Editora: Belas Letras
ISBN: 978-85-60174-78-2
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 144
Sinopse: Neste
livro, Humberto Gessinger passa o passado a limpo, resgata momentos especiais
da sua intimidade desde menino e conta novas velhas histórias dos Engenheiros
do Hawaii, nunca antes publicadas. De Passo Fundo a Moscou, passando por
“Esparta Alegre”, lembranças de um futuro que ele imaginava dão forma a essas
linhas conduzidas pelos mapas do acaso. Para saber qualé a dele e da sua
poesia, que é pura grandeza a partir de coisas simples, é só embarcar... e
seguir viagem...
“Na ilusão de que seria um eterno provisório,
comprei a armação de óculos que me pareceu mais bacana, sem pensar em como
ficaria no meu rosto. Não me dei conta de que, daquele momento em diante,
aquilo também seria meu rosto. Só depois, descobri que rola uma ciência aí, se
não me engano, aconselham armações com formato contrário ao do rosto. Rosto
comprido, óculos estreitos. Algo assim... nem sempre o modelo que se quer é o
modelo que se deve.
Essa é uma briga para a vida inteira: querer
o que se pode, poder o que se quer. O único esporte para o qual eu levava algum
jeito, quando criança, era o vôlei. Mas eu não gostava. Fui mais feliz sendo um
goleiro mediano e um tenista sofrível do que sendo um bom jogador de vôlei.
Frequentemente, aplico esse raciocínio aos
instrumentos que toco. Quais quero e quais eu devo? Me tranquilizo lembrando
que a arte não tem objetivos lineares como o esporte. Não se trata de ganhar ou
perder, ser mais rápido ou mais forte.
A utilização de óculos desde cedo pode ser
sublimada em uma canção, como muito bem fizeram os Paralamas do Sucesso. Mais
difícil é glamourizar os óculos que chegam, e chegam para todos, aos quarenta
anos. Resta o consolo de Martin Fierro: “O diabo sabe mais por ser velho do que
por ser diabo”. Essa citação do poema de José Hernandez também deve valer mais
por velha e surrada do que por sábia.”
“Em dezembro de 1985, ainda mais estudantes
de arquitetura do que músicos, os Engenheiros do Hawaii tocaram em Passo Fundo.
Cidade distante uns 300 quilômetros de Porto Alegre, nunca tínhamos ido tão
longe. Tempos anteriores à internet. Longe era longe. (...)
Meu equipamento era uma guitarra Gianini e um
pedal de efeito. Amplificador, eu dava um jeito de arranjar. Não tínhamos
disco, ainda. Viajávamos com uma fita da música Segurança para
a eventualidade de alguma rádio local se aventurar a tocar. Não tocávamos
covers, éramos autorais até os ossos. Um pouco por virtude e um pouco por
defeito. Quando tentava tocar alguma música de outro cara, eu acabava compondo
uma nova antes de aprender.”
“Depois do show, enquanto batíamos papo na
rua (bons tempos em que dava pra fazer isso) vi chegar um Fiat 147, carro que
parecia incrivelmente pequeno na época. Havia uma vaga do tamanho exato para
estacionar. Ao contrário do que se costuma fazer, o motorista entrou com a
parte dianteira do carro na vaga. Desligou o motor, saiu, agarrou o pára-choque
traseiro, de costas, ergueu e acabou de estacionar o carro no braço! Esfregou
as mãos, e, com o canto do olho, conferiu se todos tinham visto a façanha.
Desde então, para mim, estacionar o carro do jeito normal passou a ser tão
enfadonho!”
“Não cheguei a conhecer meus avós paternos,
Rodolfo e Rosália. Morreram antes do meu nascimento. Nos feriados de finados,
sempre visitávamos o pequeno cemitério onde eles estão enterrados, numa cidade
do interior gaúcho. Lembro do portãozinho, coisa de meio metro, que rangia
muito e excitava minha imaginação de criança. Para que serviria um portão de
cemitério? Para evitar que alguém entrasse ou que algo saísse?”
“Quando eu tinha uns 10 anos, um caso
esquisito dominava as manchetes: o sequestro da herdeira de um milionário
império jornalístico americano. Se chamava Patrícia Hearst. Foi sequestrada
pelo Exército Simbionês de Libertação, um grupo terrorista de orientação
marxista. Estranho, né? Ela acabou se juntando ao grupo e participando de um
assalto a banco. Diziam que havia sofrido lavagem cerebral.
Talvez viesse daí o fascínio que o caso
exercia: “lavagem cerebral”. Duas palavras que ficaram estranhas uma ao lado da
outra. Depois começaram a falar em “Síndrome de Estocolmo”, um estado
psicológico no qual a vítima se identifica emocionalmente com o agressor.
Acho que desenvolvi uma síndrome dessas ao
contrário. Um estado psicológico em que o vencedor se identifica emocionalmente
com o derrotado. Costumo virar simpatizante dos times que perdem para o Grêmio
em jogos emblemáticos. Até coleciono suas camisas. Estão na lista Hamburgo,
Peñarol e Náutico. Chamo essas camisas de “escalpos”. Carinhosamente.”
