Editora: Edipro
Opinião: ★★★★☆
Tradução e
prefácio: Laurent de Saes
Análise em vídeos: Parte I - Parte II - Parte III
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ISBN: 978-85-7283-957-0
Páginas: 464
Sinopse: Nesta obra pioneira e monumental, Marc
Bloch — um dos mais renomados historiadores do século XX — extrapola os limites
alcançados pelos estudos medievalistas e desvenda o que está além das
instituições e dos poderes político, jurídico e religioso:
·
o feudalismo
como força viva;
·
o homem, a
partir de seu modo de viver e de pensar;
·
os principais
traços da civilização europeia entre a metade do século IX e o início do século
XIII.
Adotando
um enfoque interdisciplinar, o autor supera os limites das abordagens restritas
ao estudo técnico e cumpre seu objetivo de decompor a estrutura da sociedade
feudal — desde as origens e a natureza do feudo, passando pelas relações
familiares e as relações de dependência, seus rituais, hábitos e costumes
sociais — e desnudar o percurso que conduziu as sociedades feudais ao que
viriam a se tornar os Estados-nação.
Bloch
significou um verdadeiro tour de force para a escrita histórica. Nesta obra,
expressa com clareza o teor de sua contribuição para a história medieval, a
variedade de fontes empregada em seus estudos e o rigor de sua análise.
Modelo
que permanece ainda hoje amplamente utilizado por historiadores e pesquisadores
das novas gerações.
“No entanto, o próprio Norte
ia-se cristianizando pouco a pouco. É uma civilização que, lentamente, aceita
uma outra fé: o historiador não conhece nenhum fenômeno que se preste a
observações mais apaixonantes, especialmente quando, como é o caso, as fontes,
apesar das lacunas irremediáveis, permitem seguir-lhe as vicissitudes bastante
de perto para que tal constitua uma experiência natural, capaz de explicar
outros movimentos do mesmo tipo. Mas um estudo minucioso ultrapassaria o âmbito
deste livro. Alguns pontos de referência devem ser suficientes.
Não seria exato dizer-se que o
paganismo nórdico não opôs uma séria resistência, pois foram precisos três
séculos para o abater. Todavia, distinguem-se algumas das razões internas que
facilitaram a derrota final. A Escandinávia não opunha qualquer grupo análogo
ao clero, fortemente organizado, dos povos cristãos. Os chefes de grupos
consanguíneos ou de povos eram os únicos padres. Sem dúvida os reis,
especialmente, podiam recear, se perdessem os seus direitos à prática dos
sacrifícios, arruinar, por isso, um elemento essencial da sua grandeza. Mas,
como veremos mais tarde, o cristianismo não os obrigava a renunciar a toda a
sua dignidade sagrada. Quanto aos chefes de famílias ou de tribos, podemos crer
que as mudanças profundas da estrutura social, correlativas simultaneamente às
migrações e à formação dos Estados, vibraram um rude golpe no seu prestígio
sacerdotal. À antiga religião não faltava apenas a estrutura de uma Igreja;
parece que, ao tempo da conversão, ela apresentaria, em si própria, os sintomas
de uma espécie de decomposição espontânea. Os textos escandinavos referem
bastantes vezes verdadeiros descrentes. Com a continuação, este cepticismo
grosseiro levaria menos à ausência, quase inconcebível, de qualquer fé, do que
à adopção de uma nova fé. Finalmente, o próprio politeísmo abria um caminho
adequado à mudança de obediência. Os espíritos que ignoram toda e qualquer
crítica do testemunho, não são nada propensos a negar o sobrenatural, venha
donde vier. Quando os cristãos se recusavam a rezar aos deuses dos diversos
paganismos, geralmente, não era por lhe negarem a existência; eles
consideravam-nos como demônios, perigosos, sim, mas, no entanto, mais fracos do
que o único Criador. Do mesmo modo, numerosos textos no-lo comprovam, quando os
Normandos aprenderam a conhecer Cristo e os seus santos, rapidamente se
habituaram a tratá-los como divindades estrangeiras, as quais, com o auxílio
das próprias divindades, podiam ser combatidas e escarnecidas, mas cujo obscuro
poder era demasiado temível para que a sensatez, noutras circunstâncias, não fosse
propiciá-las e respeitar a misteriosa magia do seu culto. Não é certo que, em
860, um viking, doente, fez uma promessa a São Riquier? Pouco mais tarde, um
chefe islandês, sinceramente convertido ao cristianismo, não deixava por isso
de invocar Thor, nas situações mais difíceis28. Do
reconhecimento do Deus dos cristãos como sendo uma força temível a aceitá-lo
como Deus único, a distância era constituída por etapas quase insensíveis.
Entrecortada por tréguas e
conversações, as expedições de saque só por si exerciam a sua ação. Mais do que
um marinheiro do Norte, no regresso das suas lides guerreiras trazia para o lar
a nova religião, como se fosse mais um despojo. Os dois grandes soberanos que
converteram a Noruega, Olavo, filho de Trygvi, e Olavo, filho de Haraldo,
tinham ambos recebido o baptismo — o primeiro, ministrado em solo inglês, em
994, em terras de França, em 1014, o segundo — no tempo em que, ainda sem
reinos, comandavam hostes de Vikings. Estas passagens para a lei de Cristo
multiplicavam-se, à medida que, ao longo do caminho, os aventureiros vindos de
além-mar vinham encontrar um número cada vez maior de compatriotas
estabelecidos de modo permanente em terras anteriormente cristãs e, na sua
maioria, conquistados pelas crenças das populações dominadas ou vizinhas. Por
sua vez, as relações comerciais, anteriores aos grandes empreendimentos
guerreiros e que estes não lograram interromper, favoreciam as conversões. Na
Suécia, a maior parte dos primeiros cristãos foram mercadores, que haviam frequentado
o porto de Durstede, ao tempo o nó principal das comunicações entre o Império
franco e os mares setentrionais. Uma velha crônica gotlandesa diz dos
habitantes da ilha: “Eles viajavam com as suas mercadorias por toda a
região...; entre os cristãos, viram os hábitos cristãos; alguns batizaram-se e
levaram padres com eles.” Na verdade, as comunidades mais antigas de que
encontramos vestígios formaram-se em povoados de comércio: Birka, junto do lago
Mälar, Ripen e Schleswig nas duas extremidades do caminho que, de um mar até
outro, atravessava a istmo da Jutlândia. Na Noruega, nos começos do século XI,
segundo a penetrante observação do historiador islandês Snorri Sturluson, “a
maioria dos homens que habitavam ao longo das costas tinha recebido o baptismo,
enquanto que nos vales do interior e nas extensões montanhosas, o povo se
conservava absolutamente pagão”29. Durante
muito tempo, estes contatos entre os homens, ao acaso das migrações
temporárias, para a fé estrangeira dos agentes de propagação, foram
singularmente mais eficazes do que as missões dirigidas pela Igreja.”
