Subtítulo: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos
Editora: Cosac Naify
ISBN: 978-85-7503-756-0
Tradução: Francis Petra Janssen
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 656
Sinopse: Grande clássico da historiografia ocidental, publicado em 1919, este livro é a obra-prima de Johan Huizinga (1872-1945), sendo publicado em mais de vinte línguas. Pela primeira vez traduzido para o português a partir do original holandês, esta edição é resultado de pesquisas que reestabeleceram o texto original.
Raras vezes um período histórico foi apresentado de maneira tão viva e colorida. Aqui, a Idade Média é vista na plenitude de seus contrastes, distante do lugar-comum segundo o qual ela não passaria de uma transição, longa e letárgica, entre o brilho da Antiguidade e do Renascimento. O autor mostra as formas de vida e de pensamento medievais, tal como se expressaram na cultura, na arte, na religião e no pensamento, e também nos modos de expressão da felicidade, do sofrimento, do amor e do medo da morte no dia-a-dia das pessoas. Huizinga utilizou métodos e fontes históricas pouco usuais em sua época.
Combinando a crença no poder revelador da obra de arte e um olhar muito semelhante ao de um antropólogo, ele se tornou um pioneiro do que mais tarde se denominou história das mentalidades. Com 320 ilustrações, o volume inclui ainda uma entrevista com Jacques Le Goff e um ensaio biográfico de Peter Burke.
“Mais raros que procissões e execuções eram os sermões dos pregadores itinerantes que vinham vez por outra chocar o povo com suas palavras. Nós, leitores de jornal, mal conseguimos imaginar o efeito violento da palavra sobre espíritos rústicos e ignorantes. (...)
Onde (o santo dominicano Vicente) Ferrer prega, é preciso uma estrutura de madeira para proteger a ele e a seus seguidores da pressão dos muitos que gostariam de beijar suas mãos ou suas vestes. A rotina de trabalho é interrompida quando ele faz seus sermões. Era raro que não levasse os ouvintes ao pranto; e, quando falava do Juízo Final, das penas infernais ou da Paixão de Cristo, tanto Ferrer como os ouvintes choravam tão copiosamente que ele era obrigado a se calar por um bom tempo, até que o pranto cessasse. Malfeitores se jogavam ao chão perante os presentes e confessavam em lágrimas seus grandes pecados.12 Em 1485, quando o famoso Olivier Maillard fez os sermões da Quaresma em Orléans, tanta gente subiu aos telhados das casas que foram necessários 64 dias para os reparos.13
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1.6 - O cronista Enguerrand de Monstrelet |
Temos aqui o mesmo estado de ânimo dos revivals anglo-americanos e do Exército de Salvação, mas de forma desmesurada e muito mais pública. Não é o caso de pensar que, na descrição do impacto que provocava Ferrer, seu biógrafo tenha introduzido algum exagero piedoso. O sóbrio e seco Monstrelet [1.6] retrata quase da mesma maneira o efeito que, em 1428, um certo frei Tomás, fazendo-se passar por carmelita e mais tarde desmascarado como impostor, causou com seus sermões no norte da França e em Flandres. Também ele foi bem recebido pelos magistrados, enquanto os nobres seguravam as rédeas de sua mula; também foram muitos — mesmo alguns senhores cujo nome Monstrelet menciona — os que, a fim de segui-lo aonde fosse, deixavam para trás casa e família. Os cidadãos mais distintos elevaram para ele um trono e o adornaram com os tapetes mais preciosos que podiam pagar.
