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domingo, 11 de outubro de 2015

Bukharin: uma biografia política (1888-1938) (Parte II), de Stephen Cohen

Editora: Paz & Terra

ISBN: 978-85-2190-551-6

Tradução: Maria Inês Rolim

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 572

Sinopse: Ver Parte I



“Nenhuma das outras funções, contudo, comparava-se à atividade mais importante de Bukharin: a de principal teórico do bolchevismo, e por vezes seu teórico oficial. Naquela época e nos anos seguintes era importantíssimo elaborar teorias e até mesmo a ideologia. Processavam-se rápidas mudanças na composição do partido, mas seus líderes ainda se consideravam intelectuais. Avaliavam-se as argumentações políticas, pelo menos em parte, por sua consistência teórica e por sua força de persuasão; os bolcheviques orgulhavam-se do que escreviam e publicavam, e Lênin ainda se definia profissionalmente como “literato”. Bukharin dava a si próprio e a Lênin a classificação de “ideólogos comunistas”.93 A tão alardeada unidade de teoria e prática não se tornara ainda confusão vulgar. Os bolcheviques respeitavam teorias e ideias com o mesmo ardor com que respeitavam a verdade — para eles, esses conceitos eram uma coisa só, e residia na percepção dessa identidade sua força de liderança. Achavam, como Marx, que “ser radical é aprender as coisas pela raiz”.94

93. Leninskii sbornik, Moscow, 1924-40, vol. XIII, p. 31; Ataka, p. 203.

94. BUKHARIN in Tretii vserossiiskii s’’ezd RKSM 2-10 oktiabria 1920 goda: stenograficheskii otchet. Moscou e Leningrado, 1926, p. 126.

 

 

“Certa vez, falando sobre a obra histórica de Pokrovsvi, Bukharin disse o seguinte: “Quem não comete erros, não faz nada”.”

 

 

Existem nas ciências sociais dois ramos importantes que não analisam apenas um campo da vida social, mas toda a vida social em seu conjunto. (...) Um é a história, outro é a sociologia. (...) A história pesquisa e relata a vida social em determinada época e determinado lugar. (...) A sociologia tenta responder a questões mais amplas, como por exemplo: como se relacionam entre si os vários grupos de fenômenos sociais (econômicos, legais, científicos, etc.)? Como é possível explicar sua evolução? Quais são as formas históricas da sociedade?, etc. Das ciências sociais, a sociologia é a mais geral (abstrata). (...) A história fornece material para que se chegue a conclusões sociológicas e a generalizações sociológicas. (...) A sociologia, por sua vez, formula (...) um método para a história. (Bukharin — Materialismo Histórico)

 

 

“O cerne de materialismo histórico é a assertiva bukharinista de que a dialética, e consequentemente a mudança social, explicam-se pela teoria do equilíbrio. Interessa-nos aqui essa concepção ampla, e não os inumeráveis argumentos secundários também apresentados.34 Para Bukharin, o ponto de vista dialético (ou dinâmica) mostra que todas as coisas, materiais e sociais, estão em movimento, e que o movimento se origina do conflito ou da contradição interna de um dado sistema. É também verdade que qualquer sistema, seja material, seja social, tende a um estado de equilíbrio (análogo ao da adaptação na biologia):

“Em outras palavras, o mundo consiste de forças que atuam de várias maneiras e se opõem umas às outras. Só em casos excepcionais tais forças se mantém em equilíbrio durante certo tempo. Temos então um estado de ‘repouso’, isto é, o ‘conflito’ não está aparente. Mas basta que se altere uma só destas forças para que logo se revelem as ‘contradições internas’ e rompa-se o equilíbrio. E caso venha a se estabelecer um novo equilíbrio, será em novas bases, ou seja, numa nova combinação de forças, etc. Logo, o ‘conflito’, a ‘contradição’, isto é, o antagonismo de forças que atuam em diversas direções são os determinantes do movimento do sistema.

