Editora: Civilização Brasileira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 284
“O gosto amargo da injustiça queima as
entranhas, sangra o coração, exige o conduto político para não se perder na
revolta individual ou na abnegada fatalidade do destino.”
“Primeiro de maio de 1936. Nas manifestações
dos trabalhadores paulistas, a Polícia Especial de Filinto Müller detecta a
presença do PCB sob o comando astuto de Carlos Marighella. Preso, o
jovem comunista é torturado durante vinte e três dias. Querem os nomes de seus
companheiros de Partido. A dor faz-se companheira em seu silêncio. A vida e a
liberdade de seus camaradas no PCB valem mais do que a dele. Esse o preço
da fidelidade a uma causa, salário de morte e de amor que não se paga com o
simples querer. A resistência humana tem limites nem sempre conhecidos. Ao
encarnar em sua vida os ideais pelos quais lutava, Marighella conseguiu que o
limite de sua resistência chegasse à fronteira em que a morte recebe o
sacrifício como dom.”
““Os brasileiros estão diante de uma
alternativa” – escreve Marighella em Porque Resisti à Prisão. “Ou
resistem à situação criada com o golpe de 1° de abril ou se conformam com ela.
(...) Antes tínhamos a chamada democracia representativa. Nela, a inflação
prosseguia em sua marcha acelerada. Os trustes norte-americanos mandavam. O
latifúndio predominava. Milhões de homens do povo não podiam votar. Analfabetos
e praças não tinham o direito de voto. Os comunistas não podiam ser eleitos,
ainda que pudessem votar. Era uma democracia racionada. E racionada por isto.
Porque os direitos individuais pelo menos eram respeitados, mas as restrições à
participação do povo nessa democracia eram flagrantes. E injustas. Tal
democracia, pela sua própria estrutura, constituía por si mesma um empecilho à
realização das reformas sociais – as chamadas reformas de base. E por mais que
oferecessem oportunidades – amparando os direitos individuais – sentia-se
emperrada. E não podia avançar pacificamente. Como de fato não avançou; e
acabou golpeada. As forças de direita do fascismo militar brasileiro deram-lhe
o tiro da misericórdia.”
““O que havia de errado nesse tipo de
democracia vinha de longe. Era um vício de origem. Um pecado original. Não se tratava
de uma democracia feita pelo povo. Quem a instituiu foram as classes
dirigentes. Nesse arcabouço erigido pelas elites, as massas conquistaram alguns
direitos, ali introduzidos graças às suas lutas. Historicamente o mal dessa
democracia era, acima de tudo, o seu conteúdo de elite, com a ostensiva
marginalização das grandes massas exploradas – o proletariado crescendo sem
nunca chegar à integração de direitos exigida pelo seu papel na produção. E os
camponeses inteiramente por fora – párias da democracia – sob a ultrajante
justificativa de sua condição de atraso e suprema escravização aos interesses
dos senhores da terra”.
Se por um lado Marighella ainda refletia a
opinião vigente na cúpula do PCB de que “a atual ditadura” é
“precária”, por outro apontava quem eram os violentos e os subversivos: “As
classes dirigentes não vacilaram em empregar a violência e subverter a ordem
constitucional para liquidar com as liberdades, evitando que delas se
favorecessem as massas e opondo uma barreira à participação do povo no poder”.
Nomeia ele o “denominador comum” entre a tradição democrática brasileira e a
“atual ditadura” – “o predomínio inalterado do poder das classes dirigentes, a
defesa suprema de seus interesses contra os interesses das grandes massas, quer
sobrevivam ou não as liberdades”.
A liberdade não é um valor reconhecido pela
oligarquia brasileira, adverte Marighella. Ela pode existir, sempre
“racionada”, desde que não ameace os interesses dominantes. Esses interesses
estão acima dos valores humanos e políticos. Para assegurá-los, “a cadeia, a
polícia, os tribunais – sem falar nas leis de defesa do Estado, como
é o caso da Lei de Segurança Nacional – são e sempre foram (até que
sejam derrogadas dessa investidura) os principais meios jurídicos da afirmação
do poderio e da supremacia das classes que dominam no Brasil”.”
“Marighella faz o inventário dos golpes mais
recentes: “O golpe de 10 de novembro de 1937 implantou o Estado Novo, espécie
de fascismo peculiar ao Brasil na época da ascensão do nazismo. O de 29 de
outubro de 1945 levou a deposição de Getúlio Vargas e destinava-se a impedir a
livre eleição de uma Assembleia Constituinte. O de 24 de agosto de 1954 induziu
ao suicídio de Vargas e objetivava anular a Constituição de 1946. O de 11 de
novembro de 1955 tinha em vista impedir a posse do presidente eleito, o que
motivou, na mesma data, o contragolpe vitorioso chefiado pelo então general
Lott. Isto fez fracassar os intuitos dos golpistas. O de 25 de agosto de 1961
conduziu à renúncia de Jânio e à insubordinação dos ministros militares
fascistas, sublevados com a posse de Jango – substituto legal do
presidente renunciante. O de 1.° de abril – o mais recente e
calamitoso – deu origem à deposição de Jango e levou à ditadura dos
‘gorilas’.”
“Na conclusão de que “a ditadura deve ser
derrotada”, Marighella admite que “o único meio, para a reconquista da
democracia, ou melhor, para a conquista de uma democracia em consonância com a
realidade econômica e social brasileira, é a luta de massas com as forças populares
e nacionalistas à frente”.”