Além da Paixão de Cristo e do Juízo Final, eram sobretudo os ataques dos pregadores populares contra o luxo e a vaidade que comoviam profundamente as pessoas. O povo, diz Monstrelet, era grato e devotado a frei Tomás por sua recusa da pompa e da ostentação, e particularmente pela censura que lançava sobre a nobreza e o clero. Ele costumava incitar os meninos (com promessas de indulgência, alega Monstrelet) a provocar as damas que se arriscavam a se misturar a seu público com arranjos de cabeça altos e pontudos, gritando: “au hennin, au hennin!”.* As mulheres perderam a coragem de usar hennins e passaram a andar de touca à maneira dos beguinos. “Mas, seguindo o exemplo do caracol”, diz o cronista cheio de simpatia, “que recolhe as antenas quando alguém se aproxima e depois, quando não ouve mais nada, as põe para fora, assim também fizeram essas damas. Pois tão logo o dito pregador deixou o país, tornaram às antigas maneiras e esqueceram a sua doutrinação, e aos poucos retomaram suas velhas pompas, tão grandiosamente ou ainda mais do que antes” [Mais à l’example du lymeçon lequel quand on passe près de luy retrait ses cornes par dedens et quand il ne ot plus riens les reboute dehors, ainsy firent ycelles. Car en assez brief terme après que ledit prescheur se fust départy du pays, elles mesmes recomencèrent comme devant et oublièrent sa doctrine, et reprinrent petit à petit leur viel estat, tel ou plus grant qu’elles avoient accoustumé de porter].14
Tanto frei Ricardo como frei Tomás acendiam a fogueira das vaidades, assim como aconteceria em Florença, sessenta anos depois, por vontade de Savonarola, em proporções bem maiores e com enorme prejuízo para a arte. Em Paris e Artois, em 1428 e 1429, queimavam-se tão somente cartas, tabuleiros de jogos, dados, enfeites de cabelo e joias, que homens e mulheres traziam de livre e espontânea vontade. Na França e na Itália do século XV, essas piras eram um elemento frequente nos tumultos causados pelos sermões de pregadores.15 Eram a forma cerimonial na qual se fixava a aversão contrita das vaidades e prazeres; eram a estilização de uma emoção intensa em um ato social e solene, nesses tempos em que tudo tende à estilização formal.
Devemos tentar imaginar essa suscetibilidade do espírito, essa propensão às lágrimas e às reviravoltas espirituais, essa sensibilidade, se quisermos captar o colorido e a veemência da vida de então.”
12. “Vita auct. Petro Ranzano O. P.” [1455], Acta Sanctorum Aprilis, v. 1, pp. 494 ss.
13. Jacques Soyer, “Notes pour servir à l’histoire littéraire: du succès de la prédication de frère Olivier Maillart à Orléans en 1485”, em Bulletin de la Société Archéologique et Historique de l’Orléanais, v. 18, 1919, citado em Revue Historique, v. 131, p. 351.
* Penteado cônico, sobre o qual se jogava um véu. (n. t.)
14. Enguerrand de Monstrelet, Chroniques (Paris: Société de l’Histoire de France, 1857-63), v. 4, pp. 302-6.
15. Wadding, Annales Minorum, v. 10, p. 72. Karl Hefele, Der heilige Bernhardin von Siena und die franziskanische Wanderpredigt in Italien (Freiburg: Herder, 1912), pp. 47 e 80.
“A essa época, os mecanismos de governo e administração do Estado já haviam assumido formas complexas, mas no espírito popular a política ainda se materializa numas poucas figuras, simples e fixas. As ideias políticas vigentes eram aquelas da canção popular e do romance de cavalaria. Os reis da época são reduzidos, por assim dizer, a um certo número de tipos, cada qual mais ou menos correspondente a um tema das canções ou das histórias de aventura: o príncipe nobre e justo, o príncipe enganado por conselhos maldosos, o príncipe vingador da honra de sua linhagem, o príncipe amparado no infortúnio pela fidelidade de seus servos. Os súditos do fim da Idade Média, pagando impostos elevados mas sem direito de participar das decisões sobre seu uso, desconfiam sempre que seu dinheiro será desperdiçado e não servirá ao bem comum do país. Essa desconfiança em relação à administração pública se traduz em uma ideia simplificada: o rei está cercado de conselheiros ambiciosos e astutos, ou o luxo e a opulência da corte real são a causa dos males do país. Desse modo, as questões políticas para o povo são reduzidas a casos típicos de contos de fadas. Filipe, o Bom, sabia em que língua falar ao povo. Em 1456, durante as festividades que promoveu em Haia, mandou expor num quarto ao lado do Salão dos Cavaleiros um requintado serviço de louça no valor de 30 mil marcos de prata, a fim de impressionar os holandeses e frísios que talvez suspeitassem de sua falta de fundos para conquistar o bispado de Utrecht. Todos são convidados a admirar. Além disso, foram trazidos de Lille dois baús de dinheiro, com 200 mil leões de ouro.22 Quem quisesse, que tentasse levantá-los — seria em vão. Pode-se imaginar uma mistura mais pedagógica de contas públicas com diversão de quermesse?
