Lista de Livros no YouTube

Lista Completa

sábado, 12 de fevereiro de 2022

A Cidade Antiga (Parte I), de Fustel de Coulanges

Editora: Editora das Américas

ISBN: 978-85-7232-780-0

Tradução: Frederico Ozanam Pessoa de Barros

Opinião: ★☆☆☆☆

Análise em vídeo: Clique aqui

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 454

Sinopse: A Cidade Antiga – La Cité Antique – é um livro surpreendente: apesar de se tratar de obra composta no século XIX, acerca de instituições de povos antigos, transmite uma visão globalizante da fundamentação, elaboração e evolução da história futura desses mesmos povos, assim como de tantos outros por eles influenciados. Tanto Roma quanto a Grécia aparecem como cenários da formação do sistema de classes que herdamos, da transição do politeísmo para a civilização moderna de origem greco-latina e no entanto vinculada ao monoteísmo de origem oriental – a civilização judaico-cristã; a compreensão do direito moderno, a partir das conquistas progressivas do "homem antigo", é realizada com rara transparência. O panorama de fundo desta obra permite incontáveis análises sobre a modernidade, na medida em que refletimos sobre seu conteúdo sociológico e político, através da linguagem clara, precisa e de leitura agradável, características do autor.



“Grécia e Roma apresentam-se-nos com um caráter absolutamente inimitável. Nada do que é moderno lhes é semelhante. E no futuro nada poderá ser-lhes semelhante.”

 

 

“Felizmente, o passado nunca morre por completo para o homem. O homem pode esquecê-lo, mas continua sempre a guardá-lo em seu íntimo, pois o seu estado em determinada época é produto e resumo de todas as épocas anteriores. Se ele descer à sua alma, poderá encontrar e distinguir nela as diferentes épocas pelo que cada uma deixou gravada em si mesmo.

 

 

“Quanto mais nos aprofundamos na história da raça indo-europeia, na qual se ramificaram os povos gregos e itálicos, constatamos que essa raça sempre pensou que depois desta vida breve tudo acaba para o homem. As mais antigas gerações, muito antes que aparecessem os filósofos, acreditaram em uma segunda existência depois da atual. Encararam a morte não como dissolução do ser, mas como simples mudança de vida.

Mas em que lugar e de que maneira se desenrolava essa existência? Acreditavam que o espírito imortal, uma vez livre do corpo, ia animar a outro? Não; a crença na metempsicose jamais tomou raízes no espírito das populações greco-romanas; também não é a mais antiga opinião entre os árias do Oriente, pois os hinos dos Vedas contrariam essa crença. Acreditava-se então que o espírito ia para o céu, para a região da luz? Nem isso; o pensamento segundo o qual as almas entravam em uma morada celeste é de época relativamente recente no Ocidente; a morada celeste era considerada apenas recompensa para alguns grandes homens e benfeitores da humanidade. De acordo com as mais antigas crenças dos itálicos e dos gregos, a alma não passava sua segunda existência em um mundo diferente do em que vivemos; continuava junto dos homens, vivendo sobre a terra(1).

Acreditou-se até por muito tempo que durante essa segunda existência a alma continuava unida ao corpo. Nascendo junto a ele, a alma não se separava, mas fechava-se com ele na sepultura.

Por mais antigas que sejam essas crenças, delas nos ficaram testemunhos autênticos. Esses testemunhos são os ritos fúnebres, que sobreviveram a essas crenças primitivas, mas que certamente haviam nascido ao mesmo tempo, servindo para que as compreendamos melhor.

Os ritos fúnebres mostram claramente que quando colocavam um corpo na sepultura acreditavam enterrar algo vivo. Virgílio, que sempre descreve com tanta precisão e escrúpulo as cerimônias religiosas, termina a narração dos funerais de Polidoro com estas palavras: “Encerramos a alma do túmulo.” — Idêntica expressão encontra-se em Ovídio e em Plínio, o Jovem; não que elas correspondessem à ideia que esses escritores tinham da alma; mas, desde tempos imemoriais, essa crença perpetuara-se na linguagem, atestando antigas crenças populares(2).