““Quando a liderança do proletariado se
subordina à liderança da burguesia ou com ela se
identifica” – escreve ele (Marighella) –, “a aplicação da linha
revolucionária sofre inevitavelmente desvios para a esquerda e a direita”. Após
identificar os erros do Partido (PCB), como “o reboquismo” ao Governo, “a perda
do sentido de classe”, “a falta de condições ideológicas na liderança marxista”
e “a falsa tese da nova tática do imperialismo”, segundo
a qual “o imperialismo norte-americano não estaria interessado em golpes e
ditadura”, Marighella reconhece que agora “entramos numa fase de recuo”.
Trata-se, pois, de organizar o movimento de massas, a “frente única
antiditadura”, não para “visar, nas condições atuais, a pressão sobre o
governo... O objetivo do movimento de massas é levar a ditadura à derrota,
substituí-la por outro governo.” Novamente admite que o “o caminho pacífico
está superado. (...) Sem uma estratégia revolucionária, sem a ação
revolucionária apoiada no trabalho pela base e não exclusivamente de cúpula, é
impossível construir a frente única, movimentar as massas e dar-lhes a
liderança exigida para a vitória sobre a ditadura”.”
“É através das dissidências que a História
acerta os seus passos. Há um momento em que as possibilidades de uma
proposta – religiosa ou política –parecem
esgotar-se sob o peso dos anos, da rigidez de seus princípios, da
inflexibilidade de sua disciplina, da intransigência de seus dogmas, da
prepotência de seus líderes. Como a fonte seca à beira da estrada, incapaz de
saciar a sede dos peregrinos que atraiu, a proposta vê-se rejeitada por seus
discípulos dispostos a caminhar sem a tutela que lhes atrasa o passo. Foi o que
ocorreu na Palestina do século I, onde o judaísmo, atravancado pela prodigiosa
e revolucionária “seita”, cujos membros anunciavam a ressurreição de um jovem
judeu crucificado pelos romanos, Jesus de Nazaré. Toda a história da Igreja é
como uma teia entrelaçada por experiências místicas e disputas ideológicas,
influências culturais e manobras políticas, heresias doutrinárias e inovações
pastorais. O centro dessa teia, a fé no Senhor, permanece intangível. Mas sua
extensão em intrincados labirintos é, de um lado, sinal da diversidade dos dons
do Espírito e, de outro, obra dessa incessante busca que faz do ser humano, em
seus anelos de perfeição, o aprendiz de Deus. A dissidência de Paulo, o
Apóstolo, quebra o caráter judaizante da primitiva Igreja de Pedro,
estendendo-a, como boa nova, aos pagãos, até os limites do Império Romano.
Entretanto, opera-se entre os cristãos uma experiência que, embora carregada de
exceções, se constitui na chave de sua unidade básica através dos séculos: a
dissidência não significa, necessariamente, ruptura. E é justamente essa
capacidade de uma instituição suportar a emergência do novo e assumir a
gravidez que prenuncia, ao mesmo tempo, a sua transformação e o seu futuro,
queda a ela perenidade. Se a Igreja dos papas revestidos de todo poder não
suportasse o desafio evangélico da presença incômoda de um Francisco de Assis,
ela teria sido tragada pelos séculos como as águas do mar acobertam a
embarcação que afunda sob o peso de sua excessiva carga. Lutero sabia disso e
fez o que pôde para prosseguir na luta interna. Mas a formação dos Estados europeus,
o interesse dos príncipes em uma fonte alternativa de sacralização do
poder – para escaparem ao monolitismo romano –, o
jogo econômico de um Renascimento que via agonizar a Idade Média e expandir-se
o mercantilismo que, em breve, daria ao trabalho meios industriais de produção,
inaugurando o capitalismo, fizeram com que a dissidência de Lutero adquirisse
foro de ruptura e inovação. Desde então, a luta interna se enfraqueceu nas
Igrejas protestantes, multiplicando as denominações segundo o número de dissidências.
Essa tensão entre a ortodoxia e a crítica que
a desnuda, tornando-a vulnerável, existe da mesma forma na história dos
partidos políticos, mormente entre as tendências de esquerda. Embora feita de
dissidências e de discordâncias, a política, como a religião, não as suporta e,
se não pode abatê-las pela mão de ferro do poder, recorre à difamação, à
discriminação e às explicações pretensamente psicológicas que reduzem o
adversário a um doente mental. Mesmo nas sociedades burguesas que ostentam o título
de democráticas, a discordância não passa de um acordo de cavalheiros para
encobrir os reais antagonismos. A lei que protege o patrão oprime o empregado;
o direito reconhecido no médico é desprezado no paciente; o aparelho jurídico
que não confunde o réu de colarinho e gravata com seu gesto criminoso é o mesmo
que reduz a existência do pobre ao momento infeliz de transgressão da lei.
Sobretudo, a discordância é admitida enquanto não ameaça passar o capital às
mãos de quem trabalha.
A árvore genealógica dos partidos e
movimentos de esquerda é rica em ramificações. De Lênin a Marighella, todos
apostataram aos olhos de seus antigos camaradas. Quando chega ao poder, o
“herege” é redimido pela vitória e absolvido pelos que o julgavam equivocado.
Quando se é abatido em plena luta, como a ave em seu voo, a morte é o atestado
de que necessitavam os “ortodoxos” à sua razão indelével, aferrada aos
conceitos e às normas que sacralizam um partido, fazendo-o transcender o real.
Entretanto, as novas gerações veem-na dissidência
a conquista da liberdade, ainda que, de fato, ela signifique recuo ou desvio.
