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domingo, 22 de maio de 2022

Dicionário de história e cultura da era viking (Parte III), de Johni Langer (org.)

Editora: Hedra

ISBN: 978-85-7715-549-1

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 800

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Sinopse: Ver Parte I


 

GUERRA E TÉCNICAS DE COMBATE

Na cultura nórdica da Era Viking, como parte de uma cultura germânica, a guerra ocupava função precípua, por meio da qual laços políticos, econômicos e sociais eram estabelecidos ou refeitos a cada combate. A sorte e a fortuna estavam dispostas no combate para aqueles que pudessem sobreviver. Aos que não vivessem ao final do dia, um destino de fama cobria o morto com uma glória que promovia o nome da família, garantindo prestígio.

A favor dos vikings contava a capacidade da mobilidade proporcionada por seus navios, com calado relativamente pequeno, bem como as marchas e deslocamentos feitos em velocidades superiores a de forças oponentes no mesmo período, em especial pela leveza dos equipamentos e a natureza de suas ações.

A organização tribal das sociedades germânicas em um primeiro momento foi a conformada das forças vikings em combate. Nos primeiros tempos da Era Viking, os laços clânicos e tribais eram o elo que direcionavam os homens e mulheres a seguirem em combate. Com o investimento em diversas áreas do norte da Europa, em especial Irlanda e Inglaterra, esse tipo de organização foi substituído por outro, construído ao redor do poder político de chefes guerreiros ou grupos de homens de armas que ofereciam serviços a quem pudesse pagar.

Tais grupos evoluíram em tamanho, treinamento e efetivo à medida que se processaram as expedições e invasões vikings em diversas áreas. Um desses grupos guerreiros foi formalizado através de um tratado entre os rus de Kiev e o imperador bizantino em 874: era a Guarda Varegue (Varangiana), uma unidade de elite do exército bizantino subordinada diretamente ao imperador e encarregada de sua proteção, valendo-se dos costumes germânicos de ligação entre o guerreiro e o seu senhor, de fidelidade até a morte.

O treinamento dos guerreiros era feito por familiares ou, em casos mais avançados, por membros experientes dos grupos guerreiros. Havia uma série de armas ofensivas e defensivas à disposição e o guerreiro em formação era treinado em todas, embora existisse, naturalmente, uma preferência por um tipo de armamento com o qual se obtivesse maior eficiência no manejo.

Espadas e machados eram as armas ofensivas principais, sendo as espadas mais bem elaboradas garças aos custos envolvidos em sua produção. Os machados eram mais baratos e ainda estavam presentes no dia-a-dia, utilizados em diversas tarefas, o que familiarizava muito o futuro guerreiro, pelo manejo diário, com as funcionalidades da arma, que podia ser utilizada na mão ou, dependendo do tamanho, arremessada, produzindo efeito devastador.

Assim como os machados, variando em tamanhos, as lanças eram outro tipo de arma muito utilizada pelos vikings, sustentando formações de combate e em arremessos, sendo populares como os machados, por causa do baixo custo de produção. Apesar disso, lanças e machados não eram considerados armas “menores” em importância em relação às espadas, sendo, assim como estas, decoradas com motivos sagrados pagãos ou cristãos, e com papel mitológico. Deuses portavam machados ou lanças como armas sagradas tanto quanto espadas.

O último grupo de armas ofensivas vikings eram arcos e flechas. Embora não sejam muito conhecidos, existia o uso em larga escala por parte de exércitos germânicos antes da Era Viking de arcos e flechas, para causar baixas no inimigo, antes ou durante a batalha, e a Escandinávia não era exceção nisto, ainda mais em combates navais, onde os arcos eram decisivos para causar baixas nas tripulações inimigas e facilitar a abordagem de navios hostis. Arcos também eram de grande valia em expedições de pilhagem e saque, eliminando ou incapacitando um oponente em relativa distância.

Em matéria de armamento defensivo, destacam-se os escudos e as proteções individuais, como armaduras, completas ou não. Os escudos tinham importância vital, e sem eles um homem não podia tomar parte em expedições, pois só era permitido embarcar aqueles que portassem um escudo. O escudo era composto basicamente por madeira, pintada em cores diversas, com um pomo de ferro central, no qual o guerreiro o manejava, podendo se valer do peso do corpo para sustentá-lo, quando da formação defensiva mais clássica viking, a parede de escudos, no qual os guerreiros colocavam os escudos lado a lado.