28 MABILLON, AA. SS. ord. S.
Bened., saec. II, ed. de 1733, t. II, p. 214 - Landnamabók,
III, 14, 3.
29 Saga d’Olaf le Saint, c. LX, cf. tradução SAUTREAU, 1930, p. 56.
“Teria sido a sua conversão que persuadiu os
Escandinavos à renúncia dos seus hábitos de pilhagem e de migrações longínquas?
Conceber as deslocações dos Vikings como uma guerra de religião desencadeada
pelo fervor de um implacável fanatismo pagão é uma explicação que, tendo sido
pelo menos esboçada, por vezes, contraria demasiado o que sabemos a propósito
de almas propícias a respeitar todas as magias. Pelo contrário, podemos
acreditar nos efeitos de uma profunda mudança de mentalidade, sob a ação da
mudança de crença? Decerto que a história das navegações e das invasões
normandas seria incompreensível sem este apaixonado amor à guerra e à aventura
que, na vida moral do Norte coexistia com a prática de artes mais calmas. Os
mesmos homens que frequentavam os mercados da Europa, como hábeis comerciantes,
desde Constantinopla até às portas do delta do Reno, ou que, sob a inclemência
do gelo, desbravaram as solidões da Islândia, não conheciam maior prazer nem
fonte mais digna para alcançar a fama do que “o tinir do ferro” e o
“entrechocar dos escudos”: são testemunho disso os muitos poemas e narrações
escritos somente no século XII, mas nos quais ressoa ainda o eco fiel da idade
dos Vikings; são testemunhos, também, as estelas, pedras funerárias ou simples
cenotáfios que, sobre as colinas da terra escandinava ao longo dos caminhos ou
junto dos lugares de reunião, erguem ainda hoje as suas runas, gravadas a
vermelho vivo sobre a pedra cinzenta. Na sua maior parte, não celebram, como
acontece com grande número de túmulos gregos ou romanos, os mortos
pacificamente adormecidos na terra natal; o feito que elas relembram é, quase
exclusivamente, o dos heróis feridos no decurso de alguma expedição sangrenta.
Não é menos evidente que esta tonalidade de sentimento pode parecer
incompatível com a lei de Cristo, entendida como ensinamento de mansidão e de
misericórdia. Mas, como teremos mais adiante ocasião de constatar, entre os
povos ocidentais, durante a época feudal, a fé mais ardente nos mistérios do
cristianismo associou-se, sem dificuldades aparentes, ao gosto pela violência e
ao saque e até mesmo com a mais consciente exaltação da guerra.
Seguramente que os Escandinavos
comungaram daí para o futuro com os outros membros católicos no mesmo credo,
alimentaram-se das mesmas lendas piedosas, seguiram as mesmas rotas de
peregrinação, leram, ou ouviram ler, por muito fraco que fosse o seu desejo de
se instruírem, os mesmos livros nos quais se refletia, mais ou menos deformada,
a tradição romano-helênica. No entanto, a unidade profunda da civilização
ocidental também nunca impediu as guerras intestinas. Quando muito,
admitir-se-á que a ideia de um único Deus, omnipotente, aliada às concepções
novas do outro mundo, tenha desferido, com o tempo, um rude golpe a esta
mística do destino e da glória, tão característica da velha poesia do Norte e
na qual mais do que um Viking, sem dúvida, bebeu a justificação das suas
paixões. Quem poderá julgar que isto era bastante para fazer desaparecer
completamente nos chefes o desejo de seguir as pisadas de Rolão e de Svein, ou
para os impedir de recrutar os guerreiros necessários para corporizar as suas
ambições?
Na verdade, o problema, tal como
foi posto atrás, enferma de um enunciado incompleto. Como podemos procurar por
que motivo um fenômeno se extinguiu, sem perguntarmos primeiro qual a razão por
que se produziu? Neste caso, tal não é mais do que fazer recuar a dificuldade:
pois o começo das migrações escandinavas não é, de modo algum, menos obscuro do
que as causas da sua suspensão. Não se trata, aliás, de nos demorarmos a
perscrutar longamente as razões da atracção que exerciam sobre as sociedades do
Norte as terras, geralmente mais férteis e civilizadas há mais tempo, que se
estendiam para o sul dos seus territórios. A história das grandes invasões
germânicas e dos movimentos de povos que as precederam não fora já a história
de uma longa caminhada em direção ao sol? A própria tradição das pilhagens pela
via marítima era antiga. Por um notável acordo, Gregório de Tours e o poema do Beowulf
trouxeram até nós a lembrança da expedição que, cerca de 520, um rei dos
Götar empreendeu nas costas da Frísia; outras tentativas semelhantes
escapam-nos apenas certamente por lacunas dos textos. Não é menos verdade que,
assaz bruscamente, no final do século VIII, estas longas deslocações atingiram
uma amplitude até então desconhecida.
Deveremos então acreditar que o
Ocidente, mal defendido, fosse naquele tempo uma presa mais fácil do que o fora
no passado? Mas além de esta explicação só poder se aplicar a fatos exatamente
paralelos no tempo, tais como o povoamento da Islândia e a fundação dos reinos
varegos* junto dos rios da Rússia, cairíamos num paradoxo ao pretender que o
Estado merovíngio, durante o seu período de decomposição, fosse mais temido do
que a monarquia de Luís o Pio, e até dos seus filhos. É evidente que é no
estudo dos próprios países do Norte que devemos procurar a explicação dos seus
destinos.
A comparação das naves do século
IX com alguns dos outros achados, provenientes de épocas mais distantes, prova
que, durante o período imediatamente anterior à época dos Vikings, os
marinheiros da Escandinávia tinham aperfeiçoado muito a construção das suas
embarcações. Não se duvida de que sem estes progressos técnicos as expedições
longínquas através dos oceanos teriam sido impossíveis. Mas seria
verdadeiramente pelo prazer de utilizarem barcos melhor construídos que tantos
Normandos decidiram ir em busca da aventura para longe da sua terra? Melhor se
acreditará que eles se preocuparam com o aperfeiçoamento dos seus utensílios
navais justamente para se lançarem mais longe no mar.
