Editora: Intrínseca
ISBN: 978-85-8057-581-1
Tradução: Monica Baumgarten de Bolle
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 674
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Sinopse: Ver Parte
I
“Nos anos 1950-1960, as heranças e doações
somavam apenas o equivalente a alguns pontos de renda nacional por ano, de modo
que podemos imaginar legitimamente que a herança quase desapareceu e que o
capital, em geral menos importante do que no passado, a partir de então era uma
substância a ser acumulada por conta própria, por meio da poupança e do
esforço. Várias gerações cresceram com essa realidade (por vezes, é verdade,
uma percepção um tanto idealizada), em especial a geração do baby boom — aqueles nascidos nos anos
1940-1950 e ainda bastante presentes neste início de século XXI —, e
naturalmente às vezes elas imaginam que se trata de uma nova normalidade.
Por outro lado, as gerações mais jovens, em
particular aquelas nascidas nos anos 1970-1980, já conhecem — em certa medida —
a nova importância que a herança vai desempenhar em suas vidas e na de seus
parentes e amigos. Por exemplo, a presença ou não de doações significativas
determina em grande parte quem vai se tornar proprietário, com qual idade, com
que cônjuge, onde e em que proporção, ou no mínimo de modo mais determinante do
que acontecia com a geração de seus pais. Suas vidas, suas carreiras, suas
escolhas familiares e pessoais são muito mais influenciadas pela herança — ou
pela ausência dela — do que a dos baby-boomers.”
“A crença de que o envelhecimento conduz ao
fim da herança se revela falsa. Numa sociedade que envelhece, a herança é
recebida mais tarde, mas o montante é mais elevado (ao menos para aqueles que
herdam), e portanto a importância global da herança permanece a mesma. (...)
Ao longo do século XX, após o desmoronamento
do fluxo de herança, esse equilíbrio se transforma totalmente. O ponto mais
baixo foi atingido nos anos 1970: depois de várias décadas de heranças pequenas
e acumulação de novos patrimônios, o capital herdado representava pouco mais de
40% do capital privado. Pela primeira vez na história — à exceção dos países
novos —, os patrimônios acumulados pelos vivos constituíam a maior parte da
riqueza: quase 60%. É importante perceber que, embora o capital de fato tenha
mudado de natureza no pós-guerra, nós acabamos de sair desse período
excepcional. E o que nos confirma a saída de tal era são as seguintes
condições: a participação dos patrimônios herdados na riqueza total não parou
de aumentar desde os anos 1970, voltou a ser nitidamente majoritária nos anos
1980-1990 e, de acordo com os dados mais recentes disponíveis, representava em
2010 cerca de dois terços do capital privado na França, contra apenas um terço
do capital constituído a partir de poupança. Considerando os níveis mais
elevados do fluxo de herança atual, é muito provável, se as tendências
persistirem, que a participação dos patrimônios herdados continue a crescer nas
próximas décadas, ultrapassando 70% até 2020 e aproximando-se de 80% nos anos
2030-2040. No cenário em que o crescimento diminui para 1% e o rendimento
líquido do capital sobe para 5%, a participação dos patrimônios herdados deverá
manter sua progressão e atingir 90% até 2050-2060.”
“Na França deste início de século XXI, existe
de fato um número menor de grandes heranças — as heranças de 30 milhões de
euros, ou mesmo de 10 milhões ou 5 milhões de euros são menos abundantes — do
que no século XIX. Entretanto, levando em conta que a massa global das heranças
voltou quase a seu ponto inicial, isso significa também que existem muito mais
heranças médias e médias-altas: por exemplo, em torno de 200.000, 500.000, 1
milhão e 2 milhões de euros. Tais heranças, apesar de serem insuficientes para
permitir o abandono de uma profissão e o início de uma vida de rentista,
representam ainda assim montantes consideráveis, sobretudo em comparação com o
que uma boa parte da população ganha durante uma vida de trabalho. Em outras
palavras, passamos de uma sociedade com um pequeno número de grandes rentistas
para uma sociedade com um grande número de rentistas menores: uma sociedade de
pequenos rentistas, de certa maneira.
