Lista de Livros no YouTube

Lista Completa

domingo, 23 de julho de 2023

O último dia de um condenado, de Victor Hugo

Editora: Clube de Literatura Clássica

ISBN: 978-85-7448-066-4

Tradução: Priscila Catão

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 168

Análise em vídeo: Clique aqui

Link para compra: Clique aqui

Sinopse: Em um romance de surpreendente modernidade, o grande escritor do romantismo se joga de corpo e alma contra a pena de morte.


— Condenado à morte! — disse à multidão; e, enquanto me levavam, toda aquela gente se precipitou sobre meus passos com o estrondo de um edifício que desmorona. Eu caminhava, atordoado e estupefato. Uma revolução se produzira dentro de mim. Até a sentença de morte, eu me sentia respirar, palpitar, viver no mesmo meio que os outros homens; agora, distinguia claramente como uma barreira a me separar do mundo. Nada mais me aparecia sob o mesmo aspecto de antes. Aquelas largas janelas luminosas, aquele belo sol, aquele céu puro, aquela linda flor, tudo ficou branco e pálido, da cor de uma mortalha. Os homens, mulheres e crianças que se amontoavam à minha passagem, pareciam fantasmas.”

 

 

“Condenado à morte!

Afinal, por que não? “Os homens”, lembro de ter lido não sei em qual livro, mas que só havia isso de bom, “os homens são todos condenados à morte com protelações indefinidas.” O que haveria, assim, de tão diferente em minha situação?

Desde a hora em que minha sentença foi pronunciada, quantos dos que se preparavam para uma longa vida morreram! Quantos dos que esperavam, jovens, livres e saudáveis, ir ver cair minha cabeça em tal dia na Place de Grève4, anteciparam-se a mim! Quantos, daqui até lá, que andam e respiram ao ar livre, que entram e saem à vontade, talvez me precedam também!

Além disso, o que me oferece a vida para que eu lamente tanto ser privado dela? Na verdade, o dia sombrio e o pão negro do cárcere, a porção de sopa magra na tigela dos condenados às galés, ser tratado com aspereza, eu que sou refinado pela educação, ser brutalizado por carcereiros e guardas, não ver um ser humano que me julgue digno de ouvir ou de emitir-lhe uma palavra, estremecer o tempo todo por aquilo que fiz e por aquilo que me farão: eis aí quase os únicos bens que o carrasco pode me tirar.

Ah! Mas não importa, é horrível!”

4 Praça onde se realizavam as execuções, e onde, durante a Revolução, foi usada a guilhotina pela primeira vez.

 

 

Nos primeiros dias trataram-me com uma doçura que me era horrível. As atenções de um carcereiro cheiram a cadafalso. Por sorte, ao cabo de poucos dias, o hábito prevaleceu; confundiram-me com os outros prisioneiros numa comum brutalidade, sem mais aquelas não costumeiras distinções de polidez que me punham sempre a figura do carrasco diante dos olhos.”

 

 

“Enquanto o dia ainda não aparece, o que fazer da noite? Tive uma ideia. Levantei-me e aproximei a lamparina das quatro paredes da minha cela. Estão cobertas de escritos, desenhos, figuras bizarras, nomes que se misturam e se apagam uns aos outros. Parece que cada condenado quis deixar um vestígio, aqui pelo menos. São traços de lápis, giz, carvão, letras pretas, brancas, cinzas, muitas vezes profundos entalhes na pedra, aqui e ali caracteres enferrujados como que escritos a sangue. Se eu tivesse o espírito mais livre, por certo me interessaria por esse livro estranho que se desenvolve página a página ante meus olhos, em cada pedra deste cárcere. Gostaria de compor novamente um todo com esses fragmentos de pensamento, espalhados na pedra; de reencontrar cada homem sob cada nome; de devolver o sentido e a vida a essas inscrições mutiladas, a essas frases desmembradas, a essas palavras truncadas, corpos sem cabeça como daqueles que as escreveram.

À altura da minha cabeceira há dois corações inflamados, atravessados por uma flecha, e acima Amor por toda a vida. O infeliz não assumia um longo compromisso.”