Ainda outra explicação foi
proposta, desde o século XI, pelo próprio historiador dos Normandos de França,
Doon de Saint-Quentin. A causa das migrações, ele via-a apenas no
superpovoamento dos países escandinavos, estando a origem deste na prática da
poligamia. Deixemos esta última interpretação: independentemente de sabermos
que só os chefes mantinham verdadeiros haréns, as observações demográficas
nunca provaram — longe disso — que a poligamia seja particularmente favorável
ao aumento da população. Até a hipótese do superpovoamento pode parecer
suspeita, à primeira vista. Os povos vítimas de invasões quase sempre a
mencionam em primeiro lugar, na esperança, bastante ingénua, de justificarem as
suas derrotas pelo afluxo prodigioso de inimigos: assim acontece com os povos
mediterrânicos, perante os Celtas, com os Romanos perante os Germanos. Aqui, no
entanto, esta hipótese merece mais consideração: pois Doon recebera-a,
provavelmente, não da tradição dos vencidos, mas da dos vencedores;
especialmente por causa de certa verossimilhança intrínseca. Do II ao IV
séculos, os movimentos de povos que finalmente provocariam a ruína do Império
romano tinham decerto tido como efeito deixar grandes extensões despovoadas, na
península escandinava, nas ilhas do Báltico, na Jutlândia. Os grupos que ali se
conservaram puderam expandir-se livremente durante vários séculos, mas num dado
momento, cerca do século VIII, certamente que o espaço começou a escassear:
pelo menos se considerarmos o estado da sua agricultura.
A bem dizer, as primeiras
expedições dos Vikings para o Ocidente tiveram menos como objetivo a conquista
de locais onde se estabelecessem de modo permanente do que a busca de presas
destinadas a serem levadas para casa. Mas esta era uma maneira de fazer face à
escassez de terra. Graças aos despojos das civilizações meridionais, o chefe,
preocupado com a exiguidade dos seus campos pastagens, podia manter o seu nível
de vida e continuar a proporcionar aos seus companheiros as liberalidades
necessárias ao seu prestígio. Nas classes mais humildes, a emigração evitava
aos filhos mais velhos a mediocridade de uma família muito numerosa.
Provavelmente mais do que uma família de camponeses seria semelhante àquela de
que temos notícia por intermédio de uma pedra funerária sueca dos começos do
século XI: de cinco filhos, o mais velho e o mais novo permaneceram na terra;
os três outros morreram longe, um em Bornholm, o segundo na Escócia, o terceiro
em Constantinopla30. Finalmente, uma daquelas
questões ou “vendettas”, que a estrutura social e os costumes multiplicavam,
obrigaria um homem a abandonar o “gaard” ancestral? A crescente escassez dos
espaços vazios tornavam-lhe mais difícil do que outrora a busca de uma nova
residência, na própria região; sem outra saída, muitas vezes não encontrava
outro asilo senão no mar ou nas regiões distantes de que este era o acesso. Por
maioria de razões se o inimigo de que fugia era um dos reis cujo ambiente,
menos frouxo, lhe permitia alargar, sobre mais vastos territórios, um poder de
comando mais eficaz. Com a ajuda do hábito e do êxito, em breve o prazer se
juntou à necessidade e a aventura, que de um modo geral se previa frutuosa,
tomou-se ao mesmo tempo um modo de vida e uma distração. Tal como acontece com
o início das invasões normandas, seu termo não pode ser explicado pela situação
dos poderes políticos nos países invadidos. Sem dúvida que a monarquia otoniana
era mais capaz de proteger o litoral mais do que a dos últimos Carolíngios e
Guilherme, o Bastardo, e os seus sucessores teriam constituído, em Inglaterra,
adversários temíveis. No entanto, aconteceu, justamente, que nem uns nem outros
tiveram algo a defender, ou pouco tiveram. E dificilmente se acreditará que a
França, depois dos meados do século X e a Inglaterra no tempo de Eduardo, o
Confessor, parecessem ser presas difíceis. Segundo tudo leva a crer, a própria
consolidação das realezas escandinavas depois de, nas suas origens, ter
incrementado as migrações, atirando para as rotas do Oceano muitos banidos e
decepcionados, acabou finalmente por lhe pôr termo. Daí para a frente, as levas
de homens e de navios eram monopolizadas pelos Estados, os quais,
inclusivamente, tinham organizado com extremo cuidado a requisição dos barcos.
Os reis, por outro lado, não favoreciam as expedições isoladas que alimentavam
o espírito de turbulência e proporcionavam aos fora-da-lei e aos conspiradores,
refúgios muito fáceis como o descreve a lenda de Santo Olavo – o meio de
acumular as riquezas necessárias para realização dos seus sinistros projetos.
Contava-se que Svein, quando se tornou dono da Noruega, as havia proibido.
Pouco a pouco, os chefes habituaram-se ao ritmo de uma vida mais regular, na
qual as ambições procuravam saciar-se na própria mãe-pátria, junto do soberano
ou dos seus rivais. Para obterem novas terras, incrementaram desbravamento do
interior. Restavam as conquistas monárquicas, como as que fez Knut e a que se
abalançou Harald, o do Conselho Firme. Mas os exércitos reais eram máquinas
pesadas, difíceis de j pôr em marcha nos Estados de estrutura tão pouco
estável. A última tentativa de um rei da Dinamarca sobre a Inglaterra, no tempo
de Guilherme, o Bastardo, falhou mesmo antes de a frota ter levantado a âncora,
por causa de uma revolução palaciana. Depressa os reis da Noruega limitaram as
suas ambições a reforçar ou a estabelecer seu domínio sobre as ilhas do Oeste,
da Islândia até às Hébridas; os reis da Dinamarca e da Suécia, contentaram-se
com a continuação de longas campanhas contra os seus vizinhos Eslavos, Letões e
Finlandeses, as quais eram simultaneamente empreendimentos de represália — pois,
em contrapartida, as piratarias destes povos perturbavam constantemente o
Báltico — guerras de conquista e cruzadas, não deixando também de muito se
assemelharem, por vezes, às expedições que durante tanto tempo as margens do
Escalda, do Tamisa ou do Loire tinham suportado.”
* Tribo escandinava que, nos finais do século IX, invadiu a Rússia. (N. da T.)
30 NORDENSTRENG, Die Züge der
Wikinger, trad. I. MEYN, Leipzig, 1925, p. 19.
