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terça-feira, 22 de março de 2022

Mary Poppins, de P.L. Travers

Editora: Zahar

ISBN: 978-85-3781-682-0

Tradução, apresentação e notas: Joca Reiners Terron

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 192

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Sinopse: Carregando uma maleta e um guarda-chuva, Mary Poppins entra em cena voando. Literalmente. Gravada no imaginário das crianças de várias gerações, essa chegada fabulosa da peculiar babá da família Banks abre as portas para muitas outras surpresas e aventuras, como a história da Vaca Dançante, o aniversário no zoológico, um chá da tarde nos ares, delicados remendos no céu noturno... Mary Poppins é durona e misteriosa – e absolutamente irresistível.

 


  

“– Mas será que vocês não sabem – Mary Poppins disse passivamente – que cada um de nós tem a sua própria Terra das Fadas?”

 

 

O cômodo estava muito silencioso.

John, cochilando sob um raio de Sol, enfiou os dedos do pé direito na boca, colocando-os bem no lugar em que seus dentes começavam a nascer.

– Por que se preocupar em fazer isso? – disse Barbara com uma voz suave e cheia de espanto, que sempre parecia repleta de felicidade. – Não tem ninguém para ver.

– Sei disso – disse John, tocando uma melodia com os dedos que estavam dentro da boca. – Mas gosto de praticar. Quando eu faço isso os adultos se divertem tanto! Percebeu que a tia Flossie quase enlouqueceu de felicidade quando eu fiz isso ontem à noite? “O mais querido, o mais espertinho, o mais maravilhoso!”, você não ouviu ela falando todas essas coisas? – E John afastou o pé e gargalhou de alegria ao se lembrar de tia Flossie.

– Ela também gostou do meu truque – disse Barbara, com complacência. – Eu descalcei minhas duas meias e ela disse que eu era tão doce que me comeria. Mas não achei engraçado… Quando eu digo que gostaria de comer alguma coisa eu falo a sério. Os biscoitos, os bolinhos, os puxadores das camas, e por aí vai. Mas parece que os adultos nunca falam a sério. Quer dizer, não é possível que ela tenha sentido vontade de me comer de verdade, não é?

– Não. É só o jeito idiota que eles têm de falar – disse John. – Não acredito que algum dia eu vá entender os adultos. Eles parecem todos tão tapados. Até mesmo a Jane e o Michael parecem meio tapados de vez em quando.

– Arrã – concordou Barbara, pensativa, tirando as meias.

– Por exemplo – prosseguiu John –, eles não entendem uma só coisa que a gente diz. Pior que isso, porém, é que não entendem o que as outras coisas dizem. Na segunda-feira passada ouvi a Jane comentar que gostaria de saber que língua o Vento fala.

– Eu sei – disse Barbara. – É espantoso. E Michael sempre insiste, você já o ouviu?, que o Estorninho diz “Piu-piu-piu-uu”! Parece que ele não sabe que não é nada disso, e que o Estorninho fala a mesma língua que a gente. É claro que não dá para esperar que o Papai e a Mamãe saibam disso; eles não sabem de nada, apesar de serem tão queridos. Mas não dá para imaginar que Jane e Michael não…

– Um dia eles souberam – disse Mary Poppins, dobrando uma das camisolas de Jane.

– Quê? – perguntaram juntos John e Barbara, com a voz cheia de surpresa. – Verdade? Quer dizer que eles entendiam o Estorninho e o Vento e…

– E o que as árvores diziam, e a língua do raio do Sol e das estrelas – disse Mary Poppins. – É claro que um dia eles souberam! Um dia.

– Mas… – disse John franzindo a testa e tentando entender. – Como foi que esqueceram tudo?

– Arrá! – disse o Estorninho, surgindo de trás dos restos do biscoito. – Vocês não gostariam de saber?

– Porque eles cresceram – explicou Mary Poppins. – Barbara, calce suas meias, por favor.

– Esse é um motivo meio bobo – disse John, olhando sério para ela.

– Mas é o verdadeiro – disse Mary Poppins, puxando as meias de Barbara com força para cima de seus tornozelos.

– Ora, Jane e Michael é que são tolos – prosseguiu John. – Só sei que eu não vou esquecer depois que eu crescer.

– Nem eu – disse Barbara, chupando o dedão, toda satisfeita.