 

 

“Ah! Como a prisão é abjeta! Há nela um veneno que tudo suja. (...) quando se encontra um pássaro na prisão, há lama em sua asa; quando se colhe e se cheira uma bela flor, ela fede.”

 

 

Estou calmo agora. Tudo está terminado, bem terminado. Saí da horrível ansiedade em que me lançou a visita do diretor. Pois, confesso, eu ainda tinha esperança. Agora, graças a Deus, não espero mais.

Eis o que acaba de se passar:

No momento em que soaram seis e meia, não, eram só seis e um quarto, a porta do meu cárcere voltou a se abrir. Um velho de cabeça branca, vestindo uma capa castanha, entrou. Entreabriu a capa; vi uma batina, um peitilho. Era um padre.

Esse padre não era o capelão da prisão, o que me pareceu sinistro.

Sentou-se à minha frente com um sorriso benévolo; depois sacudiu a cabeça e ergueu os olhos ao céu, ou seja, à abóbada do cárcere. Compreendi.

— Meu filho — ele me disse —, está preparado?

Respondi-lhe com uma voz fraca:

— Não estou preparado, mas estou pronto.”

 

 

“Eis então que fui transferido, como dizem os autos.

Mas vale a pena contar a viagem.

Eram sete e meia quando o meirinho se apresentou novamente na entrada do meu cárcere.

— Senhor, eu o espero — ele me disse.

Ai de mim, ali estavam ele e os outros.

Levantei-me, dei um passo; achei que não poderia dar o segundo, tão pesada estava a minha cabeça e tão fracas as pernas. Mas me recompus e continuei com um andar bastante firme. Antes de sair da cela. Mirei-a uma última vez — eu amava minha masmorra. Depois a deixei vazia e aberta, o que lhe dava um aspecto singular.

Mas não ficará assim por muito tempo. Alguém é esperado ali esta noite, disseram os guarda-chaves, um condenado que o tribunal está acabando de julgar.

No corredor, o capelão juntou-se a nós. Ele acabara de fazer seu desjejum.

Ao sairmos da prisão, o diretor apertou-me afetuosamente a mão e reforçou minha escolta de quatro veteranos.

Ao passar diante da enfermaria, um velho moribundo gritou-me: Até breve!

Chegamos ao pátio. Respirei; isso me fez bem.

Não caminhamos por muito tempo ao ar livre. Uma viatura puxada por cavalos estava estacionada no primeiro pátio; era a mesma viatura que havia me trazido, uma espécie de cabriolé oblongo, dividido em duas seções por uma grade transversal de arame tão espesso que parecia tricotado. As duas seções têm cada qual uma porta, uma na frente, a outra atrás. Tudo tão escuro, sujo e empoeirado que o carro fúnebre dos pobres, em comparação, é um carro de luxo.

Antes de entrar nesse túmulo de duas rodas, lancei um olhar ao pátio, um desses olhares desesperados diante dos quais parece que as paredes vão desabar. O pátio, uma pequena praça plantada de árvores, estava ainda mais cheia de espectadores do que para os galerianos. Era já a multidão!

Como no dia da partida dos galerianos, caía uma chuva própria da estação, uma chuva fina e gelada que ainda cai neste momento em que escrevo, que certamente cairá o dia todo, que vai durar mais do que eu.”

 

 

“São dez horas.

Ó minha pobre filha! Mais seis horas e estarei morto! Serei uma coisa imunda que colocarão na mesa fria dos anfiteatros; de um lado, uma cabeça que será moldada, de outro, um tronco que será dissecado. O que restar será posto num caixão e levado ao cemitério de Clamart.

Eis o que farão de teu pai, esses homens. Nenhum dos quais me odeia, homens que têm pena de mim e que poderiam me salvar. Vão me matar. Compreende isso, Marie? Matar-me a sangue frio, em cerimônia, para o bem de todos! Ah, grande Deus!

