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quarta-feira, 7 de junho de 2023

O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 428

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Sinopse: Depois de uma temporada de autoexílio no Brasil, o heterônimo de Fernando Pessoa está de volta a Lisboa. O ano é 1936, e ele tem de pôr de lado sua índole contemplativa para poder se situar em meio aos acontecimentos políticos de uma Europa em ebulição.

A notícia da morte de Fernando Pessoa, telegrafada de Lisboa pelo companheiro de heteronímia Álvaro de Campos, faz Ricardo Reis decidir-se a retornar imediatamente a Portugal. Como logo percebem os funcionários do hotel onde ele se hospeda na noite tempestuosa da chegada a Lisboa, Reis possui um temperamento formal e comedido. Gosta de fechar-se em seu quarto, aparecendo quase somente nos horários das refeições ou nas saídas e chegadas de suas perambulações solitárias pela cidade. Enquanto espera tranquilamente a hora de ir juntar-se ao seu criador, assiste pelos jornais ao espetáculo do mundo e às vezes compõe versos dedicados à camareira do hotel ou a uma jovem hóspede com a mão esquerda paralisada.

As fronteiras habituais entre realidade e literatura dissolvem-se de modo impactante nesta amostra emblemática da ficção de José Saramago. O ano da morte de Ricardo Reis é considerado por muitos críticos seu melhor romance e o livro-chave que o projeta entre os maiores prosadores da língua portuguesa. Aproveitando habilmente o fato de Fernando Pessoa não ter fixado em seus escritos a data da morte de Reis, o autor encena os últimos meses do poeta das musas abstratas com sua habitual maestria narrativa.

A caligrafia da capa é de autoria da cineasta Daniela Thomas.



A porta do hotel, ao ser empurrada, fez ressoar um besouro eléctrico, em tempos teria havido uma sineta, derlim derlim, mas há sempre que contar com o progresso e as suas melhorias. Havia um lanço de escada empinado, e sobre o arranque do corrimão, em baixo, uma figura de ferro fundido levantava no braço direito um globo de vidro, representando, a figura, um pajem em trajo de corte, se a expressão ganha com a repetição alguma coisa, se não é pleonástica, pois ninguém se lembra de ter visto pajem que não estivesse em trajo de corte, para isso é que são pajens, mais explicativo seria ter dito, Um pajem trajado de pajem, pelo talhe das roupas, modelo italiano, renascença. O viajante trepou os intérminos degraus, parecia incrível ter de subir tanto para alcançar um primeiro andar, é a ascensão do Everest, proeza ainda sonho e utopia de montanheiros, o que lhe valeu foi ter aparecido no alto um homem de bigodes com uma palavra animadora, upa, não a diz, mas assim pode ser traduzido o seu modo de olhar e debruçar-se do alcandorado patamar, a indagar que bons ventos e maus tempos trouxeram este hóspede.”

 

 

“Ostentação é insulto aos pobres.”

 

 

Como a imagem de si mesmo reflectida num trémulo espelho de água, o rosto de Ricardo Reis, suspenso sobre a página, recompõe as linhas conhecidas, daqui a pouco poderá reconhecer-se, Sou eu, sem nenhuma ironia, sem nenhum desgosto, contente de não sentir sequer contentamento, menos ser o que é do que estar onde está, assim faz quem mais não deseja ou sabe que mais não pode ter, por isso só quer o que já era seu, enfim, tudo. A penumbra do quarto tornou-se espessa, alguma nuvem negra estará a passar no céu, um escuríssimo nimbo como seriam os que foram convocados para o dilúvio, os móveis caem em súbito sono. Ricardo Reis faz um gesto com as mãos, tacteia o ar cinzento, depois, mal distinguindo as palavras que vai traçando no papel, escreve, Aos deuses peço só que me concedam o nada lhes pedir, e tendo escrito não soube que mais dizer, há ocasiões assim, acreditamos na importância do que dissemos ou escrevemos até um certo ponto, apenas porque não foi possível calar os sons ou apagar os traços, mas entra-nos no corpo a tentação da mudez, a fascinação da imobilidade, estar como estão os deuses, calados e quietos, assistindo apenas.”