Transferindo a origem do movimento — do “alto desenvolvimento” para o conflito de forças — Bukharin acreditava ter depurado da célebre tríade hegeliana (tese-antítese-síntese) seus elementos idealistas. Em substituição, propunha a fórmula de equilíbrio original-rompimento de equilíbrio-restabelecimento do equilíbrio em novas bases.35

Em todo o sistema, prossegue Bukharin, há dois estados de equilíbrio: o interno e o externo. O primeiro concerne à relação entre os diversos componentes do sistema; o segundo, ao sistema como um todo em sua relação com o meio. Jamais existe um “equilíbrio absoluto e imutável”; há sempre “fluxos” — o equilíbrio dinâmico, ou em movimento. O ponto básico da teoria de Bukharin é a relação entre o equilíbrio interno e o externo:

“(...) A estrutura interna do sistema (...) tem de se alterar em função da relação entre o sistema e seu meio. Esta relação é o fator decisivo (...) o equilíbrio (estrutura) interno é uma quantidade que depende do equilíbrio externo (é ‘função’ deste equilíbrio externo).”36

Aplicada à sociedade, a teoria de Bukharin pode ser entendida assim: uma sociedade supõe certo equilíbrio entre seus três elementos sociais mais importantes — coisas, pessoas e ideias. É este o equilíbrio interno. Mas “é impossível imaginar uma sociedade sem o meio”, ou seja, a natureza. A sociedade adapta-se à natureza, esforça-se para equilibrar-se em relação a ela, e dela retira energia mediante o processo de produção social. No processo de adaptação, a sociedade cria “um sistema artificial de órgãos”, que Bukharin denomina tecnologia e que constitui “um indicador material preciso da relação entre a sociedade e a natureza”. Identificando tecnologia social com forças produtivas (“as combinações dos instrumentos de trabalho”) e considerando a estrutura interna função do equilíbrio externo, Bukharin pode — apesar de sua análise pluralista do desenvolvimento social — preservar a causalidade monista do determinismo econômico. Ou em suas próprias palavras:

“(...) as forças produtivas determinam o desenvolvimento social porque expressam a inter-relação da sociedade (...) e seu meio. (...) E a inter-relação do meio com o sistema é a quantidade que determina, em última análise, o movimento de qualquer sistema”.37

Neste modelo teórico está contido o materialismo histórico de Bukharin, sistematizando o desenvolvimento social. O equilíbrio social é constantemente rompido e tende a restaurar-se de duas maneiras: quer pela “adaptação gradual dos vários elementos no todo social (evolução)”, quer por “convulsões violentas (revolução)”. Enquanto o contexto do equilíbrio social — basicamente as relações de produção materializadas nas classes que participam diretamente da produção — for suficientemente amplo e duradouro, tem-se a evolução. Assim se deu o progresso do capitalismo ao longo de várias fases históricas. Mas, quando as forças produtivas chegam ao conflito com “o invólucro fundamental destas forças, isto é, as relações de propriedade”, então ocorre a revolução. O “invólucro se rompe”. Cria-se um novo equilíbrio social; “isto é, um contexto novo e duradouro de relações de produção (...) capaz de atuar como forma evolucionária das forças produtivas...”.38

34. A argumentação central aparece em vários capítulos de Historical Materialism, especialmente III, V, o VI e VII.

35. Historical Materialism, pp. 64, 72-5; Ataka, pp. 117-18.

36. Historical Materialism, pp. 74, 78-9, 239-41.

37. Ibid., caps. V-VI; Ataka, p. 119.

38. Historical Materialinn, pp. 242-9, 261-2.

 

 