Pobre menina! Teu pai que te amava tanto, que beijava teu pescocinho branco e perfumado, que passava a mão nos cachos sedosos dos teus cabelos, que pegava teu lindo rosto redondo nas mãos, que te fazia saltar sobre os joelhos e à noite juntava tuas mãos para rezar a Deus!

Quem te fará tudo isso agora? Quem te amará? Todas as crianças da tua idade terão pais, com exceção de ti. Como esquecerás, minha criança, o dia do aniversário, os belos presentes, os bombons e os beijos? Como esquecerás, pobre órfã, quem te fazia beber e comer?”

 

 

“— Ninguém é ruim só pelo prazer de ser ruim.”

 

 

“Fechei os olhos e pus as mãos em cima, procurei esquecer, esquecer o presente no passado. Enquanto divago, as lembranças da minha infância e da minha juventude retornam uma por uma, doces, calmas, sorridentes, como ilhas de flores nesse abismo de pensamentos negros e confusos que turbilhonam no meu cérebro.

Revejo-me criança, escolar risonho e puro, brincando, correndo, gritando com meus irmãos na grande aleia daquele jardim selvagem onde se passaram meus primeiros anos, antiga abadia de religiosas junto à igreja do Val-de-Grâce36, com seu domo sombrio.

Quatro anos mais tarde, estou ainda ali, sempre criança, mas sonhador e apaixonado. Há uma menina no jardim solitário.

A espanholita de olhos grandes e cabelos compridos, pele morena e dourada, lábios vermelhos e faces rosadas, a andaluza de catorze anos, Pepa.

Nossas mães nos disseram para brincar juntos: fomos passear ali.

Disseram-nos para brincar, e conversamos, crianças da mesma idade, não do mesmo sexo.

No entanto, havia um ano apenas corríamos, lutávamos juntos. Eu disputava com Pepita a mais bela maçã da macieira; golpeava-a por um ninho de pássaro. Ela chorava, eu dizia: Bem feito! E íamos os dois nos queixar junto de nossas mães, que nos repreendiam em voz alta e nos davam razão em voz baixa.

Agora ela se apoia em meu braço e estou orgulhoso e comovido. Caminhamos lentamente, falamos em voz baixa. Ela deixa cair o lenço, eu o recolho. Nossas mãos tremem ao se tocarem. Ela me fala dos passarinhos, da estrela que se vê lá adiante, do pôr do sol vermelho atrás das árvores, ou então de suas amigas de pensionato, de seu vestido e de suas fitas. Dizemos coisas inocentes e coramos os dois. A menina está virando mocinha.

Naquele entardecer — era um dia de verão — estávamos sob as castanheiras, no fundo do jardim. Após um dos longos silêncios que preenchiam nossos passeios, ela deixou de repente meu braço: Vamos correr!

Ainda a vejo, estava vestida de preto, de luto por sua avó. Passou-lhe pela cabeça uma ideia de criança, Pepa voltou a ser Pepita e me disse: Vamos correr!

E pôs-se a correr diante de mim com sua cintura fina como a de uma abelha e com seus pezinhos que erguiam o vestido até a metade da perna. Eu a perseguia, ela fugia: o vento da corrida levantava por momentos a pelerine preta e deixava-me ver seus ombros morenos e bonitos.

Eu estava fora de mim. Alcancei-a perto do velho poço em ruínas; peguei-a pela cintura, com o direito de vitória, e a fiz sentar-se num banco de relva. Ela não resistiu. Estava ofegante e ria. Eu estava sério e olhava suas pupilas negras através de seus cílios negros.

— Sente-se aí — ela me disse. — Ainda há claridade, vamos ler alguma coisa. Tem um livro?

Eu trazia comigo o segundo tomo das Viagens de Spallanzani37. Abri ao acaso, me aproximei dela, que apoiou seu ombro ao meu, e passamos a ler cada um por seu lado, em silêncio, a mesma página. Antes de virar a folha, ela era sempre obrigada a me esperar. Meu espírito era mais lento do que o dela.

— Terminou? — ela me dizia, quando eu estava apenas no começo.