A vida e os negócios dos soberanos ainda possuíam um elemento fantástico que nos faz lembrar do califa de As mil e uma noites. Em meio a negociações políticas friamente calculadas, agem por vezes com uma impetuosidade temerária que, por capricho pessoal, põe em perigo suas vidas e seus esforços. Eduardo III arrisca a si próprio, ao príncipe de Gales e aos interesses de seu país para atacar uma frota mercante espanhola, como retaliação a atos de pirataria marítima.23 Filipe, o Bom, se empenha em ver um de seus arqueiros casado com a filha de um rico cervejeiro de Lille. Quando o pai não consente e leva o caso ao Parlamento de Paris, o duque, tomado de ira, interrompe sem mais nem menos os importantes negócios de Estado que o retinham na Holanda e empreende uma perigosa viagem marítima de Rotterdam a Sluis, pouco antes da Páscoa, para que sua vontade fosse satisfeita.24 Numa outra ocasião, furioso por causa de uma briga com seu filho, saiu cavalgando de Bruxelas como um menino fugindo da escola e acabou passando a noite perdido na floresta. Quando finalmente retorna, cabe ao cavaleiro Philippe Pot a delicada tarefa de fazê-lo retomar o juízo. O hábil cortesão encontra as palavras certas: “Bom dia, meu senhor, bom dia, o que é isso? O senhor é agora o rei Artur ou o cavaleiro Lancelote?” [Bonjour monseigneur, bonjour, qu’est cecy? Faites-vous du roy Artus maintenant ou de messire Lancelot?].25
Para nós, parece o comportamento típico de um califa quando o mesmo duque, tendo sido instruído por seus médicos a raspar a cabeça, obriga todos os nobres a fazerem o mesmo e ordena a Peter van Hagenbach que corte os cabelos dos refratários.26 Ou quando o jovem rei de França, Carlos vi, sai disfarçado com um amigo, ambos montados num só cavalo, mistura-se à multidão para assistir à chegada de sua noiva, Isabel da Baviera, e acaba espancado pelos guardas.27 Um poeta do século XV censura os príncipes que elevam o bobo da corte ou o menestrel à condição de conselheiro ou ministro, como foi o caso de Coquinet, o bufão da corte da Borgonha.28
A política ainda não está completamente encerrada nos limites da burocracia e do protocolo: num piscar de olhos, o príncipe pode se livrar desses limites e tomar outro rumo. Assim, os soberanos do século XV vão repetidamente buscar conselho em assuntos de governo junto a visionários ascéticos e pregadores populares. Dionísio Cartuxo ou Vicente Ferrer faziam as vezes de conselheiros políticos; o espalhafatoso Olivier Maillard, pregador francês de Bruges, esteve envolvido nas negociações mais sigilosas entre cortes reais.29 Desse modo, um elemento de tensão religiosa mantém-se vivo nas mais altas esferas da política.
