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quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O totem do lobo – Jiang Rong

Editora: Sextante
ISBN: 978-85-99296-32-5
Tradução: Vera Ribeiro
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 506
Sinopse: Na década de 1960, em plena Revolução Cultural da China, o jovem estudante Chen Zhen parte para as estepes do Olonbulag, na Mongólia Interior. Sob a tutela do sábio Bilgee, Chen aprende muito mais do que pastorear ovelhas: ele descobre como superar as dificuldades da vida nômade e a sinergia milenar que une o povo aos lobos selvagens das planícies.
Fascinado pela relação entre os homens e esses animais temidos e idolatrados, Chen compreende a rica relação espiritual que existe entre esses adversários e o que cada um pode aprender com o outro.
No entanto, a paz da existência solitária de Chen é destruída quando membros da República Popular formam multidões nas cidades para levar modernização e produtividade aos campos, interrompendo o delicado equilíbrio entre os habitantes das estepes.
Usando o lobo como metáfora, Jiang Rong constrói uma linda história, que é também uma dura crítica aos ideais da revolução, expondo a grave ferida aberta na cultura milenar que o estudante Chen aprendeu a amar e defender.
O totem do lobo é um belo e comovente retrato de uma terra e uma cultura que não existem mais e, ao mesmo tempo, uma revelação fascinante da visão do país sobre si mesmo, sua história e seu povo.


“Quando o pelo dos lobos brilha, eles estão com fome.”


“A paciência é a chave de uma boa caçada.”


“– Todos dizem que as peles de lobo são a forração mais quente que existe. As pessoas daqui, caçadores e pastores, matam muitos lobos, mas nunca vi uma pele na casa de um pastor. Por quê? As únicas que vi foram um capacho na casa do Dorji e um par de culotes que o pai dele usa em cima das calças de pele de ovelha, com o pelo virado para fora.
– Dorji é um mongol do noroeste – disse o velho. – Eles são lavradores que possuem algumas cabeças de gado e ovelhas, mas convivem com os chineses há tanto tempo que começaram a adotar os costumes dos han. As pessoas que vêm de fora se esqueceram dos mongóis e de sua própria origem. Quando morre alguém em sua família, elas o colocam num caixão e o enterram, em vez de dá-los aos lobos como alimento. Então é claro que não veem nada de errado em usar peles de lobo como culotes. Aqui nas estepes as peles de lobo são mais grossas e mais densas, de modo que não há nada melhor para acabar com o frio. Duas peles de ovelha juntas não o manterão tão aquecido quanto uma única pele de lobo. Mas nós não as usamos como roupa de cama. Temos muito respeito por esses animais. Um mongol que não os respeita não é um mongol de verdade. Preferimos morrer congelados a dormir sobre uma pele de lobo, porque isso insulta os deuses mongóis e faz com que nossas almas não sigam para o Tengri. Por que você acha que o Tengri concede suas graças aos lobos?
– O senhor não disse que os lobos são os espíritos protetores das estepes? – Chen Zen perguntou.
– Certo – concordou o velho, com os olhos espremidos pelo sorriso largo. – É exatamente isso. Tengri é o pai, estepe é a mãe, e os lobos só matam os animais que a prejudicam. Como o Tengri poderia não favorecê-los?”


“– Quando você vive como nômade nas estepes por um período prolongado, não faz diferença a que grupo étnico pertença, já que, mais cedo ou mais tarde, começa a adorar os lobos e a tratá-los como mentores. Foi o que aconteceu com os hunos, os wusuns, os turcos, os mongóis e outros povos. Pelo menos é o que dizem os livros. Mas os chineses são uma exceção. Eu garanto que eles poderiam viver aqui por gerações sem adorar o totem do lobo.
– Talvez sim, talvez não – disse Chen, puxando as rédeas do cavalo. – Veja eu, por exemplo. Os lobos me conquistaram em pouco mais de dois anos.
– Mas a grande maioria dos chineses é composta por lavradores – objetou Yang. Os han têm uma mentalidade camponesa impossível de modificar, e, se mudassem para cá, eu ficaria surpreso se não tirassem a pele de todos os lobos das estepes. Somos uma raça de agricultores, o medo e o ódio pelos lobos está no nosso sangue. Como poderíamos venerar um lobo como totem? Nós cultuamos o Rei Dragão, o único que olha por nossa linhagem agrária, nosso totem do dragão, aquele a que rendemos homenagens, aquele a que nos submetemos humildemente. Como se poderia esperar que essas pessoas aprendessem com os lobos, os protegessem, adorassem e, ainda assim, os matassem, como fazem os mongóis? Só o totem de um povo é realmente capaz de despertar seu espírito e seu caráter étnicos, seja ele um dragão ou um lobo. As diferenças entre o povo agrário e os nômades são simplesmente grandes demais. Antigamente, quando estávamos imersos no vasto oceano chinês dos han, não tínhamos ideias dessas diferenças, mas, vindo para cá, as fraquezas inerentes a nossos antecedentes se tornaram óbvias. Sim, meu pai é um professor de renome, mas o avô dele e a avó da minha mãe eram camponeses.”