“Da tormenta das últimas invasões, o Ocidente
saiu coberto de feridas. As próprias cidades não haviam sido poupadas, pelo
menos pelos Escandinavos e, se muitas delas, após a pilhagem ou o abandono, se
recompuseram mais ou menos das suas ruínas, esta cisão no curso normal das suas
vidas deixou-as enfraquecidas durante muito tempo. Outras foram menos
afortunadas: os dois principais portos do Império Carolíngio nos mares
setentrionais, Durstede, no delta do Reno, Quentovic, na embocadura do Canche,
desceram definitivamente, a primeira, à categoria de uma povoação medíocre e a
segunda, à de uma aldeia de pescadores. Ao longo das rotas fluviais, as trocas
tinham perdido toda a segurança: em 861, os mercadores parisienses, ao fugirem
na sua frota, foram alcançados pelas embarcações normandas e levados como
cativos. Os campos, especialmente, sofreram horrorosamente, ao ponto de ficarem
por vezes reduzidos à condição de verdadeiros desertos. Na região de Toulon,
depois da expulsão dos bandidos de Freinet, o solo teve que ser desbravado de
novo; como os antigos limites das propriedades haviam desaparecido, segundo um
documento, cada um “se apoderava da terra conforme podia”31. Na Touraine, tantas vezes
percorrida pelos Vikings, um documento escrito, de 14 de setembro de 900, põe
em cena um pequeno domínio em Vontes, no vale do Indre e uma aldeia inteira, em
Martigny, no Loire. Em Vontes, cinco homens de condição servil “podiam usufruir
da terra, se houvesse paz”. Em Martigny, os tributos são cuidadosamente
enumerados. Mas, com referência ao passado, porque se ainda são mencionadas
dezessete unidades de tenência elas já nada produzem. Dezesseis chefes
de família apenas vivem nesta gleba empobrecida: um a menos, portanto, do que
as unidades, enquanto que, normalmente, cada uma das partes destas poderia ser
ocupada por duas ou três famílias. Dos homens, muitos “não têm mulher nem
filhos”. E o mesmo trágico estribilho se faz ouvir. “Esta gente poderia
usufruir da terra, se houvesse paz”32. Aliás, nem
todas as devastações eram obra dos invasores. Pois, para vencer o inimigo,
muitas vezes era necessário reduzi-lo à fome. Em 894, como um bando de Vikings
tivesse sido obrigado a refugiar-se na velha fortaleza de. Chester, a hoste
inglesa, segundo a crônica, “retirou todo o gado existente em redor do lugar,
queimou as colheitas e pôs os cavalos a pastar nas cercanias”.
Evidentemente que os camponeses,
mais do que qualquer outra classe, eram empurrados para o desespero, de tal
modo que, por várias vezes, temos notícias deles, entre o Sena e o Loire e
junto do Mosela, reunindo-se sob juramento e, num esforço de energia enorme,
correndo atrás dos saqueadores. As suas hostes, mal organizadas, deixaram-se
sempre massacrar33. Mas eles não eram os únicos a
sofrer duramente com a destruição dos campos. As cidades, mesmo quando as suas
muralhas resistiam, sofriam a fome. Os senhores, que retiravam os seus
proveitos da terra, ficavam empobrecidos. Especialmente os domínios da Igreja
viviam com dificuldades. Daqui resultou — como aconteceria mais tarde, depois
da Guerra dos Cem Anos — uma profunda decadência das ordens religiosas e, como
consequência, da vida intelectual. A Inglaterra, principalmente, foi atingida.
No prefácio da Regra Pastoral de Gregório Magno, por ele mandada
traduzir, o rei Alfredo evoca dolorosamente “o tempo em que, antes que tudo
fosse devastado, ou queimado, as igrejas inglesas estavam recheadas de tesouros
e de livros”34. Na verdade, foi o dobre de finados
desta cultura eclesiástica anglo-saxônica cujo esplendor se havia expandido
outrora pela Europa. Mas sem dúvida que o efeito mais duradoiro, por toda a
parte, se resumiu num terrível desperdício de forças. Quando foi restabelecida
uma relativa segurança, os próprios homens, reduzidos em número, encontraram-se
diante de vastas extensões, outrora cultivadas, que haviam sido cobertas de
novo pelo mato. A conquista do solo virgem, ainda tão abundante, foi retardada
por isso mais de um século.
Mas estas devastações materiais
não eram tudo: seria preciso poder igualmente avaliar o choque mental. Este foi
tanto mais profundo quanto a tempestade, especialmente no Império Franco,
sucedia a uma relativa calma. É verdade que a paz carolíngia não era muito
antiga e a bem dizer nunca havia sido completa. Mas a memória dos homens é curta
e a sua capacidade de ilusões é insondável. Isto é testemunhado pela história
das fortificações de Reims, que aliás se repetiu, com algumas variantes, em
mais do que uma cidade35. No reinado de Luís, o Pio,
o arcebispo tinha solicitado ao imperador autorização para retirar as pedras da
antiga muralha romana, para as utilizar na reconstrução da sua catedral. O
monarca que, segundo diz Flodoardo, “desfrutava então de uma profunda paz e,
orgulhoso do ilustre poderio do seu império, não receava qualquer invasão de
bárbaros”, deu o seu consentimento. Ainda não eram decorridos cinquenta anos
quando, tendo investido os “bárbaros” de novo, foi preciso construir novas
muralhas a toda a pressa. Os muros e paliçadas que pela Europa de então
começaram a erguer-se foram como que o símbolo visível de uma grande angústia.
Naquele tempo, a pilhagem tinha-se tornado um acontecimento familiar que as
pessoas prudentes previam nos seus contratos. Tal como naquele arrendamento
rural dos arredores de Lucques que, em 876, estipulava a suspensão do aluguer
“se a nação pagã queimasse ou devastasse as casas e o seu recheio ou o moinho”36; ou ainda, dezoito anos antes, o testamento de um rei
de Wessex: as esmolas que os seus bens assegurarão serão pagas apenas se a
terra assim onerada “continuar povoada de homens e de gado e não for
transformada em deserto”37. Diferentes na sua
aplicação, semelhantes no sentido, são as preces cheias de temor que alguns
livros litúrgicos conservaram, equivalentes, de uma ponta à outra do Ocidente.
Na Provença: “Trindade eterna... livra o teu povo cristão da opressão dos
pagãos” (aqui, decerto, trata-se dos Sarracenos). Na Gália do Norte: “da feroz
nação normanda, que devasta os nossos reinos, livrai-nos, ó Deus”. Em Modena,
onde era invocado São Gemignano: “contra as flechas dos Húngaros, sede o nosso
protetor”38. Tentemos, por momentos,
imaginar o estado de espírito dos fiéis que, todos os dias, se associavam a
estas preces. Não é impunemente que uma sociedade vive em estado de perpétuo
alerta. É certo que as incursões árabes, húngaras ou escandinavas não detêm
toda a responsabilidade da apreensão que pesava sobre os espíritos, mas
cabia-lhes uma larga parte dela.”