Era costume, no fim da cerimônia fúnebre, chamar três vezes a alma do morto pelo nome do falecido, desejando-lhe vida feliz sobre a terra. Diziam-lhe três vezes: Passe bem. — E acrescentavam: Que a terra lhe seja leve(3) — tanta era a certeza de que a criatura continuava a viver sobre a terra, conservando a sensação de bem-estar ou de sofrimento. No epitáfio declarava-se que o morto ali repousava, expressão que sobreviveu a essas crenças, e que de século em século chegou até nós. Nós usamos ainda este costume, embora ninguém hoje pense que um ser imortal possa repousar em um túmulo. Mas antigamente acreditava-se tão firmemente que ali vivia um homem, que nunca deixavam de enterrar junto com o corpo objetos que supunham ser-lhe necessários, como vestidos, vasos e armas(4). Derramava-se vinho sobre o túmulo, para matar-lhe a sede; levavam-lhe alimentos, para saciar-lhe a fome(5). — Degolavam-se cavalos e escravos, pensando que essas criaturas, sepultadas juntamente com os mortos, prestar-lhes-iam serviços dentro do túmulo, como o haviam feito durante a vida(6). Depois da tomada de Tróia os gregos retornam a seu país; cada um deles leva uma bela escrava, mas Aquiles, que está morto, também exige uma escrava, e lhe entregam Polixena(7).

Um verso de Píndaro guardou-nos curioso vestígio desse pensamento das gerações antigas. Frixos havia sido constrangido a deixar a Grécia, fugindo até a Cólquida, onde morreu. Mas, embora morto, desejava retornar à Grécia. Apareceu, portanto, a Pélias, e lhe ordenou que fosse à Cólquida para de lá trazer sua alma. Sem dúvida essa alma sentia a nostalgia do solo pátrio, do túmulo da família; mas, unida aos restos corporais, não podia deixar sozinha a Cólquida(8).

Dessa crença primitiva derivou-se a necessidade do sepultamento. Para que a alma se mantivesse nessa morada subterrânea, necessária para sua segunda vida, era preciso que o corpo, ao qual permanecia ligada, fosse coberto de terra. A alma que não possuía sepultura não possuía morada, e ficava errante. Em vão aspirava ao repouso, que deveria desejar depois das agitações e trabalhos desta vida; e era obrigada a errar sempre, sob a forma de larva ou de fantasma, sem se deter jamais, e sem receber nunca as ofertas e alimentos de que necessitava. Como era infeliz, logo se tornava perversa. Atormentava os vivos, provocava-lhes doenças, destruía colheitas, assustava-os com aparições lúgubres, a fim de fazer com que dessem sepultura a seu corpo e a si mesma. Daí se originou a crença nas almas do outro mundo(9). Toda a antiguidade estava persuadida de que, sem sepultura, a alma era miserável, e que pela sepultura tornava-se feliz. Não era por ostentação de dor que se oficiavam as pompas fúnebres, mas para repouso e felicidade da alma do morto(10).

Notemos bem que não bastava confiar o corpo à terra. Era necessário ainda obedecer a ritos tradicionais, e pronunciar determinadas fórmulas. Em Plauto encontra-se a história de uma alma penada(11), forçada a andar errante, porque seu corpo fora lançado à terra sem o devido ritual. Suetônio conta que o corpo de Calígula, enterrado antes de se completar a cerimônia fúnebre, fez com que sua alma se tornasse errante, aparecendo a diversas pessoas, até o dia em que o desenterraram, sepultando-o novamente de acordo com as regras(12). Esses dois exemplos demonstram claramente o efeito que se atribuía aos ritos e fórmulas da cerimônia fúnebre. Já que sem eles as almas tornavam-se errantes e apareciam aos vivos, era evidente que tais ritos fixavam-nas e encerravam-nas dentro dos túmulos. E assim como havia algumas fórmulas que possuíam essa virtude, os antigos possuíam outras que produziam efeitos contrários, capazes de evocar as almas, fazendo-as sair momentaneamente de seus sepulcros.