No entanto nossas cabeças se tocavam, nossos cabelos se misturavam, nossos hálitos aos poucos se aproximaram e, de repente, nossas bocas.

Quando quisemos continuar nossa leitura, o céu estava estrelado.

— Oh, mamãe, mamãe — disse ela ao voltar para casa —, se soubesse como corremos!

Fiquei em silêncio.

— Você não diz nada? — falou minha mãe. — Parece triste.

Eu tinha o paraíso no coração.

Foi um anoitecer que lembrarei por toda a minha vida.

Por toda a minha vida!”

36 Igreja parisiense.

37 Lazzaro Spallanzani (1729-1798), biólogo italiano. O livro mencionado é Viaggi alle Due Sicilie e in alcune parti dell’Appennino, publicado em cinco volumes.

 

 

“É uma hora e quinze da tarde.

Eis o que sinto agora:

Uma violenta dor de cabeça. A barriga fria, a testa ardendo. Toda vez que me levanto ou me inclino, um líquido parece que flutua no meu cérebro e faz bater os miolos contra as paredes do crânio.

Tenho tremores convulsivos, e de vez em quando a pena cai de minhas mãos como por um choque galvânico.

Meus olhos ardem como se eu estivesse na fumaça.

Meus cotovelos doem.

Mais duas horas e quarenta e cinco minutos e estarei curado.”

 

 

“Era a minha vez. Subi com uma atitude bastante firme.

— Ele vai bem! — disse uma mulher ao lado dos guardas.

Esse elogio atroz me deu coragem. O padre veio colocar-se junto a mim. Sentaram-me na banqueta traseira, de costas para o cavalo. Estremeci com essa última atenção.

Eles põem humanidade na cerimônia.

Quis olhar ao meu redor. Guardas à frente, guardas atrás; e depois multidão, multidão, multidão, um mar de cabeças na praça.

Um piquete de guardas a cavalo me esperava no portão gradeado do Palácio.

O oficial deu a ordem. A carroça e seu cortejo puseram-se em movimento, como que empurrados à frente pelos berros da populaça.

Atravessamos o portão. No momento em que a carroça tomou a direção da Pont-au-Change, a praça explodiu num clamor, do pavimento aos telhados, e as pontes e as ruas responderam como num tremor de terra.

Foi aí que o piquete que esperava juntou-se à escolta.

— Tirem o chapéu! Tirem o chapéu! — gritavam milhares de bocas ao mesmo tempo. — Como se fosse para o rei.

Então ri horrivelmente e disse ao padre:

— Eles tiram o chapéu; eu minha cabeça.

Seguíamos devagar.

As bancas de flores junto ao rio perfumavam o ar; é dia de feira. Os vendedores deixaram seus ramalhetes por mim.

Defronte, pouco antes da torre quadrada que faz esquina com o Palácio, há restaurantes cujas sobrelojas estão cheias de espectadores satisfeitos com seus bons lugares. Principalmente mulheres. O dia deve ser lucrativo para os donos de restaurantes.

Alugavam-se mesas, cadeiras, charretes. Tudo repleto de espectadores. Comerciantes de sangue humano gritavam a plenos pulmões:

— Quem quer um lugar?

Senti raiva contra esse povo. Tive vontade de gritar-lhes:

— Quem quer o meu?”

 

 

“No final da ponte, mulheres me lamentaram por eu ser tão jovem.

O lugar fatal se aproximava. Eu começava a não mais ver, a não mais ouvir. Todas aquelas vozes, aquelas cabeças nas janelas, nas portas, nos postes de luz, aqueles espectadores ávidos e cruéis, aquela multidão em que todos me conheciam e na qual eu não conhecia ninguém, aquele caminho pavimentado e murado de rostos humanos... Sentia-me bêbado, estúpido, insano. É uma coisa insuportável o peso de tantos olhares postos em nós.”

Um comentário:

  1. Pude ler este livro na edição do Clube de Literatura Clássica.
    Porém, os trechos que encontrei eram da tradução da L&PM. Eventualmente fiz algumas interpolações de uma tradução na outra.

    ResponderExcluir