“O que levava os marxistas a esperarem uma revolução socialista era o fato histórico de o capitalismo ter nascido do feudalismo. Já que o capitalismo amadurecera dentro da sociedade feudal, era de se esperar que o socialismo amadurecesse dentro da antiga ordem capitalista. Centrando seu raciocínio num argumento muito simples, Bukharin demonstrou o completo equívoco dessa analogia: na sociedade feudal, a burguesia nascente possuía nas cidades uma base autônoma, onde podia crescer independente dos senhores feudais e à revelia deles, criando seus próprios alicerces culturais, materiais e técnicos, e formando suas próprias elites administrativas. A burguesia não era explorada nem destituída de direitos, e portanto, dispôs de meios para se erigir em classe capaz de organizar-se e governar, antes mesmo de ocorrer a revolução política. Bukharin fazia ver que a situação do proletariado na sociedade capitalista é inteiramente diversa. A massa proletária, que não possui uma base econômica independente, é sempre uma classe cultural e economicamente oprimida e explorada, apesar de representar um princípio cultural potencialmente superior. A burguesia monopolizara não só os meios de produção, mas também os de educação (aspecto que, segundo Bukharin, não fora percebido). Ao longo de sua história pré-revolucionária, como não podia deixar de ser, o proletariado é sempre uma classe atrasada no seio de uma sociedade desenvolvida. Por isso, ao contrário da burguesia, não pode “preparar-se para organizar a sociedade. Tem condições de se preparar para ‘destruir o mundo anterior’”, mas “só no período de sua própria ditadura se torna maduro a ponto de organizar a sociedade”.59 Logo, a imaturidade da classe proletária não era um fenômeno tipicamente russo, mas uma característica das revoluções proletárias em geral.”

59. Ataka, pp. 219-32. Ver também Proletarskaia revoliutsiia i kul’tura (Petrogrado, 1923), pp. 17-22; e Problema kul’tury v epokhu proletarskoi revoliutsii. Izvestiia, 15 out. 1922, p. 3.

 

 

“Nos anos 20, a ideia de um regime revolucionário vir a gerar um Estado burocrático explorador foi para Bukharin o mesmo que era para a esquerda bolchevique a ideia da “degeneração pequeno-burguesa”. Bukharin afirmava que os programas econômicos da esquerda institucionalizavam a “arbitrariedade” oficial do comunismo de guerra e o surgimento de “grupos comunistas privilegiados” — um “novo Estado de chinovnikis” — alheios às necessidades das massas e “absolutamente imunes” à demissões. O possível retorno da exploração preocupava mais a Bukharin que, por si só, o destino das massas urbanas. Para ele, programas que saqueassem o campo não levariam à sociedade socialista sem classe, mas “ao eterno ‘domínio do proletariado’” e a sua “transformação negativa em verdadeira classe exploradora” do campesinato. Enquanto muitos perscrutavam o horizonte à cata dos fantasmas da Revolução Francesa, atentos às “pegadas da história”, Bukharin temia um tipo de degeneração sem precedente histórico.67

Não por acaso, dedicou-se durante o primeiro ano de vigência da NEP a refletir sobre esta sombria possibilidade. Kronstadt e os levantes rurais levaram-no a perceber o isolamento em que se achava o partido; via que os bolcheviques no poder representavam uma minoria muito pequena, amparavam-se na força armada e não contavam sequer com o apoio da classe que diziam representar.68 O partido, antes líder e porta voz dos operários e camponeses revolucionários, estava agora “alienado das massas”. No X Congresso do Partido, Bukharin fez menção ao que corria entre o povo: “Não há pão nem carvão — e a culpa é do Partido Comunista”. Em julho de 1921, manifestava dúvidas quanto à sobrevivência do regime — fato quase inimaginável em 1917, quando “todos os soldados e operários estão conosco” e “é bom estar vivo...”69 Embora não deixasse de elogiar a ditadura do partido, por vezes de modo até arrogante, o elitismo causava-lhe certo mal-estar; agora suas concepções eram ditadas pela necessidade de superar o isolamento gerado pela guerra civil, de recuperar o apoio popular e garantir o maior número possível de aliados para o programa do partido.

