Editora: Paz &
Terra
ISBN: 978-85-2190-551-6
Tradução: Maria Inês
Rolim
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 572
Sinopse: Ver Parte I
“Nenhuma das outras funções, contudo, comparava-se à atividade
mais importante de Bukharin: a de principal teórico do bolchevismo, e por vezes
seu teórico oficial. Naquela época e nos anos seguintes era importantíssimo
elaborar teorias e até mesmo a ideologia. Processavam-se rápidas mudanças na
composição do partido, mas seus líderes ainda se consideravam intelectuais.
Avaliavam-se as argumentações políticas, pelo menos em parte, por sua
consistência teórica e por sua força de persuasão; os bolcheviques
orgulhavam-se do que escreviam e publicavam, e Lênin ainda se definia
profissionalmente como “literato”. Bukharin dava a si próprio e a Lênin a
classificação de “ideólogos comunistas”.93 A tão alardeada unidade
de teoria e prática não se tornara ainda confusão vulgar. Os bolcheviques
respeitavam teorias e ideias com o mesmo ardor com que respeitavam a verdade —
para eles, esses conceitos eram uma coisa só, e residia na percepção dessa
identidade sua força de liderança. Achavam, como Marx, que “ser radical é
aprender as coisas pela raiz”.94”
93. Leninskii sbornik, Moscow,
1924-40, vol. XIII, p. 31; Ataka, p.
203.
94. BUKHARIN in Tretii
vserossiiskii s’’ezd RKSM 2-10 oktiabria 1920 goda: stenograficheskii otchet.
Moscou e Leningrado, 1926, p. 126.
“Certa vez, falando sobre a obra histórica de Pokrovsvi, Bukharin
disse o seguinte: “Quem não comete erros, não faz nada”.”
“Existem nas ciências sociais dois ramos importantes que não
analisam apenas um campo da vida social, mas toda a vida social em seu
conjunto. (...) Um é a história, outro é a sociologia. (...) A
história pesquisa e relata a vida social em determinada época e determinado
lugar. (...) A sociologia tenta responder a questões mais amplas, como
por exemplo: como se relacionam entre si os vários grupos de fenômenos sociais
(econômicos, legais, científicos, etc.)? Como é possível explicar sua evolução?
Quais são as formas históricas da sociedade?, etc. Das ciências sociais, a
sociologia é a mais geral (abstrata). (...) A história fornece material
para que se chegue a conclusões sociológicas e a generalizações sociológicas. (...)
A sociologia, por sua vez, formula (...) um método para a
história.” (Bukharin — Materialismo Histórico)
“O cerne de materialismo histórico é a assertiva
bukharinista de que a dialética, e consequentemente a mudança social,
explicam-se pela teoria do equilíbrio. Interessa-nos aqui essa concepção ampla,
e não os inumeráveis argumentos secundários também apresentados.34
Para Bukharin, o ponto de vista dialético (ou dinâmica) mostra que todas as
coisas, materiais e sociais, estão em movimento, e que o movimento se origina
do conflito ou da contradição interna de um dado sistema. É também verdade que
qualquer sistema, seja material, seja social, tende a um estado de equilíbrio
(análogo ao da adaptação na biologia):
“Em outras
palavras, o mundo consiste de forças que atuam de várias maneiras e se opõem
umas às outras. Só em casos excepcionais tais forças se mantém em equilíbrio
durante certo tempo. Temos então um estado de ‘repouso’, isto é, o ‘conflito’
não está aparente. Mas basta que se altere uma só destas forças para que logo
se revelem as ‘contradições internas’ e rompa-se o equilíbrio. E caso venha a
se estabelecer um novo equilíbrio, será em novas bases, ou seja, numa nova
combinação de forças, etc. Logo, o ‘conflito’, a ‘contradição’, isto é, o
antagonismo de forças que atuam em diversas direções são os determinantes do
movimento do sistema.