“Nessa época, eu aproveitava as viagens para
aumentar minha coleção de camisetas de clubes. As “oficiais”, em muitos
lugares, eram quase impossíveis de conseguir. Em Recife, ganhei camisas do
Náutico, Sport e Santa Cruz. Agradeci ao cara que me deu de presente, e ele
disse: “Não me custa, sou dirigente.” “De qual time?”, perguntei. “Dos três!”.”
“Um relógio parado acerta a hora pelo menos
duas vezes ao dia. Assim como a roupa no fundo do armário voltará à moda, num
mundo sem passado, onde, passados quinze minutos, tudo é vintage.
Assim como a gente pode parecer inteligente, esperto e bem informado ficando
calado.”
“Amadurecer é um pouco isso, deixar de ser
esperto.”
“Quem fala, e só fala, de música gostar de
pensar Lady Gaga com as mesmas ferramentas que serviam para pensar Janis
Joplin. Como se LP e download fossem, apenas, formas
diferentes de fazer a mesma coisa. Como se fosse possível separar forma e
conteúdo.
Para falar dos novos tempos, sempre
ressuscitam a “aldeia global”, de Marshall McLuhan ou a “relatividade” de Albert
Einstein. Será que eles sabiam mais sobre nosso tempo do que meu sobrinho que
joga videogame?
Os tempos são outros
Os erros, os mesmos”
“Esses livros da minha infância eram,
fisicamente, feios. Apesar de uma ou outra capa com desenho legal (Mês de
Cães Danados, do Moacyr Scliar, por exemplo, era até tatuável). Lembro de
ter comprado uma coleção em que, irritantemente, não havia dois livros do mesmo
tamanho. Muitas folhas eu tive de separar com uma faca. Bordas ásperas, cola e
costuras que se desfaziam na primeira leitura.
Esses livros da minha infância são,
fisicamente, lindos. Meu Lobo da Estepe se mantém uno por uma
sucessão de camadas de fita durex. Só o passar dos anos ensina que até o durex
é transitório. Quando a gente aplica a fita, ela parece segura e permanente.
Nada disso. Com o tempo, ela também dança. Meu Lobo da Estepe pode
ser visto como se vê um tronco de árvore cortado, cada anel significando um
ano. Uma fatia da Terra onde se conta o tempo geológico.
Minha assinatura nos livros também testemunha
passagem de tempo e busca de identidade. Começa como imitação da assinatura do
meu pai, passa a ser imitação de letra de arquiteto e chega ao que é agora, que
não sei bem o que é, que deve ser o que sou. Isso falta aos livros de
biblioteca: na primeira folha, assinatura de quem os leu.
Hoje, livrarias e livros estão tão bonitos!
Parecem viver um momento especial, ocupando um pouco do espaço dos discos, que
Deus os tenha. Talvez os livros sejam os próximos a fazer a travessia. E talvez
o mundo virtual seja ecologicamente correto. Para mim e para minha geração,
discos e livros eram testemunhas físicas de nosso crescimento. Cada palmo
conquistado nas prateleiras da casa correspondia a um mundo interior mais rico.
Difícil de medir em bytes.”
“Livros comprados, livros de biblioteca e
livros emprestados são coisas completamente diferentes. Cada uma com seus
atrativos. Os emprestados são mais estranhos. Sempre trazem um pouco de
catequese. Os olhos de quem emprestou vêm junto. A leitura carrega a
perspectiva de um futuro diálogo: “E aí, o que achou?”. Sem falar no pecado
mortal que seria não devolvê-los. Tirando todo esse peso, há sempre o bom
astral da atitude generosa.”
Nota mental para uma próxima vida:
Falar mais devagar, digitar com mais atenção,
reler antes de postar,
escrever de forma legível, pensar antes de
falar,
falar mais devagar...
“Tudo bem se a digitação transformar Pra
Ser Sincero em Prazer Sincero. Só não pode
transformar Simples de Coração em Simples Decoração.
É bom ficar ligado para que lesma lerda não vire mesma
merda. Uma digitação afoita pode transformar uma coisa fofa numa coisa
foda. (...)
Quanto à minha letra, não tenho esperança de
torná-la legível nem em uma próxima vida. Quando comecei a gravar recados para
mim mesmo, senti que estava cometendo eutanásia, dando a extrema-unção à minha
caligrafia. Ah, como eu queria de volta as horas que perdi tentando ler o que
havia escrito em pedaços de papel mal rasgados na noite anterior...”
Nota mental para uma próxima vida:
Cineminha, ao menos uma vez por semana.
Chocolate, só uma vez por semana.
