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segunda-feira, 2 de maio de 2022

Utopia selvagem: saudades da inocência perdida – uma fábula, de Darcy Ribeiro

Editora: Global

ISBN: 978-85-260-1934-8

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 168

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Sinopse: Com a exuberância de imagens e sentidos que marca sua produção literária, em "Utopia Selvagem" Darcy Ribeiro pinta com tons fortes a beleza que uma sociedade adquire ao ser composta por um mosaico de cores e culturas diferentes. O autor nos traz a história do negro Pitum que, buscando o Eldorado em meio à Guerra Guiana, é engolido por uma cortina branca e acaba capturado pelas amazonas. No convívio indígena, Pitum transmuta-se, aprendendo a língua e adaptando-se aos seus costumes. O mergulho num mundo que não lhe é familiar funciona como uma janela que o autor nos abre para, ao seu lado, contemplarmos o verdadeiro tesouro: a sociabilidade nativa.

Juntando elementos históricos e míticos, Darcy sugere que a miscigenação é uma prática que remonta às origens da espécie humana e tece uma fabulosa história na qual valoriza o hibridismo cultural vivenciado nas terras americanas.



“(As amazonas) Não deixavam é nascer pentelhos no preto. Nem o pelame do sovaco escapou. Na moda delas isso é nojo inadmissível. Não tendo, de nascença, pentelhame nenhum no corpo, não querem também nenhum fio nele.

– Nisso são impossíveis. Arrancam pela raiz um a um e ainda passam cinza quente ni mim para não nascer mais.

Esta depelagem foi a primeira bruteza selvagem que fizeram com o tenente.

– Me desgostei demais. Pela dor e pela boçalidade. – De fato, a primeira vez foi terrível. Uma dúzia delas o agarraram, imobilizaram, e aí lhe abriram as pernas e depois os braços para examinar e tirar um por um cada pelo. Não deixaram nem os do rabo.

– Aliás, os mais doídos – queixa Pitum. – Ainda mais que os pentelhos do saco que já doem demais.

Hoje Pitum entende que é questão de moda ou costume. E moda não se discute. No princípio, achando que o estavam depelando para carnear, assar e comer, pôs a boca no mundo. Quis pôr, aliás, porque as manoplas delas, tapando sua boca, não consentiram. Só bufava pelo nariz e chorava lágrimas quentes pelos olhos. Esguichadas de tão sofridas.”

 

 

“A verdade espantosa para Pitum é que elas vivem sozinhas, completamente sós, sem homem nem menino de idade nenhuma.

Sós e autárquicas é como vivem estas diabas. As malocas estão cheias de meninas de toda idade, desde criancinhas de leite mamando no peito único da mãe, até gurias engatinhando. Daí por diante, há fêmea de todas as idades juvenis e maduras até a velhice total de cara e corpo de jenipapo maduro. Não se vê é um menino, um guri, um rapazinho, um homem que seja. Nenhum. Sumiram. Escafederam-se.

– Só restei eu. Como não sou daqui, não sobrei: aconteci. Que é que elas fazem ou fizeram com seus homens que as prenharam e prenham? Cada uma delas há de ter tido o seu gerador e com ele pais e avós dele e dela; bem como tios e sogros e, ainda, os filhos e sobrinhos e genros de ambos. Além dos irmãos, primos e cunhados que toda gente tem.

– Cadê eles? Não ficou nenhum! Não terão essas bichas comido todos os machos? Disso são bem capazes – acha Pitum.

– Comerão seus homens especados e assados como meus guaribas, depois de bem prenhadas por eles? Comerão também os filhos machos que decerto parem? Horror! – Pitum se apavora, assombrado, com o futuro provável, dele próprio e de sua descendência.

– Um dia me comerão, assim como hoje eu como meus macacos?

T’esconjuro! Desta Deus me livre. E o Capeta também! Vendo até a alma para escapar dos dentes delas. – Por sorte Pitum não crê. Não pode crer que elas sejam assim de perversas e assassinas.