Transferindo a origem do movimento — do “alto desenvolvimento”
para o conflito de forças — Bukharin acreditava ter depurado da célebre tríade
hegeliana (tese-antítese-síntese) seus elementos idealistas. Em substituição,
propunha a fórmula de equilíbrio original-rompimento de
equilíbrio-restabelecimento do equilíbrio em novas bases.35
Em todo o sistema, prossegue Bukharin, há dois estados de
equilíbrio: o interno e o externo. O primeiro concerne à relação entre os
diversos componentes do sistema; o segundo, ao sistema como um todo em sua
relação com o meio. Jamais existe um “equilíbrio absoluto e imutável”; há
sempre “fluxos” — o equilíbrio dinâmico, ou em movimento. O ponto básico da
teoria de Bukharin é a relação entre o equilíbrio interno e o externo:
“(...) A
estrutura interna do sistema (...) tem de se alterar em função da relação entre
o sistema e seu meio. Esta relação é o fator decisivo (...) o equilíbrio (estrutura)
interno é uma quantidade que depende do equilíbrio externo (é ‘função’ deste
equilíbrio externo).”36
Aplicada à sociedade, a teoria de Bukharin pode ser entendida
assim: uma sociedade supõe certo equilíbrio entre seus três elementos sociais
mais importantes — coisas, pessoas e ideias. É este o equilíbrio interno. Mas
“é impossível imaginar uma sociedade sem o meio”, ou seja, a natureza. A
sociedade adapta-se à natureza, esforça-se para equilibrar-se em relação a ela,
e dela retira energia mediante o processo de produção social. No processo de
adaptação, a sociedade cria “um sistema artificial de órgãos”, que Bukharin
denomina tecnologia e que constitui “um indicador material preciso da relação
entre a sociedade e a natureza”. Identificando tecnologia social com forças
produtivas (“as combinações dos instrumentos de trabalho”) e considerando a
estrutura interna função do equilíbrio externo, Bukharin pode — apesar de sua
análise pluralista do desenvolvimento social — preservar a causalidade monista
do determinismo econômico. Ou em suas próprias palavras:
“(...) as
forças produtivas determinam o desenvolvimento social porque expressam a
inter-relação da sociedade (...) e seu meio. (...) E a inter-relação do meio
com o sistema é a quantidade que determina, em última análise, o movimento de
qualquer sistema”.37
Neste modelo teórico está contido o materialismo histórico de
Bukharin, sistematizando o desenvolvimento social. O equilíbrio social é
constantemente rompido e tende a restaurar-se de duas maneiras: quer pela
“adaptação gradual dos vários elementos no todo social (evolução)”, quer por
“convulsões violentas (revolução)”. Enquanto o contexto do equilíbrio social —
basicamente as relações de produção materializadas nas classes que participam
diretamente da produção — for suficientemente amplo e duradouro, tem-se a
evolução. Assim se deu o progresso do capitalismo ao longo de várias fases
históricas. Mas, quando as forças produtivas chegam ao conflito com “o
invólucro fundamental destas forças, isto é, as relações de propriedade”, então
ocorre a revolução. O “invólucro se rompe”. Cria-se um novo equilíbrio social;
“isto é, um contexto novo e duradouro de relações de produção (...) capaz de
atuar como forma evolucionária das forças produtivas...”.38”
34. A argumentação central aparece em vários capítulos de Historical Materialism, especialmente
III, V, o VI e VII.
35. Historical Materialism,
pp. 64, 72-5; Ataka, pp. 117-18.
36. Historical Materialism,
pp. 74, 78-9, 239-41.
37. Ibid., caps. V-VI; Ataka, p. 119.
38. Historical Materialinn,
pp. 242-9, 261-2.
“O que levava os marxistas a esperarem uma revolução socialista
era o fato histórico de o capitalismo ter nascido do feudalismo. Já que o
capitalismo amadurecera dentro da sociedade feudal, era de se esperar que o
socialismo amadurecesse dentro da antiga ordem capitalista. Centrando seu
raciocínio num argumento muito simples, Bukharin demonstrou o completo equívoco
dessa analogia: na sociedade feudal, a burguesia nascente possuía nas cidades
uma base autônoma, onde podia crescer independente dos senhores feudais e à
revelia deles, criando seus próprios alicerces culturais, materiais e técnicos,
e formando suas próprias elites administrativas. A burguesia não era explorada
nem destituída de direitos, e portanto, dispôs de meios para se erigir em
classe capaz de organizar-se e governar, antes mesmo de ocorrer a revolução
política. Bukharin fazia ver que a situação do proletariado na sociedade
capitalista é inteiramente diversa. A massa proletária, que não possui uma base
econômica independente, é sempre uma classe cultural e economicamente oprimida
e explorada, apesar de representar um princípio cultural potencialmente
superior. A burguesia monopolizara não só os meios de produção, mas também os
de educação (aspecto que, segundo Bukharin, não fora percebido). Ao longo de
sua história pré-revolucionária, como não podia deixar de ser, o proletariado é
sempre uma classe atrasada no seio de uma sociedade desenvolvida. Por isso, ao
contrário da burguesia, não pode “preparar-se para organizar a sociedade.