31 Cartulaire de l’abbaye de
Saint-Victor de Marseille, ed. Guérard, n.º LXXVII.
32
Bibl. Nat. Baluze 76, fol. 99 (900, 14
Setemb.).
33 Ann. Bertiniani, 859
(com a correção proposta por F. LOT, Bibl. Éc. Chartes, 1908, p. 32, n.º 2) REGINO DE PROM, 882. DUDON DE
SAINT-QUENTIN, II, 22.
34 King Alfred’s West Saxon Version
of Gregory’s Pastoral Care. ed. Sweet
(S. E. S., 45), p. 4.
35
Cf. VERCAUTEREN, Étude sur les cités de la Belgique seconde, Bruxelas,
1934, p. 371, n.º 1: cf. para Tournai, V. S. Amandi, 111, 2 (Poetae aevi
carol., t. III, p. 589).
36 Memorie
e documenti per servir all’istoria del ducato di Lucca, t. V, 2, n.º 855.
37
Testamento do rei Aethelwulf, em Asser’s Life of King Alfred. ed. W. H.
Stevenson, c. 16.
38
R. POUPARDIN. Le royaume de Provence sous les Carolingiens, 1901 (Bibl.
Éc. Hautes Études, Sc. Histor., 131) — L. DELISLE, Instructions adressées
par le Comité des travaux historiques... Littérature latine, 1890. p. 17 —
MURATORI, Antiquitates, 1738, t. 1, col. 22.
“Que um punhado de bandidos,
instalados numa colina provençal, tenha podido, durante quase um século,
espalhar a insegurança ao longo de um imenso maciço montanhoso e quase cortar
as estradas vitais da cristandade; que, durante mais tempo ainda, a pequenas
hordas de cavaleiros da estepe tenha sido permitido devastar o Ocidente em
todos os sentidos; que, ano após ano, desde Luís o Pio aos primeiros Capetos, e
certamente em Inglaterra até Guilherme o Conquistador, as barcas do Norte
tenham impunemente lançado bandos ávidos de pilhagem sobre as costas
germânicas, gaulesas ou britânicas; que, para acalmar estes salteadores, fossem
quais fossem, tenha sido preciso pagar pesados resgates e, aos mais temíveis,
ceder por fim grandes extensões de terra: estes fatos são surpreendentes. Tal
como os progressos da doença revelam ao médico a vida secreta de um corpo,
assim, aos olhos do historiador, a marcha vitoriosa de uma grande calamidade
assume, em relação à sociedade assim atingida, o valor de um sintoma.
Era pelo mar que os Sarracenos do
Freinet recebiam os reforços; as suas ondas traziam até aos terrenos de caça
familiares as embarcações dos Vikings. Impedir a sua navegação aos invasores
teria sido, sem qualquer dúvida, o meio mais seguro de evitar as suas
pilhagens. Provam-no os Árabes da Espanha ao impedirem a navegação das águas
meridionais aos piratas escandinavos; mais tarde, as vitórias da frota criada
finalmente pelo rei Alfredo; no século XI, a limpeza do Mediterrâneo levada a
cabo pelas cidades italianas. Ora, pelo menos, os poderes de comando cristãos
manifestaram a este respeito uma incapacidade quase unânime. Não vimos os donos
desta costa provençal, onde hoje se aninham tantas aldeias de pescadores,
implorar o socorro da longínqua marinha grega? Não se diga que os príncipes não
tinham vasos de guerra. No estado em que se encontrava a arte naval,
seguramente teria sido suficiente requisitar os barcos de pesca e de comércio,
ou recorrer, conforme as necessidades, aos ofícios de alguns calafates, para
ter alguns mais aperfeiçoados; qualquer população de marinheiros teria
fornecido as equipagens. Mas o Ocidente parece ter-se encontrado então
totalmente desabituado das coisas do mar e esta estranha carência não é a menos
curiosa que nos oferece a história das invasões. No litoral da Provença, as
povoações que outrora, sob o domínio romano, se localizavam à beira das baías,
haviam-se retirado para o interior49. Alcuíno, na
carta que escreveu ao rei e aos grandes da Nortúmbria, depois da primeira pilhagem
normanda, a de Lindisfárnia, emprega uma expressão que faz pensar: “nunca”, diz
ele, “se teria acreditado na possibilidade de tal navegação”50. E no entanto tratava-se apenas de atravessar o mar do Norte!
Depois de um intervalo de quase um século, quando Alfredo se decidiu a combater
os inimigos no seu próprio elemento, teve que recrutar uma parte dos
marinheiros na Frísia, cujos habitantes, de longa data, se haviam especializado
no ofício, quase abandonado pelos seus vizinhos, da navegação costeira ao longo
das margens setentrionais. O serviço de mar indígena só foi verdadeiramente
organizado pelo seu bisneto Edgar (959-975)51. A
Gália mostrou-se ainda mais lenta em aprender a olhar para além das suas
falésias ou das suas dunas. É significativo que, na sua fracção mais
considerável, o vocabulário marítimo francês, pelo menos na frente oeste, seja
de formação tardia e vá buscar palavras tanto ao escandinavo como ao próprio
inglês.
Uma vez em terra, os bandos
sarracenos ou normandos, como as hordas húngaras, eram especialmente difíceis
de suster. Só é fácil vigiar em terrenos onde os homens vivem próximos uns dos
outros. Ora naquele tempo, até nas regiões mais favorecidas, a população tinha
apenas uma fraca densidade, comparada com a atual. Por toda a parte havia
espaços vazios, matagais, florestas, que ofereciam percursos adequados às
surpresas. Estes bosques densos e pantanosos que, um dia, encobriram a fuga do
rei Alfredo, podiam do mesmo modo esconder o avanço dos invasores. Em suma, o
obstáculo era o mesmo que ainda recentemente se deparava aos nossos oficiais
quando se esforçavam por manter a segurança nos confins marroquinos ou na
Mauritânia. Decuplicado, é óbvio, pela ausência de qualquer autoridade superior
capaz de controlar eficazmente vastas extensões de erra.