 

 

Hoje é o último dia do ano. Em todo o mundo que este calendário rege andam as pessoas entretidas a debater consigo mesmas as boas acções que tencionam praticar no ano que entra, jurando que vão ser rectas, justas e equânimes, que da sua emendada boca não voltará a sair uma palavra má, uma mentira, uma insídia, ainda que as merecesse o inimigo, claro que é das pessoas vulgares que estamos falando, as outras, as de excepção, as incomuns, regulam-se por razões suas próprias para serem e fazerem o contrário sempre que lhes apeteça ou aproveite, essas são as que não se deixam iludir, chegam a rir-se de nós e das boas intenções que mostramos, mas, enfim, vamos aprendendo com a experiência, logo nos primeiros dias de Janeiro teremos esquecido metade do que havíamos prometido, e, tendo esquecido tanto, não há realmente motivo para cumprir o resto, é como um castelo de cartas, se já lhe faltam as obras superiores, melhor é que caia tudo e se confundam os naipes. Por isso é duvidoso ter-se despedido Cristo da vida com as palavras da escritura, as de Mateus e Marcos, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste, ou as de Lucas, Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito, ou as de João, Tudo está cumprido, o que Cristo disse foi, palavra de honra, qualquer pessoa popular sabe que é esta a verdade, Adeus, mundo, cada vez a pior. Mas os deuses de Ricardo Reis são outros, silenciosas entidades que nos olham indiferentes, para quem o mal e o bem são menos que palavras, por as não dizerem eles nunca, e como as diriam, se mesmo entre o bem e o mal não sabem distinguir, indo como nós vamos no rio das coisas, só deles distintos porque lhes chamamos deuses e às vezes acreditamos. Esta lição nos foi dada para que não nos afadiguemos a jurar novas e melhores intenções para o ano que vem, por elas não nos julgarão os deuses, pelas obras também não, só juízes humanos ousam julgar, os deuses nunca, porque se supõe saberem tudo, salvo se tudo isto é falso, se justamente a verdade última dos deuses é nada saberem, se justamente não é sua ocupação única esquecerem em cada momento o que em cada momento lhes vão ensinando os actos dos homens, os bons como os maus, iguais derradeiramente para os deuses, porque inúteis lhes são.”

 

 

“Um homem é logo outro homem quando toma uma decisão.”

 

 

“Olham-se ambos com simpatia, vê-se que estão contentes por se terem reencontrado depois da longa ausência, e é Fernando Pessoa quem primeiro fala, Soube que me foi visitar, eu não estava, mas disseram-me quando cheguei, e Ricardo Reis respondeu assim, Pensei que estivesse, pensei que nunca de lá saísse, Por enquanto saio, ainda tenho uns oito meses para circular à vontade, explicou Fernando Pessoa, Oito meses porquê, perguntou Ricardo Reis, e Fernando Pessoa esclareceu a informação, Contas certas, no geral e em média, são nove meses, tantos quantos os que andámos na barriga das nossas mães, acho que é por uma questão de equilíbrio, antes de nascermos ainda não nos podem ver mas todos os dias pensam em nós, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e todos os dias nos vão esquecendo um pouco, salvo casos excepcionais nove meses é quanto basta para o total olvido, e agora diga-me você que é que o trouxe a Portugal. Ricardo Reis tirou a carteira do bolso interior do casaco, extraiu dela um papel dobrado, fez menção de o entregar a Fernando Pessoa, mas este recusou com um gesto, disse, Já não sei ler, leia você, e Ricardo Reis leu, Fernando Pessoa faleceu Stop Parto para Glasgow Stop Álvaro de Campos, quando recebi este telegrama decidi regressar, senti que era uma espécie de dever, É muito interessante o tom da comunicação, é o Álvaro de Campos por uma pena, mesmo em tão poucas palavras nota-se uma espécie de satisfação maligna, quase diria um sorriso, no fundo da sua pessoa o Álvaro é assim, Houve ainda uma outra razão para este meu regresso, essa mais egoísta, é que em Novembro rebentou no Brasil uma revolução, muitas mortes, muita gente presa, temi que a situação viesse a piorar, estava indeciso, parto, não parto, mas depois chegou o telegrama, aí decidi-me, pronunciei-me, como disse o outro, Você, Reis, tem sina de andar a fugir das revoluções, em mil novecentos e dezanove foi para o Brasil por causa de uma que falhou, agora foge do Brasil por causa de outra que, provavelmente, falhou também, Em rigor, eu não fugi do Brasil, e talvez que ainda lá estivesse se você não tem morrido, Lembro-me de ler, nos meus últimos dias, umas notícias sobre essa revolução, foi uma coisa de bolchevistas, creio, Sim, foi coisa de bolchevistas, uns sargentos, uns soldados, mas os que não morreram foram presos, em dois ou três dias acabou-se tudo, O susto foi grande, Foi, Aqui em Portugal também tem havido umas revoluções, Chegaram-me lá as notícias, Você continua monárquico, Continuo, Sem rei, Pode-se ser monárquico e não querer um rei, É esse o seu caso, É, Boa contradição, Não é pior que outras em que tenho vivido, Querer pelo desejo o que sabe não poder querer pela vontade, Precisamente, Ainda me lembro de quem você é, É natural.”