No final do século XIV e no início do século XV, ao contemplarem o grande teatro dos negócios e aventuras dos soberanos, os espíritos, mais do que nunca, deviam estar tomados pela ideia de que ali se encenavam, numa sangrenta atmosfera romântica, apenas as mais terríveis tragédias, cheias de quedas emocionantes do alto da majestade e da glória. Em setembro de 1399, o Parlamento inglês se reuniu em Westminster para ouvir que o rei Ricardo II, derrotado e aprisionado por seu sobrinho de Lancaster, renunciara à coroa; nesse mesmo mês e ano, os eleitores alemães já estavam reunidos em Mainz para depor o seu rei, Venceslau de Luxemburgo — tão instável de espírito, tão incapaz de governar e tão extravagante de caráter quanto seu cunhado inglês, mas com um fim menos trágico. De fato, Venceslau permaneceu rei da Boêmia por muitos anos, ao passo que à queda de Ricardo seguiu-se a sua misteriosa morte na prisão, o que fez pensar no assassinato de seu bisavô Eduardo II, setenta anos antes. A coroa não era, afinal, uma triste possessão carregada de perigos? No terceiro grande reino da cristandade, um louco, Carlos VI, ocupa o trono, e o país logo será dilacerado por selvagens disputas partidárias. Em 1407, a rivalidade entre as casas de Orléans e Borgonha irrompeu em luta aberta: Luís de Orléans, irmão do rei, é morto por mercenários contratados por seu primo João Sem Medo, duque da Borgonha. [1.10] Doze anos mais tarde, a vingança: em 1419, João Sem Medo é assassinado traiçoeiramente durante um encontro solene na ponte de Montereau. [1.11] Os dois assassinatos reais, com sua infindável sequela de vinganças e combates, conferiram a um século de história francesa um tom geral de ódio sombrio. O espírito popular vê o infortúnio da França à luz desse grande tema dramático; não concebe ainda causas que não sejam de caráter pessoal e passional.
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1.10 - Retrato de João sem Medo, possivelmente do pintor originário de Gelderland, Jan van Maelweel ou Jan Malouel |
1.11 - João sem Medo é assassinado na ponte de Montereau. Miniatura da crônica de Monstrelet, Países Baixos do Sul, final do século XV |
Não bastasse isso, o perigo turco se fazia cada vez mais próximo e ameaçador. Em 1396, eles haviam destruído na Batalha de Nicópolis o maravilhoso exército de cavaleiros franceses que avançara audaciosamente sob o comando do mesmo João da Borgonha, que era então conde de Nevers. Recorde-se, ainda, que a cristandade andava dividida pelo Cisma, que a essa altura já durava um quarto de século: dois papas autoproclamados, cada qual apoiado fervorosamente por uma parte dos países do Ocidente. Mais tarde, em 1409, quando o Concílio de Pisa falhou na tentativa de restituir unidade à Igreja, seriam três a lutar pelo poder papal. “Le Pappe de la Lune”: assim chamavam, na França, o obstinado aragonês Pedro de la Luna, que sob o nome de Bento XIII vivia em Avignon. Como não terá soado delirante essa alcunha, “Le Pappe de la Lune”, aos ouvidos do povo simples!
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26 - 1.12 - A roda da fortuna no manuscrito de Christine de Pisan, Epistre d'Othéa à Hector |
Durante aqueles séculos, vagavam pelas cortes principescas muitos reis destronados, na maioria das vezes de parcos recursos, mas cheios de planos grandiosos, envoltos no brilho do Oriente maravilhoso de onde vinham — Armênia, Chipre e logo Constantinopla —, cada qual uma figura saída da conhecida cena da Roda da Fortuna, em que os reis caem por terra com seus cetros e tronos. [1.12] René d’Anjou não pertencia a esse grupo, embora fosse também ele um rei sem coroa. Estava em posição segura, com suas preciosas possessões em Anjou e na Provença. E, todavia, ninguém personifica a incerteza e a inconstância do destino real melhor do que esse príncipe da família real francesa, que sempre deixou passar as melhores oportunidades, que ambicionou as coroas da Hungria, da Sicília e de Jerusalém e que não obteve nada senão derrotas, fugas perigosas e longas prisões. O rei-poeta sem trono, que se divertia com poemas pastorais e miniaturas, devia ser de uma frivolidade profunda para que o destino não a tenha curado. Viu morrer quase todos os filhos, e a filha que lhe restou teve um destino que superou as trevas de sua própria fortuna. Passional, cheia de espírito e de ambição, Margarida de Anjou casou-se aos dezesseis anos de idade com o rei da Inglaterra, Henrique VI, um tolo. A corte inglesa era um inferno de ódios. Em nenhum lugar como na Inglaterra os costumes políticos eram tão eivados de suspeitas contra os parentes do