As armaduras, mais caras, estavam restritas a quem pudesse pagar pelo fabrico, e o custo se refletia tanto na qualidade quanto na proteção individual oferecida por elas, que variava do tronco e cabeça até uma cobertura corporal completa. Os elmos possuíam formatos que ofereciam desde uma proteção simples da parte superior da cabeça até uma proteção do todo do rosto e parte da nuca, tendo, normalmente, trama de cota de malha.

A proteção individual era composta por armaduras de couro, reforçadas ou não com elementos de ferro, como pequenas placas ou anéis, tendo um custo que permitia a aquisição por mais guerreiros. As mais caras eram as cotas de malha, compostas de anéis de ferro entrelaçados, cuja densidade oferecia proteção contra projéteis como flechas e dardos ou ao menos reduzia os danos causados por estes. O fabrico de uma cota de malha exigia alta especialização e capacidade, de maneira que seu acesso era restrito. No decorrer da Era Viking, o conhecimento se disseminou, e a ascensão de chefes guerreiros e reis promoveu um maior acesso a elas, em especial na Normandia, um ducado do Reino de França comandado por um chefe guerreiro viking a partir de 911.

Com a transformação dos exércitos vikings e com a ascensão desses chefes guerreiros e reis, a sua mobilidade foi ressaltada, lançando ataques por todo o litoral e redes fluviais da Europa no século IX e parte do X. Nesses ataques, compostos tanto por expedições de pilhagem quanto por invasões, o uso do equipamento por parte dos guerreiros variava de acordo com a natureza da ação a ser executada.

Em caso de pilhagens, saques e razias, o armamento leve e ofensivo era privilegiado, como machados, lanças e arcos e flechas. Escudos eram a proteção individual escolhida, já que armaduras pesadas como as cotas de malha reduziam a mobilidade e a velocidade de marcha dos grupos, quando em terra. Em invasões, os vikings lançavam mão de todo o arsenal disponível, já que a conquista e o estabelecimento de um domínio eram os objetivos.

A despeito dessa mobilidade, os vikings não constituíam forças de cavalaria, devido à escassez de cavalos na Escandinávia e a pouca capacidade de suprir a forragem necessária a grandes forças de cavaleiros, como os francos podiam fazer. Isso não quer dizer que eles não soubessem utilizar os cavalos, como demonstrado em diversas ações na Inglaterra e na França, mas o modo viking de fazer a guerra terrestre era centrado na infantaria, seja como força de choque ou de inquietação e desgaste do inimigo mediante o uso de projéteis.

A liberdade de ação concedida pela superior técnica naval, constituída de conhecimentos de navegação mais do que por tecnologia, concedeu aos vikings uma capacidade de deslocamento não vista na Europa até tempos modernos. Valendo-se dos navios, havia projeção do poder viking em diversas áreas.

Entretanto, o combate naval não diferia muito do combate terrestre e buscava-se em muito reproduzi-lo, com a abordagem de embarcações e luta entre as tripulações, com amarração de um navio ao outro. Havia pouca margem de manobra, de modo que quando um barco quebrava a formação, fazia-o normalmente para flanqueio da frota inimiga, para explorar uma brecha na linha inimiga ou ainda para um ataque direto ao navio que seria a nau capitânia da força inimiga.

E tanto em terra como no mar, predominava uma técnica de combate de infantaria, típica do modo de guerra germânico e aprimorada pelos vikings: a parede de escudos (skjaldborg). A parede variava em tamanho de acordo com o efetivo usado e com a intenção do comandante. Basicamente, os guerreiros ombreavam uma linha juntos, sobrepondo escudos de maneira a oferecer uma proteção que permitia avanço ou defesa. A profundidade da parede variava de uma linha singular a várias, com uso de lanceiros, tal como nas falanges gregas. A variação se dava quando do ataque, normalmente um escalão de ataque seguia por trás da parede de escudos, flanqueando ou apoiando a quebra da parede de escudos quando entrava em choque com o inimigo.

Normalmente a formação de uma parede de escudos, tanto em ataque como em defesa, era acompanhada de uma forte dose de ferocidade, com cantos e gritos de guerra entoados, de maneira a fortalecer o moral dos guerreiros e sustentar o duro e violento combate que se seguiria.