De 1921 em diante, Bukharin concentrou sua atenção nas “massas não-partidárias”; o entusiasmo que antes demonstrara pela coação revolucionária demonstrava agora pela persuasão e pela educação.70 Passou a ver na “colossal” burocracia gerada pelo comunismo de guerra o maior sinal do isolamento do partido, e atribuiu ao crescimento dessa burocracia o “vazio” que se abrira entre o governo bolchevique e o povo. Daí nasceu uma de suas ideias básicas: o antídoto para a burocracia seria preencher esse vazio com “centenas e milhares de sociedades, círculos e associações” voluntários, pequenos e grandes, que se expandissem depressa e funcionassem como “vínculos com as massas”. Surgiriam assim “iniciativas descentralizadas” e se criaria um “mecanismo de transmissão” mediante o qual o partido não só influenciaria a opinião pública como também receberia sua influência. A proliferação desses mecanismos seria o que Bukharin chamava de “crescimento (...) da estrutura social soviética (sovetskaia obshchestvennost)” e restauraria o “tecido social” rompido.71 A confiança nas organizações voluntárias e na “iniciativa das massas a partir dos níveis mais baixos” — que se opunha à estatização — foi uma das características da reavaliação bukharinista do bolchevismo.”

67. Ver, por exemplo, BUKHARIN, O rabkore i sel’kore: stat’i i rechi, Moscow, 1926, pp. 75-7; Za leninizism: sbornik statei, Moscow and Leningrad, 1925, p. 292; XIV s’’ezd, p. 824; e sua obra Put’ k sotsializmu i rabocbe-krest’ianskii soiuz (Moscou e Leningrado, 1925), p. 71. Quanto ao ceticismo em relação à analogia com o Termidor, ver Na poroge desiatogo goda. Pravda, 7 Nov. 1926, p. 2.

68. Nas poucas observações públicas de Bukharin acerca da revolta de Kronstadt, sente-se mais consternação que malícia, embora sejam denunciadas as forças políticas que ele considerava implicadas. Ver Desiatyi s’’ezd, RKP(b). Mart 1921 goda: stenograficheskii otchet, Moscow, 1963, pp. 224-5; e os editoriais não assinados no Pravda, 25 mar. 1921, p. 1, e 22 maio 1921, p. 1 (em Soch., XXVI, pp. 661, 671, Lenin atribui a autoria dos editoriais a Bukharin). Afirma-se que ainda em 1921 Bukharin teria dito aos delegados do Terceiro Congresso do Comintern o seguinte: “Como se pode dizer que Kronstadt foi um levante dos Brancos? Em absoluto. Tendo em vista os ideais, tendo em vista nossa missão, fomos obrigados a reprimir a revolta de nossos irmãos desencaminhados. Não podemos ver os marinheiros de Kronstadt como inimigos. Nós os amamos como a verdadeiros irmãos, nossa carne e sangue ...” ABRAMOVICH, Raphael. The Soviet revolution 1917-1929. New York, 1962, p: 203.

69. Desiatyi s’’ezd, pp. 322-3; Tretii vsemirnyi kongress kommunistichesnogo internatsionala, p. 382; “Iz rechi t. Bukharina na vechere vospominanii v 1921 g. Proletarskaia revoliutsiia, nº 10, 1922, pp. 321-2.

70. Para um exemplo inicial, ver Pravda, 28 Aug. 1921, p. 3.

 

 

“Em 1921 Bukharin dissera irreverentemente: “A história da humanidade se divide em três períodos — o matriarcado, o patriarcado e o secretariado”.104

104: Citado por Trotski em The Stalin School of Falsification, New York, 1962, p. XIV. Ver também as observações de Bukharin sobre as normas do partido em Desiatyi s’’ezd, p. 217-33; e suas teses, pp. 644-51.

 

 

“Percebendo que a luta pessoal derivava da luta de tendências políticas, Bukharin dedicou-se ao que considerava a questão principal e não levou em conta as queixas legítimas da oposição quanto a burocracia e burocratização da vida partidária. Talvez não tivesse opções, dada sua concepção da NEP e as propostas econômicas da esquerda. Cinco anos mais tarde, porém, quando se tornou ele próprio vítima do aparelho stalinista, repetiria as acusações feitas por Trotsky em 1923 — como anteriormente de Zinoviev e Kamenev. Parte da tragédia dos velhos bolcheviques reside aí: durante sete anos brigaram entre si por causa de princípios, enquanto um intrigante ia se fortalecendo cada vez mais, até ter força suficiente para destruir a todos.”

 

 

“Era uma antiga tradição do Marxismo original e do bolchevismo não inserir valores morais em avaliações sociais.