Vê-se claramente, pelos escritores antigos, como o homem era atormentado pelo medo de que, depois de sua morte, não fossem observados os devidos ritos. Essa era uma fonte de inquietudes pungentes(13). Temia-se menos a morte que a privação da sepultura, pois desta última dependia o repouso e felicidade eterna. Não nos devemos mostrar muito surpresos ao ver os atenienses matar os generais que, depois de uma vitória naval, haviam negligenciado a sepultura dos mortos. Esses generais, discípulos dos filósofos, talvez distinguissem a alma do corpo, e como não acreditavam que a sorte da alma estivesse ligada à do corpo, julgaram de pouca importância que um cadáver se decompusesse na água ou na terra. Por isso não desafiaram a tempestade pela vã formalidade de recolher e sepultar seus mortos. Mas a plebe, que, mesmo em Atenas, mantinha-se fiel às antigas crenças, acusou seus generais de impiedade, e condenou-os à morte. Por sua vitória haviam salvado Atenas, mas por sua negligência haviam perdido milhares de almas. Os parentes dos mortos, pensando nos longos suplícios a que estavam condenadas aquelas almas, apresentaram-se ao tribunal vestidos de luto, e pediram vingança(14).

Nas cidades antigas a lei punia os grandes criminosos com um castigo considerado terrível, a privação da sepultura(15). Punia-se desse modo a própria alma, condenando-a a suplício quase eterno.

É necessário observar que entre os antigos estabeleceu-se ainda uma outra opinião a respeito da morada dos mortos. Imaginaram uma região, também subterrânea, mas infinitamente mais espaçosa que o túmulo, onde todas as almas, longe dos corpos, viviam reunidas, penando ou gozando, de acordo com a conduta do homem durante a vida. Mas os ritos fúnebres, como os descrevemos acima, estão manifestamente em desacordo com essas crenças, prova certa de que na época em que foram estabelecidos, não se acreditava ainda na existência do Tártaro ou dos Campos Elísios. A primeira opinião dessas gerações antigas foi que a criatura humana vivia na sepultura, que a alma não se separava do corpo, e que permanecia unida à parte do solo onde os ossos estavam enterrados. Por sua vez, o homem não tinha que prestar nenhuma conta de sua vida anterior. Uma vez sepultado, não esperava nem recompensas, nem suplícios. Opinião certamente primitiva, mas que é a infância da noção sobre a vida futura.

A criatura que vivia debaixo da terra não estava tão livre de sua condição humana para não ter necessidade de alimentos. Assim, em determinados dias do ano, levava-se uma refeição a cada túmulo(16).

Ovídio e Virgílio deixaram-nos a descrição dessa cerimônia, cujo uso conservara-se intacto até seu tempo, embora as crenças já se houvessem transformado. Segundo nos narram, afeitavam-se os túmulos com grandes grinaldas de folhas e flores, ofereciam-se doces, frutas, sal, fazendo sobre a terra libações de leite e vinho, ou mesmo regando-a com o sangue de alguma vítima(17).

Enganar-se-ia muito quem pensasse que essa refeição fúnebre não era senão uma espécie de comemoração. Os alimentos que a família levava eram realmente para o morto, exclusivamente para ele. E isso concluímos pelo seguinte: o leite e o vinho eram derramados sobre a terra do túmulo; um buraco era cavado, a fim de que os alimentos sólidos chegassem até o defunto; se lhe imolavam uma vítima, todas as carnes eram queimadas, para que nenhuma pessoa viva delas participasse; pronunciavam-se certas fórmulas consagradas, para convidar o morto a comer e a beber; se a família inteira assistia à refeição, ninguém tocava nos alimentos; e, por fim, ao se retirarem, os familiares tinham grande cuidado em deixar um pouco de leite e alguns doces em vasos; considerava-se grande impiedade o fato de alguém tocar nessa pequena provisão, destinada às necessidades do morto.