A outra formação tática era em uma disposição das forças em cunha (triangular), com as linhas reforçadas em profundidade e protegidas por forças nos flancos. Embora a lenda diga que a técnica foi ensinada pelo deus Odin, é bem mais possível que ela tenha se desenvolvido com base nos contatos e combates entre os germânicos continentais e os romanos, que utilizavam uma formação do tipo, intitulada porcinum capet, que tinha finalidade ofensiva, buscando abrir uma brecha na linha inimiga pelo choque.

Quanto ao reino da estratégia, os vikings se utilizavam de diversas técnicas que não somente o combate frontal e brutal, como o estereótipo medieval. Além da busca pela utilização do recurso de atacar com efeito de surpresa, para provocar paralisia e destruição do dispositivo inimigo, seja por combate ou fuga, é possível encontrar registros de técnicas de desinformação, pela disseminação de boatos, marchas falsas, uso de recursos como pedidos para enterrar chefes em cidades sitiadas, entre outros.

Embora com uma reputação de ferozes combatentes, é importante perceber que os vikings não eram provocadores de batalha. Suas forças tinham qualidade, por treinamento, técnica e tecnologia, mas podiam ser derrotadas, como o foram, por anglo-saxões e francos, para citar alguns. Ainda havia sempre o recurso de buscar eliminar a liderança em batalha ou por meio de ardis, como foi a tentativa viking de eliminar o rei anglo-saxão Alfredo, o Grande, ao atacar seu palácio diretamente.

Um exército viking em geral fazia o possível para evitar batalha. Não se trata de covardia, mas de estratégia e judiciosa aplicação de seu poder combativo por parte de suas lideranças, uma vez que onde eles combatiam rara era a chance de obter novos guerreiros para completar os vazios abertos pelas baixas em batalha. Portanto, a escolha de lutar era condicionada a uma grande certeza de vitória.

Isso foi reforçado pela utilização de fortificações por francos e anglo-saxões para se defenderem das forças vikings, estabelecendo sistemas defensivos que acabaram por inspirar as próprias técnicas vikings de fortificação, como se pode observar nas linhas defensivas de Trelleborg, na Dinamarca, criadas para deter uma invasão franca, que têm aspectos semelhantes às dos burghs anglo-saxões, estabelecidos para conter os vikings.” (Guerra e técnicas de combate – Sandro Teixeira Moita)

 

 

HIDROMEL

As fermentações naturais de frutas e folhas sempre foram observadas desde a Pré-história e, ao longo dos séculos, aperfeiçoadas e adaptadas ao paladar de cada região. O hidromel, um dos fermentados mais antigos de que se tem notícia, é considerado a bebida dos vikings por excelência. Esse estereótipo já cristalizado de que os nórdicos se embriagavam com abundante hidromel ainda hoje é difundido sem se conhecer a fundo como e em quais circunstâncias essa bebida rara e cara era consumida. O mel, na Era Viking, era recolhido de colmeias selvagens. Portanto, conseguir mel não era algo tão fácil, fato que o tornava um produto escasso, destinado exclusivamente para o consumo em ocasiões especiais e, claro, para a produção de hidromel. Um fermentado simples: mel, água, ervas aromáticas ou frutas e uma levedura. Esta podia ser uma “levedura selvagem” presente no ar, que contaminaria a bebida provocando a fermentação alcoólica e, depois de algum tempo, o hidromel estaria pronto para ser consumido.

O hidromel (mjöð), além de ser a bebida que proporcionava a inspiração para a arte de se compor poesia, era também utilizado pelas profetisas, pelos berserkir – guerreiros consagrados a Odin – para conseguirem atingir o êxtase e, consequentemente, o furor na batalha. Serviam também, claro, para os líderes, os grandes guerreiros e os escaldos cantarem as vitórias das batalhas e glorificarem o deus de um só olho. Mas, devido ao seu ingrediente principal – o mel – ser raro e também bastante caro, o seu consumo era destinado somente aos mais ricos e às grandes comemorações de caráter religioso, político e guerreiro. O hidromel era associado às festas no mundo dos deuses (o banquete de Égir, Lokasenna 1-65; a cuba mágica dos einherjar, Gylfaginning 38), bem como a poesia e ao próprio Odin (Skáldskaparmál 1). Portanto, ao contrário da cerveja, o vinho e o hidromel tinham um caráter muito mais sagrado, sendo destinados aos mais abastados.