“De acordo com a prática secular do Olonbulag, quando morre um pastor as pessoas o despem e enrolam seu corpo num feltro, embora, às vezes, deixem o cadáver vestido e abram mão do feltro. Depois colocam o corpo numa carroça, em cima de uma tábua comprida, atravessada e firmada sobre os eixos. Nas horas que antecedem o amanhecer, os dois homens mais velhos da família conduzem a carroça até o local do funeral celeste, onde chicoteiam os cavalos para que eles partam a galope. Inevitavelmente, o corpo cai da carroça, e esse é o ponto de partida para o retorno de sua alma ao Tengri. Os dois parentes desmontam e, quando o corpo está despido, desenrolam o feltro e estendem o morto no chão, de costas, virado para o céu, exatamente como veio ao mundo, nu e inocente. Nesse momento, o morto pertence aos lobos e aos deuses. Se sua alma entrará ou não no Tengri vai depender das virtudes que ele teve em vida ou da falta delas. Em geral toma-se conhecimento disso em três dias. Se, depois desse prazo, não resta nada além dos ossos do cadáver, é porque sua alma entrou no Tengri. Mas se o morto permanecer mais ou menos intacto a família entra em pânico. Entretanto, há muitos lobos no Olonbulag e Chen nunca ouviu falar de uma única pessoa cuja alma não houvesse entrado no Tengri.
Ele já conhecia os funerais celestes tibetanos, mas só ao chegar às estepes descobrira que essa também era uma prática mongol, com os lobos substituindo as águias como agentes fúnebres.”


“– Quando falta a um homem ou a uma raça o espírito de preferir a morte à rendição, a disposição de morrer junto com o inimigo, o resultado inevitável é a escravidão. Qualquer um que tome como modelo o espírito suicida dos lobos se tornará um herói e será enaltecido com canções e lágrimas. Aprender a lição errada leva ao fascismo dos samurais, e quem não prefere a morte à rendição sempre sucumbirá a eles – disse Bilgee.”


“(...) – No fim não é exagero dizer que os lobos estão por trás da natureza selvagem e feroz dos garanhões mongóis. (...) Esses animais são os déspotas das estepes. Temem que uma alcatéia ataque suas fêmeas e suas crias, mas, fora isso, não têm medo de mais nada, nem de lobos nem de seres humanos, com certeza. É comum falarmos sobre trabalhar como um boi ou um cavalo, mas isso não tem nada a ver com os garanhões. Não há muita diferença entre uma tropa de cavalos mongóis e uma tropa selvagem, a não ser, é claro, pelos capões. Passei muito tempo com os cavalos, mas ainda não consigo imaginar o que a população primitiva fez para domesticá-los. Como essa gente descobriu que poderia montar um cavalo se o castrasse?
Chen e Yang se entreolharam e apenas balançaram a cabeça. Satisfeito com essa reação, Zhang continuou:
– Passei muito tempo pensando nisso e acho que os primeiros habitantes das estepes encontraram meios de capturar garanhões selvagens feridos por lobos. Depois de tratá-los até que se recuperassem, não conseguiram montá-los, mesmo quando tinham um sucesso modesto com cavalos ainda pequenos. Assim, continuaram tentando, com diversos cavalos feridos, geração após geração, até que um dia pegaram um cavalo cujos testículos tinham sido arrancados a dentadas, talvez um potro de dois anos, e conseguiram montá-lo quando ele atingiu a maturidade... e isso os levou à conclusão óbvia. Seja como for que tenha acontecido, foi algo complexo e deve ter levado muito tempo. E muitos habitantes primitivos das estepes devem ter morrido tentando. Esse é um dos maiores avanços da história humana, muito mais significativo que o papel, a impressão, a bússola e a pólvora, as quatro grandes invenções da China. Sem os cavalos, a vida na antiguidade seria inimaginável, muito pior do que vivermos sem automóveis, trens e tanques na sociedade moderna. E é por isso que as contribuições dos antigos nômades para a humanidade são incalculáveis.”