rei, acusações contra os poderosos servos da coroa, assassinatos secretos ou judiciais — perpetrados como medida de segurança ou por partidarismo. Margarida vivia nesse clima de medo e perseguição havia muito tempo, quando a querela entre Lancaster, a casa de seu marido, e York, aquela de seus numerosos e turbulentos primos, irrompeu em luta aberta e sangrenta. Margarida perdeu a coroa e as posses. Os vaivéns da Guerra das Rosas [1455-85] fizeram-na conhecer os perigos mais horríveis e a miséria mais amarga. Finalmente a salvo na corte da Borgonha, contou em primeira mão a Chastellain, cronista da corte, sua história comovente de adversidades e peregrinações: como ela e o filho pequeno tiveram de se entregar à piedade de um ladrão; como ela, querendo fazer uma oferenda numa missa, tivera de pedir uma moeda a um arqueiro escocês, “que, meio que a contragosto, tirou um ceitil da bolsa e o emprestou a ela” [qui demy à dur et à regret luy tira un gros d’Escosse de sa bourse et le luy presta]. O bom cronista, comovido com tanto sofrimento, dedicou-lhe Le Temple de Bocace [O templo de Boccaccio], “um pequeno tratado sobre a fortuna, baseado na sua inconstância e natureza enganosa” [un petit traité de fortune, prenant pied sur son inconstance et déceveuse nature];30 [1.13] seguindo as fórmulas da época, ele acreditava não haver maneira melhor de consolar a atormentada filha do rei do que fazendo desfilar diante dela uma sombria galeria de infortúnios reais. Nenhum dos dois tinha como saber que o pior ainda estava por vir: em Tewkesbury, no ano de 1471, os Lancaster foram derrotados definitivamente; o único filho de Margarida foi morto na batalha ou assassinado logo depois, e seu marido foi morto em segredo; ela mesma passaria cinco anos na Torre de Londres antes de ser vendida por Eduardo VI a Luís XI, de quem se viu devedora e a quem teve de deixar toda a herança do pai, o rei René.”
22. Georges Chastellain, Œuvres (Bruxelas, 1863-6), v. 3, p. 92
23. Jean Froissart, Chroniques (Paris: Société de l’Histoire de France, 1869-99), v. 4, pp. 89-93.
24. Chastellain, op. cit., v. 3, pp. 85 ss.
25. Id., ibid., v. 3, p. 279.
26. Olivier de la Marche, Mémoires (Paris: Société de l’Histoire de France, 1883-8), v. 2, p. 421.
27. Jean Juvenal des Ursins, Chronique [1412], em Nouvelle collection des mémoires, v. 2, p. 379.
28. Martin le Franc, Le Champion des dames, citado em G. Doutrepont, La Littérature française à la cour des ducs de Bourgogne (Paris: Champion, 1909), p. 304.
29. Acta Sanctorum, v. 1, p. 496. Augustin Renaudet, Préréforme et humanisme à Paris, 1494-1517 (Paris: Champion, 1916), p. 163.
30. Chastellain, op. cit., v. 4, pp. 300 ss., v. 7, p. 73. Ver Thomas Basin, De rebus gestis Caroli VII et Lud. XI historiarum libri XII (Paris: Société de l’Histoire de France, 1855-9), v. 1, p. 158.
“A paixão cega com que as pessoas seguiam o seu partido, o seu senhor e os seus próprios interesses não deixava de exprimir também aquele senso pétreo e inflexível de justiça, que era próprio do homem medieval, aquela certeza inquebrantável de que cada ato exige sua máxima punição. O senso de justiça ainda era três quartos pagão; consistia em uma sede de vingança. A Igreja tentara moderar os costumes legais, insistindo na benevolência, na paz, na clemência, mas o senso de direito propriamente dito não tinha mudado. Pelo contrário, ela o havia exasperado, acrescentando à necessidade de punição o horror ao pecado. Para o espírito violento, o pecado passa a ser, com bastante frequência, aquilo que o inimigo faz. A ânsia por justiça chegou ao ponto máximo da tensão entre os polos da noção bárbara de “olho por olho, dente por dente” e da aversão religiosa ao pecado; ao mesmo tempo, o dever do Estado de punir severamente parecia cada vez mais uma necessidade urgente. No fim da Idade Média, torna-se crônico o sentimento de insegurança, o medo que, a cada crise, exige das autoridades um reinado de terror. A ideia de que alguém possa se redimir de seus crimes aos poucos perde lugar, tornando-se um resquício quase idílico de uma antiga convivialidade, à medida que se arraigava mais fortemente a ideia de que o crime era uma ameaça para a sociedade e um ataque à majestade divina. O fim da Idade Média foi a época de ouro da justiça severa e da crueldade judiciária. Ninguém duvidava um instante que o criminoso merecia sua pena; todos ficavam profundamente satisfeitos quando o próprio príncipe ditava uma sentença. Volta e meia o governo se lançava em campanhas de justiça severa, ora contra ladrões e salteadores, ora contra bruxas e feiticeiros, ora contra a sodomia.