 

 

Também no interior do corpo a treva é profunda, e contudo o sangue chega ao coração, o cérebro é cego e pode ver, é surdo e ouve, não tem mãos e alcança, o homem, claro está, é o labirinto de si mesmo.”

 

 

“(...) Ricardo Reis reflecte sobre o que viu e ouviu, acha que o objecto da arte não é a imitável, que foi fraqueza censurável do autor escrever [na peça de teatro] a força no linguajar nazareno, ou no que supôs ser esse linguajar, esquecido de que a realidade não suporta o seu reflexo, rejeita-o, só uma outra realidade, qual seja, pode ser colocada no lugar daquela que se quis expressar, e, sendo diferentes entre si, mutuamente se mostram, explicam e enumeram, a realidade como invenção que foi, a invenção como realidade que será.”

 

 

Não vamos poder conversar muito tempo, talvez me apareça aí uma visita, há-de concordar que seria embaraçoso, Você não perde tempo, ainda não há três semanas que chegou, e já recebe visitas galantes, presumo que serão galantes, Depende do que se queira entender por galante, é uma criada do hotel, Meu caro Reis, você, um esteta, íntimo de todas as deusas do Olimpo, a abrir os lençóis da sua cama a uma criada de hotel, a uma serviçal, eu que me habituei a ouvi-lo falar a toda a hora, com admirável constância, das suas Lídias, Neeras e Cloes, e agora sai-me cativo duma criada, que grande decepção, Esta criada chama-se Lídia, e eu não estou cativo, nem sou homem de cativeiro, Ah, ah, afinal a tão falada justiça poética sempre existe, tem graça a situação, tanto você chamou por Lídia, que Lídia veio, teve mais sorte que o Camões, esse, para ter uma Natércia precisou de inventar o nome e daí não passou, Veio o nome de Lídia, não veio a mulher, Não seja ingrato, você sabe lá que mulher seria a Lídia das suas odes, admitindo que exista tal fenómeno, essa impossível soma de passividade, silêncio sábio e puro espírito, É duvidoso, de facto, Tão duvidoso como existir, de facto, o poeta que escreveu as suas odes, Esse sou eu, Permita-me que exprima as minhas dúvidas, caríssimo Reis, vejo-o aí a ler um romance policial, com uma botija aos pés, à espera duma criada que lhe venha aquecer o resto, rogo-lhe que não se melindre com a crueza da linguagem, e quer que eu acredite que esse homem é aquele mesmo que escreveu Sereno e vendo a vida à distância a que está, é caso para perguntar-lhe onde é que estava quando viu a vida a essa distância, Você disse que o poeta é um fingidor, Eu o confesso, são adivinhações que nos saem pela boca sem que saibamos que caminho andámos para lá chegar, o pior é que morri antes de ter percebido se é o poeta que se finge de homem ou o homem que se finge de poeta, Fingir e fingir-se não é o mesmo, Isso é uma afirmação ou uma pergunta, É uma pergunta, Claro que não é o mesmo, eu apenas fingi, você finge-se, se quiser ver onde estão as diferenças, leia-me e volte a ler-se, Com esta conversa, o que você está a preparar-me é uma boa noite de insónia, Talvez a sua Lídia ainda venha por aí embalá-lo, pelo que tenho ouvido dizer as criadas que se dedicam aos patrões são muito carinhosas, Parece-me o comentário de um despeitado, Provavelmente, Diga-me só uma coisa, é como poeta que eu finjo, ou como homem, O seu caso, Reis amigo, não tem remédio, você, simplesmente, finge-se, é fingimento de si mesmo, e isso já nada tem que ver com o homem e com o poeta, Não tenho remédio, É outra pergunta, É, Não tem porque, primeiro que tudo, você nem sabe quem seja, E você, alguma vez o soube, Eu já não conto, morri, mas descanse que não vai faltar quem dê de mim todas as explicações, Talvez que eu tenha voltado a Portugal para saber quem sou, Tolice, meu caro, criancice, alumbramentos assim só em romances místicos e estradas que vão a Damasco, nunca se esqueça de que estamos em Lisboa, daqui não partem estradas, Tenho sono, Vou deixá-lo dormir, realmente é essa a única coisa que lhe invejo, dormir, só os imbecis é que dizem que o sono é primo da morte, primo ou irmão, não me lembro bem, Primo, creio eu, Depois das pouco agradáveis palavras que lhe disse, ainda quer que eu volte, Quero, não tenho muito com quem falar, É uma boa razão, sem dúvida, Olhe, faça-me um favor, deixe a porta encostada, escuso eu de me levantar, com o frio que está, Ainda espera companhia, Nunca se sabe, Fernando, nunca se sabe.”