Daí a facilidade com que os mais jovens aderem às propostas do momento, que
parecem brotar, como por encanto, da própria conjuntura que lhes é
contemporânea. Contudo, além da torrente de palavras que escorre dos estuários
de cada posição, na disputa inútil de uma certeza que o raciocínio não
comporta, resta a prática como critério da verdade. Ela e o tempo dirão quem
está certo e quem está errado. Indiferentes ao nosso maniqueísmo, é possível
que a prática e o tempo sejam menos intolerantes e apontem os erros e os
acertos de ambos os pratos da balança. Artífice real da História, as classes
populares seguirão sempre como o fiel da balança, pendendo para um dos lados e
confirmando as teorias que o inclinam na direção do futuro. Nesse movimento
dialético, da árvore genealógica que muitas vezes se abre na infinidade de
galhos e, por outras, se une em torno do tronco, é que a história das tendências políticas de esquerda tece as suas
razões que, contudo, só se fazem realidade quando deitam raízes na alma,
esperança e anseio irreprimível de liberdade das camadas oprimidas”.”
“Por ocasião do encerramento da OLAS,
Marighella dirige carta a Fidel Castro, denunciando o PCB: “OS que se
levantam contra o absurdo de uma direção ineficaz, imobilizada, imbecilizada
pelo medo da revolução, são atacados virulentamente, acusados de fracionismo,
aventureirismo e outros feios crimes (...). Ninguém vai deixar de ser comunista
por ser este o panorama desalentador da direção do PCB. Ao contrário,
o Partido é da classe operária e do povo e não monopólio dos que se intitularam
seus dirigentes (...) o importante é prosseguir na luta ideológica para mostrar
que a ideologia da burguesia penetrou fundo na direção do PCB”.”
“O segredo da vitória é o povo”.
“Nessa “Organização” – termo pelo
qual ficaria conhecido o grupo de Marighella –, “o que vale é a ação”
inspirada por três princípios básicos: “o primeiro é que o dever de todo
revolucionário é fazer a revolução; o segundo é que não pedimos licença para
praticar atos revolucionários, e o terceiro é que só temos compromissos com a
revolução”.”
“A partir de 1968, o Agrupamento passa a
constituir-se numa organização revolucionária, a Ação Libertadora Nacional
(ALN). O programa básico do movimento dirigido por Carlos Marighella propunha
“derrubar a ditadura militar” e “formar um governo revolucionário do povo”;
“expulsar do país os norte-americanos”; “expropriar os latifundiários" e
“melhorar as condições de vida dos operários, dos camponeses e das classes
médias”; “acabar com a censura, instituir a liberdade de imprensa, de crítica e
de organização”; “retirar o Brasil da posição de satélite da política externa
dos Estados Unidos e colocá-lo, no plano mundial, como uma nação
independente”.”
“O policial perguntou-me como era possível
conciliar a fé cristã com a opção política. Expliquei-lhe que o cristianismo é
essencialmente transformador e essa revolução não se limita à história, culmina
na transcendência. Jesus anunciou o Reino, a transformação radical deste mundo
segundo o projeto libertador do Pai. Onde há justiça, liberdade e amor, aí
estão as sementes do Reino de Deus. O cristão, como discípulo do Cristo, não
tem outro compromisso senão com o Espírito que nos anima na direção dessa
esperança. A fé desmascara, frente à palavra de Deus, o discurso ideológico dos
dominadores, Jesus assume a identidade dos oprimidos e neles quer ser amado e
servido: “tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era
forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes,
preso e viestes ver-me” (Mateus 25, 35-36). Servir à causa de libertação dos
pobres é servir a Cristo. Uma parte da Igreja afastou-se historicamente da
proposta evangélica. Trocou a aliança com o povo pela aliança com o poder. E o
capital simbólico de nossa fé foi apropriado pelos opressores. O cristianismo
passou a ser o espírito religioso do liberalismo. Deus, porém, não abandonou o
Seu povo. O Concilio Vaticano II e a Conferência Episcopal de Medellín eram
prenúncios de uma Igreja convertida às suas origens. Na América Latina, a
religião cristã não seria mais o ópio do povo e o ócio da burguesia. Seria,
sim, sinal de contradição, pedra de escândalo, fogo que queima e alumia, espada
que divide. Já não se poderia servir a Deus e ao dinheiro.”
““Lola” prosseguiu apaixonada na luta que
vocês iniciaram. Um ano depois, em novembro de 1972, Aurora Maria Nascimento
Furtado foi presa pelo Esquadrão da Morte do Rio. Entre infindáveis torturas na
Inventada de Olaria, puseram-lhe esta “obra-prima” da tecnologia da segurança
nacional: a “coroa de Cristo” – seu
crânio foi esmagado pelo capacete de aço feito para apertar aos poucos.”
“Frei Ivo dirigira toda a noite valendo-se da
escuridão para resguardar melhor o mais procurado militante político que
ajudamos a deixar o país. Olhos ariscos, cabelos lisos soltando uma mecha por
cima dos óculos, o que o tornava mais jovial, Ivo não demonstrava cansaço. É
possível que certas missões, como transportar um dirigente revolucionário
através do país cuja polícia o procura como agulha no palheiro, despertem em
nós estímulos que desconhecemos em circunstâncias normais. Líderes sindicais em
greve são capazes de passar dois ou três dias acordados, sem tempo para sequer
sentir sono; políticos em véspera de eleições experimentam um ânimo redobrado,
a cabeça girando como piorra, acesa como uma tela de TV que não se apaga;
guerrilheiros em combate sabem que a fadiga, o sono, é a cilada que carregam em
si, e recebem o coice tio fuzil disparando contra as posições do inimigo como a
energia que os mantém alertas.”