O que nos impressiona na crueldade judiciária do fim da Idade Média é menos a perversidade doentia do que a alegria animalesca e embrutecida do povo, a atmosfera de quermesse. As pessoas de Mons compram o líder de um bando de ladrões a bom preço para ter o prazer de esquartejá-lo, “com que o povo ficou mais feliz do que se um novo corpo santo tivesse ressuscitado” [dont le peuple fust plus joyeulx que si un nouveau corps sainct estoit ressuscité].46 Durante a prisão de Maximiliano em Bruges, em 1488, a bancada de tortura foi instalada na praça central, sobre uma plataforma elevada, para que o rei pudesse vê-la; [1.18] e o povo parece não se fartar de ver as torturas aplicadas aos magistrados suspeitos de traição, clamando para que a execução fosse retardada, a fim de desfrutar de novos tormentos.47 (...)
A Idade Média desconhece todos os sentimentos que tornaram nosso senso de justiça mais tímido e hesitante: o conceito de atenuantes, a noção de falibilidade do juiz, a consciência de que a sociedade é parcialmente responsável pelos crimes do indivíduo, a questão de ser possível ou não recuperá-lo em vez de fazê-lo sofrer. Ou talvez fosse melhor dizer que esses sentimentos não estavam ausentes, mas se concentravam de maneira tácita nos súbitos impulsos de compaixão e perdão que, a despeito da culpa, por vezes refreavam a satisfação cruel com a aplicação da justiça. Em vez das penas menos severas que nós conhecemos, atribuídas com hesitação e de modo meio apologético, a justiça medieval conhece apenas dois extremos: a medida total da punição cruel e a misericórdia. E, quando se perdoa, não se pergunta como hoje em dia se o culpado merece a graça por algum motivo especial: toda culpa, mesmo a mais flagrante, pode ser completamente revertida em qualquer momento. Na prática, nem sempre a compaixão era o elemento decisivo. É surpreendente a indiferença com que os contemporâneos contam como a intervenção de um parente influente propicia uma lettre de rémission [ao condenado]. Ainda assim, a maioria dessas cartas trata de gente pobre do povo, que não teve o apoio de intercessores importantes.50”
46. Jean Molinet, Chronique, Collection des Chroniques Nationales Françaises, 1827-8, v. 3, p. 487.
47. Id., ibid., v. 3, pp. 226, 241 e 283-7. De la Marche, op. cit., v. 3, pp. 289 e 302.
50. Jacques du Clercq, op. cit., v. 4, p. 265. Petit-Dutaillis, Documents nouveaux sur les mœurs populaires et le droit de vengeance dans les Pays-Bas au XVe siècle, Bibliothèque du xve Siècle (Paris: Champion, 1908), pp. 7 e 21.
“Nenhum mal foi tão conhecido daqueles tempos quanto a avareza. Se a soberba é o pecado dos tempos antigos, a avareza é o pecado daquela época. A soberba é o pecado da era feudal e hierárquica, em que propriedade e riqueza eram pouco móveis. O sentimento de poder não está ainda preponderantemente ligado à riqueza. O poder é mais pessoal e, para ser reconhecido, deve se manifestar com grande pompa, em séquitos numerosos de seguidores leais, em ornamentos preciosos, na conduta imponente dos poderosos. A sensação de ser melhor que os outros é constantemente alimentada pela ideia feudal e hierárquica por meio de formas vívidas: de juras e homenagens prestadas de joelhos, de provas solenes de honra e de pompa majestosa, que, juntas, fazem com que a superioridade em relação aos outros seja sentida como algo muito essencial e justificado.