Este ofício de homem garanhão exercido, agora, pelo tenente Carvalhall será um cargo fixo no sistema delas ou só sucedeu com ele? É o que Pitum se pergunta.

– Serei eu o primeiro ou o derradeiro? Pelo jeito, isso mais parece um sistema regulado, um uso tradicional. O lugar onde armam a rede do preto em cada maloca, sempre o mesmo, bem no meio, entre dois moirões, que ali estão pra isto, parece fixo e prescrito para o reprodutor escalado: o sururucador oficial.

– A comida que me dão, sempre a mesma, sem variação, e diferente da que elas mesmas comem, também parece prescrita.

O seu banho da manhã, obrigatório, naquela algazarra com a criançadinha alegre e sem nenhum medo dele como deviam ter, sendo Pitum um estranho e até de outra raça. Tudo isso reforça a suspeita de que isso seja mesmo o reino das mulheres sem-marido. Autônomas. Autárquicas. Ou quase.

– Está na cara que é assim! – acha Pitum, às vezes, mas não se consola de que assim seja.

– É desnaturado demais – argumenta. Com efeito, ele acha isto tão insensato como seria uma tribo complementar de homens sós, soltos por aí, curtindo uma sodomia desbragada e um onanismo lascado. Que é isto aqui? Como é que ele vai apurar? E, se assim é na verdade, o que é que vai fazer?

– Como é que vou escapar?

O leitor talvez tenha lido o livro que uma vez li de confissões de um alemão que viveu prisioneiro dos índios antigos do Brasil. Lá ficou tempos, até casou, esperando as roças deles crescerem para a festança em que iriam comê-lo. Escapou porque os índios, aqueles, que só comiam heróis, se horrorizaram vendo a caganeira e o berreiro em que caiu o tal alemão para não ser comido. Aqui é diferente. Se o sistema delas é mesmo comer o macho já fodido, Pitum está perdido.

– Não há choro que me salve. Nem choro nem vela.

 

O único consolo de Pitum é a boa vida que leva, bem cuidado de dia, bem fodido de noite. Vida farta, forra, ociosa, até gostosa. Qualquer um invejaria, se não fosse o futuro temido no moquém. Isto é o que pensaria Pitum, se não se consolasse com ilusões: comigo não será assim... mas duvida:

– Triste fim. Que será de mim?

Quando acordou, na primeira noite que passou na maloca, Pitum sentiu logo que estava livre, mas não desatado. Acordando, se achou na rede com o peso de uma dona, deitada em cima dele, requerendo serviço. Sair da guerra diretamente pra sacanagem parece que não dá. Até que dá. Deu, assim que ele entendeu o que ela queria.

Imaginando e temendo, ainda, que fosse alguma tentação do demo, o maroto passou a mão nos fundos da dona pra saber se ela era mesmo mulher furada ou se era só tentação tapada.

– Fêmea é sim, com racha e oco – verificou. Não tinha é pentelho nenhum. Isso intrigou muito Pitum. Levantou a cabeça da rede, se virou, olhou e viu, confirmou que a vergonha dela, exibindo um grelo alto, era bochechuda mas peladíssima. A verga se assustou um pouco querendo murchar. Felizmente reagiu logo, empinou. Pitum olhou o mulherio deitado ao redor, pra ver se causava vexame cobrindo a dona ali.

– Ninguém olhava. Pareciam dormir. Sururuquei. – Melhor diria que foi comido. Isto porque, enquanto assuntava, a dona, que era sabida e fornida, se adiantou tanto que ele já se viu metido nela com tudo dentro. E ela, em vez de remexer, lá ficou bem engatada, mas parada como uma sapa, sentada em cima dele.