Essas velhas crenças persistiram por muito tempo, e sua expressão ainda se encontra entre os grandes escritores da Grécia: “Derramo sobre a terra do túmulo — diz Ifigênia em Eurípides — leite, mel e vinho, pois só assim podemos contentar os mortos(18).” — “Filho de Peleu — diz Neoptólemo — recebe esta bebida tão grata aos mortos; vem, e bebe este sangue(19).” — Electra faz libações e diz: “A bebida penetrou na terra; meu pai a recebeu(20).” — Eis a prece de Orestes a seu pai defunto: “Ó meu pai, se eu viver, receberás ricos banquetes; mas, se eu morrer, não terás parte nas mesas fumegantes onde os mortos se alimentam(21).” — As sátiras de Luciano atestam que esses costumes subsistiam ainda em seu tempo: “Os homens imaginam que as almas vêm lá debaixo para saborear os manjares que lhes oferecem, que se regalam com o cheiro das iguarias, e que bebem o vinho derramado sobre seus túmulos(22).” — Entre os gregos, diante de cada túmulo havia um local destinado à imolação da vítima e ao cozimento das carnes(23). Os túmulos romanos tinham igualmente sua culina, espécie de cozinha especial, unicamente para uso do morto(24). Plutarco conta que depois da batalha de Plateia, como os guerreiros mortos haviam sido enterrados no lugar do combate, os plateanos se comprometeram a oferecer-lhes cada ano o banquete fúnebre. Em consequência, no aniversário da batalha, dirigiam-se em grande procissão, conduzidos pelos primeiros magistrados, à colina sob a qual repousavam os mortos. Ofereciam-lhes leite, óleo, perfumes e imolavam-lhes uma vítima. Quando os alimentos estavam colocados sobre os túmulos, os plateanos pronunciavam uma fórmula mediante a qual chamavam os mortos, convidando-os a que tomassem suas refeições. Esta cerimônia ainda era observada nos tempos de Plutarco que presenciou o sexto centenário dessa comemoração(25). Luciano nos conta qual a opinião que deu origem a todos esses costumes: “Os mortos — escreve ele — alimentam-se dos manjares que colocamos sobre seus túmulos, e bebem o vinho que neles derramamos; desse modo, o morto que nada recebe, é condenado à fome perpétua(26).”

(1) Sub terra censebant reliquam vitam agi mortuorum. Cícero, Tusc., I, 16. Essa crença era tão forte, acrescenta Cícero, que mesmo quando se estabeleceu o costume de queimar os corpos, continuou-se a acreditar que os mortos viviam debaixo da terra. — Cf. Eurípides, Alceste, 163; Hécuba, passim.

(2) Virgílio, Eneida, III, 67; Ovídio, Fast, V, 451; Plínio, Ep.. VII, 27. — A descrição de Virgílio refere-se ao uso dos cenotáfios; admitia-se que quando não se podia encontrar o corpo de um parente, se realizasse uma cerimônia que reproduzisse exatamente todos os ritos da sepultura, acreditando-se com isso encerrar a alma do morto no túmulo, mesmo na falta do corpo. Eurípides, Helena, 1061, 1240. Escoliastes ad Píndar., IV, 234. Virgílio, VI, 505; XII, 214.

(3) Ilíada, XXIII, 221. Eurípides, Alceste, 479. Pausânias, II, 7, 2. Catulo, C. 10. Sérvio, ad Aeneid., II, 640; III, 68; XI, 97. Ovídio, Fast., IV, 852; Metam., X, 62. Juvenal, VII, 207. Marcial, I, 89; V, 35; IX, 30.

(4) Eurípides, Alceste, 637, 638; Orestes, 1416-1418. Virgílio, En., VI, 221; XI. 191-196. O antigo costume de oferecer dádivas aos mortos é atestado, quanto a Atenas, por Tucídides, II, 34. A lei de Sólon proibia enterrar mais de três vestidos com o morto (Plutarco, Sólon, 21). Luciano fala ainda deste costume: “Quantos vestidos e adornos não são enterrados com os mortos, como se eles fossem usá-los debaixo da terra!” — Ainda nos funerais de César, em época de grande superstição, observou-se o antigo costume, levando-se à fogueira os munera, roupas, armas, joias (Suetônio, César, 34); Cf. Tácito, Ann., III, 3.

(5) Eurípides, Ifigênia em Táurida, 163. Virgílio, En., V, 76-80; VI, 225.