Tem condições de se preparar para ‘destruir o mundo anterior’”, mas “só no
período de sua própria ditadura se torna maduro a ponto de organizar a
sociedade”.59 Logo, a imaturidade da classe proletária não era
um fenômeno tipicamente russo, mas uma característica das revoluções
proletárias em geral.”
59. Ataka, pp. 219-32.
Ver também Proletarskaia revoliutsiia i kul’tura (Petrogrado, 1923), pp. 17-22;
e Problema kul’tury v epokhu proletarskoi revoliutsii. Izvestiia, 15 out. 1922, p. 3.
“Nos anos 20, a ideia de um regime revolucionário vir a gerar um
Estado burocrático explorador foi para Bukharin o mesmo que era para a esquerda
bolchevique a ideia da “degeneração pequeno-burguesa”. Bukharin afirmava que os
programas econômicos da esquerda institucionalizavam a “arbitrariedade” oficial
do comunismo de guerra e o surgimento de “grupos comunistas privilegiados” — um
“novo Estado de chinovnikis” — alheios às necessidades das massas e
“absolutamente imunes” à demissões. O possível retorno da exploração preocupava
mais a Bukharin que, por si só, o destino das massas urbanas. Para ele,
programas que saqueassem o campo não levariam à sociedade socialista sem
classe, mas “ao eterno ‘domínio do proletariado’” e a sua “transformação
negativa em verdadeira classe exploradora” do campesinato. Enquanto muitos
perscrutavam o horizonte à cata dos fantasmas da Revolução Francesa, atentos às
“pegadas da história”, Bukharin temia um tipo de degeneração sem precedente
histórico.67
Não por acaso, dedicou-se durante o primeiro ano de vigência da
NEP a refletir sobre esta sombria possibilidade. Kronstadt e os levantes rurais
levaram-no a perceber o isolamento em que se achava o partido; via que os
bolcheviques no poder representavam uma minoria muito pequena, amparavam-se na
força armada e não contavam sequer com o apoio da classe que diziam
representar.68 O partido, antes líder e porta voz dos operários e
camponeses revolucionários, estava agora “alienado das massas”. No X Congresso
do Partido, Bukharin fez menção ao que corria entre o povo: “Não há pão nem
carvão — e a culpa é do Partido Comunista”. Em julho de 1921, manifestava
dúvidas quanto à sobrevivência do regime — fato quase inimaginável em 1917,
quando “todos os soldados e operários estão conosco” e “é bom estar vivo...”69
Embora não deixasse de elogiar a ditadura do partido, por vezes de modo até
arrogante, o elitismo causava-lhe certo mal-estar; agora suas concepções eram
ditadas pela necessidade de superar o isolamento gerado pela guerra civil, de
recuperar o apoio popular e garantir o maior número possível de aliados para o
programa do partido.
De 1921 em diante, Bukharin concentrou sua atenção nas “massas
não-partidárias”; o entusiasmo que antes demonstrara pela coação revolucionária
demonstrava agora pela persuasão e pela educação.70 Passou a ver na
“colossal” burocracia gerada pelo comunismo de guerra o maior sinal do
isolamento do partido, e atribuiu ao crescimento dessa burocracia o “vazio” que
se abrira entre o governo bolchevique e o povo. Daí nasceu uma de suas ideias
básicas: o antídoto para a burocracia seria preencher esse vazio com “centenas
e milhares de sociedades, círculos e associações” voluntários, pequenos e
grandes, que se expandissem depressa e funcionassem como “vínculos com as
massas”. Surgiriam assim “iniciativas descentralizadas” e se criaria um
“mecanismo de transmissão” mediante o qual o partido não só influenciaria a
opinião pública como também receberia sua influência. A proliferação desses
mecanismos seria o que Bukharin chamava de “crescimento (...) da estrutura
social soviética (sovetskaia obshchestvennost)” e restauraria o “tecido
social” rompido.71 A confiança nas organizações voluntárias e na
“iniciativa das massas a partir dos níveis mais baixos” — que se opunha à
estatização — foi uma das características da reavaliação bukharinista do
bolchevismo.”
