que sua profunda oposição à guerra colorisse as reportagens, muitas vezes sensacionalistas porém amplamente respeitadas.”


“Um problema era a escassez de informação verdadeira. Era difícil, mesmo para os jornalistas morando em casas alugadas na cidade, descobrir o que estava se passando no outro lado de Bagdá. Era quase impossível para qualquer um na Zona Verde* obter informações confiáveis sobre o que estava acontecendo a apenas 200 quilômetros de distância. Comunicações insuficientes significavam que os administradores de Bagdá simplesmente não sabiam o que estava ocorrendo nas outras partes do Iraque. Os resultados ficaram mais evidentes nas apelidadas “Tolices das Cinco e Meia” – conferências de imprensa diárias em estilo Orwell realizadas na Zona Verde por veteranos porta-vozes da Coalizão. Em certa ocasião, apesar de um helicóptero ter sido abatido perto de Faluja, dos conflitos em Narjaf, Karbala e Cidade de Sadr, de um ataque com morteiros a Bagdá naquela manhã – que literalmente me fez pular da cama – e de todas as estradas do país aparentemente estarem perigosas demais para se trafegar, o chefe militar de imprensa se referiu a “um ligeiro aumento de hostilidades”. Ao lhe pressionarem sobre o fato de que as forças recrutadas recentemente pelo governo iraquiano tinham desertado em massa, tendo alguns homens se juntado aos rebeldes, ele admitiu muito contra a vontade que “o progresso que esperávamos fazer com a segurança não ocorreu como prevíamos”, caindo em seguida nos clichês de sempre: “As tropas americanas estão lutando e morrendo para trazer a democracia para as jovens mulheres e crianças iraquianas”. O ruído de helicópteros voando baixo era aparentemente “o som da liberdade”. Regularmente nos davam “volumosa informação” sobre os CACs (os combatentes anti-Coalizão) mortos em “vigorosas operações de combate”, enquanto o número de civis mortos era impossível de se obter.”
*: Área reservada de cerca de dez quilômetros quadrados onde as tropas (e o comando da Autoridade da Coalizão) se concentravam durante a ocupação; é a atual sede do governo iraquiano.


“O que eu sabia era que, não importa por onde eu tenha viajado nos anos que se seguiram aos ataques do 11 de Setembro – desde a Indonésia até o Magreb, passando pela Malásia, a Tailândia, a Índia (cuja população de 140 milhões de muçulmanos permanecia decididamente moderada), o Paquistão, o Afeganistão, o Qatar, o Iraque, a Jordânia, a Síria, Israel-Palestina, Líbano e Turquia –, jamais me deparei com qualquer hostilidade direta, pessoal. Mesmo no Iraque, eu me sentira sempre confiante de que a grande maioria da população não me faria mal. A verdade era que, apesar dos terríveis abusos cometidos em Abu Ghraib e em Guantánamo, apesar dos constantes desapontamentos da vida cotidiana, apesar das mortes de 30 mil civis no Iraque, apesar da frustração de tantas aspirações e esperanças, apesar de todos os esforços de homens como Bin Laden, Al-Zawahiri e Al-Zarqawi, apesar dos governantes incompetentes, corruptos, dinásticos e esclerosados ainda agarrados ao poder por toda parte, apesar da retórica agressiva e beligerante partindo de todos os lados, apesar da maciça transmissão pela mídia de uma mensagem de ódio, preconceito e violência – apesar disso tudo, o povo comum do mundo islâmico, aqueles apanhados em meio ao fogo cruzado, aqueles cujas vozes foram tantas vezes sufocadas pelos gritos e os tiros, todos aqueles moderados não foram vencidos pelos radicais. O centro resistiu. Sim, alguns se enfureceram. Sim, outros ficaram ressentidos. Sim, alguns se passaram para a militância, e não há dúvida de que muitos mais o fariam nos anos seguintes. Mas quando Bin Laden disse “o despertar já começou”, ele acreditava que seus espetaculares atos de violência iriam desencadear uma ampla onda de apoio por todo mundo islâmico. E ele estava errado.”


“O nascente otimismo que eu vinha sentido desapareceu no mesmo instante em que soube das explosões (em julho de 2005 três bombas explodiram no metrô de Londres e uma em um ônibus, matando 52 pessoas e deixando mais de 700 feridas). Senti também profunda tristeza. E, é claro, me senti com muita raiva. Fiquei furioso, diante da ridícula declaração, seguidamente repetida tanto pelos políticos quanto por “líderes comunitários”, de que “o Islã é uma religião de paz”. De fato, como aprendi in loco, qualquer crença é aquilo que os fieis fazem dela, e o Islã dispunha de recursos que poderiam ser utilizados tanto para justificar a estarrecedora brutalidade quanto para encorajar a misericórdia e a tolerância. (...)
Descobriu-se que os autores daqueles ataques eram quatro jovens, todos cidadãos britânicos – três nascidos no Reino Unido de pais paquistaneses e o quarto nascido na Jamaica e convertido ao Islã mais recentemente. Não parecia haver um mentor intelectual que os houvesse recrutado, dirigido sua célula e logo em seguida fugido do país, e tampouco existia evidência de qualquer conexão com Osama bin Laden ou alguém mais próximo a ele. Era um dos primeiros exemplos de um grupo de cidadãos nascidos em um país ocidental que, em nome do Islã, lançava um ataque à própria terra natal. Parece que a célula era inteiramente “de casa”, confirmando minha teoria de que a ideologia radical que se difundira desde fins dos anos 1990 não precisava de organizações, campos de treinamento ou líderes para levar as pessoas à ação, ela viria de dentro do país. Eu sabia, pela minha experiência no Iraque e em outros lugares, que a lógica do terrorismo significava que bastava uma leve alteração na radicalização geral para se criar um número suficiente de pessoas dispostas a cometer atos violentos o bastante para causar sérios danos. Essa alteração, como eu e outros tínhamos previstos, acontecera.”