A tradição vinha do próprio Marx. Embora grande parte de sua obra esteja imbuído de indisfarçável moralismo, Marx sempre fez questão de afirmar que o estudo da sociedade e da história em geral deveria evitar qualquer forma de abordagem ética. Recusava-se a raciocinar em quaisquer termos a não ser leis de determinada época, como se evidencia em sua famosa frase: “O direito jamais pode estar acima da estrutura econômica da sociedade e de seu desenvolvimento cultural assim condicionado”. Esta era, a seu ver, a distinção entre seu socialismo científico e as fantasias dos socialistas utópicos. Marx desprezava e achava ridículo o programa de Gotha de 1875 — cujas reivindicações de “direitos iguais” e “distribuição equitativa” considerava “baboseira” e “contrassenso ideológico em torno de direitos e outros disparates tão comuns entre os democratas e os socialistas franceses”. Este preconceito contra julgamentos éticos influenciou muito os primeiros marxistas, que o conheciam bastante bem.19 Mais tarde, o revisionismo de Bernstein tentou a conciliação do socialismo marxista depurado de certezas “científicas” com a ética kantiana, patenteando a estreita conexão das hipóteses antiéticas e científicas do marxismo original e avançando ainda mais naquela direção duplamente suspeita.

Sob este aspecto, a posição de Bukharin antes de Outubro era absolutamente ortodoxa. Em 1914 ele escrevera: “Nada mais ridículo (...) que tentar fazer da teoria de Marx uma teoria ‘ética’. A teoria de Marx é regida por uma única lei natural, a lei de causa e efeito; e é inadmissível que possa ser regida por qualquer outra lei”. “A retórica ética”, prosseguia Bukharin, é algo “que não precisamos levar a sério”.20 Após 1917, a tradição antiética mesclou-se ao processo bolchevique de tomada de decisões, revelando-se muitas vezes sob a forma de desdém para com interdições morais acaso opostas a “condições objetivas”. Este tipo de raciocínio foi muito comum durante a guerra civil, quando os excessos cometidos pelo partido foram classificados de necessidade histórica, ou vistos como meios que os fins socialistas justificavam (racionalização, aliás, para qual Bukharin muito contribuiu na obra A Economia Mundial e o Imperialismo). O término da guerra civil, contudo, não alterou esta perspectiva. Em 1922, atuando como defensor no julgamento dos socialistas-revolucionários, Bukharin negou-se a basear sua tese de defesa em premissas “morais”. Preferiu apoiar-se no único critério admissível, o da “conveniência política”. E em 1924, redarguindo a declarações antibolcheviques de Ivan Pavlov, Bukharin afirmaria mais uma vez que não era fiel “ao imperativo categórico de Kant nem ao mandamento moral cristão, mas à “conveniência revolucionária”. Um ano mais tarde, lamentaria que “se substituíssem com demasiada frequência os arrazoados sensatos por arrazoados morais, absolutamente alheios à política”.21

Ainda nos anos 20, Bukharin também seria vítima de igual tipo de queixa, uma vez que assumiu uma posição na política interna em que o padrão ético se destacava, contrariando a antiga tradição e até algumas de suas próprias assertivas anteriores. Na oposição de Bukharin à política anticampesinato, a “retórica ética” esteve sempre presente — desde dezembro de 1924, quando chamou pela primeira vez a lei de Preobrajenski de “analogia monstruosa” e de “sonho assustador”, até 1929 quando acusou o programa stalinista de ser uma “exploração feudo-militar do campesinato”. Com base nisto, Preobrajenski imputou a Bukharin “explosões de indignação moral”.22 Referindo-se à classe operária, Marx dissera certa vez: “Ela não tem ideais a realizar...”. Para Bukharin, a necessidade de realizar um ideal estava no centro da missão histórica do bolchevismo.”

19. Marx e Engels, Selected Works, II, pp. 24-5. Para uma análise, ver Tucker, Robert C. Philosophy and Myth in Karl Marx Cambridge, England, 1961, especialmente pp. 11-27.