67. Ver, por exemplo, BUKHARIN, O rabkore i sel’kore: stat’i i rechi, Moscow, 1926, pp. 75-7; Za leninizism: sbornik statei, Moscow
and Leningrad, 1925, p. 292; XIV s’’ezd,
p. 824; e sua obra Put’ k sotsializmu i
rabocbe-krest’ianskii soiuz (Moscou e Leningrado, 1925), p. 71. Quanto ao
ceticismo em relação à analogia com o Termidor, ver Na poroge desiatogo goda. Pravda, 7 Nov. 1926, p. 2.
68. Nas poucas observações públicas de Bukharin acerca da revolta
de Kronstadt, sente-se mais consternação que malícia, embora sejam denunciadas
as forças políticas que ele considerava implicadas. Ver Desiatyi s’’ezd, RKP(b). Mart 1921 goda: stenograficheskii otchet, Moscow,
1963, pp. 224-5; e os editoriais não assinados no Pravda, 25 mar. 1921, p. 1, e 22 maio 1921, p. 1 (em Soch., XXVI, pp. 661, 671, Lenin atribui
a autoria dos editoriais a Bukharin). Afirma-se que ainda em 1921 Bukharin
teria dito aos delegados do Terceiro Congresso do Comintern o seguinte: “Como
se pode dizer que Kronstadt foi um levante dos Brancos? Em absoluto. Tendo em
vista os ideais, tendo em vista nossa missão, fomos obrigados a reprimir a
revolta de nossos irmãos desencaminhados. Não podemos ver os marinheiros de Kronstadt
como inimigos. Nós os amamos como a verdadeiros irmãos, nossa carne e sangue
...” ABRAMOVICH, Raphael. The Soviet
revolution 1917-1929. New York, 1962, p: 203.
69. Desiatyi s’’ezd, pp.
322-3; Tretii vsemirnyi kongress
kommunistichesnogo internatsionala, p. 382; “Iz rechi t. Bukharina na
vechere vospominanii v 1921 g. Proletarskaia revoliutsiia, nº 10, 1922, pp.
321-2.
70. Para um exemplo inicial, ver Pravda, 28 Aug. 1921, p. 3.
“Em 1921 Bukharin dissera irreverentemente: “A história da
humanidade se divide em três períodos — o matriarcado, o patriarcado e o
secretariado”.104”
104: Citado por Trotski em The
Stalin School of Falsification, New
York, 1962, p. XIV. Ver também as observações de Bukharin sobre as normas
do partido em Desiatyi s’’ezd, p.
217-33; e suas teses, pp. 644-51.
“Percebendo que a luta pessoal derivava da luta de tendências
políticas, Bukharin dedicou-se ao que considerava a questão principal e não
levou em conta as queixas legítimas da oposição quanto a burocracia e
burocratização da vida partidária. Talvez não tivesse opções, dada sua
concepção da NEP e as propostas econômicas da esquerda. Cinco anos mais tarde,
porém, quando se tornou ele próprio vítima do aparelho stalinista, repetiria as
acusações feitas por Trotsky em 1923 — como anteriormente de Zinoviev e
Kamenev. Parte da tragédia dos velhos bolcheviques reside aí: durante sete anos
brigaram entre si por causa de princípios, enquanto um intrigante ia se
fortalecendo cada vez mais, até ter força suficiente para destruir a todos.”
“Era uma antiga tradição do Marxismo original e do bolchevismo não
inserir valores morais em avaliações sociais.