“No sábado, dia 8, os jesuítas foram
libertados, exceto Camilo. Por mais que o delegado Firmino Perez Rodrigues,
diretor do DOPS gaúcho, os apertasse, nada souberam dizer sobre a
minha fuga. Para não ficar de mãos vazias, o DOPS segurou Camilo. Sabê-lo
detido me fez sofrer, embora eu tivesse consciência de que não podemos nos
culpar das arbitrariedades cometidas por um regime ditatorial. Na tentativa de
separar companheiros e de desmoralizar um perante o outro, a repressão sempre
transfere a responsabilidade de seus atos para as suas vítimas. Se estudantes
são espancados na rua, é porque exorbitaram em suas manifestações; se
sindicalistas são presos numa greve, é porque deram caráter político ao
movimento reivindicatório; se um militante morre na tortura, é porque se matou
em decorrência de desequilíbrio psíquico. Isso faz parte do modo de agir da
polícia. Lamentável é quando ela consegue interiorizar num companheiro a sua
visão das coisas e a sua versão dos fatos.”
“– Como um estudante de Teologia pode
tratá-lo assim, de camarada para camarada? – perguntou o delegado.
Padre Marcelo explicou que considera seus
irmãos todos que estão comprometidos com o Evangelho.
– Pode ser que a religião defenda Frei
Betto, mas a lei o condena – assegurou o delegado.
– Nesse caso, eu fico com a religião –
retrucou padre Marcelo. O interrogatório era conduzido de forma a jogar o
depoente contra mim. A repressão brasileira aprendera, nos cursos ministrados
pelos norte-americanos, a não alimentar escrúpulos em investigações. Todo réu é
culpado até prova em contrário. Explorar as fraquezas humanas surgia como um
recurso mais rápido, econômico e cruel. O fio da meada poderia ser encontrado
sem exames periciais, sem provas dactiloscópicas, sem análises grafológicas –
bastava pôr de lado o respeito aos direitos humanos e adotar a tortura, a
chantagem e a pressão psicológica como métodos de interrogatórios.”
“– Consta no seu depoimento que você
conheceu pessoalmente o Marighella. Certo?
– Certo.
– Que impressões lhe ficaram?
– Um homem sedento de justiça que
entregou a vida pela causa do povo.
– Um homem que sequestrou, matou,
assaltou bancos e atirou bombas, não é?
– É o que diz a polícia. Não respondo
pelas acusações que os senhores fazem a ele. Respondo pelos contatos que tive –
repliquei.
– Mas você sabia que ele era comunista,
não é mesmo?
– Sabia.
– E como um cristão pode colaborar com
um comunista?
– Para mim, os homens não se dividem
entre crentes e ateus, mas sim entre opressores e oprimidos, entre quem quer
conservar a sociedade injusta e quem quer lutar pela justiça.
– Você reza pela bíblia de Marx?
– Embora reconheça a importância da
contribuição de Marx, rezo pela Bíblia de Jesus. No capítulo 25 do evangelho de
São Mateus, quando perguntam a Jesus quem se salvará, ele não diz que serão os
crentes, os padres, os ricos que ajudam a construir igrejas ou os
democratas-cristãos. Diz: “eu tive fome e me destes de comer, tive sede e me
destes de beber... Os justos perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos com
fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber? Ao que Ele lhes
responderá: a cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos,
a mim o fizestes”. Portanto, são as atitudes bem concretas em prol da justiça
que nos salvam.
– Só falta dizer que Marighella era um
homem da Igreja!
Procurei falar mais devagar para controlar
melhor o raciocínio, como se as ideias fossem pesadas cordas a serem
cuidadosamente erguidas da exaustão que me disseminava calafrios pelo corpo.
– Ele não estava na Igreja, mas estava
no Reino, nessa esfera da justiça e da igualdade que é o objeto principal da
pregação de Jesus. O papel da Igreja é anunciar o Reino.
– Reino de paz e de amor?
Dir-se-ia que sua pose altiva era mais de um
cientista examinando a cobaia humana.
– Reino de paz e de amor – assenti.
Seus olhos acenderam por baixo das lentes
brancas. Acreditou-me em xeque-mate:
– Quer dizer que você condena a violência,
a luta armada?
– Não quero outra coisa senão a paz,
muita paz. Por isso luto contra a violência da burguesia sobre os
trabalhadores, das estruturas da sociedade capitalista.
– Inclusive com armas, contra a
orientação da Igreja?
– Pelo que conheço da doutrina da
Igreja, ela não descarta, em última instância, o direito de os oprimidos se
defenderem, com armas, da opressão estrutural que os esmaga. Leia O
Regime dos Príncipes, de São Tomás de Aquino, e a encíclica Populorum
Progressio, do Papa Paulo VI.
– O que você quer é o comunismo?
– Quero uma sociedade justa, onde a vida
do ser humano socialmente mais insignificante esteja assegurada. O Deus no qual
eu creio é o Senhor da vida. Não me interessa se essa sociedade tenha o nome de
socialismo, de comunismo, de utopismo ou qualquer outro. Os rótulos não revelam
o conteúdo.
– Você já leu Marx?
– Li, Engels, Lênin, Stálin, Mao,
Guevara e Pascal, Kant, Hume e Hegel. Nós dominicanos, aprendemos que quando se
quer conhecer uma teoria o mais indicado é ir diretamente à fonte.