20. Economic Theory of the Leisure Class, pp. 158, 168; ver também Ataka, p. 69.

21. Protsess eserov: rechi zashchimikov i obviniaemykh. Moscou, 1922, pp. 139, 144; Ataka, p. 215; Put' k sotsializmu, p. 92.

22. Za leninizm: sbornik statei. Moscow and Leningrad, 1925, pp. 292, 297; a citação de Bukharin em KPSS v rezoliutsiiakh, II, p. 558 e Preobrajenski, New Economics (London, 1965), pp. 228-9.

 

 

“O que Bukharin concebia como exemplo de capitalismo atroz fora exposto por Marx. Ocorrera no período da “acumulação capitalista primitiva” e da expropriação impiedosa dos produtores não-capitalistas, quando “campeavam a conquista, a escravização, o roubo, o assassinato, em suma, a força”. Tudo isto, que no capitalismo equivalia ao “pecado original”, constituía “o processo histórico de separar o produtor dos meios de produção”, a “transformação da exploração feudal em exploração capitalista”, que segundo Marx “fazia o capitalismo pingar sangue e sujeira por todos os poros, da cabeça aos pés”.”

 

 

“Os combates intrapartidários de 1923-29 foram tentativas prolongadas de recompor o poder e a autoridade antes exercidos por Lênin, embora fosse inimaginável a ideia de um sucessor de Lênin — um “Lênin de hoje”. Lênin exercera na liderança e no partido uma autoridade ímpar, que provinha, entre outras coisas, da sua condição de criador e impulsionador do partido, da propriedade de tantos de seus juízos políticos (mesmo diante de fortes oposições) e da força de sua personalidade, capaz de unir e convencer os companheiros rebeldes. Sua autoridade não provinha de cargos oficiais. Como fez ver Sokolnikov: “Lênin não era presidente do Politburo, nem secretário-geral; mesmo assim (...) cabia ao camarada Lênin a palavra política decisiva no partido”. Lênin possuía, como se disse recentemente, uma espécie de autoridade carismática inseparável de sua pessoa e independente de respaldos constitucionais ou institucionais”.56 (...)

Assim, o chefe morto deveria ser substituído por um grupo de herdeiros. A princípio, o conceito de liderança coletiva era excludente, e dele não constavam necessariamente todos os bolcheviques mais destacados, nem sequer todos os membros do Politburo. Incluía-se apenas o “núcleo básico de leninistas”59, cinco dos seis nomes citados no “testamento” de Lênin: Trotsky, Stalin, Zinoviev, Kamenev e Bukharin. Embora quase não se fizessem referências abertas ao fato, era de conhecimento geral que cada um destes nomes representava parte do legado de Lênin, e que seu conjunto personificava a autoridade legítima do partido; deveriam portanto governar coletivamente, todos ou alguns deles. Rykov e Kalinin, para dar dois exemplos de peso, não eram essenciais no caso, mesmo sendo figuras do alto escalão. Não encarnavam a gestalt bolchevique ou a autoridade do partido. Ficava implícito, embora não se declarasse, que poucos membros do Politburo eram primio inter pares. Estes, como diziam às vezes os observadores, constituíam o “Olimpo bolchevique”60. Stalin, que percebia tais distinções com rudeza, mas bastante bem, usou em 1928 uma metáfora semelhante para aludir ao fato. Conversando com Bukharin sobre os nove componentes do Politburo, entre os quais já não se contavam Trotsky, Zinoviev e Kamenev, disse: “Você e eu somos os Himalaias; os outros são nada”.61