A tradição vinha do próprio Marx. Embora grande parte de sua obra
esteja imbuído de indisfarçável moralismo, Marx sempre fez questão de afirmar
que o estudo da sociedade e da história em geral deveria evitar qualquer forma
de abordagem ética. Recusava-se a raciocinar em quaisquer termos a não ser leis
de determinada época, como se evidencia em sua famosa frase: “O direito jamais
pode estar acima da estrutura econômica da sociedade e de seu desenvolvimento
cultural assim condicionado”. Esta era, a seu ver, a distinção entre seu
socialismo científico e as fantasias dos socialistas utópicos. Marx desprezava e achava
ridículo o programa de Gotha de 1875 — cujas reivindicações de “direitos
iguais” e “distribuição equitativa” considerava “baboseira” e “contrassenso
ideológico em torno de direitos e outros disparates tão comuns entre os
democratas e os socialistas franceses”. Este preconceito contra julgamentos
éticos influenciou muito os primeiros marxistas, que o conheciam bastante bem.19
Mais tarde, o revisionismo de Bernstein tentou a conciliação do socialismo
marxista depurado de certezas “científicas” com a ética kantiana, patenteando a
estreita conexão das hipóteses antiéticas e científicas do marxismo original e
avançando ainda mais naquela direção duplamente suspeita.
Sob este aspecto, a posição de Bukharin antes de Outubro era
absolutamente ortodoxa. Em 1914 ele escrevera: “Nada mais ridículo (...) que
tentar fazer da teoria de Marx uma teoria ‘ética’. A teoria de Marx é regida
por uma única lei natural, a lei de causa e efeito; e é inadmissível que possa
ser regida por qualquer outra lei”. “A retórica ética”, prosseguia Bukharin, é
algo “que não precisamos levar a sério”.20 Após 1917, a tradição
antiética mesclou-se ao processo bolchevique de tomada de decisões,
revelando-se muitas vezes sob a forma de desdém para com interdições morais
acaso opostas a “condições objetivas”. Este tipo de raciocínio foi muito comum
durante a guerra civil, quando os excessos cometidos pelo partido foram
classificados de necessidade histórica, ou vistos como meios que os fins
socialistas justificavam (racionalização, aliás, para qual Bukharin muito
contribuiu na obra A Economia Mundial e o Imperialismo). O término da
guerra civil, contudo, não alterou esta perspectiva. Em 1922, atuando como
defensor no julgamento dos socialistas-revolucionários, Bukharin negou-se a
basear sua tese de defesa em premissas “morais”. Preferiu apoiar-se no único
critério admissível, o da “conveniência política”. E em 1924, redarguindo a declarações
antibolcheviques de Ivan Pavlov, Bukharin afirmaria mais uma vez que não era
fiel “ao imperativo categórico de Kant nem ao mandamento moral cristão, mas à
“conveniência revolucionária”. Um ano mais tarde, lamentaria que “se
substituíssem com demasiada frequência os arrazoados sensatos por arrazoados
morais, absolutamente alheios à política”.21
Ainda nos anos 20, Bukharin também seria vítima de igual tipo de
queixa, uma vez que assumiu uma posição na política interna em que o padrão
ético se destacava, contrariando a antiga tradição e até algumas de suas
próprias assertivas anteriores. Na oposição de Bukharin à política
anticampesinato, a “retórica ética” esteve sempre presente — desde dezembro de
1924, quando chamou pela primeira vez a lei de Preobrajenski de “analogia
monstruosa” e de “sonho assustador”, até 1929 quando acusou o programa
stalinista de ser uma “exploração feudo-militar do campesinato”. Com base
nisto, Preobrajenski imputou a Bukharin “explosões de indignação moral”.22
Referindo-se à classe operária, Marx dissera certa vez: “Ela não tem ideais a
realizar...”. Para Bukharin, a necessidade de realizar um ideal estava no
centro da missão histórica do bolchevismo.”
19. Marx e Engels, Selected
Works, II, pp. 24-5. Para uma análise, ver Tucker, Robert C. Philosophy and Myth in Karl Marx
Cambridge, England, 1961, especialmente pp. 11-27.
20. Economic Theory of the
Leisure Class, pp. 158, 168; ver também Ataka,
p. 69.