– Que é isto, moleca, se mexa – disse Pitum, assumindo o comando fodetivo no estilo de quem gosta de se mexer no reco-reco habitual. A dona não deixou. Queria ele era ali duro, parado, dentro dela. Quieto. O pau de Pitum, desacostumado ainda dessa copulação estática, quis desanimar. A dona não deixou. Com um movimento ou dois, chupeteando, reativou o danado que, reanimando, quis mais mamação no lesco-lesco de costume. Ela não consentiu.

– Só aí compreendi o que ainda estou pra entender: em lugar de comer, eu estava sendo comido. Bem comido, é verdade, mas comido no estilo delas. Até hoje é assim que Pitum se sente: um prostituto, pau-mandado de mulher.

– Não reclamo que seja ruim. Digo apenas que é diferente. – Diferente demais de todo o sabido e falado nesse assunto tão debatido.

Desde então, na noite de cada dia é uma dona que o come, sempre do mesmo modo, retardando o jorro o quanto pode. Pitum acabou se habituando com o jeito delas.

– Agora acho até um fracasso quando gozo. – É também do gosto das donas que, finda a operação, ele fique dentro, um bom tempo, esperando o pau murchar por si mesmo até sair sozinho.

Outro uso destas donas é não falar nadíssima durante a longa transa silente. Quando, no princípio, Pitum – mal habituado nos puteiros de Pelotas – quis saber se elas estavam gozando, ou dizer, carinhoso, que a dona, aquela, era boa demais, o que recebeu foi mãozadas para se calar.

– Foda, aqui, é assunto seríssimo. Que pensarão elas enquanto o mantêm teso lá dentro? Fantasiarão sacanagens? Serão santarronas, pensando na perpetuação da espécie? – Nunca saberei: é tabu.

Estas donas que só trepam uma vez na vida outra na morte encontraram este jeito de estirar o gozo. Em lugar dos descaramentos manuais e bocais dos prazeres prologais, optaram por esta transação longuíssima, de durar a noite inteira, se o macho der. Luxúrias de Amazona.

– Isso é o que querem, aspiram: um pau de ferro. – A arte erótica delas, pelo visto, não reside nos enfeites do deboche e sim nessa esticação desnaturada da dura presença lá dentro rigidamente contida. Das donas de ao redor, silenciosas, não digo o mesmo. – Elas, nas suas redes armadas ao longo das paredes do malocão, à igual distância de onde está o prenhador, certamente olharão afogueadas, emocionadíssimas, a fornicação silenciosa. Mais gozarão elas, só vendo lá de longe, com o pai de todos embutido dentro, parado, do que a sortuda, escalada. Pitum gosta de pensar que cobrindo sua dama da noite, de fato, está servindo a todas elas.

– Só me dói suspeitar que hoje como quem, amanhã, me comerá. Na forma de paçoca ou de pirão? – Sem sal e muito apimentado isto ele sabe bem.

– Canibalas!”

 

 

“Pitum sabe, sente, adivinha que, sem qualquer dúvida, estas bizarras donas vivem inquietas. Se preocupam demais com alguma ameaça muito temida.

– Que será? – O ar assombrado com que tapam a boca e abrem os olhos, aterradas, quando se toca certos assuntos, fala alto destes temores. Tanto medo, nesta gente cubana de valente, é estranho demais.

– Por que será? De que será? De quem será? – Sabe-se lá. Pitum supõe – mas isto é mero palpite – que elas têm medo é da volta dos homens. É do retorno à hegemonia natural dos machos. É do fim deste sistema desnaturado de viverem umas donas sempre sós, a vida toda sem marido. Mas duvida.

– Lá pode ser? – Muitas delas decerto até gostariam de um machão, limpando a goela ruidoso pra infundir respeito, fedendo suor, roncando na rede e fodendo diário. Não têm é coragem, nem meios de se rebelar.

Coitadas! Crescendo aqui, debaixo da opressão deste sistema desumano, treinadas desde meninas pra guerreiras, têm de se conformar. Que jeito?