Mas em 1925 havia cinco “Himalaias” que poderiam ser vistos como herdeiros autorizados de Lênin.62 Cada um deles apresentava certa combinação dos elementos que conferiam legitimidade, a saber: 1) ter sido membro do círculo íntimo de Lênin, antes e depois de 1917; 2) ter um histórico heroico-revolucionário, cuja prova de fogo fosse 1917; 3) ter envergadura de internacionalista revolucionário; e 4) ser reconhecido como “marxista destacado”, ou seja, como teórico. Nenhum oligarca apresentava suas credenciais em perfeita ordem. A posição de Zinoviev e Kamenev (considerados uma só entidade) era confortável no primeiro item, porém menos firme no segundo, pois ambos se haviam oposto à insurreição em 1917; Trotsky, por sua vez, não tinha rivais nos itens dois e três, perdia apenas para Bukharin no item quatro, mas era muito vulnerável no item um, pois demorara a ingressar no partido. Nenhuma das credenciais de Bukharin era insuficiente: ele superava a todos no campo da teoria, tinha grande prestígio como participante de 1917 e como internacionalista, mas não podia alegar, como Zinoviev, ter integrado o grupo de Lênin antes de 1917 ou ter mantido a mesma fidelidade depois. Em pior situação encontrava-se Stalin: nada tinha a apresentar em relação aos itens três e quatro; no item dois, classificava-se atrás de Trotsky e Bukharin.

Tais considerações, ainda que cada vez mais quiméricas (pois quem detinha maior poder era quem menos o merecia) foram levadas muito a sério, como demonstram não só a grande quantidade de biografias políticas e histórias do partido lançadas durante os anos 20, como também as tentativas de vários oligarcas para enriquecerem suas credenciais. Zinoviev e Kamenev queriam desesperadamente redimir seu opróbrio de 1917; os adversários não permitiam. Em 1925, Zinoviev procurou assumir uma posição de teórico; só conseguiu ser humilhado por Bukharin. Trotsky tentou compensar seu passado menchevique; seus adversários usaram esse passado contra eles e contestaram a ortodoxia de suas ideias anteriores a 1917. Aos poucos, Stalin ganhava algum reconhecimento no Comintern, porque superava seus rivais; como teórico, porém, era inteiramente desconhecido. Tinha uma atormentada consciência do fato, como Bukharin descobriu em 1928: “Consome-o o desejo de ser reconhecido como um teórico. Ele pensa que isto é a única coisa que lhe falta”.63

56. Bol’shevik, nº 9-10, 1925, p. 4; Tekushcii moment i osnovy, p. 13; Nekotorye voprosy, pp. 9-10. Ver também Erlich, Soviet Industrialization, pp. 1 3-14.

59. Za leninizm, pp. 308-9; Nekotorye voprosy, p. 77.

60. Partiia i oppozitsionnyi blok, pp. 57-8; ver também Za leninizm, pp. 306-10.

61. Za leninizm, p. 307; Inprecor, VII (1927), p. 199; “Organizovannyi kapitalizm,” p. 191; Pravda, June 12, 1929, p. 3.

62. Ver, por exemplo, Za leninizm, p. 305; Nekotorye voprosy, pp. 77-84; Doklad, pp. 32-3; and Partiia i oppozitsionnyi blok, pp. 62-4.

63. VII s’’ezd vsesoiuznogo leninskogo kommmisticheskogo soiuza molodezhi: 11-12 marta 1926 goda. Moscou e Leningrado, 1926, p. 255.

 

 

“Ao contrário do que ocorreria mais tarde, quando Stalin destituiu de sentido todas as credenciais deste tipo, atribuindo-as exclusivamente a si próprio (fenômeno depois chamado de “culto da personalidade”), a teoria do partido era muito importante. Os rivais que reivindicavam a ortodoxia bolchevique viam-na como a orientação mais segura para a política apropriada e como o indicador mais válido da correção revolucionária. Na opinião de todos, política e teoria eram a mesma coisa. Ou como disse em 1929 o stalinista Lazar Kaganovitch: “A traição na política começa com a revisão da teoria”73.”

73. Bol’shevik, nº 2, 1925, p. 5, e nº 8, 1925, p. 9; N. Bukharin and A. Thalheimer, Report on the Program Question. Moscou, 1924, p. 24; Nekotorye voprosy, p. 3; Rasshirennyi plenum ispolkoma (1925), p. 374; Partiia i oppozitsionnyi blok, p. 47; Pravda; July 3, 1926, pp. 2-3.

2 comentários:

  1. Além de ser um livro muito bem escrito, uma coisa a se destacar sobre a obra é a amplitude da pesquisa feita pelo autor.
    Apenas para que se tenha ideia, são mais de mil e quinhentas citações ao longo da biografia.
    Um feito notável.

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