O indicador que me parece mais pertinente
para representar essa evolução é o que trata da porcentagem de pessoas que,
dentro de cada geração, recebem em herança (incluindo as doações) somas maiores
do que aquilo que os 50% menos bem pagos ganham em renda do trabalho ao longo
da a vida. Esse montante evoluiu ao longo das gerações: hoje, o salário médio
na metade inferior dos assalariados é da ordem de 15.000 euros por ano, ou
seja, cerca de 750.000 euros por cinquenta anos de carreira (incluindo a
aposentadoria). Trata-se, grosso modo, do resultado de uma vida passada perto
do salário mínimo. Constatamos que, no século XIX, cerca de 10% de uma geração
herdava montantes superiores a tal soma. Essa porcentagem desmoronou para pouco
mais de 2% para as gerações nascidas nos anos 1910-1920 e 4-5% para aquelas
nascidas nos anos 1930-1950. De acordo com nossas estimativas, essa porcentagem
já voltou a subir para cerca de 12% para as gerações nascidas nos anos
1970-1980 e poderia atingir ou ultrapassar 15% para as nascidas nos anos
2010-2020. Em outras palavras, perto de um sexto de cada geração receberá uma
herança maior do que o valor que metade da população ganha por meio do trabalho
ao longo de toda a vida (em grande medida, essa é a mesma metade da população
que não recebe praticamente herança alguma). É claro que isso não impedirá esse
um sexto de obter diplomas e trabalhar, e sem dúvida de ganhar mais em geral
com seu trabalho do que a metade menos bem paga. Contudo, ainda assim é uma
forma de desigualdade muito perturbadora, que está a caminho de atingir uma
magnitude inédita na história. Além disso, ela é mais difícil de ser
representada na literatura e de ser corrigida politicamente, pois se trata de uma
desigualdade comum, opondo grandes segmentos da população, e não a oposição
entre uma elite e o restante da sociedade.”
“Nossas sociedades democráticas se apoiam em
uma visão meritocrática do mundo, ou ao menos numa esperança meritocrática — a
crença numa sociedade na qual as desigualdades seriam mais fundadas no mérito e
no trabalho do que na filiação e na renda. Essa crença e essa esperança
desempenham um papel central na sociedade moderna, por uma razão simples: na
democracia, a igualdade proclamada dos direitos do cidadão contrasta de maneira
singular com a desigualdade bastante real das condições de vida, e, para
escapar dessa contradição, é vital fazer com que as desigualdades sociais
resultem de princípios racionais e universais, e não de contingências
arbitrárias. As desigualdades devem, assim, ser justas e úteis a todos (“As
distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”, anuncia o
primeiro artigo da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789), ao menos na ordem do discurso, e
tanto quanto possível na realidade. Em 1893, Émile Durkheim havia previsto que
as sociedades democráticas modernas não suportariam por muito tempo a
existência da herança e acabariam por restringir o direito de propriedade de
maneira que a posse se extinguiria com a morte das pessoas.
A partir do momento em que o capital
desempenha um papel útil no processo de produção, é natural que ele tenha um
rendimento. E, a partir do momento em que o crescimento é baixo, é quase
inevitável que esse rendimento do capital seja bem superior à taxa de
crescimento, o que dá automaticamente uma importância desmedida às
desigualdades patrimoniais vindas do passado. Essa contradição lógica não será
resolvida com um pouco de concorrência adicional. A renda não é uma imperfeição
do mercado: ela é, ao contrário, a consequência de um mercado de capital “puro
e perfeito”, no sentido dos economistas, ou seja, um mercado de capital que
oferece a cada detentor de capital — inclusive aos herdeiros menos capazes — o
rendimento mais elevado e diversificado possível na economia nacional ou mesmo
mundial. Existe, por certo, algo de surpreendente nessa noção de renda
produzida por um capital e no fato de que o detentor seja capaz de obtê-la sem
trabalhar. Há nessa ideia algo de contrário ao senso comum e que de fato aflige
as civilizações, que tentaram dar a esse fenômeno várias respostas, nem sempre
felizes, indo desde a interdição da usura até o comunismo do tipo soviético.