– De onde este sistema desumano delas tira sua força? – é o que pergunta Pitum, sem alcançar resposta satisfatória. Será, como no Exército, a hierarquia severa, a disciplina rígida – regimentária –, com suas penas de prêmios e castigos, o que aqui mantém a ordem?

– Mas qual hierarquia, se elas nem reconhecem chefias? – Qual disciplina, se o gozo delas é sofrer castigos?

Deixando de pensar porque cansa e dói, Pitum sonha.

– Bom mesmo – fantasia – era trazer aqui meu regimento, cercar uma maloca destas de noite e cair em cima delas de madrugada. Com a tesão acumulada desta Guerra Guiana, numa manhã, meus homens amestrariam outra vez estas donas. Com o sol do meio-dia elas todas estariam domesticadas. Ia ser uma beleza.”

 

 

“Aqui entre nós, leitor, eu digo que estas sisudas donas são nada mais nada menos que as primeiras revolucionárias da história. São as pioneiras da revolução feminista permanente: trotskistas.

Para mim isso começou nos idos em que, aqui nos trópicos, por força da Revolução Agrícola – resultante da domesticação do milho e da mandioca – o nível do desenvolvimento das forças produtivas ultrapassou o das relações de produção. Criaram-se, assim, condições objetivas para a gestação de uma nova formação econômico-social cuja expressão sociojurídica seria o matriarcado.

Deu-se, então, o inevitável salto dialético: a quantidade se converteu em qualidade. Em consequência, a classe predominante do novo modo de produção – encarnada pelas lavradoras que produziam a maior parte dos alimentos – assaltou e assumiu o poder político, iniciando a transformação revolucionária da vida social.

Em consequência, as mulheres sujigaram os homens ao seu domínio, subvertendo a ordem social e a natural. Para garantir sua hegemonia, fizeram o que fazem todas as classes vitoriosas: tomaram para si as armas, desapropriaram os adornos, monopolizaram as sinecuras e acabaram com o lazer dos homens, para submetê-los pelo cansaço.

Quando o poderio mulheril se consolidava, eis que surge a contrarrevolução machista, cuja liderança histórica é atribuída ao inominável Jurupari. Foi ele, na verdade, o herói inconteste de todo uma suja guerra contrarrevolucionária.

Jurupari, segundo reza a tradição, seria o filho de uma moça chamada Amaru, nascida de uma mulher que transou com uma cobra. Tal mãe, tal filha, uma vez que esta, por sua vez, brincando com uns macacos no mato, derramou o sumo de não sei que fruta lá no rego dela e se prenhou.

Jurupari, antes de nascer, já saía da madre da mãe para espairecer. Assim é que topou e se entendeu com Sol, que lhe deu poderes de feiticeiro. Novato no ofício de encantador, querendo criar um gavião, o que criou foram bandos de morcegos, corujas e outros feios bichos noturnos. Depois de muito labutar, criou, afinal, seu gavião, e montado nele foi ver Lua. Ela é que deu a Jurupari a pedra do poder de disciplinar o mulherio que estava imponente demais. Aí, ele próprio fez a besteira: contou seu segredo a uns velhos que, seduzidos por uma dona, denunciaram a intentona.

O golpe de Jurupari era renunciar à Presidência, deixando em seu lugar, como garantia do poder macho, a sua voz de mando, encanada dentro dos tubos das flautas de paxiúba. As mulheres, sabendo disto pelos velhos, roubaram as flautas e impuseram o despotismo.

Jurupari teve de voltar. Para se impor de novo, instituiu o jejum total, transformou aqueles velhos em lacraias, sapos e cobras e castigou as mulheres, por ambiciosas e viciosas, com surras e com curras.

Assim, dizem, começou Ele a instituir a ordem vigente, destinada a permitir que surjam mulheres perfeitas, dignas de um dia desposar Sol.

Com base nesse manifesto-programa, Jurupari, apelando para toda sorte de táticas psicodélicas, apavorou e seduziu as mulheres, compelindo-as a aceitar a ordem divinal da machitude. Esta se funda em três princípios basilares:

• O do culto feminino das virtudes da virgindade, da fidelidade, da frugalidade e da discrição.