Nem os Sarracenos nem os
Normandos se armavam melhor do que os seus adversários. Nos túmulos dos
Vikings, as espadas mais belas têm a marca de fabrico franco. São os “gládios
de Flandres” tantas vezes referidos nas lendas escandinavas. Os mesmos textos
colocam habitualmente nas cabeças dos seus heróis, “elmos gauleses”. Vagabundos
e caçadores da estepe, os Húngaros, provavelmente eram melhores cavaleiros, e
melhores archeiros, sobretudo, do que os Ocidentais; nem por isso deixaram de
ser vencidos por várias vezes em batalha alinhada. Se os invasores possuíam uma
superioridade militar, esta era muito menos de natureza técnica do que de
origem social. Como aconteceria mais tarde com os Mongóis, os Húngaros eram
adestrados para a guerra pelo seu próprio modo de vida. “Quando as duas partes
são iguais pelo número e pela força, a vitória cabe ao que estiver habituado à
vida nômada”. Esta observação é do historiador árabe Ibn-Khaldun52. No mundo antigo, teve um alcance quase universal: pelo menos até
ao dia em que os sedentários puderam dispor da ajuda dos recursos
proporcionados por uma organização política aperfeiçoada e de um armamento
verdadeiramente científico. E isto porque o nômada é um “soldado nato”, sempre
pronto para partir para uma campanha com os seus meios habituais, o seu cavalo,
o seu equipamento, as suas provisões; porque dispõe também de um instinto
estratégico do espaço, geralmente desconhecido dos sedentários. Quanto aos
Sarracenos e sobretudo aos Vikings, os seus destacamentos, desde início, eram
feitos expressamente para a luta. Contra estas tropas fogosas, o que podiam
fazer as levas de soldados improvisados, reunidas à pressa nos quatro cantos de
uma terra já invadida? Basta comparar, nas descrições das crônicas inglesas, o
ardor do here — exército dinamarquês — com a imperícia do fyrd
anglo-saxão, milícia pesada, da qual apenas consegue obter-se uma ação mais ou
menos prolongada se se permitir, por um sistema de fazer render cada homem,
para que possa, periodicamente, ir à sua terra. Estes contrastes, na verdade,
foram agudos, especialmente no início. À medida que os Vikings se tornavam
colonos e os Húngaros, junto do Danúbio, se tornavam camponeses, novas
preocupações vieram entravar os seus movimentos. Além disso, não tinha o
Ocidente obtido também, cedo, uma classe de combatentes profissionais, com o
sistema da vassalagem ou feudo? A incapacidade deste mecanismo, montado para a
guerra, de fornecer, em resumo, os meios de uma resistência verdadeiramente
eficaz é elucidativa sobre os seus defeitos internos.
Mas estes soldados por ofício
consentiam realmente em se baterem? “Toda a gente foge” escrevia cerca de 862,
ou pouco depois, o monge Ermentário53. Com efeito,
até entre os homens que pareciam mais bem treinados, os primeiros invasores
devem ter produzido uma impressão de terror pânico cujos efeitos paralisantes
evocam irresistivelmente as narrativas dos etnógrafos sobre a fuga desvairada
de certas tribos primitivas e, no entanto, bastante belicosas, diante de
qualquer estrangeiro54: destemidas em face do perigo
familiar, as almas rudes são geralmente incapazes de suportarem a surpresa e o
mistério. O monge de Saint-Germain-des-Près que, pouco tempo depois do
acontecimento, descreveu a subida do Sena, em 845, pelas embarcações normandas,
repare-se o tom perturbado com que ele observa “que nunca se ouvira falar de
coisa semelhante nem lido algo de parecido nos livros”55.
Esta emotividade era alimentada pela atmosfera de lenda e de apocalipse que
imbuía os cérebros. Nos Húngaros, narra Rémi d’Auxerre, “numerosas pessoas”
julgavam reconhecer os povos de Gog e Magog, anunciadores do Anti-Cristo56. A própria ideia, universalmente espalhada, de que estas
calamidades eram um castigo divino, predispunha a aceitá-las. As cartas que
Alcuíno enviou para Inglaterra, depois do desastre de Lindisfárnia, mais não
são do que exortações à virtude e ao arrependimento; nem uma palavra acerca da
organização da resistência. No entanto, os exemplos de cobardia de que há
provas datam do período mais antigo. Mais tarde, foi recuperada uma certa
coragem.
A verdade profunda é que os
chefes eram muito menos incapazes de combater se a sua própria vida, ou os seus
bens, se encontravam em jogo, do que de organizar metodicamente a defesa e —
com raras excepções — de compreenderem as ligações entre o interesse particular
e o interesse geral. Ermentário tinha razão quando, entre as causas das
vitórias escandinavas, colocava, a par da cobardia e do “torpor” dos cristãos,
as suas “questiúnculas”. Que os terríveis salteadores do Freinet tenham visto
um rei de Itália pactuar com eles; que um outro rei de Itália, Berengário I,
tenha tomado Húngaros ao seu serviço e um rei da Aquitânia, Pepino II,
Normandos; que os parisienses, em 885, tenham lançado os Vikings contra a
Borgonha; que a cidade de Gaeta, durante muito tempo aliada dos Sarracenos do
Monte Argento, tenha consentido em dar o seu apoio à liga constituída para
expulsar esses bandidos, apenas em troca de terras e de ouro: estes episódios,
entre muitos outros, lançam uma luz singularmente cruel sobre a mentalidade
comum. E os soberanos, apesar de tudo, esforçar-se-iam por lutar? Demasiadas
vezes a empresa acabava como terminou, em 881, aquela de Luís III que, tendo
construído um castelo sobre o Escalda, a fim de cortar o caminho aos Normandos,
“não conseguiu encontrar ninguém para ali montar guarda”. Não há nenhuma
campanha real acerca da qual não possa repetir-se, pelo menos, o que,
provavelmente não sem uma ponta de optimismo, um monge parisiense dizia da
mobilização de 845: de entre os guerreiros convocados muitos vieram, nem todos57. Mas, sem dúvida, o caso mais revelador é o de Otão o
Grande, que, poderoso entre todos os monarcas do seu tempo, nunca conseguiu
reunir um pequeno exército cujo assalto teria posto termo ao escândalo do
Freinet. Se, na Inglaterra, os reis do Wessex, até à derrocada final,
conduziram valentemente e eficazmente, o combate contra os Dinamarqueses, se,
na Alemanha, Otão agiu do mesmo modo contra os Húngaros, no conjunto do
continente a única resistência verdadeiramente conseguida proveio antes dos
poderes regionais, os quais, mais fortes do que as realezas, por estarem mais
próximos da matéria humana e menos preocupados com ambições desmedidas,
lentamente se constituíam acima da poeira dos pequenos poderes senhoriais.
Por muito rico de ensinamentos
que seja o estudo das últimas invasões, não se deve no entanto permitir que
estes ensinamentos nos mascarem um fato ainda mais considerável: o termo das
próprias invasões. Até ali, estas devastações feitas por bandos vindos do
exterior e estas grandes movimentações de povos tinham verdadeiramente tecido o
curso da história do Ocidente, como a do resto do mundo. Doravante, o Ocidente
ficará livre delas. Diferentemente, ou quase, do resto do mundo. Nem os Mongóis
nem os Turcos mais tarde fariam mais do que aproximar-se das suas fronteiras.