Bebida por excelência dos deuses, guerreiros e chefes, o hidromel era servido a todos os mortos em combate que adentravam o Valhala. As valquírias, depois de escolherem os mortos de Odin no campo de batalha, trajavam seus vestidos de trabalho e, com o cabelo preso com um nó triplo ofereciam o corno cheio de hidromel como uma forma de boas vindas àqueles que se mostraram corajosos e que agora irão desfrutar pela eternidade da carne de porco e dessa bebida tão desejada.

As mulheres eram as responsáveis por fazerem e servirem o hidromel, assim como eram pela cerveja consumida cotidianamente, durante as festividades. A tarefa era feminina por excelência, pois eram as mulheres que controlavam o fluxo de alimentos que entravam e saíam das despensas e também eram responsáveis pelo cuidado com as ervas utilizadas para dar sabor à bebida e auxiliar na sua fermentação. Diferentemente do que se difunde atualmente, o hidromel da Era Viking não possuía uma graduação alcoólica elevada, ficando entre os 4 e 8 graus. A embriaguez advinda do consumo da bebida não era devido à graduação alcoólica, mas sim à grande quantidade consumida: já que eram poucos os consumidores, a quantidade destinada a eles era grande, e uma das qualidades apreciadas em um grande líder e guerreiro era justamente a gula e a embriaguez pela grande ingestão de bebida alcoólica. Quanto mais se bebia e comia, mais valoroso era o homem.

O hidromel tem uma origem mítica. A bebida era guardada pela giganta Gúnnlod e os deuses e homens não tinham acesso a ela. Odin, usando de sua astúcia, seduziu a giganta e a amou por três dias. Depois, metamorfoseado em águia roubou a preciosa bebida que além de saciar a sede de deuses e guerreiros no post mortem, inspirou os escaldos a comporem a sua refinada poesia com as gotas que caíram do bico da águia odínica sobre a suas frontes. O hidromel expelido pela cloaca da ave inspirou os maus poetas a comporem a sua poesia medíocre.

Atualmente o hidromel é largamente consumido. Fabricado praticamente em escala industrial, distancia-se muito da bebida consumida na Era Viking, não só pelos ingredientes utilizados, como também pelo modo de preparo e graduação alcoólica que ultrapassa a original. A bebida dos deuses, dos poetas e dos guerreiros no Valhala ainda inspira canções e poesia, bem como desperta curiosidade daqueles que querem provar na terra as doçuras dos lábios de Gúnnlod.” (Hidromel – Luciana de Campos)

 

 

HISTORIOGRAFIA E PSEUDO-HISTÓRIA

Durante o medievo, a ação de recuperar o passado e utilizá-lo como um locus no qual seus aspectos seriam modificados para legitimar uma situação política no presente foi constante. O passado e o presente constantemente faziam parte do mesmo objeto textual, onde muitas vezes o tempo pretérito era recuperado para servir de exemplo no presente, principalmente com objetivos de legitimação política. Dessa forma, um objeto formulado no passado poderia servir, posteriormente, para diferentes objetivos. O passado poderia ser recuperado ou até modificado em seus diversos aspectos, tais como o textual, o paleográfico, o codicológico ou o visual.