Apesar disso, a renda é uma realidade da economia de mercado e da propriedade
privada do capital. O fato de o capital fundiário ter se tornado imobiliário,
industrial e financeiro não mudou nada dessa realidade profunda. Imagina-se às
vezes que a lógica do desenvolvimento econômico consistiria em tornar cada vez menos
efetiva a distinção entre trabalho e capital. Na realidade, é exatamente o
contrário: a sofisticação crescente do mercado de capital e da intermediação
financeira visa a separar de maneira cada vez mais acentuada a identidade do
proprietário e do gestor e, assim, a renda pura do capital e a do trabalho. A
racionalidade econômica e tecnológica nada tem a ver com a racionalidade
democrática. O iluminismo engendrou a democracia, e é muito comum pensar que a
economia acompanharia essa lógica democrática naturalmente, como que por
encantamento. Ora, a democracia real e a justiça social exigem instituições
específicas, que não são apenas as do mercado e também não podem ser reduzidas
às instituições parlamentares e democráticas formais.
Resumindo: a força da divergência fundamental
que enfatizamos neste livro, que pode ser resumida pela desigualdade r > g, nada tem a ver com uma imperfeição dos mercados e não será
resolvida por mercados cada vez mais livres e competitivos. A ideia de que a
livre concorrência permite pôr fim à sociedade de herança e conduz a um mundo
cada vez mais meritocrático é uma ilusão perigosa. O advento do sufrágio
universal e a extinção do voto censitário (que no século XIX restringia o
direito de voto às pessoas que detinham riqueza suficiente, em geral o 1% ou os
2% mais ricos em patrimônio nas sociedades francesas e britânicas dos anos
1820-1840, ou seja, o equivalente aos contribuintes sujeitos ao imposto sobre
fortunas na França dos anos 2000-2010) acabaram com a dominação política legal
dos detentores de patrimônio, mas não aboliram as forças econômicas capazes de
produzir uma sociedade de rentistas.”
“De acordo com a Forbes, o planeta contabilizava 140 bilionários, em dólares, em
1987, e ela estima mais de 1.400 em 2013, ou seja, o número foi multiplicado
por dez. Seu patrimônio total avançou ainda mais rápido, passando de menos de
300 bilhões de dólares em 1987 para 5,4 trilhões em 2013, o que significa um
aumento de quase vinte vezes.”
“A parcela do milésimo superior (0,1% da população
mundial) atualmente parece estar próxima de 20% do patrimônio total, a do
centésimo superior (1% da população), perto de 50% do patrimônio total, e a do
décimo superior (10% da população), entre 80% e 90%; a metade inferior (50%) da
população mundial possui, sem dúvida, menos de 5% do patrimônio total.”
“Uma das lições mais surpreendentes que
aprendemos com os rankings de bilionários da Forbes é que, a partir de um determinado limiar, todas as fortunas
— sejam provenientes de herança ou de um esforço de empreendedorismo — avançam
em ritmo extremamente elevado, quer o titular da fortuna em questão exerça ou
não uma atividade profissional.
Vejamos um exemplo particularmente claro,
vindo do topo da hierarquia mundial do capital. Entre 1990 e 2010, a fortuna de
Bill Gates — fundador da Microsoft, líder mundial em sistemas operacionais,
símbolo de fortuna feita por meio do empreendedorismo e número um da lista da Forbes por mais de dez anos — passou de
4 bilhões para 50 bilhões de dólares. Ao mesmo tempo, a de Liliane Bettencourt
— herdeira da L’Oréal, líder mundial de cosméticos fundada por seu pai, Eugène
Schueller, genial inventor de tinturas para cabelos em 1907, assim como César
Birotteau com seus perfumes um século antes — passou de 2 bilhões para 25
bilhões de dólares.
