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quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Mapas do Acaso: 45 variações sobre um mesmo tema – Humberto Gessinger

Editora: Belas Letras
ISBN: 978-85-60174-78-2
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 144
Sinopse: Neste livro, Humberto Gessinger passa o passado a limpo, resgata momentos especiais da sua intimidade desde menino e conta novas velhas histórias dos Engenheiros do Hawaii, nunca antes publicadas. De Passo Fundo a Moscou, passando por “Esparta Alegre”, lembranças de um futuro que ele imaginava dão forma a essas linhas conduzidas pelos mapas do acaso. Para saber qualé a dele e da sua poesia, que é pura grandeza a partir de coisas simples, é só embarcar... e seguir viagem...



“Na ilusão de que seria um eterno provisório, comprei a armação de óculos que me pareceu mais bacana, sem pensar em como ficaria no meu rosto. Não me dei conta de que, daquele momento em diante, aquilo também seria meu rosto. Só depois, descobri que rola uma ciência aí, se não me engano, aconselham armações com formato contrário ao do rosto. Rosto comprido, óculos estreitos. Algo assim... nem sempre o modelo que se quer é o modelo que se deve.
Essa é uma briga para a vida inteira: querer o que se pode, poder o que se quer. O único esporte para o qual eu levava algum jeito, quando criança, era o vôlei. Mas eu não gostava. Fui mais feliz sendo um goleiro mediano e um tenista sofrível do que sendo um bom jogador de vôlei.
Frequentemente, aplico esse raciocínio aos instrumentos que toco. Quais quero e quais eu devo? Me tranquilizo lembrando que a arte não tem objetivos lineares como o esporte. Não se trata de ganhar ou perder, ser mais rápido ou mais forte.
A utilização de óculos desde cedo pode ser sublimada em uma canção, como muito bem fizeram os Paralamas do Sucesso. Mais difícil é glamourizar os óculos que chegam, e chegam para todos, aos quarenta anos. Resta o consolo de Martin Fierro: “O diabo sabe mais por ser velho do que por ser diabo”. Essa citação do poema de José Hernandez também deve valer mais por velha e surrada do que por sábia.”


“Em dezembro de 1985, ainda mais estudantes de arquitetura do que músicos, os Engenheiros do Hawaii tocaram em Passo Fundo. Cidade distante uns 300 quilômetros de Porto Alegre, nunca tínhamos ido tão longe. Tempos anteriores à internet. Longe era longe. (...)
Meu equipamento era uma guitarra Gianini e um pedal de efeito. Amplificador, eu dava um jeito de arranjar. Não tínhamos disco, ainda. Viajávamos com uma fita da música Segurança para a eventualidade de alguma rádio local se aventurar a tocar. Não tocávamos covers, éramos autorais até os ossos. Um pouco por virtude e um pouco por defeito. Quando tentava tocar alguma música de outro cara, eu acabava compondo uma nova antes de aprender.”


“Depois do show, enquanto batíamos papo na rua (bons tempos em que dava pra fazer isso) vi chegar um Fiat 147, carro que parecia incrivelmente pequeno na época. Havia uma vaga do tamanho exato para estacionar. Ao contrário do que se costuma fazer, o motorista entrou com a parte dianteira do carro na vaga. Desligou o motor, saiu, agarrou o pára-choque traseiro, de costas, ergueu e acabou de estacionar o carro no braço! Esfregou as mãos, e, com o canto do olho, conferiu se todos tinham visto a façanha. Desde então, para mim, estacionar o carro do jeito normal passou a ser tão enfadonho!”


“Não cheguei a conhecer meus avós paternos, Rodolfo e Rosália. Morreram antes do meu nascimento. Nos feriados de finados, sempre visitávamos o pequeno cemitério onde eles estão enterrados, numa cidade do interior gaúcho. Lembro do portãozinho, coisa de meio metro, que rangia muito e excitava minha imaginação de criança. Para que serviria um portão de cemitério? Para evitar que alguém entrasse ou que algo saísse?”


“Quando eu tinha uns 10 anos, um caso esquisito dominava as manchetes: o sequestro da herdeira de um milionário império jornalístico americano. Se chamava Patrícia Hearst. Foi sequestrada pelo Exército Simbionês de Libertação, um grupo terrorista de orientação marxista. Estranho, né? Ela acabou se juntando ao grupo e participando de um assalto a banco. Diziam que havia sofrido lavagem cerebral.
Talvez viesse daí o fascínio que o caso exercia: “lavagem cerebral”. Duas palavras que ficaram estranhas uma ao lado da outra. Depois começaram a falar em “Síndrome de Estocolmo”, um estado psicológico no qual a vítima se identifica emocionalmente com o agressor.
Acho que desenvolvi uma síndrome dessas ao contrário. Um estado psicológico em que o vencedor se identifica emocionalmente com o derrotado. Costumo virar simpatizante dos times que perdem para o Grêmio em jogos emblemáticos. Até coleciono suas camisas. Estão na lista Hamburgo, Peñarol e Náutico. Chamo essas camisas de “escalpos”. Carinhosamente.”