A produção de um objeto historiográfico dependia das circunstâncias políticas e culturais de sua produção. Nesse sentido, alguns aspectos gerais relacionados à historiografia medieval podem ser encontrados em diferentes documentos, compostos em distintos contextos, os quais comentamos a continuação. 1. Os conceitos de actor e auctor. Durante o medievo, os conceitos de actor e auctor apresentavam definições distintas, significando, respectivamente, aquele que produz um livro (ou o responsável pela sua produção) e aquele que tem a autoridade (auctoritas). 2. A pluralidade do conceito de autoria. A função do historiador no medievo era descrita de uma forma muito mais ambígua e plural. Sua ação estava definida nos seguintes verbos: compilare (compilar), colligere (reunir), excerpere (escolher), breviare (sintetizar) e redigere (redigir). Considerando o aspecto único de cada produção historiográfica no medievo, tal pluralidade do conceito de autoria ajuda a compreender a razão pela qual cada objeto era considerado como uma composição individual a partir do seu contexto de composição. 3. A concepção linear da história. Outra característica da historiografia medieval é o aspecto de linearidade. Uma narrativa em forma linear, com foco em um passado distante, longínquo e com um término voltado para um presente, apresentava uma mentalidade contínua que estava de acordo com os documentos que retratavam a formação de, por exemplo, uma linhagem ou dinastia. 4. A lógica social do texto histórico. De acordo com Gabrielle M. Spiegel, todo estudo historiográfico que apresente a perspectiva “texto-contexto” deve considerar a relação do texto com o momento de composição, no qual o mundo histórico foi internalizado no texto. De acordo com essa proposta, os textos históricos medievais não devem ser compreendidos como documentos históricos pouco confiáveis: eles pertencem a um contexto de composição e a partir deste adquirem um significado. Nesse sentido, é necessário considerar a interação “texto-contexto” para descobrir o motivo da composição de um texto historiográfico e, consequentemente, a intencionalidade do actor ou do patrocinador do texto. 5. Relação com o passado e a sua representação. O passado dinástico, a partir de uma perspectiva de sucessão linear, demonstra uma continuidade fundamentada na legitimação, por exemplo, de uma linhagem. Dessa forma, a fusão entre presente e passado, reunidos na materialidade do documento, nos faz refletir sobre a importância do tempo pretérito e sua relação com a contemporaneidade. 6. Função de legitimação. Um gênero histórico possui características próprias que eram conhecidas pelos medievais e por isso eram selecionados dependendo da situação política a ser resolvida ou recordada. 7. História e política. A relação entre esses dois âmbitos condensa a participação de todos os outros aspectos citados até aqui, já que tais âmbitos fazem parte da principal característica da historiografia medieval. Os gêneros históricos foram utilizados constantemente em termos políticos, para legitimações políticas, para fins políticos. O passado era o locus através do qual poder-se-ia transitar e encontrar soluções para situações no presente, seja através de modificações do passado, seja através “somente” da recuperação de suas informações que serviriam para serem utilizadas no presente.

Após a composição original de um texto pelo seu auctor, sobre o qual este estabelecia sua auctoritas, as posteriores reproduções dependiam tão somente dos patrocinadores e dos actores, os quais atuavam de acordo com o contexto em que viviam: eliminavam, acrescentavam e modificavam as informações de acordo com os seus conhecimentos linguísticos, religiosos, morais, políticos e literários. Portanto, quando compunham um manuscrito ou preparavam uma nova cópia, os patrocinadores e actores realizavam uma tarefa exaustiva e introduziam no objeto a ser preparado informações que eram próprias do seu tempo histórico.

No caso dos textos oriundos do norte da Europa, diferentes versões e redações indicam que eles puderam ser adaptados pelos novos actores (com suas intenções específicas) ou para as diferentes necessidades dos públicos finais, ou seja, da audiência. Por exemplo, diversos autores afirmam que uma das principais obras islandesas, o Landnámabók, foi manipulada em suas composições posteriores para legitimar reivindicações políticas que emergiram depois de sua composição. Da mesma forma, ainda sobre as produções historiográficas, a veracidade de uma história estava relacionada a diversos fatores, tais como o tema abordado e a relação da escrita com a verdade.

Há uma diversidade de produtos historiográficos específicos oriundos do território do norte europeu, dentre os quais encontra-se, por exemplo, as sagas (que podem ser islandesas, lendárias, reais), as eddas (tanto em prosa como em poesia), os registros escáldicos (antigas tradições, narrativas heroicas, narrativas históricas, contos, folclore), as gestas, os poemas (épicos, rúnicos) e a poesia (éddica, escáldica, pagã, feminina). Tais produtos, oriundos da historiografia do norte da Europa medieval, apresentam uma considerável diversidade (temática, material etc.), com diferenças em seus conteúdos e intencionalidades. Em um âmbito geral, a historiografia nórdica apresenta algumas características particulares, como, por exemplo, o foco na história contemporânea. Além disso, difere-se da historiografia continental justamente por apresentar em seus textos iniciais a escrita vernacular, desde os primeiros momentos do seu surgimento. Uma característica geral é que a tradição oral e as produções locais foram utilizadas como fontes para a composição historiográfica. Tais tradições orais são classificadas como a memória coletiva do território. No caso da historiografia islandesa, um dos principais aspectos que a caracterizam é a ausência de versos épicos em um sentido clássico e a presença de manifestações vernaculares desde suas primeiras expressões. Os textos historiográficos desse âmbito territorial estão entre os mais antigos trabalhos escritos na Islândia. Além disso, as produções historiográficas islandesas apresentaram como foco de atuação o passado imediato antes e depois da conversão ao cristianismo ocorrida no território. Percebe-se nesses produtos uma preocupação em mencionar autoridades escritas e testemunhas presenciais, com o objetivo de destacar sua própria história. Nesse sentido, a perspectiva genealógica foi muito utilizada, principalmente nos primeiros textos elaborados durante o contexto da colonização, demonstrando a consciência do vínculo territorial com a Noruega e, por conseguinte, estabelecendo o ato migratório como uma ação criativa e legitimadora, o que posteriormente serviu para diluir gradualmente o vínculo norueguês e afirmar um processo de construção de identidade local. Por outro lado, a historiografia norueguesa apresentou uma intensa utilização do latim em seus primórdios; porém, gradativamente a escrita vernacular foi cada vez mais utilizada.” (Historiografia e pseudo-história – Luciano José Vianna)