– Sim, vocês vão – disse Mary Poppins com firmeza.

Os Gêmeos se sentaram e olharam para ela.

– Ih! – disse o Estorninho, com desdém. – Olhe para eles! Pensam que são as Maravilhas do Mundo.27 Não creio, pequenos milagres. É claro que vocês vão esquecer. Igualzinho a Jane e Michael.

Não vamos – disseram os Gêmeos, olhando para o Estorninho como se fossem matá-lo.

O Estorninho continuou a zombaria.

– Estou dizendo que vão – insistiu. – Não é culpa de vocês, é claro – acrescentou gentilmente. – Vão esquecer porque nada podem fazer. Nunca existiu ser humano que se lembrasse de algo após fazer um ano. Exceto, claro, ela – e virou a cabeça por cima do ombro em direção a Mary Poppins.

– Mas por que ela se lembra e nós não? – disse John.

– Arrá! Ela é diferente. Ela é a Grande Exceção. Não dá para se comparar com ela – disse o Estorninho, sorrindo para a dupla.

John e Barbara permaneceram em silêncio.

O Estorninho prosseguiu com a explicação.

– Ela é uma coisinha especial, sabem? Não na aparência, claro. Uma de minhas paqueras dos bons tempos era mais linda do que Mary P. jamais foi…

– Olha aqui, seu impertinente! – zangou-se Mary Poppins, abanando o avental na direção dele. Mas o Estorninho decolou, voando até o parapeito da janela, de onde assobiou com malícia, já fora de alcance.

– Pensou que ia me pegar, não é? – zombou, sacudindo as penas de suas asas para ela.

Mary Poppins bufou.

O raio de Sol se moveu através do quarto, deixando como rastro um longo feixe dourado. Do lado de fora, uma brisa surgiu e sussurrou gentilmente às cerejeiras da rua.

– Escutem, escutem, o Vento está falando – disse John, inclinando a cabeça para o lado. – Está falando sério que não vamos conseguir ouvir isso quando ficarmos mais velhos, Mary Poppins?

– Vocês vão ouvir, mas não vão entender. – Barbara começou a chorar baixinho. Também havia lágrimas nos olhos de John. – Bem, não posso ajudá-los nisso. As coisas são assim – falou Mary Poppins, tocada.

– Olhe para eles, olhe só para eles! – zombou o Estorninho. – Parece que vão desmilinguir de tanto chorar. Acho que um Estorninho que ainda está dentro do ovo tem mais bom senso. Olhe só para eles!

A essa altura, John e Barbara já choravam desbragadamente em seus berços – longos soluços da mais profunda infelicidade.

A porta se abriu de repente e a sra. Banks entrou.

 


– Olhe para eles, olhe só para eles! – zombou o Estorninho.

– Pensei ter ouvido os bebês – e correu até os Gêmeos. – Que foi, meus queridos? Oh, meus tesouros, meus docinhos, meus passarinhos amados, o que foi? Por que eles estão chorando, Mary Poppins? Passaram a tarde toda tão quietinhos, não ouvi nem um pio vindo deles. Qual será o problema?

– Sim, madame. Não, madame. Acho que podem ser os dentes nascendo, madame – disse Mary Poppins, evitando deliberadamente olhar na direção do Estorninho.

– Oh, claro – disse a sra. Banks, com vivacidade. – Deve ser isso.

– Não quero dentes se eles me fizerem esquecer as coisas de que eu mais gosto – lamentou John, debatendo-se em seu berço.

– Eu também não quero – choramingou Barbara, enfiando a cara no travesseiro.

– Meus pobrezinhos, meus bichinhos… Vai ficar tudo bem quando esses dentes teimosos chegarem – disse a sra. Banks, tentando tranquilizá-los e indo de um berço ao outro.

– Você não entende! – rugiu John, com fúria. – Eu não quero dentes!

– Não vai ficar tudo certo – Barbara se lamuriou abraçando o travesseiro. – Vai ficar tudo errado!

– Shh. Shh. Tudo bem. Tudo bem. A Mamãe sabe. A Mamãe entende. Vai ficar tudo bem quando os dentes nascerem – cantarolou a sra. Banks, com ternura.