• O do respeito ao resguardo masculino chamado couvade, comprobatório de que o importante na procriação é a paternidade, uma vez que a mulher é um mero saco em que o homem deposita sua semente.

• E, finalmente, o princípio da obediência ao marido e ao chefe e do direito do homem à poligamia.

Esta nova ordem afiançadora do caráter sagrado da hegemonia masculina se assenta em dois pilares. Ideologicamente, ela é sacralizada e legalizada pelo culto das flautas e das máscaras de Jurupari, reforçado por todo um corpo de crenças e normas éticas e estéticas. Socialmente, é garantida pelo cansaço decorrente da imposição da dupla jornada de trabalho a que as mulheres são submetidas, na roça e na maloca.

Mas é assegurada, material e efetivamente, desde então, pelo aparato repressivo implantado na Casa dos Homens de cada aldeia com sua corporação de machos curradores.

Para exemplar o poderio da hegemonia macha, a própria Amaru, mãe de Jurupari, foi a primeira mulher a morrer currada.

Estas trotskas silvestres foram as únicas mulheres que não se deixaram embair pela mistificação ideológica, nem aterrorizar pelas compulsões fisiológicas. Em lugar de se submeterem ao jugo masculino, enfrentaram seus machos rebelados, mataram e comeram todos eles para se fortalecerem física e espiritualmente e assumiram elas próprias a celebração – sacrílega – dos ritos de Jurupari. Desse modo fizeram cumprir o império do determinismo econômico que os homens haviam tergiversado e obstaculizado. A seguir, organizaram-se como uma classe para si: androfágica, autárquica, hegemônica e soberana.

Esta é – salvo melhor juízo ou ulterior revisão científica à luz de novas fontes etc. – a pré-história desse abominável mundo mulheril onde caiu, para desgraça dele e vergonha geral, o inocente macho tenente.”

 

 

“O que mais ofende a Pitum é ser tido e havido como babaca. Vê claramente pelo desprezo com que as donas olham para ele que o consideram um moleirão dengoso.

– Vejam só – reclama o preto, com toda razão –, eu, o tenente G. Carvalhall do glorioso Exército Nacionall, aqui sou chamado Pitum e tido como maricas. Pode lá ser?

Ele tem suas razões, pudera! Diante destas machas ninguém se apruma. Elas são estoicas. Disso Pitum dá testemunho, com a certeza de quem tem provas às carradas.

– Assim é, efetivamente – diz ele. – Numa cerimônia de debutantes com que inauguram as moças que menstruam pela primeira vez, dão provas provadas deste estoicismo. As noviças, estas, depois de meses de reclusão numa choça, são retiradas, lavadas, pintadas e adornadas para receberem a tortura atroz. Postas no meio de uma roda movente formada por todas as donas da maloca, recebem sobre o ventre uma esteirinha em forma de peixe, feita de talas trançadas como peneira, com um marimbondo dos mais doídos em cada loca. Quando encostam aquele instrumento de dor na barriga da pobre, instantaneamente todos os marimbondos espetam os ferrões que têm na bunda lá na barriga da coitada. Algumas desfalecem de dor. Todas fecham a cara em rictos de dor insuportável.

– Nenhuma dá um pio.

Numa outra cerimônia que fazem, parece que só pelo gosto de sofrer, as donas já meio velhuscas metem o braço numa cumbuca cheia de formigas tocandira, dessas mais peçonhentas. A mão sai, meia hora depois, com o dobro do tamanho de tão inchada. O braço incha como um balão soprado. Uma íngua cresce, instantânea, no sovaco. A dor deve ser atroz.

– Nem um pio, neste rito também.

Pois essas heroínas insensatas fazem ainda pior: cortam fora, sem grito nem faniquito, com lascas de taquara, o peitinho direito, mal ele acaba de crescer.