 

 

Todos nós sofremos duma doença, duma doença básica, digamos assim, esta que é inseparável do que somos e que, duma certa maneira, faz aquilo que somos, se não seria mais exacto dizer que cada um de nós é a sua doença, por causa dela somos tão pouco, também por causa dela conseguimos ser tanta, entre uma coisa e outra venha o diabo e escolha, também se costuma dizer.”

 

 

“Ainda bem que não tive filhos, Porquê, Não há salvação aos olhos de um filho, Eu amo o meu pai, Acredito, mas o amor não basta.”

 

 

“(...) sorriu, eles sorriram também, são gestos e atitudes que fazem parte dos códigos de civilização, com a sua parte de hipocrisia, outra que é da necessidade, outra que é o disfarce da angústia.”

 

 

“E é mulher essa pessoa que você espera, É mulher, Bravo, vejo que você se cansou de idealidades femininas incorpóreas, trocou a Lídia etérea por uma Lídia de encher as mãos, que eu bem a vi lá no hotel, e agora está aqui à espera doutra dama, feito D. João nessa sua idade, duas em tão pouco tempo, parabéns, para mil e três já não lhe falta tudo, Obrigado, pelo que vou aprendendo os mortos ainda são piores que os velhos, se lhes dá para falar perdem o tento na língua, Tem razão, se calhar é o desespero de não terem dito o que queriam enquanto foi tempo de lhes aproveitar, Fico prevenido, Não adianta estar prevenido, por mais que você fale, por mais que todos falemos, ficará sempre uma palavrinha por dizer, Nem lhe pergunto que palavra é essa, Faz muito bem, enquanto calamos as perguntas mantemos a ilusão de que poderemos vir a saber as respostas, Olhe, Fernando, eu não quereria que o visse esta pessoa por quem espero, Esteja descansado, o pior que poderá acontecer é ela vê-lo de longe a falar sozinho, mas isso não é coisa em que se repare, todos os apaixonados são assim, Não estou apaixonado, Pois muito o lamento, deixe que lhe diga, o D. João ao menos era sincero, volúvel mas sincero, você é como o deserto, nem sombra faz, Quem não tem sombra é você, Perdão, sombra tenho, desde que o queira, não posso é olhar-me num espelho, (...) Agora peço-lhe que se vá embora, vem aí a pessoa que eu esperava, Aquela rapariga, Sim, Nada feia, um pouco magrizela para o meu gosto, Não me faça rir, é a primeira vez na vida que o ouço explicar-se a respeito de mulheres, ó sátiro oculto, ó garanhão disfarçado, Adeus, caro Reis, até um destes dias, deixo-o a namorar a pequena, você afinal desilude-me, amador de criadas, cortejador de donzelas, estimava-o mais quando você via a vida à distância a que está, A vida, Fernando, está sempre perto, Pois aí lha deixo, se é vida isso. Marcenda descia entre os canteiros sem flores, Ricardo Reis subiu ao seu encontro, Estava a falar sozinho, perguntou ela, Sim, de certa maneira, dizia uns versos escritos por um amigo meu que morreu há uns meses, talvez conheça, Como se chamava ele, Fernando Pessoa, Tenho uma vaga ideia do nome, mas não me lembro de alguma vez ter lido, Entre o que vivo e a vida, entre quem estou e sou, durmo numa descida, descida em que não vou, Foram esses os versos que esteve a dizer, Foram, Podiam ter sido feitos por mim, se entendi bem, são tão simples, Tem razão, qualquer pessoa os poderia ter feito, Mas teve de vir essa pessoa para os fazer, É como todas as coisas, as más e as boas, sempre precisam de gente que as faça, olhe o caso dos Lusíadas, já pensou que não teríamos Lusíadas se não tivéssemos tido Camões, é capaz de imaginar que Portugal seria o nosso sem Camões e sem Lusíadas, Parece um jogo, uma adivinha, Nada seria mais sério, se verdadeiramente pensássemos nisso, mas falemos antes de si, diga-me como tem passado, como vai a sua mão, Na mesma, tenho-a aqui, na algibeira, como um pássaro morto, Não deve perder a esperança, Suponho que essa já está perdida, qualquer dia sou capaz de ir a Fátima para ver se a fé ainda pode salvar-me. Tem fé, Sou católica, Praticante, Sim, vou à missa, confesso-me, comungo, faço tudo o que os católicos fazem. Não parece muito convicta, É jeito meu, não pôr muita expressão no que digo. A isto não respondeu Ricardo Reis, as frases, quando ditas, são como portas, ficam abertas, quase sempre entramos, mas às vezes deixamo-nos estar