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11.9 - Pintura do inferno, Pisa, Campo Santo |
A soberba é um pecado simbólico e teológico, cujas raízes se fincam profundamente no solo de toda concepção de vida e de mundo [1.19]. A superbia era a origem de todo o mal; a soberba de Lúcifer fora o começo e a causa de toda perdição. Assim pensara Santo Agostinho, e todos os que o sucederam: a soberba é a fonte de todos os pecados, eles brotam dela como a raiz e o tronco.60”
60. Hugo de São Vítor, “De fructibus carnis et spiritus”, em Migne (Org.), Patrologia Latina, v. 176, p. 997.
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1.19 - A queda de Lúcifer em Les Três riches heures du Duc de Berry. |
“O povo não podia ver sua própria sorte e os acontecimentos daqueles dias senão como uma sucessão infinita de mau governo e extorsão, guerras e pilhagem, carestia, miséria e pestilência. As formas crônicas que a guerra costumava assumir, a contínua agitação na cidade e no campo por conta de todo tipo de malfeitores, a ameaça perpétua de uma justiça dura e pouco confiável e, além disso tudo, a opressão do medo do inferno, dos demônios e das bruxas mantinham vivo um sentimento de insegurança geral que tingia de cores sombrias o cenário da vida. E não era apenas a vida dos pobres e desvalidos que transcorria em meio a essa insegurança; também entre os nobres e magistrados as reviravoltas mais drásticas do destino e os perigos contínuos eram quase a regra. (...)
Esse é um mundo mau. A chama do ódio e da violência arde vigorosamente, a injustiça reina, o demônio cobre com suas asas negras a terra em trevas. Todos esperam o fim iminente de tudo. Mas a humanidade não se converte; a Igreja combate em vão, e em vão se lamentam e exortam os pregadores e os poetas.”
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12 – 1.2 – Gerard David, “Maria e Filho com santos e doador”. |
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53 – 2.3 – Albrecht Dürer – Melancolia, gravura |
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126 – 5.6 – Le Buisson ardent, a sarça em fogo de Nicolas Froment (no livro destacado apenas o painel esquerdo do altar, com a figura do Rei René de Anjou, referenciado na obra) |
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225 – 11.3 – A morte na presença de Deus. Miniatura do livro de época de Rohan |
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235 – 11.12 – Desenho de 1710 do monumento tumular desaparecido do rei René na igreja de Saint Maurice, em Angers |
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237 – 11.14 – Aelbert Ouwater – O despertar de Lázaro |
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384-385 – 17.6 – Pieter Bruegel, De Spreekwoorden (Os Provérbios) |
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434-435 – 18.14 – Rogier van der Weyden, o chanceler Rolin. Retábulo de Beaune, fechado |
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436-437 – 18.15 – Rogier van der Weyden, o retábulo de Beaune, aberto, com a cena do juízo final |
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442 – 18.19 – Os profetas da Fonte de Moisés de Claus Sluter (No livro consta esta escultura, mas não são exatamente as mesmas fotos) |
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447 – 18.23 – Jan van Eyck, O casal Arnolfini |
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453 – 18.28 – Rogier van der Weyden, Os Sete Sacramentos |
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480-481 – 20.1 – Jan van Eyck – A adoração do cordeiro de Deus |
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511 – 20.17 – Jan van Eyck, Madona com o cônego Joris van de Paele |
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486 – 20.7 – Jan van Eyck, Madona com o chanceler Rolin |
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524 – 21.3 – A paisagem urbana em As três Marias no sepulcro de Jan van Eyck |
A despeito de um ou outro equívoco (dizer que a edição esta atualizada com a última norma da língua – mas não esta, e algumas figuras sem referência / algumas referências sem figura), este foi o livro com melhor qualidade de material que já li na vida.
ResponderExcluirO acabamento é impecável. Tudo na obra causa admiração: as folhas plastificadas, as imagens e a organização do texto muito bem estruturada, as passagens de textos do original traduzidos direto do francês medievo, a tradução do livro em si direto do holandês original, os extras, enfim... é uma obra de arte que a Cosac Naify proporcionou. Parabéns a editora que – infelizmente para a cultura brasileira – fechou as portas.