– Leu que Marx considera a religião ópio
do povo?
– É a burguesia que faz da religião um
ópio do povo, pregando um deus apenas senhor dos céus enquanto ela se apodera
da terra. O Deus da minha fé é aquele que se encarna em Jesus Cristo e assume a
libertação dos oprimidos. Cabe a nós cristãos provar que a afirmação de Marx,
válida para a Alemanha dos séculos XVIII e XIX, não pode ser generalizada a
todas as épocas e sociedades.”
“Luiz Eurico Tejera Lisboa veio a ter um
destino trágico, semelhante ao de inúmeros brasileiros perseguidos pelo terror
policial. Mais tarde eu soube que ele se mudara para o centro do país, deitado
em Porto Alegre sua companheira Suzana, e continuara a participar corajosamente
da resistência à ditadura. Em agosto de 1972, aos 24 anos, correu a notícia de
sua prisão em São Paulo. Sua família repetiu a mesma via crucis percorrida
por tantas outras ainda hoje: procurou órgãos de segurança, visitou
autoridades, falou com políticos, foi a presídios e quartéis, fez apelos e
denúncias. O Governo, como um assassino de costas largas, manteve-se calado;
nada vira, nada soubera, nada a informar. Em alguma esquina do Brasil, Luiz
Enrico “evaporara”. O terror do Estado agia sob a complacência da Justiça. Em
nome da segurança nacional, um jovem brasileiro fora sequestrado e morto.
Nenhuma notícia a seu respeito. Os jornais, com a boca tapada pela censura e
intimidados, nada diziam a respeito. Contudo, uma pessoa não pode deixar de
existir nas entranhas de sua mãe, no coração de sua esposa, no afeto de seus
parentes e amigos, na admiração de seus companheiros, na memória dos que
sobrevivem e alimentam-se de seu sacrifício e exemplo. Um revolucionário é um
ser social, como uma árvore cujas raízes se espalham à sua volta, cravadas no chão
da história, e cujos frutos vão muito além de seus galhos e nutrem o esforço de
libertação.”
“Padre Marcelo abriga em sua fé uma vocação
mística inquieta. No cárcere, o atual Bispo de Guarabira contemplou o mistério
da vida de um militante comunista, Jeová de Assis Gomes. Gravou-se em minha
memória este diálogo entre os dois, através das grades das solitárias:
– Jeová, você foi torturado horas
seguidas. Desmaiou várias vezes. Fizeram com você o que não fizeram com o
Cristo. Quebraram seus braços e pernas. Você podia ter morrido. Não passou por
sua cabeça que a morte seria o encontro com o Absoluto, com Alguém? Você se
sente realizado? E se tivesse morrido?
– Padre, agora me sinto feliz porque
conheço o gosto da morte. Sei, por experiência, que sou capaz de dar a minha
vida pela causa revolucionária. Minha vida foi entregue aos oprimidos.
– Quem ama passa da morte para a vida.
Numa leitura cristã, de fé, quem faz a experiência do dom total, do amor, está
salvo e se encontra com Deus. A Bíblia não diz que serão salvos os que têm fé e
celebram o culto, mas sim os que são capazes de amar. Para estar aqui neste
calabouço, eu arrisquei muito pouca coisa. Mas você arriscou sua juventude, a
carreira universitária, a formação de uma família e a própria vida, por amor.
Você faz a experiência do dom total. Isso, numa leitura cristã, vale mais que
proclamar a fé.
Jeová retrucou enfático:
– Como o senhor arriscou pouco!? O
senhor é monsenhor!
– Sou merda e você é Cristo. O capítulo
25 do evangelho de São Mateus mostra claramente quais são os critérios de
salvação: são as respostas eficazes que damos às necessidades econômicas,
sociais e espirituais do próximo. Jesus se identifica com quem tem fome, sede,
vive no abandono ou aprisionado. O que fazemos ao oprimido para libertá-lo é ao
próprio Cristo que o fazemos. Portanto, Jeová, o que você faz pela humanidade,
pelo amor dos homens, é por Ele que você o faz.
Criou-se uma afetuosa cumplicidade entre
padre Marcelo e Jeová. Seis anos mais tarde, Dom Marcelo me reafirmaria que o
testemunho desse jovem combatente fora a mais forte interpelação que recebera
em sua vida. Libertado, meses depois, por ocasião do sequestro do Embaixador da
Alemanha, no Rio, Jeová regressou clandestinamente ao país, vinculado ao Molipo
e disposto a realizar o antigo projeto de organizar politicamente os
camponeses. Delatado e cercado num campo de futebol, foi fuzilado a sangue-frio
no Norte de Goiás, em 1971.”
“A celebração da missa nos subterrâneos do
DOPS quebraria o espesso clima de atrocidades e permitiria, mais uma vez,
a tentativa de recuperação de nosso espaço vital. Para a maioria dos
companheiros, a missa interessava enquanto rito capaz de simbolizar e de
exprimir a nossa unidade mais radical nos limites do sofrimento humano e na
esperança libertadora que consumia nossas vidas ali dentro. Nesse sentido, a
eucaristia – memória atualizadora da paixão e da ressurreição do Senhor – teria
lugar privilegiado naquele calabouço, sem o risco de objetiva profanação que
ela corre em igrejas frequentadas pelos ricos senhores da terra que, aos
domingos, comungam o corpo de Jesus e, durante a semana, esmagam aqueles com
quem o Senhor mais se identifica (Mateus 5, 23 e 24).”