do lado de fora, à espera de que outra porta se abra, de que outra frase se diga, por exemplo esta, que pode servir, Peço-lhe que desculpe o meu pai, o resultado das eleições em Espanha tem-no trazido nervoso, ontem só falou com pessoas que vieram fugidas de lá, e ainda por cima o Salvador foi-lhe logo dizer que o doutor Reis tinha sido chamado à polícia, Mal nos conhecemos, seu pai nada me fez por que eu deva desculpá-lo, de resto, o caso não terá qualquer importância, segunda-feira vou saber o que me querem, responderei ao que me perguntarem, nada mais, Ainda bem que não está preocupado, Não há motivo, não tenho nada que ver com a política, vivi todos estes anos no Brasil, nunca fui inquietado lá, aqui menos razões ainda há para me inquietarem, para lhe falar francamente nem já me sinto português, Querendo Deus tudo irá correr bem, Deus não haveria de gostar de saber que nós acreditamos que as coisas correm mal porque ele não quis que elas corressem bem, São maneiras de dizer, ouvimo-las e repetimo-las, sem pensar, dizemos Deus queira, só as palavras, provavelmente ninguém é capaz de representar na sua cabeça Deus e a vontade de Deus, vai ter de me perdoar esta petulância, quem sou eu para falar assim, É como viver, nascemos, vemos os outros a viverem, pomo-nos a viver também, a imitá-los, sem sabermos porquê nem para quê, É tão triste o que está a dizer.”

 

 

O Pimenta disse hoje, e ria-se, malvado homem, que esta história ainda há-de dar muito que falar, que quem viver verá, conte-me o que se passa, peço-lhe, eu guardo segredo, Não se passa nada, são tudo disparates de quem não tem mais que fazer que intrometer-se na vida alheia, Serão disparates, serão, mas com eles nos tornarão a vida negra, digo a sua, não digo a nossa, Deixa lá, saindo eu do hotel acabam-se logo os mexericos, Vai-se embora, não me tinha dito, Mais tarde ou mais cedo teria de ser, não ia ficar aqui o resto da vida, Nunca mais o tornarei a ver, e Lídia, que descansava a cabeça no ombro de Ricardo Reis, deixou cair uma lágrima, sentiu-a ele, Então, não chores, a vida é assim, as pessoas encontram-se, separam-se, quem sabe se amanhã não casarás, Ora, casar, já estou a passar a idade, e para onde é que vai, Arranjo casa, hei-de encontrar alguma que me sirva, Se quiser, Se quiser, o quê, Posso ir ter consigo nos meus dias de folga, não tenho mais nada na vida, Lídia, por que é que gostas de mim, Não sei, talvez seja pelo que eu disse, por não ter mais nada na vida, Tens a tua mãe, o teu irmão, com certeza tiveste namorados, hás-de tornar a tê-los, mais do que um, és bonita, e um dia casarás, depois virão os filhos, Pode ser que sim, mas hoje tudo o que eu tenho é isto, És uma boa rapariga, Não respondeu ao que lhe perguntei, Que foi, Se quer que eu vá ter consigo quando tiver a sua casa, nos meus dias de saída, Tu queres, Quero, Então irás, até que, Até que arranje alguém da sua educação, Não era isso que eu queria dizer, Quando tal tiver de ser, diga-me assim Lídia não voltes mais a minha casa, e eu não volto, Às vezes não sei bem quem tu és, Sou uma criada de hotel, Mas chamas-te Lídia e dizes as coisas duma certa maneira, Em a gente se pondo a falar, assim como eu estou agora, com a cabeça pousada no seu ombro, as palavras saem diferentes, até eu sinto, Gostava que encontrasses um dia um bom marido, Também gostava, mas ouço as outras mulheres, as que dizem que têm bons maridos e fico a pensar, Achas que eles não são bons maridos Para mim, não, Que é um bom marido, para ti, Não sei, És difícil de contentar, Nem por isso, basta-me o que tenho agora, estar aqui deitada, sem nenhum futuro, Hei-de ser sempre teu amigo, Nunca sabemos o dia de amanhã, Então duvidas de que serás sempre minha amiga, Oh, eu, é outra coisa, Explica-te melhor, Não sei explicar, se eu isto soubesse explicar, saberia explicar tudo, Explicas muito mais do que julgas, Ora, eu sou uma analfabeta, Sabes ler e escrever, Mal, ler ainda vá, mas a escrever faço muitos erros. Ricardo Reis apertou-a contra si, ela abraçou-se a ele, a conversa aproximara-os devagarinho duma indefinível comoção, quase uma dor, por isso foi tão delicadamente feito o que fizeram depois, todos sabemos o quê.”