21. Protsess eserov: rechi
zashchimikov i obviniaemykh. Moscou, 1922, pp. 139, 144; Ataka, p. 215; Put' k sotsializmu, p. 92.
22. Za leninizm: sbornik
statei. Moscow and Leningrad, 1925, pp. 292, 297; a citação de Bukharin em KPSS v rezoliutsiiakh, II, p. 558 e
Preobrajenski, New Economics (London,
1965), pp. 228-9.
“O que Bukharin concebia como exemplo de capitalismo atroz fora
exposto por Marx. Ocorrera no período da “acumulação capitalista primitiva” e
da expropriação impiedosa dos produtores não-capitalistas, quando “campeavam a
conquista, a escravização, o roubo, o assassinato, em suma, a força”. Tudo
isto, que no capitalismo equivalia ao “pecado original”, constituía “o processo
histórico de separar o produtor dos meios de produção”, a “transformação da
exploração feudal em exploração capitalista”, que segundo Marx “fazia o
capitalismo pingar sangue e sujeira por todos os poros, da cabeça aos pés”.”
“Os combates intrapartidários de 1923-29 foram tentativas
prolongadas de recompor o poder e a autoridade antes exercidos por Lênin,
embora fosse inimaginável a ideia de um sucessor de Lênin — um “Lênin de hoje”.
Lênin exercera na liderança e no partido uma autoridade ímpar, que provinha,
entre outras coisas, da sua condição de criador e impulsionador do partido, da
propriedade de tantos de seus juízos políticos (mesmo diante de fortes
oposições) e da força de sua personalidade, capaz de unir e convencer os
companheiros rebeldes. Sua autoridade não provinha de cargos oficiais. Como fez
ver Sokolnikov: “Lênin não era presidente do Politburo, nem secretário-geral;
mesmo assim (...) cabia ao camarada Lênin a palavra política decisiva no
partido”. Lênin possuía, como se disse recentemente, uma espécie de autoridade
carismática inseparável de sua pessoa e independente de respaldos
constitucionais ou institucionais”.56 (...)
Assim, o chefe morto deveria ser substituído por um grupo de herdeiros.
A princípio, o conceito de liderança coletiva era excludente, e dele não
constavam necessariamente todos os bolcheviques mais destacados, nem sequer
todos os membros do Politburo. Incluía-se apenas o “núcleo básico de
leninistas”59, cinco dos seis nomes citados no “testamento” de
Lênin: Trotsky, Stalin, Zinoviev, Kamenev e Bukharin. Embora quase não se
fizessem referências abertas ao fato, era de conhecimento geral que cada um
destes nomes representava parte do legado de Lênin, e que seu conjunto
personificava a autoridade legítima do partido; deveriam portanto governar
coletivamente, todos ou alguns deles. Rykov e Kalinin, para dar dois exemplos
de peso, não eram essenciais no caso, mesmo sendo figuras do alto escalão. Não
encarnavam a gestalt bolchevique ou a autoridade do partido. Ficava
implícito, embora não se declarasse, que poucos membros do Politburo eram primio
inter pares. Estes, como diziam às vezes os observadores, constituíam o
“Olimpo bolchevique”60. Stalin, que percebia tais distinções com
rudeza, mas bastante bem, usou em 1928 uma metáfora semelhante para aludir ao
fato. Conversando com Bukharin sobre os nove componentes do Politburo, entre os
quais já não se contavam Trotsky, Zinoviev e Kamenev, disse: “Você e eu somos
os Himalaias; os outros são nada”.61
Mas em 1925 havia cinco “Himalaias” que poderiam ser vistos como
herdeiros autorizados de Lênin.62 Cada um deles apresentava certa
combinação dos elementos que conferiam legitimidade, a saber: 1) ter sido
membro do círculo íntimo de Lênin, antes e depois de 1917; 2) ter um histórico
heroico-revolucionário, cuja prova de fogo fosse 1917; 3) ter envergadura de
internacionalista revolucionário; e 4) ser reconhecido como “marxista
destacado”, ou seja, como teórico. Nenhum oligarca apresentava suas credenciais
em perfeita ordem. A posição de Zinoviev e Kamenev (considerados uma só
entidade) era confortável no primeiro item, porém menos firme no segundo, pois
ambos se haviam oposto à insurreição em 1917; Trotsky, por sua vez, não tinha
rivais nos itens dois e três, perdia apenas para Bukharin no item quatro, mas
era muito vulnerável no item um, pois demorara a ingressar no partido. Nenhuma
das credenciais de Bukharin era insuficiente: ele superava a todos no campo da
teoria, tinha grande prestígio como participante de 1917 e como
internacionalista, mas não podia alegar, como Zinoviev, ter integrado o grupo
de Lênin antes de 1917 ou ter mantido a mesma fidelidade depois. Em pior
situação encontrava-se Stalin: nada tinha a apresentar em relação aos itens
três e quatro; no item dois, classificava-se atrás de Trotsky e Bukharin.