Em outras palavras, Liliane Bettencourt nunca
trabalhou, mas isso não impediu que sua fortuna crescesse tão rápido quanto a
de Bill Gates, o inventor, cujo patrimônio continua a crescer com a mesma
velocidade de sempre após ele ter cessado suas atividades profissionais. Uma
vez lançada a fortuna, a dinâmica da riqueza segue sua lógica própria e um
capital pode continuar avançando a um ritmo sustentado por décadas apenas por
conta do seu tamanho. É particularmente importante destacar que, a partir de um
determinado limiar, os efeitos do tamanho, relacionados sem dúvida às economias
de escala na gestão das carteiras e na tomada de risco, são reforçados pelo
fato de que o patrimônio pode se recapitalizar quase integralmente. Com um
patrimônio de tal nível, o estilo de vida do detentor absorve no máximo alguns
décimos de centésimos do capital a cada ano, e a quase totalidade do retorno
pode ser reinvestida. Trata-se de um mecanismo econômico elementar e, ao mesmo
tempo, importante. E com muita frequência subestimamos as consequências
temíveis desse mecanismo para a dinâmica no longo prazo da acumulação e da distribuição
de patrimônios. O dinheiro às vezes tende a se reproduzir sozinho.”
“Ninguém nega que é importante haver uma
sociedade de empreendedores, de invenções e inovações — o que existia em grande
número na Belle Époque, como demonstraram os casos do automóvel, do cinema, da
eletricidade, tal qual acontece hoje. Entretanto, o argumento empreendedor não
possibilita justificar todas as desigualdades patrimoniais, por mais extremas
que sejam, sem nenhuma preocupação. O problema é que a desigualdade r > g, reforçada pela desigualdade dos rendimentos em função do tamanho
do capital, conduz frequentemente a uma concentração excessiva e perene da
riqueza: por mais justificáveis que elas sejam no início, as fortunas se
multiplicam e se perpetuam sem limites e além de qualquer justificação racional
possível em termos de utilidade social.
Os empreendedores tendem, assim, a se
transformar em rentistas, não somente com o passar das gerações, mas também ao
longo do curso de uma mesma vida, especialmente porque as existências
individuais se estendem por muito tempo: o fato de ter tido boas ideias aos
quarenta anos não significa que se vá tê-las aos noventa, não mais do que a
geração seguinte. E, no entanto, a fortuna está sempre lá, às vezes
multiplicada por mais de dez em vinte anos, como mostram os casos de Bill Gates
e Liliane Bettencourt. (...)
A instituição ideal que seria capaz de evitar
uma espiral infindável de aumento da desigualdade e também retomar o controle
da dinâmica em curso seria um imposto progressivo global sobre o capital. Um
instrumento como esse teria ainda o mérito de gerar a transparência democrática
e financeira dos patrimônios, o que é uma condição necessária para a regulação
eficaz do sistema bancário e dos fluxos financeiros internacionais. O imposto
sobre o capital faria prevalecer o interesse geral em detrimento do interesse
privado, preservando, a um só tempo, a abertura econômica e as forças da
concorrência. O mesmo não pode ser dito sobre as diferentes reações de cunho
nacionalista e identitário que poderiam surgir como uma alternativa menos
adequada.”