– Taradas – gritava Pitum vendo umas ex-noviças se despeitar.

Metida num pau-de-arara uma dona dessas resistia mais de que comunista fanático. Só diria o que quisesse. Mas quem é que teria a doida ideia de torturar essas índias? Selvagens e cruéis elas são; mas inocentes também são de toda perversão subversiva. Como índias são até tuteladas do Estado, na sua condição de cidadãs relativamente incapazes. Perante a lei brasileira são equiparadas, para todo efeito, às mulheres casadas, aos menores de idade e aos idiotas. Irresponsáveis são, portanto. Por pior que seja o crime que cometam, por maior que seja a virtude que ostentem, não merecem penas nem glórias.

Além do estoicismo, outras virtudes não se sabe se elas têm. Pecados têm demais – acha Pitum. – Serem assim autárquicas, sem homens fixos, delas, há de ser pecado cabeludo. Não há nem pode haver depravação maior que esta de umas mulheres viverem sem macho fornicador próprio, acasalado.

– Só tendo reprodutor ocasional, como é que satisfazem seus desejos bestiais? – No meio desta abstinência compulsória hão de florescer os piores vícios. Depravadas!”

 

 

“Cumpre assinalar aqui, por oportuno, que a sobrevivência das amazônidas coloca problemas cruciais diante do Brasil. Num plano humanístico há e sobreleva a questão da antropofagia, denigrante judiação dietética que nenhum povo civilizado pode consentir que se perpetue no seu solo nem em solo algum. Exceto se se comprovar o caráter meramente ritual e até evangélico como ocorre com a antropofagia brasílica. E é isto que salva nossa honra.

Mesmo a prática come-homem destas donas seria dessa espécie uma vez que, presumivelmente, se junta o mulherio de todas as malocas, para comer um macho só. A cada uma, neste caso, caberia absorver uma pilulazinha hostial.”

 

 

“O debate secreto sobre as verdadeiras razões causais da Guerra Guiana se trava aceso todo dia. Cada vez que dois oficiais se encontram – mas nunca mais de dois, que ninguém é de ferro – quem estiver ali escondido, escutando, ouvirá as versões mais desencontradas pra explicar a Guerra Guiana.

Para o capitão Mameluco, esta seria uma guerra psicológica. Concentrando, num abscesso de fixação, toda a agressividade nacional, ela permitiria ao povo brasileiro viver em paz. Muitos negam essa hipótese acoimada de psicologística. Todos reconhecem, não obstante, que no Brasil o convívio humano melhorou muito depois da guerra. Nas Guianas só piora.

Muito batalhão mais parece um magote de drogados do Exército ianque no Vietnã.

Para o major Xipaio toda guerra é bélica e política. Esta também. Seu propósito seria criar um alvo inimigo, extrabrasileiro, capaz de atrair a atenção e o interesse dos generais, almirantes e brigadeiros, sequiosos de se sentar na cadeira presidencial. Todo militar aspira tanto ser Presidente Civil do Brasil que foi indispensável inventar esta guerra pródiga de condecorações e promoções.

– Mas que é que os guianenses têm com o pato?

Melhor é a explicação atribuída ao coronel Jenizaro: esta é uma guerra estratégica, diz ele. Seu objetivo é evitar que a Venezuela – já tão rica em petróleo –, tomando as Guianas, cresça desmesuradamente e acabe engolindo a gente. Como os brasileiros não têm peito para tomar mais terras – pra não aumentar mais nossa má fama de nação expansionista –, fica-se nesse toma lá dá cá. Qualquer dia as tropas param com as Guianas nas mãos e fixam as fronteiras nacionais nas praias do mar Caribe.

– Ali bem na frente de Fidel – vixe Maria! – diz Eunuco.