Um ruído fraco veio da janela. Era o Estorninho engolindo uma risada. Mary Poppins lhe lançou um olhar daqueles. Isso o acalmou, e ele continuou a observar a cena sem deixar transparecer nenhum vestígio de sorriso.

A sra. Banks dava palmadinhas gentis nas crianças, primeiro em uma depois na outra, murmurando palavras tranquilizadoras. De repente, John parou de chorar. Ele tinha muito bons modos, gostava de sua Mãe e lembrou o que de fato competia a ela. Não era culpa dela, pobre mulher, se sempre dizia a coisa errada. Era apenas, ele refletiu, porque ela não compreendia. Assim, para lhe mostrar como a perdoava, virou-se e com muito pesar, engolindo as lágrimas, alcançou seu pé direito com as duas mãos e enfiou os dedos na boca.

– Espertinho, oh, espertinho – disse a Mãe, com admiração. Ele fez novamente e ela ficou muito satisfeita.

Então Barbara, para não ficar atrás em cortesia, rolou para longe do travesseiro e, com lágrimas ainda úmidas no rosto, sentou-se e arrancou suas meias.

– Que garota maravilhosa – disse a sra. Banks com orgulho, e a beijou.

– Viu só?, Mary Poppins, eles estão bem novamente. Eu sempre consigo tranquilizá-los. Muito bom. Muito bom – disse a sra. Banks, enquanto cantava uma canção de ninar. – E logo os dentes vão nascer.

– Sim, madame – disse Mary Poppins baixinho. Sorrindo para os Gêmeos, a sra. Banks saiu e fechou a porta.

No exato instante em que ela desapareceu, o Estorninho explodiu em gargalhadas, em alto e bom som.

– Desculpe pelas risadas! – ele gritou. – Mas eu não consigo segurar. Que papelão! Que papelão!

John nem lhe deu pelota. Empurrou a cara contra as barras do berço e berrou suave e ferozmente para Barbara:

– Eu não vou ser como os outros. Estou dizendo que não vou. Eles – e sacudiu a cabeça para o Estorninho e para Mary Poppins – podem dizer o que bem entenderem. Nunca vou esquecer, nunca!

Mary Poppins sorriu para si mesma um sorriso secreto do tipo eu-sei-mais-que-você.

– Nem eu – respondeu Barbara. – Nunquinha.

– Abençoada seja minha cauda de penas – guinchou o Estorninho, colocando as asas na cintura e rugindo com alegria. – Escute só esses aí! Como se pudessem não esquecer. Em um mês ou dois, três no máximo, eles nem vão se lembrar do meu nome. Cucos tolinhos! Tolos cucos mal crescidos e sem penas. Hahaha! – e com outra risada barulhenta bateu as asas e voou para fora do quarto.”

27. A famosa lista das Sete Maravilhas do Mundo, elaborada no séc.II a.C., inclui os Jardins Suspensos da Babilônia; o templo de Ártemis, em Éfeso; a estátua de Zeus em Olímpia; o mausoléu de Halicarnasso; o Colosso de Rodes; o farol de Alexandria; e a Grande Pirâmide de Gizé, no Egito, a única ainda existente da lista.

 

 

Além disso – prosseguiu a Cobra-Real, chicoteando sua terrível linguinha bífida para fora e para dentro enquanto falava –, pode ser que comer e ser comido sejam a mesma coisa, afinal. Minha sabedoria me diz que é muito provável que sim. Somos todos feitos da mesma matéria, lembre-se, nós da Selva, vocês da Cidade. A mesma substância nos compõe, a árvore logo acima, a pedra debaixo de nós, a feiura, a beleza. Somos um só, todos rumando para o mesmo final. Lembre-se disso, mesmo quando você não se lembrar mais de mim, minha criança.”

 

 

“O ônibus parou em frente à Maior Loja do Mundo, onde eles iam entrar para as compras de Natal.

– Podemos primeiro ver a vitrine? – perguntou Michael, pulando numa perna só, de tanta animação.

– Vamos, vamos, sim – disse Mary Poppins, com uma brandura surpreendente. Jane e Michael não ficaram tão surpresos assim, pois sabiam que a coisa que Mary Poppins mais adorava era olhar as vitrines das lojas. Também sabiam que, enquanto eles viam brinquedos e livros e ramos de azevinho e tortas de ameixa, Mary Poppins não via nada além do reflexo de si mesma.”

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