 

 

Deixe lá, não tome as minhas palavras como uma censura, deu-me até muito gosto que tivesse aparecido, esta primeira noite, provavelmente, não ia ser fácil, Medo, Assustei-me um pouco quando ouvi bater, não me lembrei que pudesse ser você, mas não estava com medo, era apenas a solidão, Ora, a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é, Sempre vivi só, Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, Você está a tresvariar, tudo quanto menciona está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a árvore, olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos, Está hoje de péssimo humor, Tenho os meus dias, Não era dessa solidão que eu falava, mas doutra, esta de andar connosco, a suportável, a que nos faz companhia, Até essa tem que se lhe diga, às vezes não conseguimos aguentá-la, suplicamos uma presença, uma voz, outras vezes essa mesma voz e essa mesma presença só servem para a tornar intolerável, É isso possível, É, no outro dia, quando nos encontrámos ali no miradouro, lembra-se, estava você à espera daquela sua namorada, Já lhe disse que não é minha namorada, Pronto, não se zangue, mas pode vir a sê-lo, sabe lá você o que o dia de amanhã lhe reserva, Eu até tenho idade para ser pai dela, E daí, Mude de assunto, conte o resto da sua história, Foi a propósito de você ter estado com gripe, lembrei-me de um pequeno episódio da minha doença, esta última, final e derradeira, O que aí vai de pleonasmos, o seu estilo piorou muito, A morte também é pleonástica, é mesmo a mais pleonástica de todas as coisas, O resto, Foi lá a casa um médico, eu estava deitado, no quarto, a minha irmã abriu a porta, A sua meia-irmã, aliás a vida está cheia de meios-irmãos. Que quer dizer com isso, Nada de especial, continue, Abriu a porta e disse para o médico entre senhor doutor está aqui este inútil, o inútil era eu, é claro, como vê a solidão não tem nenhum limite, está em toda a parte, Alguma vez se sentiu realmente inútil, É difícil responder, pelo menos não me lembro de me ter sentido verdadeiramente útil, creio mesmo que é essa a primeira solidão, não nos sentirmos úteis, Ainda que os outros pensem que nós os levemos a pensar o contrário, Os outros enganam-se muitas vezes, Também nós. Fernando Pessoa levantou-se, entreabriu as portadas da janela, olhou para fora, Imperdoável esquecimento, disse, não ter posto o Adamastor na Mensagem, um gigante tão fácil, de tão clara lição simbólica, Vê-o daí, Vejo, pobre criatura, serviu-se o Camões dele para queixumes de amor que provavelmente lhe estavam na alma, e para profecias menos do que óbvias, anunciar naufrágios a quem anda no mar, para isso não são precisos dons divinatórios particulares, Profetizar desgraças sempre foi sinal de solidão, tivesse correspondido Tétis ao amor do gigante e outro teria sido o discurso dele.”