“Devemos também destacar que a ocultação de
uma parte importante dos ativos financeiros mundiais em paraísos fiscais limita
desde já e de maneira significativa nossa capacidade de analisar a geografia
global da riqueza. Se nos ativermos aos dados fiscais publicados pelos
institutos de estatísticas dos diferentes países e reunidos pelas organizações
internacionais (a começar pelo Fundo Monetário Internacional), a posição
patrimonial dos países ricos perante o resto do mundo pareceria negativa. Como
vimos, o Japão e a Alemanha têm posições positivas muito importantes em relação
ao resto do mundo (ou seja, eles possuem, por meio de seus domicílios, empresas
e governo, muito mais ativos no resto do mundo do que o resto do mundo possui
em seus próprios países), o que reflete o fato de que eles acumularam grandes
excedentes comerciais ao longo das últimas décadas. Contudo, os Estados Unidos
têm uma posição negativa, e a maior parte dos países europeus, à exceção da
Alemanha, tem uma posição próxima de zero ou negativa. No total, quando se
adiciona o conjunto dos países ricos, chegamos a uma posição ligeiramente negativa,
equivalente a cerca de –4% do PIB mundial no início dos anos 2010 e, no
entanto, ela estava próxima de zero em meados dos anos 1980. É necessário,
porém, insistir no fato de que se trata de uma posição ligeiramente negativa
(que representa 1% do patrimônio mundial). Em todo caso, como já vimos diversas
vezes, vivemos num período histórico em que as posições internacionais são mais
ou menos equilibradas, ao menos em comparação com o período colonial, quando a
posição positiva dos países ricos em relação ao resto do mundo era
incomparavelmente maior.
Em princípio, essa posição oficial,
ligeiramente negativa, deveria ter em contrapartida uma posição positiva
equivalente no resto do mundo. Em outras palavras, os países pobres deveriam
possuir mais ativos nos países ricos do que o que acontece de fato, com uma
diferença da ordem de 4% do PIB mundial (cerca de 1% do patrimônio mundial) a
seu favor. Na realidade, o cenário é bem diferente: se adicionarmos o conjunto
de estatísticas financeiras para os diferentes países, chegaremos à conclusão
de que os países pobres também apresentam uma posição negativa e que o planeta
como um todo tem uma posição nitidamente negativa. Em outras palavras, seríamos
possuídos por Marte. Trata-se de uma “anomalia estatística” relativamente
antiga, mas as organizações internacionais perceberam seu agravamento ao longo
dos anos (o balanço de pagamentos é regularmente negativo no mundo inteiro:
mais dinheiro sai dos países do que entra neles, o que em tese é impossível),
sem que possa de fato ser explicado. É necessário ressaltar que essas
estatísticas financeiras e esses balanços de pagamentos concernem em princípio
ao conjunto dos territórios do planeta (os bancos situados nos paraísos fiscais
têm, em teoria, a obrigação de transmitir suas contas às instituições
internacionais, pelo menos de maneira global) e que muitos tipos de vieses e
erros de mensuração podem a priori explicar essa “anomalia”.
Ao confrontar o conjunto de fontes
disponíveis e investigar os dados bancários suíços inexplorados até hoje,
Gabriel Zucman revelou que a explicação mais plausível para essa diferença é a
existência de uma massa importante de ativos financeiros não registrados
detidos nos paraísos fiscais. Sua estimativa, prudente, é que essa massa representa
o equivalente a quase 10% do PIB mundial. Certas estimativas realizadas por
organizações não governamentais concluem que há massas ainda maiores (até o
dobro ou o triplo). No estado atual das fontes disponíveis, a estimativa de
Zucman me parece um pouco mais realista. Contudo, é evidente que essas
estimativas são incertas por natureza, e é possível que se trate de uma margem
inferior. Em todo caso, o fato importante é que essa margem inferior já é
extremamente elevada. Em particular, ela é mais de duas vezes maior do que a
posição negativa oficial do conjunto dos países ricos. Ora, tudo indica que a
maioria desses ativos financeiros localizados nos paraísos fiscais é detida por
residentes dos países ricos (no mínimo três quartos). A conclusão é evidente: a
posição patrimonial dos países ricos em relação ao resto do mundo é na verdade
positiva (os países ricos possuem em média os países pobres, e não o inverso, o
que não chega a ser surpreendente), mas essa evidência é mascarada pelo fato de
que os habitantes mais afortunados dos países ricos ocultam uma parte de seus
ativos nos paraísos fiscais. Esse resultado significa, em particular, que a
forte alta dos patrimônios privados — em proporção à renda nacional —
observados nos países ricos ao longo das últimas décadas, na realidade é ainda
um pouco maior do que estimamos a partir das contas oficiais. O mesmo ocorre
com a tendência de alta da participação dos grandes patrimônios na riqueza
total. Cada vez mais, isso revela que as dificuldades impostas pelos registros
de ativos no capitalismo global deste início de século XXI podem deturpar nossa
percepção da geografia elementar da riqueza.”
