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sexta-feira, 7 de maio de 2021

Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx (Parte I), de Roman Rosdolsky

Editora: EDUERJ / Contraponto

ISBN: 978-85-85910-42-6

Tradução: César Benjamin

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 624

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Sinopse: Chega à língua portuguesa a mais importante obra sobre o pensamento econômico de Karl Marx. Ela nasceu de forma quase fortuita. Em 1948, exilado nos Estados Unidos, Roman Rosdolsky encontrou em uma biblioteca um raríssimo exemplar dos Grundrisse, de Marx. O texto havia sido editado pela primeira vez em 1939, em Moscou, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, e apenas três ou quatro exemplares dele haviam chegado ao Ocidente. Nunca fora estudado profundamente.

Rosdolsky logo percebeu que estava diante de uma obra que poderia revolucionar a compreensão do pensamento de Marx: “Sem a mais ampla assimilação das noções contidas nos Grundrisse”, ele diz, “já não é possível nenhum progresso no terreno da economia marxista.” Ao mesmo tempo, também percebeu que o texto recém-descoberto não atingiria círculos amplos de leitores, por sua complexidade e tamanho: bem mais de mil páginas.

Iniciou então uma extraordinária aventura intelectual: a de penetrar no “laboratório econômico” de Marx para acompanhar passo a passo o processo — que durou pelo menos três décadas — de elaboração de sua crítica da economia política. O próprio Rosdolsky levou vinte anos para refazer o percurso de Marx, seguindo o desenvolvimento de sua teoria econômica desde os primórdios até sua estrutura definitiva. Fecundo trabalho, que trouxe à luz aspectos novos e essenciais do pensamento do mestre.

Escrevendo na segunda metade do século XX e tendo como ponto de partida um texto fundamental, mas praticamente inédito, Rosdolsky demonstra que muitas das dificuldades de interpretação do complexo edifício teórico de Marx têm origem no desconhecimento de seu método, minuciosamente trabalhado na obra até então ignorada.

Ao reconstituir esse método e acompanhar sua aplicação desde os Grundrisse até O Capital, Rosdolsky lança nova luz sobre os principais problemas estudados por Marx e resolve muitas das polêmicas que ainda hoje se travam em torno deles. Passa em revista as interpretações e as críticas contidas nos textos de Tugan-Baranovsky, Hilferding, Lenin, Böhm-Bawerk, Rosa Luxemburgo, Joan Robinson, Paul Sweezy e Oskar Lange, entre outros, e esclarece temas tão controversos como a transformação de valores em preços, os esquemas da reprodução ampliada, a teoria do dinheiro, a redução do trabalho qualificado em trabalho simples, a posição social do proletariado, as crises periódicas, os impactos do desenvolvimento tecnológico e os limites do capitalismo. De sua análise, Marx ressurge como um gigante intelectual, que tantas vezes foi declarado morto e tantas ressuscitou, mais vivo que nunca.



“No tocante à primeira transição, encontramos nos Grundrisse a seguinte passagem: “No mercado de dinheiro [cuja análise deveria concluir o ‘Livro sobre o capital’] o capital aparece em sua totalidade [...]. Não só como produtor de si mesmo [...] mas ao mesmo tempo como criador de valores, o capital deve supor uma forma de riqueza (ou um valor) especificamente distinta do capital. Esta forma é a renda da terra. Este é o único caso em que o capital cria um valor diferente de si mesmo, de sua própria produção. Tanto por sua natureza como por sua história, o capital é o criador da moderna propriedade da terra, da renda da terra; sua ação resulta na dissolução da velha forma de propriedade da terra. A nova forma surge como consequência da ação do capital sobre a velha [...].”100

Portanto, como diz o próprio Marx; “a transição do capital à propriedade da terra” deve ser compreendida de duas maneiras, uma dialética, outra histórica. Feita a digressão anterior, esta segunda maneira não necessita de maiores explicações. No que diz respeito à transição dialética, ela deve ser entendida da seguinte maneira: o capital cria uma forma peculiar de riqueza, o valor baseado no trabalho. Mas também existe o “valor dos agentes naturais” (terras agricultáveis, quedas d’água, minas etc.), que não são produtos do trabalho, mas que “são objeto de apropriação, tendo por isso valor de troca, entrando assim no cálculo dos custos de produção”.101 Só se pode explicar esse valor com a teoria da renda. A moderna renda da terra é uma criação específica do capital, a única criação em que ele faz surgir um “valor diferente de si mesmo, de sua própria produção”. Aparece aqui a resposta à pergunta: “Como podem ter valor mercadorias que não contêm trabalho ou, em outras palavras, de onde surge o valor de troca dos produtos da natureza?”102 Nesse caso, só pode tratar-se, é claro, de um “valor” em sentido metafórico. Ou seja, esse valor não encontra explicação direta e imediata na teoria do valor em si mesma, mas pressupõe “desenvolvimentos mais aprofundados”.103 Além das considerações históricas que apontam nesse sentido, este é mais um motivo pelo qual a moderna propriedade da terra — e a teoria da renda da terra — só deve ser estudada depois de investigarmos a categoria do capital.