“Era a
primeira vez que participávamos de uma celebração na qual predominavam comunistas.
Fiz o comentário da leitura:
– Isaías não diz que, no futuro, os
pobres da terra viverão em harmonia com os homens impetuosos. Pelo contrário, a
boca do profeta anuncia a justiça de Deus que sacia a fome dos pobres e faz
morrer o ímpio. Não há conciliação possível entre opressores e oprimidos. O
amor, porém, une os que colocam suas vidas na mesma direção. Do lado de dentro
dessas grades, encontram-se comunistas e cristãos. O que há de comum entre nós?
O mesmo amor à libertação do nosso povo. Não foi em torno de bancas
universitárias, dispostos a discutir questões teóricas, que nos encontramos.
Foi a luta que nos aproximou, traçando a linha divisória entre os que defendem
os interesses da burguesia e os que assumem as aspirações do proletariado. Deste
lado, ficaram vocês e ficamos nós. No entanto, cristãos e marxistas sempre
foram considerados polos antagônicos. Não haveria entre nós mais coisas em
comum do que a luta pela justiça? Temos as mesmas raízes judaicas – Cristo e
Marx eram judeus, tributários da historicidade de seu povo. Para o marxismo
houve, no início dos tempos, uma sociedade comunista primitiva, na qual reinava
a harmonia entre os homens. Para o cristianismo houve, no início dos tempos, um
paraíso, no qual reinava plena harmonia entre os homens, a natureza e o
Criador. Ao escolher-se em detrimento de seu próximo, o homem quebrou, pelo
pecado original, a unidade genuína. Ao apropriar-se do que era comum, um grupo
cindiu, pela acumulação primitiva, a sociedade em classes antagônicas. Segundo
o marxismo, essa igualdade primordial só será recuperada na futura sociedade
comunista, enquanto o cristianismo vislumbra a restauração da unidade
paradisíaca no Reino de Deus, onde “Deus mesmo estará com seu povo” (Apoc. 21,
3). É através da história, configurada em sucessivos modos de produção, que se
criam as condições de passagem do reino da necessidade para o reino da
liberdade. Na história e pela história, Deus revela-se a seu povo e o convoca a
construir o futuro de justiça e de liberdade. O sujeito da história, na ótica
de Marx, é o oprimido, a classe mais espoliada ou – para usar uma analogia – a
mais crucificada pelo sistema capitalista. Na revelação cristã, é o Crucificado
quem liberta e salva. Aquele que foi mais esmagado é o mais exaltado. Todo
joelho se dobra a seu nome. No entanto, o pecado impede o ser humano de
realizar plenamente os desígnios de Deus. Presente nas estruturas e nas
instituições, o pecado desvia o processo histórico de seu rumo libertador, e
deita raízes no coração do homem, alienando-o. Do mesmo modo, para Marx, a
alienação cria o descompasso entre a nossa existência e a nossa essência. Não
vivemos o que somos e nem podemos ser o que gostaríamos de viver. Para nós
cristãos, essa adequação entre a essência e a existência é a santidade. Sabemos
pela fé certas coisas que vocês buscam pela análise dialética. A fé não nos dá
a radiografia do momento histórico, mas sim o sentido último e absoluto da
história: o antagonismo de classe será suprimido e todos viverão como irmãos em
torno do mesmo Pai. Haverá igual partilha da comida e da bebida, como aqui na
mesa eucarística. Essa dimensão transcendente a teoria marxista não alcança.
Todavia, o mais importante, hoje, entre nós é amarmos os oprimidos. No dia da
ressurreição Ele dirá aos que não tiveram fé: “tive fome e me destes de
comer... tive sede e me destes de beber...”. Vocês indagarão: “quando foi
Senhor que o vimos com fome?... com sede?...” E o Rei lhes responderá: “O que
fizestes a um desses pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes”.”
“Há cinco dias Frei Tito escrevera a um
confrade:
(...) Na cadeia, tenho descoberto o
Evangelho de S. Mateus. O troço tem que ser ou pão ou pedra. Noutras palavras,
acho que ele nos convida a sermos simplesmente homens. É impressionante como tantos
não-cristãos aqui vivem isso até as últimas consequências. Outro dia dizia-me
um jovem: “Não falei nada porque fiz uma opção e diante dela morrer ou não é
secundário”. (...)
– Fui levado do Presídio Tiradentes
para a Operação Bandeirantes – Oban (Polícia do Exército) – no
dia 17 de fevereiro de 1970, terça-feira, às 14 horas. O capitão Maurício veio
buscar-me em companhia de dois policiais e disse: “Você agora vai conhecer a
sucursal do inferno”. Algemaram minhas mãos, jogaram-me no porta-malas da perua.
No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço,
apontavam-me seus revólveres. (...)
– Preso desde novembro de 1969, eu já
havia sido torturado no DOPS. Em dezembro, tive minha prisão preventiva
decretada pela 2ª Auditoria de Guerra da 2ª Região Militar. Fiquei
sob responsabilidade do juiz-auditor, Dr. Nelson Guimarães. Soube
posteriormente que esse juiz autorizara minha ida para a Oban sob “garantias de
integridade física”.
Denunciado incontáveis vezes nos tribunais
militares brasileiros, o crime de torturar jamais foi apurado ou punido. À luz
da justiça sobrepõe-se, no juiz, a força do interesse. Sua estabilidade depende
da confiança dos militares; qualquer suspeita significa o fim de sua carreira.