Certamente que haverá discórdias, mas sem contato com o exterior. Daqui derivou
a possibilidade de uma evolução cultural e social muito mais regular, sem a
quebra de qualquer ataque exterior nem de qualquer afluxo humano estrangeiro.
Veja-se, por contraste, o destino da Indochina, onde, no século XIV, o
esplendor dos Chams e dos Khmers foi abatido sob as investidas dos invasores
anamitas ou siameses. Veja-se sobretudo, mais perto de nós, a Europa Oriental,
esmagada, até aos tempos modernos, pelos povos da estepe e pelos Turcos.
Perguntemo-nos, por momentos, o que teria sido a sorte da Rússia sem os
Polovtsi e sem os Mongóis. Nada nos impede de pensar que esta extraordinária
imunidade, cujo privilégio apenas partilhamos com o Japão, tenha sido um dos
fatores fundamentais da civilização europeia, no sentido profundo, no sentido
exato da palavra.”
49 E. H. DUPRAT, À propôs de l’itinéraire
mariíime: I, Citharista. La Ciotat, em Mem. do Instituto Histórico de Provença, t. IX, 1932.
50
Ep. 16, (Monum. Germ. E. E.), t. IV, p. 42.
51
Sobre esta lentidão do desenvolvimento marítimo da Inglaterra, cf. F.
LIEBERMANN, Matrosentellung aus Landgütern der Kirch London um 1000 em Archiv
fur das Studium der neueren Sprachen. t. CIV, 1900. A batalha naval
travada, em 851, pelos habitantes de Kent é um fato isolado; igualmente neste
setor do litoral, as relações com os portos, próximos, da Gália, tinham sem
dúvida mantido uma vida marítima menos morosa do que noutros lugares.
52 Prolégomènes,
trad. SLANE, t. I, p. 291. Sobre os Mongóis, ver as
inteligentes observações de GRENARD, nos Annales d’hist. économ., 1931,
p. 564, aos quais fui buscar certas expressões.
53 Monuments
de 1’histoire des abbayes de Saint-Philibert, ed. Poupardin, p. 62.
54
Cf. por exemplo, L. LÉVY-BRUHL, La mentalité primitive. p. 377.
55 Analecta
Bollandiana, 1883, p. 71.
56
MIGNE, P. L., t. CXXXI, col. 966.
57 Analecta
Bollandiana, 1883, p. 78.
“O traço fundamental [da Primeira Idade Feudal] permanece
a universal e profunda descida da curva demográfica. Incomparavelmente menos
numerosos, em toda a superfície da Europa, do que nos parece, não apenas desde
o século XVIII mas também desde o século XII, os homens eram também, segundo
tudo leva a crer, nas províncias ainda há pouco submetidas à dominação romana,
sensivelmente mais raros do que nos belos tempos do Império. Mesmo nas cidades,
onde os mais importantes não ultrapassavam uns escassos milhares de almas,
existiam por toda a parte terrenos baldios, jardins, e até por vezes campos
cultivados e pastagens por entre as casas.
Esta ausência de densidade era
ainda agravada por uma distribuição desigual. Certamente que as condições físicas,
tal como os hábitos sociais, conspiravam para manterem, nos campos, profundas
variedades entre os regimes de habitat. Por vezes, as famílias, ou pelo menos
algumas, haviam-se fixado bastante longe umas das outras, cada uma no meio da
sua própria exploração agrícola: assim era no Limosino. Doutras vezes, pelo
contrário, como na Ilha de França, concentravam-se, quase todas, em aldeias. No
entanto, no conjunto, a pressão dos chefes, sobretudo a preocupação com a
segurança, eram outros tantos obstáculos para uma dispersão mais acentuada. As
perturbações da Alta Idade Média tinham provocado frequentes concentrações.
Nestes aglomerados, os homens viviam muito perto uns dos outros, mas os
povoados eram separados por vários espaços desertos. A própria terra cultivável,
da qual a aldeia retirava o seu sustento, tinha que ser, proporcionalmente ao
número dos habitantes, muito mais vasta do que hoje. Pois naquele tempo a
agricultura era uma grande devoradora de espaço. Nas terras lavradas,
incompletamente cavadas e sempre privadas de adubos suficientes, as espigas não
cresciam bem criadas nem muito bastas. Especialmente, nunca a propriedade
apresentava colheitas simultâneas. Os sistemas de cultivo mais aperfeiçoados
exigiam que, em cada ano, metade ou um terço do solo cultivado ficasse em
repouso. Muitas vezes, até, o repouso das terras e o cultivo sucediam-se numa
alternância sem tempo estabelecido, concedendo sempre um tempo mais longo à
vegetação espontânea do que ao período de cultura; neste caso, os campos eram
apenas provisórias e breves conquistas sobre os baldios. Assim, no próprio seio
dos terrenos, a natureza, sem cessar, tendia a sobrepor-se. Para além dos
terrenos amanhados, envolvendo-os e penetrando-os, desenrolavam-se florestas,
matos e charnecas, imensas zonas selvagens, das quais o homem raramente estava
de todo ausente, mas que, sendo carvoeiro, pastor, eremita ou fora-da-lei,
habitava apenas à custa de um longo afastamento dos seus semelhantes.”
“É de crer que a moeda, no Ocidente “feudal”,
nunca esteve totalmente ausente das transações, mesmo nas classes camponesas e
acima de tudo ela nunca deixou de desempenhar o papel de padrão das trocas. O
devedor pagava muitas vezes em mercadorias; mas em mercadorias geralmente
“apreciadas” uma por uma, de maneira que o total destas avaliações coincidisse
com um preço estipulado em libras, soldos e dinheiros. Evitemos, portanto, a
expressão, demasiado sumária e demasiado vaga, de “economia natural”. Vale mais
falar simplesmente de carência monetária. A penúria de espécies era ainda
agravada pela anarquia da cunhagem das moedas, resultado, ela própria, ao mesmo
tempo do retalhamento político e da dificuldade das comunicações: pois cada
mercado importante tinha que ter a sua oficina local, sob pena de miséria.