“Sem uma equipe na qual diluir a natural
decadência, todo atleta individual, se for honesto, acaba sua carreira por
baixo. Com olho roxo, se for boxeador. Se for tenista, perdendo para alguém
pior, mas com pernas mais jovens. Na sinuca, mastigando um cigarro que mãos
trêmulas levaram à boca. No xadrez, sofrendo uma estafa que o fará ver as peças
se moverem sozinhas. Se não vivêssemos numa sociedade infantilmente escrava da
vitória, apreciaríamos essas derrotas como representações do ciclo natural da
vida.”
“Num estúdio, em Los Angeles, li uma placa
que poderia ser traduzida assim: “Relaxe, senão, conseguiremos alguém para
relaxar no seu lugar”. Quer deixar alguém tenso? Diga para ele relaxar (Quer
contar uma piada para Deus: Faça um plano). É a sina de quem depende do sutil
equilíbrio entre inspiração e transpiração. Grace under pressure. A
sina de quem ouve vozes. Vozes que nem sempre soam quando são esperadas. Uma
interessante família espiritual vive disso. Ainda que a arte não tenha
objetivos lineares como o esporte, em inglês, com a mesma palavra (play),
se joga tênis e se toca guitarra.”
“Não chegam a me perguntar, mas acho que
algumas pessoas, de tanto ficar olhando a capa de algum disco antigo, gostariam
de saber se sou meu pai. Com sorte e com o passar do tempo, chegará o dia em
que teremos, todos, a cara dos nossos avós.
A não ser que façamos como os políticos estão
fazendo. Chegam ao fim da campanha mais jovens do que começaram. Todos com os
mesmos dentes brancos e os mesmos sorrisos e ideias botoxados.
Uma pena. As definições de esquerda e direita
que parecem não valer mais na economia e na política, poderiam encontrar
refúgio em questões éticas e estéticas. Contra a extinção do cabelo grisalho!
Contra o medo das rugas, que nada mais é do que medo da vida! Contra o medo.
Não era assim? Pela generosidade, esquerdas...”
Nota mental para uma próxima vida:
Aprender com a natureza.
Meus cães, por exemplo: eles só comem e
dormem.
(e não têm animais de estimação)
“Mudança, como se tudo coubesse num caminhão.
(...) Ali, logo ali, depois da curva, meu time, o Grêmio, vai trocar de
estádio. (...)
Do estádio que conheci com meu pai, estou me
despedindo, aos poucos, com minha filha. Esse espaço mágico e único vai se
transformar em mais um pedaço da cidade, igual a outros. Certamente, teremos um
estádio bacana, a Arena. Talvez tenhamos que carregar algum nome de
patrocinador, Arena Alguma Coisa. São os tempos, vamos que vamos. Mas é
estranho. Certas coisas deveriam durar, senão para sempre, pelo menos mais do
que a gente.”
Nota mental para uma próxima vida:
Tenha talento, trabalhe como um condenado,
sue sangue, e você conseguirá tudo sem esforço.
“A aposta que faço é no talento, no trabalho,
no senso de missão e na possibilidade de fracasso. Talvez, até, na necessidade
do fracasso. Nestes tempos tão casuais, ninguém quer se comprometer com uma
missão. Muito menos inventar, construir sua própria missão. Fica um acordo
tácito no ar, de que nada vale muito à pena. Falta de ambição virou um salvo
conduto. É filminho pra lá, musiquinha pra cá, livrinho pra lá, piadinha pra
todo lado. Acorrentados ao que temos para o momento, transcendência virou
palavrão. Já que a vida é uma só, que seja só uma bobagem. Já que a queda é
inevitável, que seja da menor altura possível. Uma boa desculpa para rastejar.”
Sweet Tulipa
ele queria todas as noites a mesma estrela
ela queria todas as estrelas a mesma noite
ela tinha o andar apressado de quem não pode parar
ele tinha o olhar parado de quem não pode acreditar
ele olhava a porta que se abria
ela abria os olhos mas não (ha)via nada
ninguém quis dançar conforme a música do ballet do rancor
ele sem sair de casa, sem sair do quarto, sem sair da
cama
ela mudando de roupa, mudando o canal, em outro planeta
ela, que não acreditava em Deus, disse: Deus te proteja
ele, que nunca teve medo, pensou duas vezes
e o rio segue seu curso…
sem ouvir o que se diz, o que se discursa
e se renova, sem revolta, sem recusa, é o seu único
recurso.
“Viola caipira é o instrumento que a gente
passa metade do tempo afinando e metade do tempo tocando desafinada.
A vida é um pouco assim, a gente pode passar
metade do tempo fazendo planos e a outra metade tendo que improvisar.”
Excelente postagem ! Pensamentos que vão muito além da superficialidade dessa época em que vivemos! Parabéns pela divulgação !
ResponderExcluirE ainda congitar sobre o que se planejou era realmente algo planejado , ou se o acaso não traçou seu rumo,ou ainda se o que traçamos seria um mero arcabouço fruto do acaso improvisado nas entrelinhas do tempo; "Um Mapa do Acaso".
ResponderExcluirComo um dos poucos que não acha Humberto chato, mas um gênio muitas vezes incompreendido, lerei com certeza.
ResponderExcluirAbraço!