Por isso, ao espanto inicial provocado pelos relatos de atrocidades, prevalece
no magistrado a adequação de sua sensibilidade e consciência à tortura como
método de interrogatório, ao assassinato como recurso de profilaxia política, à
crueldade do poder como exigência de segurança e firmeza de autoridade. Para os
torturadores, porém, o juiz não passa de um pobre coitado obrigado a dar
cobertura legal aos crimes cometidos pelo Estado.
– Ao chegar à Oban, fui conduzido à
sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com
duas pessoas. O assunto era o congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968.
Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar
nada saber, insistiam para que eu “confessasse”. Pouco depois me levaram para o
pau-de-arara. Dependurado, nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques
elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os
torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-me “telefones” [tapas nos
ouvidos] e berravam impropérios. Isso durou cerca de uma hora. Descansei quinze
minutos ao ser retirado do pau-de-arara. O interrogatório se reiniciou. As
mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava, mais fortes
as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até as vinte e duas
horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado por hematomas, o rosto inchado, a
cabeça pesada e dolorida. Um soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei
sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5mts, cheia de pulgas e de baratas. Terrível mau
cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e
sujo.
Para certos militares, todo réu é culpado,
até prova em contrário – princípio emanado da Doutrina de Segurança Nacional e
infundido na cabeça de todos que, durante anos, comandaram a repressão no
Brasil. Parte-se da ideia de que ninguém confessa os seus “crimes”, a menos que
seja forçado a falar. E para isso só há um recurso: a tortura. A dor física, o
pânico psíquico e o medo desencadeiam, no prisioneiro, o instinto de
sobrevivência, sob ameaça de levá-lo a dizer ou assinar o que querem seus
carrascos. Troca-se a dignidade pela preservação da vida. Nesse momento, a
escolha é crucial, entre ceder à ânsia de sobreviver ou aceitar a dor e a morte
por fidelidade aos princípios assumidos. (...)
– Na quarta-feira, fui acordado às
oito horas. Subi para a sala de interrogatórios, onde a equipe do capitão
Homero me esperava. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada
resposta negativa eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito. Nesse
ritmo prosseguiram até o início da noite, quando me serviram a primeira
refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na
cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir com a
advertência do capitão Homero de que, no dia seguinte, enfrentaria a “equipe da
pesada”. (...)
– Na quinta-feira, três policiais
acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala
de interrogatórios. Um capitão, cercado por sua equipe, voltou às mesmas
perguntas: “Vai ter que falar senão só sai morto daqui!”, gritou. Logo vi que
isso não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza. Sentaram-me na
cadeira-do-dragão, com chapas metálicas e fios, descarregaram choques nas mãos,
nos pés, nos ouvidos e na cabeça. Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um
na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo
fosse se decompor. Da sessão de choques passaram-me ao pau-de-arara. Mais
choques, pauladas no peito e nas pernas que cada vez mais se curvavam para
aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei.
Fui desamarrado e animado. Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a
descarga elétrica para 220 volts a fim de que eu falasse “antes de morrer”. Não
chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com
palmatória. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível
fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais;
tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às
perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder
novamente os sentidos. Isso durou até as dez horas, quando chegou o capitão
Albernaz. (...)
– “Nosso assunto agora é especial”,
disse o capitão Albernaz ligando os fios em meus membros. “Quando venho para a
Oban, deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar
terrorista nada me impede... Guerra é guerra, ou se mata ou se morre. Você deve
conhecer fulano e sicrano (citou os nomes de dois presos políticos que foram
torturados por ele). Darei a você o mesmo tratamento que dei a eles: choques o
dia todo. Todo não que você disser, maior a descarga elétrica
que vai receber”. Estavam três militares na sala. Um deles gritou: “quero nomes
e aparelhos”. Quando respondi: “não sei”, recebi uma descarga
elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em
minhas funções fisiológicas. O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde
estava o Frei Ratton. Como não soubesse, levei choques durante quarenta
minutos. Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte
“metidos na subversão”. Partiu para a ofensa moral: “quais os padres que têm
amantes?”, “porque a Igreja não expulsou vocês?”, “quem são os outros padres
terroristas?” Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pelo DOPS
tinha sido “a toque de caixa” e que todos os religiosos presos iriam à Oban
prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo “tratamento”. Disse que “a
Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do
mundo”. Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me socos,
pontapés e pauladas nas costas. Revestidos de paramentos litúrgicos, os
policiais me fizeram abrir a boca “para receber a hóstia sagrada”. Introduziram
um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito.
Gritavam difamações contra a Igreja, berravam que os padres são homossexuais
porque não se casam. Às 14 horas, encerraram a sessão. Carregado, voltei à
cela, onde fiquei estirado no chão. (...)
– Às dezoito horas serviram o jantar,
mas não consegui comer. Minha boca era uma ferida só. Pouco depois levaram-me
para uma “explicação”. Encontrei a mesma equipe do capitão Albernaz. Voltaram
às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disseram que, em vista de minha
resistência à tortura, concluíram que eu era um guerrilheiro e devia estar
escondendo minha participação em assaltos a bancos. O “interrogatório” se
reiniciou para que eu “confessasse” os assaltos: choques, pontapés nos órgãos
genitais e no estômago, palmatória, ponta de cigarro aceso em meu corpo.
Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo
“corredor polonês”. Avisaram que aquilo era a estréia do que iria ocorrer com
os outros dominicanos. Quiseram deixar-me dependurado toda a noite no
pau-de-arara. Mas o capitão Albernaz objetou: “Não é preciso, vamos ficar com
ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer
as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço
de sua valentia”. (...)