“Nessa época, eu aproveitava as viagens para aumentar minha coleção de camisetas de clubes. As “oficiais”, em muitos lugares, eram quase impossíveis de conseguir. Em Recife, ganhei camisas do Náutico, Sport e Santa Cruz. Agradeci ao cara que me deu de presente, e ele disse: “Não me custa, sou dirigente.” “De qual time?”, perguntei. “Dos três!”.”


“Um relógio parado acerta a hora pelo menos duas vezes ao dia. Assim como a roupa no fundo do armário voltará à moda, num mundo sem passado, onde, passados quinze minutos, tudo é vintage. Assim como a gente pode parecer inteligente, esperto e bem informado ficando calado.”


“Amadurecer é um pouco isso, deixar de ser esperto.”


“Quem fala, e só fala, de música gostar de pensar Lady Gaga com as mesmas ferramentas que serviam para pensar Janis Joplin. Como se LP e download fossem, apenas, formas diferentes de fazer a mesma coisa. Como se fosse possível separar forma e conteúdo.
Para falar dos novos tempos, sempre ressuscitam a “aldeia global”, de Marshall McLuhan ou a “relatividade” de Albert Einstein. Será que eles sabiam mais sobre nosso tempo do que meu sobrinho que joga videogame?
Os tempos são outros
Os erros, os mesmos


“Esses livros da minha infância eram, fisicamente, feios. Apesar de uma ou outra capa com desenho legal (Mês de Cães Danados, do Moacyr Scliar, por exemplo, era até tatuável). Lembro de ter comprado uma coleção em que, irritantemente, não havia dois livros do mesmo tamanho. Muitas folhas eu tive de separar com uma faca. Bordas ásperas, cola e costuras que se desfaziam na primeira leitura.
Esses livros da minha infância são, fisicamente, lindos. Meu Lobo da Estepe se mantém uno por uma sucessão de camadas de fita durex. Só o passar dos anos ensina que até o durex é transitório. Quando a gente aplica a fita, ela parece segura e permanente. Nada disso. Com o tempo, ela também dança. Meu Lobo da Estepe pode ser visto como se vê um tronco de árvore cortado, cada anel significando um ano. Uma fatia da Terra onde se conta o tempo geológico.
Minha assinatura nos livros também testemunha passagem de tempo e busca de identidade. Começa como imitação da assinatura do meu pai, passa a ser imitação de letra de arquiteto e chega ao que é agora, que não sei bem o que é, que deve ser o que sou. Isso falta aos livros de biblioteca: na primeira folha, assinatura de quem os leu.
Hoje, livrarias e livros estão tão bonitos! Parecem viver um momento especial, ocupando um pouco do espaço dos discos, que Deus os tenha. Talvez os livros sejam os próximos a fazer a travessia. E talvez o mundo virtual seja ecologicamente correto. Para mim e para minha geração, discos e livros eram testemunhas físicas de nosso crescimento. Cada palmo conquistado nas prateleiras da casa correspondia a um mundo interior mais rico. Difícil de medir em bytes.”


“Livros comprados, livros de biblioteca e livros emprestados são coisas completamente diferentes. Cada uma com seus atrativos. Os emprestados são mais estranhos. Sempre trazem um pouco de catequese. Os olhos de quem emprestou vêm junto. A leitura carrega a perspectiva de um futuro diálogo: “E aí, o que achou?”. Sem falar no pecado mortal que seria não devolvê-los. Tirando todo esse peso, há sempre o bom astral da atitude generosa.”


Nota mental para uma próxima vida:
Falar mais devagar, digitar com mais atenção,
reler antes de postar,
escrever de forma legível, pensar antes de falar,
falar mais devagar...


“Tudo bem se a digitação transformar Pra Ser Sincero em Prazer Sincero. Só não pode transformar Simples de Coração em Simples Decoração. É bom ficar ligado para que lesma lerda não vire mesma merda. Uma digitação afoita pode transformar uma coisa fofa numa coisa foda. (...)
Quanto à minha letra, não tenho esperança de torná-la legível nem em uma próxima vida. Quando comecei a gravar recados para mim mesmo, senti que estava cometendo eutanásia, dando a extrema-unção à minha caligrafia. Ah, como eu queria de volta as horas que perdi tentando ler o que havia escrito em pedaços de papel mal rasgados na noite anterior...”


Nota mental para uma próxima vida:
Cineminha, ao menos uma vez por semana.
Chocolate, só uma vez por semana.