 

 

VIKINGS NA FRANÇA

A primeira incursão escandinava ao Reino Franco aconteceu em 799, na região de Vendée. Até a década de 830, contudo, os reides vikings foram esporádicos, concentrados especialmente na Frísia, Flandres e no estuário do Sena. As principais regiões do Império Carolíngio atingidas pelas invasões foram a bacia do Sena, a Aquitânia, a Bretanha, a Nêustria e a área do Meuse, baixo Reno. Na perspectiva de Simon Coupland, podemos dividir a expansão viking em três fases, tanto na França quanto na Inglaterra: 1) 790s-840: reides raros e de pequeno porte às regiões costeiras; 2) 841-875: aumento no número, escopo e escala das incursões; 3) 876-911: estabelecimento no território ocupado (colonização).

Neil Price, por sua vez, num estudo de caso sobre a Bretanha, separou as atividades vikings em cinco etapas: 1) 799-856, primeiros reides; 2) 856-892, agressão à França; 3) 892-907, paz de Alan, o Grande; 4) 907-939, conquista e ocupação da Bretanha; 5) 939-1076, últimos vikings. Para o autor, o ano de 856 é um marco fundamental, pois assinala o início de ofensivas mais intensas à Frância ocidental. Com efeito, a chamada Grande Invasão (856-862) e o cerco de Paris (885-886) distinguiam-se das investidas anteriores em virtude de sua meticulosa organização. Tais balizas cronológicas variam entre os historiadores, visto que, evidentemente, são meras convenções didáticas – na realidade, nunca existiu um plano viking (consciente e coletivo) que coordenasse as etapas, natureza e alcance da expansão na Europa. As invasões e colonizações de partes da Frância eram feitas por grupos independentes, que, muitas vezes, guerreavam entre si.

As explicações para as frequentes vitórias escandinavas sobre os carolíngios já foram (e ainda são) muito debatidas pela historiografia. Segundo Albert d’Haenens, as causas do sucesso viking foram a mobilidade de suas tropas (tanto na terra quanto nos mares/rios) e as estratégias militares, como o ataque surpresa. Janet L. Nelson, por sua vez, aponta certos motivos, como a escolha do momento propício para a ofensiva (à noite, p. ex.), a destreza naval e, talvez o mais importante, a capacidade para construir boas fortificações. Numa visão recente, Coupland afirma que as razões capitais foram as divisões políticas entre os francos, bem como a tática dos vikings de erguer acampamentos em locais de difícil acesso (como em ilhas) e evitar uma batalha aberta e demorada para reagrupar, reorganizar e, depois, voltar a lutar – sempre em ataques rápidos.

Seja como for, esses triunfos vikings construíram ao longo dos séculos uma imagem de “catástrofe” do mundo franco, em decorrência de profundas e duradouras crises socioeconômicas e políticas que teriam ocorrido. Devemos, no entanto, salientar de antemão que a ideia de um “catastrofismo” deriva sobretudo do exagero das fontes textuais daquela época, escritas quase sempre por clérigos. De fato, elas apresentam muitas vezes uma dicotomia religiosa entre “pagãos” (vikings) e “cristãos” (francos), num discurso que via os nórdicos como “ameaças apocalípticas”, o “flagelo” enviado por Deus para punir os pecados dos carolíngios. As testemunhas oculares também registravam exageros numéricos, muitos deles relacionados à quantidade de inimigos – em 885, por exemplo, o monge Abbon Cernuus (c. 850-923) afirma que Paris foi atacada por “mais de mil vezes quarenta homens”, cifra que não faz sentido quando confrontada à demografia (franca e viking) e às possibilidades limitadas de transporte e manutenção da tropa em território hostil.