Este é o objetivo real, aparteia o comandante Emir: esta é uma boa guerra anticomunista. Uma vez plantados nas praias do Caribe, vamos juntar coragem pra invadir a Ilha pelo sul, enquanto os gringos invadem pelo norte. Juntos, vencemos o comunismo e acabamos com o despotismo cubano. Ninguém pode mais com essa ilha de merda, com sua meia dúzia de gatos pingados, libertando áfricas e ásias.”

 

 

“– Estão atolados no atraso, estes bugres. Vivem na fartura curtindo preguiça. – Para ele, o ofício real dos Galibis é viver convivendo e pecando inocentemente na sua comunidade solidária. Os homens, uns malandros, é verdade que caçam e pescam em duras jornadas; mas depois descansam dias, balançando na rede, cafungando, filosofando e rezando. As mulheres são mais ativas. Fora da aldeia, plantam roça e colhem, apanham água e lenha, carregam carga. Dentro de casa, cozinham e amamentam, fornicam e mexericam.

– Não querem outra vida, estes bugres – conclui Pitum. – Nem eu.”

 

 

“Ouvindo as absurdidades que as monjas contam do Brasil lá delas, Pitum vai chegando à conclusão de que a doidice bem pode ser delas. A seu tempo, o leitor verá, bestificado, que o preto talvez até tenha razão.

– Não pode haver um Brasil assim – diz ele. – Certamente não há mesmo. Será invenção delas. – E se pergunta: – para que fantasiam tanto? Que é que lucram com isso? A quem é que querem enganar? (...)

Quando brigam muito, o ex-tenente passa uns dias ressabiado, embolado com os homens lá no clube. Mas como não pode viver calado, acaba voltando. Vem cordialíssimo, requerendo fala e carinho. Elas aproveitam pra cair numa arguição severa sobre as doiduras do Brasil dele. Agora que decidiram que Orelhão é pirado da bola, já não se irritam tanto. Até se divertem com as suas fantasias de maluco.

Pitum – agora Orelhão –, que já deu o que tinha e o que não tinha, continua falando, se entregando. Não se emenda. Teve de desmentir e ainda está desmentindo tudo o que disse. Mas continua falando de novos espantos que tem, depois, de desdizer. É tão fluente como inverossímil. Discorre horas, respondendo às perguntas das donas sobre toda sorte de coisas do contraditório Brasil lá dele:

• a mocidade permissiva e a velhice debochada;

• a machitude crepuscular e a bichice florescente;

• o feminismo salvacionista e o autarquismo sexual;

• a Funai perseguindo índios pra sustentar ex-coronéis;

• a queimada das matas e o movimento ecológico;

• a negritude emergente e a branquitude ressentida;

• a contaminação industrial e a qualidade de vida;

• o militarismo civilista e a democratização autoritária;

• a majestade da justiça e os esquadrões da morte;

• o pau-de-arara nordestino e o boia-fria sulino.”

 

 

“As pobres monjas estão entaladas no impasse. Assuntos pios, missionais, enchem os índios. Chateiam demais. Casos míticos provocam discussões. Dão em disparate. O outro assunto, único, que interessa a eles é a Civilização, mas resulta sempre em arguições perturbadoras.

Apesar das confusões, este é o tema de que mais falam. Os índios de tudo querem notícia. O diabo é que, não sabendo, ainda, que são selvagens, são inteiramente incapazes de entender o que é Civilização. Se acham civilizados, os idiotas.

Aliás, isso de Civilização é também o maior interesse de Orelhão. Estando completamente por fora do Brasil lá delas, ele se aproveita das conversas para informar-se. Cada vez mais ele se convence, pelo que ouve, de que se trata de outro Brasil. O país delas é outro de que ele nunca ouviu falar. De fato, não tem nenhum jeito de ser o Brasil dele, normal. Seja o do passado. Seja o do presente.

As conversas com os índios sobre a Civilização são enredadas, longas. Pra explicar como é uma cidade, as monjas levam horas. Primeiro comparam, dizendo que são formigueiros de gente. Enormes formigueiros com muita formiga-gente andando daqui prali, dali praqui. Explicam, depois, que esse formigueiro fica num descampado, sem nenhuma árvore, mas com muitos caminhos paralelos e cruzados, com casas dos dois lados. Casas quase sempre amontoadas umas sobre as outras, subindo pro céu.