 

 

“É difícil a um vivo entender os mortos, Julgo que não será menos difícil a um morto entender os vivos, O morto tem a vantagem de já ter sido vivo, conhece todas as coisas deste mundo e desse mundo, mas os vivos são incapazes de aprender a coisa fundamental e tirar proveito dela, Qual, Que se morre, Nós, vivos, sabemos que morreremos, Não sabem, ninguém sabe, como eu também não sabia quando vivi, o que nós sabemos, isso sim, é que os outros morrem, Para filosofia, parece-me insignificante, Claro que é insignificante, você nem sonha até que ponto tudo é insignificante visto do lado da morte, Mas eu estou do lado da vida, Então deve saber que coisas, desse lado, são significantes, se as há, Estar vivo é significante, Meu caro Reis, cuidado com as palavras, viva está a sua Lídia, viva está a sua Marcenda, e você não sabe nada delas, nem o saberia mesmo que elas tentassem dizer-lho, o muro que separa os vivos uns dos outros não é menos opaco que o que separa os vivos dos mortos, Para quem assim pense, a morte, afinal, deve ser um alívio, Não é, porque a morte é uma espécie de consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida, Meu caro Fernando, cuidado com as palavras, você arrisca-se muito, Se não dissermos as palavras todas, mesmo absurdamente, nunca diremos as necessárias.”

 

 

Olhe que nós, por cá, também não vamos nada mal em pontos de confusão entre o divino e o humano, parece até que voltámos aos deuses da antiguidade, Os seus, Eu só aproveitei deles um resto, as palavras que os diziam, Explique melhor essa tal divina e humana confusão, É que, segundo a declaração solene de um arcebispo de Mitilene, Portugal é Cristo e Cristo é Portugal, Está aí escrito, Com todas as letras, Que Portugal é Cristo e Cristo é Portugal, Exactamente. Fernando Pessoa pensou alguns instantes, depois largou a rir, um riso seco, tossicado, nada bom de ouvir, Ai esta terra, ai esta gente, e não pôde continuar, havia agora lágrimas verdadeiras nos seus olhos, Ai esta terra, repetiu, e não parava de rir, Eu a julgar que tinha ido longe de mais no atrevimento quando na Mensagem chamei santo a Portugal, lá está, São Portugal, e vem um príncipe da Igreja, com a sua arquiepiscopal autoridade, e proclama que Portugal é Cristo, E Cristo é Portugal, não esqueça, Sendo assim, precisamos de saber, urgentemente, que virgem nos pariu, que diabo nos tentou, que judas nos traiu, que pregos nos crucificaram, que túmulo nos esconde, que ressurreição nos espera, Esqueceu-se dos milagres, Quer você milagre maior que este simples facto de existirmos, de continuarmos a existir, não falo por mim, claro, Pelo andar que levamos, não sei até quando e onde existiremos, Em todo o caso, você tem de reconhecer que estamos muito à frente da Alemanha, aqui é a própria palavra da Igreja a estabelecer, mais do que parentescos, identificações, nem sequer precisávamos de receber o Salazar de presente, somos nós o próprio Cristo, Você não devia ter morrido tão novo, meu caro Fernando, foi uma pena, agora é que Portugal vai cumprir-se, Assim acreditemos nós e o mundo no arcebispo, O que ninguém pode é dizer que não estamos a fazer tudo para alcançar a felicidade, quer ouvir agora o que o cardeal Cerejeira disse aos seminaristas, Não sei se serei capaz de aguentar o choque, Você não é seminarista, Mais uma razão, mas seja o que Deus quiser, leia lá, Sede angelicamente puros, eucaristicamente fervorosos e ardentemente zelosos, Ele disse essas palavras, assim emparelhadas, Disse, Só me resta morrer, Já está morto, Pobre de mim, nem isso me resta.”

 

 

“De Tetuão, agora que já chegou o general Milan d’Astray, veio nova proclamação, Guerra sem quartel, guerra sem tréguas, guerra de extermínio contra o micróbio marxista, ressalvando-se, porém, os deveres humanitários como se depreende de palavras que o general Franco proferiu, Ainda não tomei Madrid porque não quero sacrificar a parte inocente da população, bondoso homem, aqui está alguém que nunca ordenaria, como fez Herodes, a matança das criancinhas, esperaria que elas crescessem para não ficar com esse peso na consciência e para não sobre carregar de anjos o céu.”

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