Em verdade, a partir da década de 1960, os historiadores e arqueólogos iniciaram uma revisão historiográfica que matizou a visão “catastrófica” encontrada nas fontes cristãs e aquelas que eram oriundas de uma interpretação errônea (literal, p. ex.) dos documentos. É claro que os textos medievais não foram abandonados, mas eles passaram a ser interpretados principalmente à luz das descobertas arqueológicas, cada vez mais frequentes a partir da segunda metade do século XX. Com relação ao impacto dessas invasões no mundo carolíngio, observamos a mesma reconsideração nos historiadores contemporâneos.

Pierre Bauduin, por exemplo, lançou uma tese que minimiza os resultados das invasões vikings na civilização franca. Ele sustenta a ideia de uma “acomodação” dos invasores, que, obviamente, não estavam numa contínua guerra com os carolíngios. Na realidade, em várias regiões a consequência da chegada dos nórdicos foi muito menor do que se imagina. As destruições e combates não foram tão arrasadores e frequentes; muitas vezes, esses recém-chegados eram absorvidos e seus assentamentos assimilados por concessões e negociações. Houve uma “aproximação” entre vikings e carolíngios, na qual variadas estratégias e compromissos eram usados para atenuar os problemas que surgiam durante a integração e coexistência. Para o historiador, o caso paradigmático de “acomodação” foi o estabelecimento dos escandinavos na Nêustria (séculos IX-X), cujo resultado seria a formação da Normandia. Já o caso clássico da “integração” concedida pelos carolíngios aos vikings seria o batismo dos chefes nórdicos em solo franco.

Existe uma antiga teoria de que os vikings eram motivados por um “paganismo militante”, que os fizeram conduzir uma guerra religiosa contra as populações cristãs da Frância. Essa proposição foi retomada por John Michael Wallace-Hadrill (1975), que a defendeu com seis argumentos principais: 1) a alta frequência do uso do termo “pagão” em referência aos nórdicos; 2) a destruição de igrejas e mosteiros; 3) o ataque a altares, sacristias e relicários; 4) a tortura de monges e a morte deles sem uma razão clara; 5) a prática de sacrifício ritual; 6) a aparente conversão de certos francos ao paganismo. Já Lucien Musset havia afirmado que o “paganismo agressivo não tinha inspirado muito os vikings”, e coube a Coupland rebater cada um desses pontos.

Para Coupland, 1) o termo “pagão” nem sempre é o mais citado nas fontes – na verdade, ele aparece como sinônimo de “bárbaro”, inclusive em referência aos muçulmanos e eslavos; 2) os edifícios religiosos eram atacados por guardarem riquezas e serem pouco protegidos; 3) a destruição de relíquias e outros itens era causada, quase sempre, para a obtenção de ouro e prata que eles continham; 4) não está claro que as torturas e mortes de cristãos foram causadas por uma “motivação pagã”, pois os vikings preferiam fazer prisioneiros, que poderiam escravizar ou vender (resgate); 5) não podemos generalizar, já que provavelmente existe apenas uma evidência de sacrifício, que teria ocorrido em 845 na região do Sena; 6) nos casos de conversão ao paganismo, não há qualquer sinal de adoração aos deuses ou mesmo uma obrigação para isso.

A presença dos vikings no mundo carolíngio chamou a atenção da Igreja, que, juntamente com a monarquia, passou a atuar na conversão desses pagãos. Algumas vezes, o batismo era precedido pela troca de reféns; na maioria dos casos, o “padrinho” (monarca) franco entregava presentes ao chefe viking batizado. O dinamarquês Haroldo Klak foi o primeiro soberano escandinavo a ser convertido ao cristianismo, o que aconteceu em Mainz (826) por iniciativa do imperador Luís, o Piedoso. As conversões em território franco continuaram nas décadas seguintes, como o batismo de Weland (862) por Carlos, o Calvo, além daqueles de Godfrid (882) e Hundeus (897), ambos por Carlos, o Simples. É claro que nem todas as conversões tiveram êxito, como foi o caso do chefe viking Rodulf, que, mesmo já sendo batizado, terminou “sua vida de cão com uma morte apropriada” em 873, pelo menos é o que afirma uma fonte carolíngia. De acordo com Stéphane Coviaux, a partir da segunda metade do século IX, os governantes francos praticaram esses batismos, em primeiro lugar, para conter as invasões vikings e proteger o reino – o sentido “missionário” era secundário.” (Vikings na França – Guilherme Queiroz de Souza)

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