(6) Ilíada, XXI, 27-28; XXIII, 165-176. Virgílio, En., X, 519-20; XI, 80-84; 197. — Idêntico costume existia na Gália, César. B. G., V, 17.

(7) Eurípides, Hécuba, 40-41; 107-113; 637-638.

(8) Píndaro, Pitiq., IV, 284, ed. Heyne; ver o Escoliastes.

(9) Cícero, Tusculunas, I, 16. Eurípides. Tróia, 1085. Heródoto, V, 92. Virgílio, VI, 371, 379. Horácio, Odes, I, 23. Ovídio, Fast., V, 483. Plínio, Epist. VII, 27. Suetônio, Calíg., 59. Sérvio, ad. Aen., III, 63.

(10) Ilíada, XXII, 358; Odisseia, XI. 73.

(11) Plauto, Mostellaria, III, 2.

(12) Suetônio, Calígula, 59.

(13) Vide, na Ilíada, XXII, 338-344, Heitor pedindo ao vencedor que não o deixe insepulto: “Rogo-te por teus joelhos, por tua vida, por teus pais, não dês meu corpo aos cães junto aos navios dos gregos; aceita o ouro que meu pai te há de oferecer em abundância, e manda-lhe meu corpo, a fim de que troianos e troianas me prestem as honras devidas na fogueira.” — No mesmo sentido, em Sófocles, Antígone enfrenta a morte “para que seu irmão não fique insepulto” (Sóf., Antígone, 467). — O mesmo sentimento é expresso por Virgílio, IX, 213; Horácio, Odes, 1, 18, v. 24-36; Ovídio, Heróides, X, 119-123; Tristes, III, 3, 45. — Igualmente, nas maldições, o que se podia desejar de mais horrível para um inimigo era morrer e ficar insepulto (Virgílio, Eneida, IV, 620).

(14) Xenofonte, Helênicas, I, 7.

(15) Ésquilo, Os sete contra Tebas, 1013. Sófocles, Antígone, 198. Eurípides, Fen., 1627-1632. — Cf. Lísias, Epitáf., 7-9. Todas as cidades antigas acrescentavam ao suplício dos grandes criminosos a privação da sepultura.

(16) Isso em latim chama-se inferias ferre, parentare, ferre solemnia. — Cícero, De legibus, II, 21. Lucrécio, III, 52. Virgílio, Eneida, VI, 380; IX, 214. Ovid., Amor., I, 13, 3. — Essas dádivas, às quais os mortos tinham direito, chamavam-se Manium jura. — Cf. Cícero, De legib., II, 21. Cícero aludia a isso em Pro Flacco, 38, e na primeira Filípica, 6. — Esses costumes eram ainda observados nos tempos de Tácito (Hist., II, 95); Tertuliano ataca-os como se estivessem ainda em pleno vigor em seu tempo (De ressurr. carnis, I; De testim. animae, 4),

(17) Virgílio. En.. III, 301-303; V. 77-81. Ovídio, Fast., II, 535-542.

(18) Eurípídes, Ifigênia em Táurida, 157-163.

(19) Eurípides, Hécuba, 536; Electra, 505 e seguintes.

(20) Ésquilo, Coéforas, 162.

(21) Ésquilo, Coéforas, 432-484. — Nos Persas, Ésquilo atribui a Atossa as ideias dos gregos: “Trago a meu esposo estes manjares, para satisfação dos mortos: leite, mel dourado e o fruto da vinha; chamemos a alma de Dario, e derramemos estas bebidas, que a terra há de tragar, e que penetrarão até os deuses lá debaixo.” (Persas, 610- 620). — Quando as vítimas eram oferecidas às divindades do céu, a carne era comida pelos ofertantes; mas quando eram oferecidas aos mortos, a carne era queimada por completo (Pausânias, II, 10).

(22) Luciano, Caron, 22. Ovídio, Fastos, II, 566.

(23) Luciano, Caron, 22: “Cavam valas junto aos túmulos e ali cozinham alimentos para os mortos.”

(24) Festo, v. Culina.

(25) Plutarco, Aristides, 21.

(26) Luciano, De luctu,9.