– Na cela, eu não conseguia dormir. A
dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior que o corpo.
Angustiava-me a possibilidade de os outros religiosos sofrerem o mesmo. Era
preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento
prolongado. Só havia uma solução: matar-me. (...)
– Na cela cheia de lixo encontrei uma
lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu
minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve
os testículos esmagados) e não chegara ao desespero. Mas, no meu caso,
tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à
opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só com o
sacrifício de minha vida isso seria possível, pensei. Como havia um Novo
Testamento na cela, li a Paixão segundo São Mateus. O Pai havia exigido o
sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e
febre. (...)
– Na sexta-feira, fui acordado por um
policial. Havia a meu lado um novo preso: um rapaz português que chorava pelas
torturas sofridas durante a madrugada. O policial advertiu-me: “O senhor tem
hoje e amanhã para se decidir a falar. Senão a turma da pesada repete o mesmo
pau. Já perderam a paciência e estão dispostos a matá-lo aos pouquinhos.”
Voltei aos meus pensamentos da noite anterior. Nos pulsos, eu havia marcado o
lugar dos cortes. Continuei amolando a lata. Ao meio-dia tiraram-me para fazer
a barba. Disseram que eu iria para a penitenciária. Raspei mal a barba, voltei
à cela. Passou um soldado. Pedi que me emprestasse a gilete para terminar a
barba. O português dormia. Tomei a gilete, enfiei-a com força na dobra interna
do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. O jato de
sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me da privada, apertei o braço para
que o sangue jorrasse mais depressa. Mais tarde, recobrei os sentidos num leito
do Pronto-Socorro do Hospital das Clínicas. No mesmo dia, transferiram-me para
um leito do Hospital Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a
ninguém do que ocorrera comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão
Maurício dizia desesperado aos médicos: “Doutor, este padre não pode morrer de
jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos.” No meu quarto, a
Oban deixou seis soldados de guarda. (...)
– No sábado, teve início a tortura
psicológica. “A situação agora vai piorar para você que é um padre suicida e
terrorista”, diziam eles. “A Igreja vai expulsá-lo”. Não deixavam que eu
repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas histórias.
Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o
justificarem, queriam que eu enlouquecesse. (...)
– Na segunda noite, recebi a visita
do juiz-auditor, acompanhado de um padre do convento e de um bispo-auxiliar de
São Paulo. Haviam sido avisados pelos presos políticos do Presídio Tiradentes.
Um médico do hospital examinou-me à frente deles, mostrando os hematomas e as
cicatrizes, os pontos recebidos no Hospital das Clinicas, as marcas de tortura.
O juiz declarou que aquilo era “uma estupidez” e que iria apurar
responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu não voltasse à Oban, o
que prometeu fazer. (...)
– De fato, fui bem-tratado pelos
militares do Hospital Militar, exceto os da Oban que montavam guarda em meu
quarto. As irmãs Vicentinas deram-me toda a assistência necessária. Mas não se
cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, 27 de fevereiro de 1970, fui levado
de manhã para a Oban. Fiquei numa cela até o fim da tarde, sem comer. Sentia-me
tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a
cicatrizar. À noite, entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.”
“Seu relato de torturas, redigido na prisão,
foi divulgado pela primeira vez no jornal Publik, da Alemanha,
e, posteriormente, mereceu prêmio especial de reportagem da revista
norte-americana Look, em 1970. Correu mundo em diversos
idiomas. Em seu parágrafo final, alerta Frei Tito:
– É preciso dizer que o que ocorreu
comigo não é exceção, é regra. Raros os presos políticos brasileiros que não
sofreram torturas. Muitos, como Schael Schreiber e Virgílio Gomes da Silva,
morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros
defeitos físicos. A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única
instituição brasileira fora do controle estatal-militar. Sua missão é defender
e promover a dignidade humana. Onde houver um homem sofrendo, é o Mestre que
sofre. É hora de nossos bispos dizerem um BASTA às torturas e injustiças
promovidas pelo regime, antes que seja tarde. A Igreja não pode omitir-se. As
provas das torturas trazemos no corpo. Se a Igreja não se manifestar contra
esta situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse para que alguma
atitude fosse tomada? Num momento como este, o silêncio é omissão. Se falar é
um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento
da justiça de Deus no mundo. “Não queremos, irmãos, que ignoreis a tributação
que nos sobreveio. Fomos maltratados desmedidamente, além das nossas forças, a
ponto de termos perdido a esperança de sairmos com vida. Sentíamos dentro de
nós mesmos a sentença de morte: deu-se isso para que saibamos pôr a nossa
confiança, não em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos” (2 Co. 1, 8 e 9).
Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia
de mais um morto pelas torturas.”
“A violência revolucionária é necessariamente
a violência de uma classe e não de uma vanguarda. A vanguarda destina-se a
orientar politicamente essa violência. No Brasil, foi a vanguarda que decretou
a violência revolucionária, sem orientar politicamente a classe operária. E o
que aconteceu? A guerra tornou-se uma guerra de vanguardas confusas e
desorientadas. Não foi a guerra do povo, mas a guerra pelo povo. Nesse sentido
teve um papel eminentemente ético (a guerra é justa). Mas não teve um papel
político (a guerra é correta).”
Meeeeu, como eu quero ler esse livro! Ano passado fiz um projeto com a escola sobre a Ditadura e quero muuuito saber mais sobre isso!
ResponderExcluirUm beijo!
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