Feita excepção à imitação das moedas exóticas e algumas ínfimas peças pequenas,
postas de lado, apenas se fabricavam dinheiros, que eram moedas de prata, de
valor bastante fraco. O ouro circulava apenas sob a forma de moedas árabes e
bizantinas ou suas cópias. A libra e o soldo eram somente múltiplos aritméticos
do dinheiro, sem suporte material que lhe fosse próprio. Mas os diversos
dinheiros, sob uma designação comum, tinham um valor metálico diferente, segundo
a sua proveniência. E o que é pior ainda, num mesmo local, cada emissão, ou
pouco menos, acarretava variações no peso ou na liga empregada. Ao mesmo tempo
rara, no total, e incômoda, por via dos seus caprichos, a moeda circulava além
do mais lentamente e demasiado irregularmente para que alguém pudesse sentir-se
seguro por obtê-la, em caso de necessidade. E isto por causa da falta de trocas
suficientemente frequentes.
Neste ponto, também, evitemos uma
fórmula demasiado simples: a de economia fechada, pois ela nem às pequenas
explorações rurais se aplicaria exatamente. Sabemos da existência de mercados
onde os camponeses certamente vendiam alguns produtos dos seus campos ou das suas
capoeiras: à gente da cidade, aos clérigos, aos homens de armas. Era assim que
eles arranjavam os dinheiros dos foros. E muito pobres eram aqueles que nunca
compravam algumas onças de sal ou de ferro. Quanto à “autarcia” dos grandes
senhores ela faria supor que eles tivessem passado sem armas e sem joias, nunca
bebessem vinho, se por acaso as suas terras não o produzissem, e se tivessem
contentado com terem por vestuário os tecidos grosseiros tecidos pelas mulheres
dos seus rendeiros. Portanto, não eram apenas as insuficiências da técnica
agrícola, as perturbações sociais, as intempéries, finalmente, que contribuíam
para alimentar um certo comércio interior: pois, quando acontecia que as
colheitas não eram produtivas, se muitos, literalmente, morriam de fome, a
população inteira não ficava reduzida a tais extremos e sabemos que dos países
mais favorecidos para aqueles que eram atingidos pela fome se estabelecia um
tráfico de trigo que se prestava a muitas especulações. As trocas não eram,
portanto, inexistentes; pelo contrário, eram irregulares ao último grau. A
sociedade daquele tempo não desconhecia evidentemente nem a compra nem a venda,
mas não vivia, como a nossa, da compra e da venda.
Também o comércio, ainda que sob
a forma de troca, não era o único, nem talvez o mais importante dos canais
pelos quais se processava então a circulação dos bens, través das camadas
sociais. Um grande número de produtos passava de mão em mão a título de foros,
pagos a um chefe como remuneração pela sua proteção, ou como reconhecimento do
seu poder. O mesmo acontecia com essa outra mercadoria que é o trabalho humano:
o trabalho gratuitamente fornecido ao senhor fornecia mais mão de obra’ do que
o trabalho remunerado. Numa palavra, a troca, no sentido estrito, ocupava menos
lugar na vida econômica, sem dúvida, do que a prestação de serviços; e porque a
troca era, assim, rara e por isso só os pobres deviam resignar-se a subsistir
apenas à custa da sua própria produção, a riqueza e o bem-estar pareciam
inseparáveis do comando.
Todavia, uma economia constituída
deste modo à disposição dos próprios poderosos só lhes proporcionava, afinal,
meios de aquisição singularmente restritos. Quem diz moeda diz possibilidades
de reservas, capacidade de espera, “antecipação dos valores futuros”: coisas
que, reciprocamente, a penúria de moeda tornava extremamente difíceis.
Certamente que as pessoas procuravam amealhar sob outras formas. Os barões e os
reis acumulavam nos seus cofres baixelas de ouro ou de prata e joias; as
igrejas amontoavam peças litúrgicas de ouro. Se se fazia sentir a necessidade
de um gasto imprevisto, vendia-se ou empenhava-se a coroa, a taça ou o
crucifixo; ou mandavam-se fundir na oficina de cunhagem de moeda mais próxima.
Mas este recurso, justamente por causa da lentidão das trocas nunca era cômodo
nem de resultados e os próprios tesouros, no total, não atingiam uma
importância muito considerável. Grandes e pequenos viviam o dia a dia,
obrigados a limitarem-se aos recursos do momento e quase constrangidos a
gastarem-nos imediatamente.
A atonia das trocas e da
circulação monetária tinha uma outra consequência ainda e das mais graves;
reduzia ao mínimo o papel social do salário. Este, com efeito, supõe do lado do
patrão um numerário suficientemente abundante e cuja origem não corra o risco
de cessar de repente; por parte do assalariado, a certeza de poder empregar a
moeda assim obtida para obter os mantimentos necessários ao seu sustento. Todas
estas condições não existiam na primeira idade feudal. Em todos os graus da hierarquia,
quer se tratasse, para o rei, de assegurar os serviços de um grande oficial, ou
para o fidalgo de província, de contratar um criado de armas ou de quinta, era
forçoso recorrer a um modo de remuneração que não se fundamentasse no pagamento
periódico de uma quantia em dinheiro. Ofereciam-se duas soluções: albergar o
homem em casa, alimentá-lo, fornecer-lhe aquilo que se chamava “cama e mesa”;
ou então ceder-lhe, em paga do seu trabalho, uma terra que, por exploração
direta ou sob a forma de foros pagos pelos cultivadores da terra, lhe
permitisse prover ele próprio à sua manutenção.
Ora, qualquer destes sistemas
concorria, ainda que em sentidos opostos, para estabelecer laços humanos muito
diferentes do salariado. Do criado mantido em casa ao patrão, à sombra do qual
aquele vivia, como se não existisse uma relação mais íntima do que a que se
cria entre um patrão e um empregado que, uma vez terminada a sua tarefa, é
livre de se retirar com o dinheiro no bolso? Pelo contrário, esta relação,
quase necessariamente, tornava-se mais distante desde que o subordinado
estivesse estabelecido numa terra, a qual, pouco a pouco, por um impulso
natural, tinha tendência a considerar como sua, esforçando-se ao mesmo tempo
por diminuir o peso dos seus serviços. Acrescente-se que, num tempo em que a
incomodidade das comunicações e a anemia das trocas tornavam difícil manter uma
casa com muita gente numa relativa abundância, o regime de dar o sustento aos
criados era, no total, susceptível de bem menor extensão do que o sistema das
remunerações por meio do pagamento de imposto sobre a terra. Se a sociedade
feudal oscilou permanentemente entre estes dois polos, a estreita relação de
homem para homem e o laço frouxo da concessão do amanho de terras, a
responsabilidade cabe, por um lado, ao regime econômico que, pelo menos na sua
origem, lhe impede o salariado.”
Li o livro referenciado na capa, da Edipro, mas não encontrei um pdf dele disponível na internet pra copiar os trechos.
ResponderExcluirDesta forma, pra não ter o inviável trabalho de digitar tudo, selecionei os mesmos trechos, mas de outra editora, a Edições 70.