“Pensei mais uma vez em todos os militantes que conheci ou entrevistei: no Talibã, nas pessoas que conheci no Paquistão, em Didar – o homem-bomba de Suleimaniyah que gostava de futebol –, em Abu Mujahed em Bagdá, nos milicianos xiitas de Najaf, nos homens das prisões de Caxemira e de Kandahar, e em todos os outros. Não havia nenhuma regra determinando por que os diversos argumentos da ideologia radical “islâmica” funcionaram com eles. O caminho que cada um seguira era diferente. Uns tinham buscado uma solução para o que consideravam injustiças sociais e econômicas; outros queriam uma vingança contra uma humilhação ou uma ofensa real ou imaginária; outros simplesmente queriam amizade, ou respeito próprio, ou aventura. Outros queriam combater o que viam como a ocupação de sua terra natal. Alguns claramente tinham sido homens brutais, endurecidos pelo ódio e enfurecidos desde o início, pessoas que apenas gostavam do sentimento de poder proporcionado pelo prejuízo causado aos outros. Outros queriam apenas demonstrar sua fé da maneira mais extrema possível. Alguns compreendiam que os seus atos eram parte de um programa político cuidadosamente articulado. A maioria acreditava que seriam elogiados como heróis em suas comunidades. Poucos não se importavam com o que poderiam pensar seus semelhantes. Por um longo tempo tentei descobrir alguma espécie de teoria geral que desvendasse o segredo da “militância islâmica”, e subitamente me dei conta de que era impossível fazer isso. Não havia uma resposta única. Na verdade, o ponto era exatamente não haver uma resposta única.
E me dei conta de que não só não havia nenhuma teoria geral que pudesse explicar o “mundo islâmico”, e que qualquer busca nesse sentido seria não apenas fútil, mas de fato contraproducente. Seria fazer contornos em volta das pessoas, designá-las como pertencendo a este ou aquele bloco, decidindo que em vez de alto, baixo, gordo, magro, velho, jovem, alfabetizado, analfabeto, homem, mulher, sem filhos, com filhos, empregado, desempregado, saudável, doente, todos eram muçulmanos ou não-muçulmanos, e que essa distinção, quase inteiramente arbitrária, era como as pessoas podiam ser divididas e subdivididas e de novo divididas, e as comunidades definidas.
Por suas próprias naturezas, as únicas coisas que poderiam definir o “radicalismo muçulmano violento” eram o “Islã” e a “violência”. A definição era um argumento circular que inevitavelmente levaria à simples conclusão de que as duas coisas estão intimamente ligadas. De fato, a violência com a qual nos defrontávamos era um fenômeno contemporâneo muito complicado, com raízes em desenvolvimentos culturais, políticos, econômicos e na interação entre indivíduos, grupos, países e sociedades por todo o mundo há séculos. E, como estava projetada para fazer, a violência nos confrontava com uma escolha de extrema importância. No período seguinte aos bombardeios, como também na esteira das execuções e dos assassinatos pela honra ou mostrados em vídeo, poderíamos destacar a divisão ou o seu oposto. E se os bombardeios em Londres me ensinaram algo foi que reunir as pessoas – sejam centenas de milhões em imensas extensões do planeta ou apenas 50 delas em um vagão de metrô – e demarcá-las, rotulá-las e designá-las simplesmente como isto ou aquilo, como inimigos ou amigos, ocidentais ou orientais, muçulmanos ou não-muçulmanos, crentes ou descrentes é uma coisa que ninguém jamais deve fazer. E se as minhas viagens nos últimos anos me ensinaram algo foi que dar ênfase às diferenças quando há tanta coisa que une, enfatizar as divisões quando tantas coisas são as mesmas, enfatizar as distâncias quando há tanto que cada vez mais se aproxima não é apenas perigoso: é errado.”

Um comentário:

  1. Muito bom o livro, destaco os trechos:

    Ele serviu-se de um pouco mais de pudim. “Comer bem é um dom de Deus”, disse sorrindo, e fez um sinal para o soldado com a calda. Dei um pulo quando uma bomba indiana explodiu perto dali. “E a guerra?”, perguntei. “Isso é obra dos homens”, respondeu ele, com uma piscadela.”

    Mas quando Bin Laden disse “o despertar já começou”, ele acreditava que seus espetaculares atos de violência iriam desencadear uma ampla onda de apoio por todo mundo islâmico. E ele estava errado.

    E se as minhas viagens nos últimos anos me ensinaram algo foi que dar ênfase às diferenças quando há tanta coisa que une, enfatizar as divisões quando tantas coisas são as mesmas, enfatizar as distâncias quando há tanto que cada vez mais se aproxima não é apenas perigoso: é errado.

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