“Sem uma equipe na qual diluir a natural decadência, todo atleta individual, se for honesto, acaba sua carreira por baixo. Com olho roxo, se for boxeador. Se for tenista, perdendo para alguém pior, mas com pernas mais jovens. Na sinuca, mastigando um cigarro que mãos trêmulas levaram à boca. No xadrez, sofrendo uma estafa que o fará ver as peças se moverem sozinhas. Se não vivêssemos numa sociedade infantilmente escrava da vitória, apreciaríamos essas derrotas como representações do ciclo natural da vida.”


“Num estúdio, em Los Angeles, li uma placa que poderia ser traduzida assim: “Relaxe, senão, conseguiremos alguém para relaxar no seu lugar”. Quer deixar alguém tenso? Diga para ele relaxar (Quer contar uma piada para Deus: Faça um plano). É a sina de quem depende do sutil equilíbrio entre inspiração e transpiração. Grace under pressure. A sina de quem ouve vozes. Vozes que nem sempre soam quando são esperadas. Uma interessante família espiritual vive disso. Ainda que a arte não tenha objetivos lineares como o esporte, em inglês, com a mesma palavra (play), se joga tênis e se toca guitarra.”


“Não chegam a me perguntar, mas acho que algumas pessoas, de tanto ficar olhando a capa de algum disco antigo, gostariam de saber se sou meu pai. Com sorte e com o passar do tempo, chegará o dia em que teremos, todos, a cara dos nossos avós.
A não ser que façamos como os políticos estão fazendo. Chegam ao fim da campanha mais jovens do que começaram. Todos com os mesmos dentes brancos e os mesmos sorrisos e ideias botoxados.
Uma pena. As definições de esquerda e direita que parecem não valer mais na economia e na política, poderiam encontrar refúgio em questões éticas e estéticas. Contra a extinção do cabelo grisalho! Contra o medo das rugas, que nada mais é do que medo da vida! Contra o medo. Não era assim? Pela generosidade, esquerdas...”


Nota mental para uma próxima vida:
Aprender com a natureza.
Meus cães, por exemplo: eles só comem e dormem.
(e não têm animais de estimação)


“Mudança, como se tudo coubesse num caminhão. (...) Ali, logo ali, depois da curva, meu time, o Grêmio, vai trocar de estádio. (...)
Do estádio que conheci com meu pai, estou me despedindo, aos poucos, com minha filha. Esse espaço mágico e único vai se transformar em mais um pedaço da cidade, igual a outros. Certamente, teremos um estádio bacana, a Arena. Talvez tenhamos que carregar algum nome de patrocinador, Arena Alguma Coisa. São os tempos, vamos que vamos. Mas é estranho. Certas coisas deveriam durar, senão para sempre, pelo menos mais do que a gente.”


Nota mental para uma próxima vida:
Tenha talento, trabalhe como um condenado, sue sangue, e você conseguirá tudo sem esforço.


“A aposta que faço é no talento, no trabalho, no senso de missão e na possibilidade de fracasso. Talvez, até, na necessidade do fracasso. Nestes tempos tão casuais, ninguém quer se comprometer com uma missão. Muito menos inventar, construir sua própria missão. Fica um acordo tácito no ar, de que nada vale muito à pena. Falta de ambição virou um salvo conduto. É filminho pra lá, musiquinha pra cá, livrinho pra lá, piadinha pra todo lado. Acorrentados ao que temos para o momento, transcendência virou palavrão. Já que a vida é uma só, que seja só uma bobagem. Já que a queda é inevitável, que seja da menor altura possível. Uma boa desculpa para rastejar.”


Sweet Tulipa
ele queria todas as noites a mesma estrela
ela queria todas as estrelas a mesma noite
ela tinha o andar apressado de quem não pode parar
ele tinha o olhar parado de quem não pode acreditar
ele olhava a porta que se abria
ela abria os olhos mas não (ha)via nada
ninguém quis dançar conforme a música do ballet do rancor

ele sem sair de casa, sem sair do quarto, sem sair da cama
ela mudando de roupa, mudando o canal, em outro planeta
ela, que não acreditava em Deus, disse: Deus te proteja
ele, que nunca teve medo, pensou duas vezes
e o rio segue seu curso…
sem ouvir o que se diz, o que se discursa
e se renova, sem revolta, sem recusa, é o seu único recurso.


“Viola caipira é o instrumento que a gente passa metade do tempo afinando e metade do tempo tocando desafinada.
A vida é um pouco assim, a gente pode passar metade do tempo fazendo planos e a outra metade tendo que improvisar.”

3 comentários:

  1. Excelente postagem ! Pensamentos que vão muito além da superficialidade dessa época em que vivemos! Parabéns pela divulgação !

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  2. E ainda congitar sobre o que se planejou era realmente algo planejado , ou se o acaso não traçou seu rumo,ou ainda se o que traçamos seria um mero arcabouço fruto do acaso improvisado nas entrelinhas do tempo; "Um Mapa do Acaso".

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  3. Como um dos poucos que não acha Humberto chato, mas um gênio muitas vezes incompreendido, lerei com certeza.
    Abraço!

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