 

 

“Essa religião dos mortos parecia ser a mais antiga existente entre os homens. Antes de conceber ou adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os mortos; teve medo deles, dirigiu-lhes preces. Parece que é essa a origem do sentimento religioso. Foi, talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a ideia do sobrenatural, e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão dos olhos. A morte foi o primeiro mistério; ela colocou o homem no caminho de outros mistérios. Elevou seu pensamento do visível para o invisível, do passageiro para o eterno, do humano para o divino.”

 

 

“Na verdade, hoje em dia muito dificilmente poderemos compreender que o homem possa adorar ao pai ou a um antepassado. Fazer do homem um deus, parece-nos contrário à religião. É-nos quase tão difícil compreender as antigas crenças desses homens, como teria sido a eles imaginar as nossas. Mas reflitamos que os antigos não tinham ideia da criação; para eles o mistério da geração era o que para nós pode ser o mistério da criação. O que gerava parecia-lhes uma criatura divina, e por isso adoravam os antepassados. Era necessário que esse sentimento fosse muito natural e poderoso, porque aparecia como princípio de uma religião na origem de quase todas as sociedades humanas; encontramo-lo entre os chineses, como entre os antigos getas e citas; entre os povos da África, como entre os do Novo Mundo(11).

O fogo sagrado, que tão intimamente estava ligado ao culto dos mortos, tinha também, como caráter essencial, pertencer apenas a uma família, representava os antepassados(12); era a providência da família; não tinha nada em comum com o fogo da família vizinha, que era outra providência. Cada lar protegia apenas os seus.

Toda essa religião limitava-se ao círculo de uma casa. O culto não era público. Pelo contrário, todas as cerimônias, eram celebradas apenas pelos familiares(13). O fogo sagrado nunca era colocado fora da casa, nem mesmo perto da porta externa, onde um estranho poderia vê-lo. Os gregos colocavam-no sempre em um recinto fechado(14), para protegê-lo do contacto e olhar dos profanos. Os romanos escondiam-no no meio da casa. Todos esses deuses, fogo sagrado, lares, manes, eram chamados de deuses escondidos, ou deuses do interior(15). Para todos os atos dessa religião exigia-se segredo — sacrifícia occulta — diz Cícero(16); se uma cerimônia fosse assistida por um estranho, era considerada perturbada, manchada por um único olhar.

Para essa religião doméstica não havia nem regras uniformes, nem ritual comum. Cada família tinha a mais completa independência. Nenhum poder exterior tinha direito de dar regras para esse culto ou crença. Não havia outro sacerdote além do pai; como sacerdote, ele não conhecia nenhuma hierarquia. O pontífice de Roma, ou o arconte de Atenas, podia certificar-se de que o pai de família cumprisse todos esses ritos religiosos, mas não tinha o direito de obrigá-lo a nenhuma modificação. Suo quisque ritu sacrificium faciat(17) — era a regra absoluta. Cada família tinha suas cerimônias, que lhe eram próprias, suas festas particulares, suas fórmulas de oração e seus hinos(18). O pai, único intérprete e pontífice dessa religião, era o único que tinha o poder de ensiná-la, e não o podia fazer senão a seu filho. Os ritos, as palavras da oração, os cantos, que faziam parte essencial dessa religião doméstica, eram patrimônio ou propriedade sagrada, que a família não participava a ninguém, e que era até proibido revelar a estranhos. Assim era na Índia: “Sou forte contra meus inimigos — diz o brâmane — com os cantos que pertencem à minha família, e que meu pai me ensinou(19).”

Assim, a religião não residia nos templos, mas nas casas; cada um tinha seus deuses; cada deus protegia apenas a uma família, e era deus apenas de uma casa. Não se pode supor razoavelmente que uma religião com tais características fosse revelada aos homens pela imaginação poderosa de alguém, ou que fosse ensinada por uma casta de sacerdotes. Ela nasceu espontaneamente no espírito humano; seu berço foi a família; cada família fez seus próprios deuses.”

(11) Entre os etruscos e os romanos havia o costume de cada família religiosa guardar imagens dos antepassados agrupadas em torno do átrio. Seriam essas imagens simples retratos de família, ou ídolos?