Isso diz tudo sobre a relação conceitual e histórica entre a propriedade da terra e o capital. “Cabe perguntar agora”, prossegue Marx, “como se produz a passagem da propriedade da terra ao trabalho assalariado. [...] Historicamente, a transição é indiscutível. A transição está implícita no fato de que a propriedade da terra é produto do capital.104 Eis por que encontramos esse fenômeno em todos os lugares: onde, pela ação do capital sobre as velhas formas de propriedade da terra, estas passam a gerar uma renda em. dinheiro (o mesmo se passou, de outra forma, onde foi criado o camponês moderno) e onde, em paralelo, a agricultura, explorada pelo capital, se converte em uma atividade subordinada à indústria, [...] os servos da gleba, camponeses sujeitos ao pagamento de prestações, enfiteuses, aluguéis etc., necessariamente se transformam em trabalhadores pagos por jornada ou em assalariados. [...] Só a ação do capital sobre a propriedade da terra cria e desenvolve plenamente o trabalho assalariado. [O proprietário fundiário], como disse Steuart, ‘limpa’105 então a terra de suas bocas supérfluas, arranca os filhos da terra do peito que os criou e transforma assim o trabalho agrícola, que segundo sua natureza se apresenta como fonte direta de subsistência, em fonte mediada de subsistência, completamente dependente das relações sociais. [...] O trabalho assalariado em sua forma clássica — aquele que perpassa toda a sociedade e, se converte em sua base, tomando o lugar da terra – é criado pela moderna propriedade da terra [...].106 A propriedade da terra nos faz retornar, portanto, ao trabalho assalariado. Trata-se [...] simplesmente da transferência do trabalho assalariado das cidades ao campo, ou seja, do trabalho assalariado estendido a toda a superfície da sociedade. “107 A esse respeito, a Inglaterra é “[...] o país modelo para os outros do continente”. Por outro lado, a mesma necessidade de instituir a (moderna) propriedade capitalista da terra se revela “quando, no interior de uma sociedade, as modernas relações de produção, isto é, o capital, se desenvolveu plenamente e essa sociedade se apoderou de um novo território, como ocorre nas colônias”; então, “o capitalista se vê defrontado com o fato de que, na ausência de trabalho assalariado, seu capital deixa de ser capital, e de que um dos pressupostos do capital não é apenas a propriedade da terra, mas a propriedade moderna; propriedade da terra que, como renda capitalizada, é mais cara e como tal exclui a utilização direta da terra pelos indivíduos. Daí a teoria de Wakefield sobre as colônias,108 aplicada pelo governo inglês na Austrália. A propriedade da terra se torna artificialmente mais cara para transformar os trabalhadores [nativos] em assalariados e fazer com que o capital opere como tal [...].” Precisamente por isso, diz Marx, a teoria de Wakefield é “tremendamente importante para se compreender a moderna propriedade da terra”.109

Também a passagem da propriedade da terra ao trabalho assalariado não é só um processo histórico, mas também dialético: “O capital, como criador da renda da terra”, prosseguem os Grundrisse, “recria a, produção de trabalho assalariado, seu fundamento universal.”110 O capital surge na circulação e reduz o trabalho a trabalho assalariado; constitui-se dessa forma e se desenvolve como uma totalidade, tendo a propriedade da terra como sua condição e ao mesmo tempo como sua antítese.111 Com isso, ele estabelece o trabalho assalariado como seu fundamento universal. Logo, é necessário considerar este último [o trabalho assalariado] em separado.”112

 

5. O verdadeiro propósito da divisão tripartite

No fundo, o que Marx discute aqui é a estrutura de sua obra, o problema da ordem em que devem ser descritas as categorias do capital, da propriedade da terra e do trabalho assalariado que expressam a estrutura de classes da sociedade burguesa. A investigação das relações recíprocas entre essas categorias leva à seguinte, resposta: como relação decisiva da sociedade burguesa, que em tudo penetra e a tudo domina, deve-se elaborar primeiramente a categoria do capital em sua forma pura, deixando de lado as formas que podem ser deduzidas das relações do próprio capital. Só então se, pode tratar da moderna propriedade da terra, como criação do capital, como produto de sua influência sobre formas econômicas pré-capitalistas. Mas o pleno desenvolvimento do trabalho assalariado, que tanto conceitual como historicamente representa a condição fundamental do capital e do modo de produção capitalista, pressupõe que esse modo de produção tenha abarcado a totalidade das relações sociais, com a transformação também dos produtores rurais em trabalhadores assalariados. Por isso, essa categoria só pode ser estudada em profundidade depois da categoria do capital (e da propriedade da terra).”