“As despesas públicas com educação e saúde
representam entre 10% e 15% da renda nacional em todos os países desenvolvidos
neste início de século XXI.* Dentro desse grupo, constatamos diferenças
significativas entre os países. A educação primária e secundária é quase
inteiramente gratuita para toda a população, mas o ensino superior pode ser
privado, e bastante caro, sobretudo nos Estados Unidos, e em menor grau no
Reino Unido. O sistema público de seguro-saúde é universal (ou seja, aberto a
toda a população) em quase toda a Europa, incluindo, é claro, o Reino Unido.**
Nos Estados Unidos, ao contrário, o sistema público de seguro-saúde é reservado
aos mais pobres e às pessoas idosas (o que não o impede de ser muito
custoso).*** Em todos os países desenvolvidos, essas despesas públicas permitem
que os governos assumam uma grande parte dos custos dos serviços de educação e
de saúde: quase três quartos na Europa e a metade nos Estados Unidos. O
objetivo é possibilitar a igualdade de acesso a esses bens fundamentais: toda
criança deveria poder ter acesso à formação, qualquer que seja a renda de seus
pais; toda pessoa deveria poder ter acesso a cuidados de saúde, inclusive — e
principalmente — quando atravessa uma fase ruim.”
*: Tipicamente 5-6% para educação e 8-9% para saúde.
**: O National Health Service, fundado em 1948, faz parte da identidade
nacional britânica de tal maneira que sua criação foi representada nos palcos
da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de 2012, ao lado da Revolução
Industrial e das bandas de rock dos anos 1960.
***: Se adicionarmos os custos dos seguros privados, o sistema de saúde
americano é de longe o mais caro do mundo (perto de 20% da renda nacional,
contra 10-12% na Europa), mesmo que uma parte importante da população não
esteja coberta e que os indicadores sanitários sejam bastante piores do que na
Europa. Quaisquer que sejam seus defeitos, não há dúvidas de que o sistema
público universal de seguro-saúde oferece uma melhor relação custo-benefício do
que o sistema americano.
“Apesar de todos os defeitos, e sejam quais
forem os desafios que eles enfrentam, o fato é que são os sistemas de
aposentadoria pública que permitem a todos os países desenvolvidos erradicar a
pobreza na terceira idade, que ainda era endêmica até os anos 1950-1960. Junto
com o acesso à educação e à saúde, as aposentadorias públicas são a terceira
revolução social fundamental financiada pela revolução fiscal do século XX.
A aposentadoria é o patrimônio daqueles que
não possuem patrimônio, como muitos dizem.”
“Observamos esse tipo de debate de rendas
mínimas sociais tanto nos Estados Unidos (onde a mãe solteira, negra e
desempregada representa a repulsa absoluta por aqueles que desprezam o magro Welfare State americano) como na Europa.
Nos dois casos, essas quantias equivalem a apenas uma minúscula parte do Estado
social.
Uma diferença importante entre os dois
continentes é que os sistemas de renda mínima sempre foram reservados às
pessoas que tinham filhos nos Estados Unidos. Para pessoas sem filhos, o Estado
carcerário às vezes exerce o ofício do Estado de bem-estar social (em
particular para os jovens negros). Cerca de 1% da população adulta americana
estava atrás das grades em 2013. Essa taxa média de encarceramento é a mais
alta do mundo (levemente à frente da Rússia, muito à frente da China). Ela
ultrapassa os 5% para homens negros adultos (considerando todas as idades).