(12) Do mesmo modo, nos Vedas, Agni é ainda invocado como deus doméstico.

(13) Iseu, De Cironis haereditate, 15-18.

(14) Esse recinto chamava-se hérkos.

(15) Cícero, De nat. Deor., II, 27. Sérvio, in Aen., III, 12.

(16) Cícero, De arusp. resp., 17.

(17) Varrão, De ling. lat., VII, 88.

(18) Hesíodo, Opera, 701. Macróbio, Sat., I, 16. Cíc., De legib., II, 11.

(19) Rig-Veda, tr. Langlois, t. I, p. 113. As leis de Manu mencionam frequentemente os ritos particulares de cada família: VIII, 3; IX, 7.

 

 

“É necessário notar que essa religião do lar e dos antepassados, que se transmitia de varão para varão, não pertencia, contudo, exclusivamente ao homem; a mulher tomava parte no culto. Como filha, assistia aos atos religiosos do pai; como casada, aos do marido.

Somente por isso se pode avaliar o caráter essencial da união conjugal entre os antigos. Duas famílias vivem uma ao lado da outra, mas possuem deuses diversos. Em uma delas, a jovem participa, desde a infância, da religião do pai, invoca seu lar, oferece-lhe todos os dias libações, enfeita-o com flores e grinaldas nos dias festivos, pede-lhe proteção, agradece-lhe benefícios. Esse fogo paterno é o seu deus. Se um jovem de outra família a pede em casamento, para ela isso significa muito mais do que passar de uma casa para outra. Trata-se de abandonar o lar paterno, para invocar daí por diante os deuses do esposo. Trata-se de mudar de religião, de praticar outros ritos, de pronunciar outras orações. Trata-se de deixar o deus de sua infância, para colocar-se sob o império de um deus desconhecido. E ela não espera permanecer fiel a um, honrando a outro, porque um dos princípios imutáveis dessa religião é que uma pessoa não pode invocar dois lares, nem duas séries de antepassados. “A partir do casamento, diz um antigo, a mulher não tem nada mais em comum com a religião doméstica dos pais: ela passa a sacrificar aos manes do marido(1).”

O casamento, portanto, é ato sério para a jovem, e não o é menos para o esposo, porque a religião exige que se nasça junto ao fogo sagrado para ter-se o direito de oferecer-lhe sacrifícios. E, no entanto, o rapaz vai introduzir em seu lar uma estranha; em sua companhia, oficiará as cerimônias misteriosas do culto, revelando-lhe ritos e fórmulas, que constituem patrimônio de família. Não há nada mais precioso que essa herança; os deuses, ritos e hinos, que recebeu dos pais, é quem o protege na vida, e lhe promete riqueza, felicidade, virtude. No entanto, em vez de guardar para si esse poder tutelar, como o selvagem guarda um ídolo ou amuleto, vai admitir uma mulher para participante dos mesmos.

Desse modo, quando penetramos o pensamento dos antigos, vemos a importância que tem para eles a união conjugal, e quanto lhe é imprescindível a intervenção da religião. Não seria, portanto, necessário, para que a jovem fosse iniciada no culto que iria seguir, uma cerimônia sagrada de iniciação? Para tornar-se sacerdotisa de um novo fogo, não haveria uma espécie de ordenação ou de adoção?

O casamento era a cerimônia sagrada que deveria produzir esses grandes efeitos. Os escritores latinos e gregos têm o hábito de designar o casamento por palavras que indicam ato religioso(2). Pólux, que viveu no tempo dos Antoninos, mas que podia manusear toda uma antiga literatura que não possuímos mais, diz que nos tempos remotos, em lugar de designar o casamento por seu nome particular (gámos), designavam-no simplesmente pela palavra télos, que significa cerimônia sagrada(3), como se o casamento fosse, nesses tempos antigos, a cerimônia sagrada por excelência.”

(1) Dicearca, citado por Estêvão de Bizâncio.

(2) Tyein ghámon, sacrum nuptiale.

(3) Pólux, III, 3, 38.

Nenhum comentário:

Postar um comentário