“– O espírito de luta é mais importante que o espírito pacífico de trabalho. A maior obra de engenharia do mundo, em termos de produção da mão-de-obra, a nossa Grande Muralha, não resistiu aos guerreiros montados de uma das menores raças do mundo. Se você sabe trabalhar mas não é capaz de lutar, quem é você? É como um capão: trabalha para as pessoas, ouve desaforos delas e lhes serve de transporte. E, ao se deparar com um lobo, enfia o rabo entre as pernas e foge. Agora, compare isso com um daqueles garanhões que usam os dentes e os cascos como armas.”


“Nas lutas entre cães e lobos, o ventre dos adversários é um alvo muito importante. Quando um consegue atingir a barriga do outro, aquele que foi ferido está condenado. É por isso que nem os cães nem os lobos expõem a barriga a ninguém, animal ou humano, em quem não tenham absoluta confiança.”


“– Agora entendo como a cavalaria de Gêngis Khan conseguia se deslocar tão depressa. Os lobos obrigavam os cavalos a correr noite após noite, e eles ganhavam velocidade e energia para percorrer longas distâncias. É comum eu assistir à sua luta incessante e trágica pela sobrevivência contra esses predadores. Os lobos atacam à noite, de forma implacável, e nunca desistem, não dando aos cavalos a chance de descansar. Quando ficam para trás, os cavalos velhos, doentes, lentos e pequenos, assim como os potros e as éguas prenhes, são cercados e devorados vivos. Você nunca viu a triste cena de cavalos correndo para salvar a vida. Eles não param, soltando espuma pela boca e banhados de suor. Alguns usam toda sua força para escapar e morrem assim que param e se deitam. Literalmente morrem de cansaço. Os mais velozes às vezes conseguem algum intervalo para devorar um pouco de capim. Ficam tão famintos que são capazes de comer qualquer coisa, até juncos secos, e têm tanta sede que bebem de tudo, inclusive água salobra, mesmo misturada com urina de bois e ovelhas. Os cavalos mongóis vêm em primeiro lugar em matéria de força, energia, digestão, sistema imunológico e capacidade de resistir ao calor e ao frio. Mas só os tropeiros sabem que todas essas qualidades foram desenvolvidas à força, pela velocidade e pelas presas dos lobos. (...)
– Lembro-me de você ter dito que todas as tribos das estepes que travaram batalhas aqui, desde os quanrongs, os hunos, os tungus e os turcos até os mongóis de hoje, compreendiam os segredos e o valor dos lobos. Isso faz cada vez mais sentido para mim. Os lobos deram aos mongóis a natureza feroz dos combatentes, a sabedoria da guerra sofisticada e os melhores cavalos de batalha. Essas três vantagens militares tornaram possíveis suas impressionantes conquistas.”


“Segundo Bilgee, em tempos antigos os cães-da-pradaria eram usados como alvos vivos para crianças mongóis treinarem arco-e-flecha. Escolhidos por sua velocidade e pela visão aguçada, eram bons alvos para as crianças da Mongólia, que eram instruídas a não voltar para casa enquanto não acertassem o número de animais que seus pais determinavam. O parque de diversões dessas crianças eram as estepes, e essa era sua brincadeira favorita. Era comum elas ficarem tão entretidas que se esqueciam de ir para casa comer. Já mais velhas, trocavam seus pequenos arcos por outros maiores e exercitavam o tiro a cavalo. Jebe, o general de Gêngis Khan que conquistou a Rússia, era um arqueiro famoso e tinha aprendido a disparar assim. Era capaz de acertar um cão-da-pradaria na cabeça, montado num cavalo a galope, a uma distância de 100 metros. Bilgee dizia que a habilidade dos mongóis como cavaleiros e arqueiros havia protegido as estepes e contribuído para que eles dominassem o mundo. Acertar o alvo menor, mais esperto e mais difícil, era sua maneira de se aperfeiçoar no arco-e-flecha.”

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