Orelhão acha que elas deviam é dizer que a maioria das tais casas é de aluguel; que o aluguel é caro demais e dobra cada seis meses, com a inflação. A seu juízo, elas enchem os selvagens é de detalhes inúteis sobre telhados de telha, chãos empedrados de pedra, lisas paredes pintadas, janelas de vidro, torneira d’água, luz elétrica, WC e fogão a gás. Até dos telefones dão notícia a eles.

Quando os idiotas já não entendem mais nada, de tanta maravilha que ouvem, elas explicam que lá ninguém pesca, nem caça, nem planta. Ou se pesca, caça e planta, faz cerâmica ou trança esteira, só faz isso a vida inteira. Não confessam é que lá também tudo se compra na feira e custa dinheiro, que é difícil de ganhar. Não há dúvida é de que elas se esforçam demais.”

 

 

“– O que nós loucos somos é isto: testemunhas do impossível. O tempo é muitos tempos simultâneos. Impossíveis. O espaço também. Quem atravessou a cortina branca sabe. Todo impossível é possível em algum lugar. Até demais.”

 

 

“Só é de perguntar se será caridoso da parte destas monjas tirar os Galibis da Inocência para lhes dar a palavra de Deus. Pensando que dão de graça a Salvação, elas não estariam cobrando um preço terrível? Não estariam abrindo pra esses pobres índios as portas do Inferno?

Enquanto foram Pagãos, ignorantes do Verbo Revelado, sendo inscientes eles eram inocentes e, assim, incapazes de culpa e de pecado. Depois de catequizados, não. Ao receberem a Boa Nova e, com ela, o Saber e a Malícia, passam a ter méritos e culpas pelas virtudes e maldades que cometam. A Redenção para eles será a Perdição. No estado natural do paganismo eles não podiam ser nem Infiéis, nem Hereges, nem Apóstatas, porque Pagão não tem competência para tanto. Convertidos, estão fodidos.”

 

 

“Explicam ao preto que, para os índios Galibis, o sonho é a alma da gente que sai do corpo andando, esvoaçante, por aí, fazendo estripulias. Assim sendo, o que acontece no sonho acontece mesmo, ainda que seja no mundo dos sonhos. Tanto que eles pedem indenização se alguém os prejudica nos sonhos. E dão, espontaneamente, a recompensa devida se eles próprios, nos sonhos, andaram passando um companheiro pra trás.

Outro dia Calibã sonhou que a filha dele – que ele não tem –, querendo parir seu neto, cagou um abacaxi para agradar a Orelhão. As monjas precisaram dar ao preto, para que ele desse ao tuxaua, como indenização, a melhor tesoura de costura que tinham.

– Saiba você, Orelhão, que o sonho é a principal fonte de sabedoria dos Galibis. Todos aqui tomam Caapi para ter sonhos que são treinamentos e ensinamentos. Assim, os meninos aprendem a caçar e andar no mato. Assim, os homens sabem do que está acontecendo ou dos riscos do que pode suceder.

Exagerada como é, Tivi afirma que o sonho é a escola da vida. Sem sonhar, estes índios nem saberiam viver. Sonhando, aprendem tudo. O sonho dá aos Galibis o que a TV Globo dá a nós, brasileiros: engabela, seduz e consola. É até melhor porque não quer vender seguros nem sabão português. E tem a vantagem de que todo programa é ao vivo e nele o próprio índio se vê a si mesmo obrando maravilhas. Sem as ilusões da TV, brasileiro morria de tristeza com a vida que tem. Índio também, sem sonhar, destrambelhava.”

 

 

“Nestas circunstâncias só nos cabe o consolo de recordar que, afinal, como dizem os sábios chineses, o inevitável é sempre o melhor.”

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