Outra particularidade é o uso de programas de auxílio em vale-alimentação como
o Food Stamps (cujo objetivo é
garantir que os beneficiários consumam alimentos, em vez de usar o dinheiro com
bebida ou outros vícios), o que é pouco coerente com a visão liberal
frequentemente associada aos Estados Unidos. Isso é uma prova do grau dos
preconceitos americanos em relação aos mais pobres, que parece mais extremo do
que na Europa, sem dúvida porque eles são reforçados, em parte, por
preconceitos raciais.”
“O imposto não é nem bom nem ruim em si: tudo
depende da maneira como ele é arrecadado e do que se faz com ele.
Na escala europeia, são os países mais ricos
e mais produtivos que têm os impostos mais elevados (entre 50% e 60% da renda
nacional na Suécia e na Dinamarca), enquanto os países mais pobres e menos
desenvolvidos têm os menores impostos (pouco mais de 30% da renda nacional na
Bulgária e na Romênia).”
“Devemos insistir sobre o seguinte ponto:
considerando o altíssimo nível atingido pelos patrimônios privados europeus no
início do século XXI, um imposto anual progressivo arrecadado a taxas relativamente
moderadas sobre as maiores riquezas poderia gerar receitas bastante
significativas. Consideremos, por exemplo, o caso de um imposto sobre a riqueza
que fosse arrecadado à taxa de 0% para patrimônios inferiores a 1 milhão de
euros, 1% para patrimônios entre 1 e 5 milhões de euros e 2% para patrimônios
acima de 5 milhões de euros. Se fosse aplicado em todos os países da União
Europeia, ele afetaria 2,5% da população e geraria a cada ano o equivalente a
2% do PIB europeu (o retorno anual seria próximo dos 300 bilhões de euros, para
um PIB de quase 15 trilhões.). Esse retorno elevado não surpreende: ele
simplesmente vem do fato de que os patrimônios privados representam mais de
cinco anos do PIB e que os centésimos superiores detêm uma parte considerável
desse total. O centésimo superior detém atualmente algo em torno de 25% do
patrimônio total, ou seja, cerca de 125% do PIB europeu. Os 2,5% mais ricos
detêm quase 40% do patrimônio total, ou seja, 200% do PIB europeu. Não é
surpreendente que um imposto com uma taxa marginal de 1% e 2% para esses grupos
gere dois pontos percentuais do PIB. Vimos então que, se um imposto sobre o
capital não pode financiar sozinho o Estado social, o complemento de recursos
que ele pode gerar não deve ser ignorado.”
“São duas as principais formas de um Estado
financiar suas despesas: por meio de impostos ou por meio de dívidas. De uma
maneira geral, o imposto é uma solução infinitamente melhor tanto em termos de
justiça quanto de eficácia. O problema da dívida é que quase sempre ela precisa
ser paga. Portanto, financiar a dívida é, acima de tudo, do interesse de quem
tem os meios para emprestar ao Estado, e seria melhor para o Estado taxar os
ricos em vez de pegar dinheiro emprestado deles.”
“Toda a história demonstra a lamentável
tendência de juízes constitucionais a se lançarem em interpretações extensas e
prejudiciais — e em geral muito conservadoras — dos textos jurídicos sobre
questões fiscais e orçamentárias. Esse conservadorismo jurídico é hoje
particularmente perigoso na Europa, onde existe a tendência a dar prioridade ao
direito absoluto de livre circulação de pessoas, bens e capitais em relação aos
direitos dos Estados de promover o interesse geral, o que inclui o direito de
arrecadar impostos.
Como exemplo, nos Estados Unidos, a Suprema
Corte bloqueou por muito tempo o imposto sobre a renda no século XIX e no
início do século XX, e depois a legislação sobre o salário mínimo durante os
anos 1930. No entanto, julgou a escravidão e depois a discriminação racial
perfeitamente compatíveis com os direitos fundamentais por quase dois séculos.”