Tais considerações, ainda que cada vez mais quiméricas (pois quem
detinha maior poder era quem menos o merecia) foram levadas muito a sério, como
demonstram não só a grande quantidade de biografias políticas e histórias do
partido lançadas durante os anos 20, como também as tentativas de vários
oligarcas para enriquecerem suas credenciais. Zinoviev e Kamenev queriam
desesperadamente redimir seu opróbrio de 1917; os adversários não permitiam. Em
1925, Zinoviev procurou assumir uma posição de teórico; só conseguiu ser
humilhado por Bukharin. Trotsky tentou compensar seu passado menchevique; seus
adversários usaram esse passado contra eles e contestaram a ortodoxia de suas
ideias anteriores a 1917. Aos poucos, Stalin ganhava algum reconhecimento no
Comintern, porque superava seus rivais; como teórico, porém, era inteiramente
desconhecido. Tinha uma atormentada consciência do fato, como Bukharin
descobriu em 1928: “Consome-o o desejo de ser reconhecido como um teórico. Ele
pensa que isto é a única coisa que lhe falta”.63”
56. Bol’shevik, nº 9-10,
1925, p. 4; Tekushcii moment i osnovy,
p. 13; Nekotorye voprosy, pp. 9-10. Ver
também Erlich, Soviet Industrialization,
pp. 1 3-14.
59. Za leninizm, pp. 308-9; Nekotorye voprosy, p. 77.
60. Partiia i oppozitsionnyi
blok, pp. 57-8; ver também Za
leninizm, pp. 306-10.
61. Za leninizm, p. 307;
Inprecor, VII (1927), p. 199; “Organizovannyi kapitalizm,” p. 191; Pravda,
June 12, 1929, p. 3.
62. Ver, por exemplo, Za
leninizm, p. 305; Nekotorye voprosy,
pp. 77-84; Doklad, pp. 32-3; and Partiia i oppozitsionnyi blok, pp. 62-4.
63. VII s’’ezd vsesoiuznogo
leninskogo kommmisticheskogo soiuza molodezhi: 11-12 marta 1926 goda. Moscou
e Leningrado, 1926, p. 255.
“Ao contrário do que ocorreria mais tarde, quando Stalin destituiu
de sentido todas as credenciais deste tipo, atribuindo-as exclusivamente a si
próprio (fenômeno depois chamado de “culto da personalidade”), a teoria do
partido era muito importante. Os rivais que reivindicavam a ortodoxia
bolchevique viam-na como a orientação mais segura para a política apropriada e
como o indicador mais válido da correção revolucionária. Na opinião de todos,
política e teoria eram a mesma coisa. Ou como disse em 1929 o stalinista Lazar
Kaganovitch: “A traição na política começa com a revisão da teoria”73.”
73. Bol’shevik, nº 2,
1925, p. 5, e nº 8, 1925, p. 9; N. Bukharin and A. Thalheimer, Report on the Program Question. Moscou, 1924,
p. 24; Nekotorye voprosy, p. 3; Rasshirennyi plenum ispolkoma (1925), p.
374; Partiia i oppozitsionnyi blok,
p. 47; Pravda; July 3, 1926, pp. 2-3.
Além de ser um livro muito bem escrito, uma coisa a se destacar sobre a obra é a amplitude da pesquisa feita pelo autor.
ResponderExcluirApenas para que se tenha ideia, são mais de mil e quinhentas citações ao longo da biografia.
Um feito notável.
Livro interessante.
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