100. Grundrisse, p. 186-187.

101. Ibid., p. 602.

102. Zur Kritik, p. 61.

103. “Também é correto que ‘o valor ou preço da terra’, que não é produto do trabalho, parece entrar em contradição com o conceito de valor e não pode ser deduzido diretamente dele. Mas essa frase é insignificante contra Ricardo, pois o autor não ataca sua teoria da renda, na qual ele [Ricardo] mostra como se forma o valor nominal da terra na produção capitalista, e como ela não contradiz a determinação do valor. O valor da terra é o preço que se paga pela renda capitalizada dessa terra. Portanto, devem-se supor aqui desenvolvimentos muito mais transcendentes que aqueles que, poderiam surgir prima facie da mera contemplação da mercadoria e de seu valor; lembra o caso do capital fictício que se joga na Bolsa, e que de fato é tão-somente a compra e venda de títulos [...], e que não pode ser·compreendido a partir do conceito simples de capital produtivo” (Marx sobre o trabalho “Observations on Certain Verbal Disputes in Political Economy, in Theorien, III, 487 p. 106-107). Cf. a esse respeito Das Kapital, I, p. 562: “Na expressão ‘valor do trabalho’, o conceito de valor não só se perdeu, mas se transformou em seu contrário. É uma expressão imaginária, como, por exemplo, valor da terra. Essas expressões imaginárias, no entanto, surgem das relações de produção. São categorias que buscam expressar as formas em que se. manifestam relações essenciais.”

104. Naturalmente, não se faz referência aqui à moderna propriedade da terra.

105. Em inglês no original: “clears”.

106. Marx disse antes: “Nas relações econômicas da moderna propriedade da terra, [...] a estrutura interna da sociedade moderna, ou seja, o capital, é colocada na totalidade de suas relações.” Em outra passagem: “É por isso que se pode estudar no desenvolvimento da propriedade da terra a gradual afirmação e formação do capital. A isso se deve que Ricardo, o economista da época moderna, com grande sentido histórico, tenha considerado as relações entre o capital, o trabalho assalariado e a propriedade da terra no âmbito da propriedade da terra, para tentar captá-las em sua forma específica” (Grundrisse, p. 187 e 164).

107. Cf. Das Kapital II, p. 111-112: “Na mesma medida em que o trabalho se converte em trabalho assalariado, o produtor se converte em capitalista industrial; por isso a produção capitalista [...] só aparece em toda sua amplitude quando também o produtor rural é assalariado.”

108. Cf. Das Kapital I, cap. 25, “A moderna teoria da colonização”.

109. Grundrisse, 187-189.

110. A expressão que Marx emprega aqui (“retornar ao fundamento”) mostra uma estreita vinculação com a Lógica de Hegel, especialmente com a teoria do “fundamento” que se desenvolve no segundo tomo dessa obra. Cf. também ibid., I, p. 55: “Devemos admitir que é uma consideração essencial [...] perceber que o avanço é um retorno ao fundamento, ao originário e verdadeiro [...]. Dessa maneira se regressa à consciência, por seu intermédio, desde o imediato, que é o ponto de partida, até o saber absoluto, sua verdade mais íntima.”

111. Cf. a frase de Das Kapital (III, p. 935), já citada, segundo a qual o capital inclui a propriedade da terra “como sua antítese”.

112. Grundrisse, p. 189-190.

 

 

““O capital”, lemos nos Grundrisse, “existe e só pode existir como muitos capitais; sua autodeterminação aparece como ação e reação recíproca deles entre si” (mais um eco da terminologia de Hegel); sua natureza íntima o impele a “repelir-se a si mesmo”.120 “A produção baseada no capital só encontra sua forma adequada na medida em que a concorrência se desenvolve.”121 Evidentemente, “enquanto o capital é débil, se apoia nas muletas de modos de produção anteriores ou que caducam com seu aparecimento”. Por outro lado, “tão logo começa a perceber a si mesmo como barreira ao desenvolvimento, recorre a formas que, embora pareçam dar os últimos retoques ao domínio do capital, restringindo a concorrência, anunciam ao mesmo tempo sua dissolução e a do modo de produção baseado nele”.122 Mas, em sua época de esplendor, o domínio do capital só pode concretizar-se na concorrência e através dela.

Esse núcleo positivo da concorrência é o que a economia burguesa “jamais compreendeu”, nas palavras de Marx. Pois essa economia “só a compreendeu pelo lado negativo, isto é, como negação de monopólios, corporações, regulamentações legais etc. Como negação da produção feudal.” Mas a concorrência “está longe de ter apenas esse significado histórico, ou ser meramente esse elemento negativo”. Ela é, ao mesmo tempo, “a relação do capital consigo mesmo como outro capital, ou seja, o comportamento real do capital na condição de capital”. Só “através dela aparece como necessidade externa, para cada capital, aquilo que corresponde [...] ao conceito de capital”. Por isso, conceitualmente, a concorrência expressa “a natureza interna do capital [...] que se apresenta e se realiza como ação recíproca dos diversos capitais entre si”, os quais “impõem a si próprios as determinações imanentes do capital”.123 A concorrência é o “motor essencial da economia burguesa”, embora, não crie suas leis, apenas lhes dê uma forma concreta; não as explica, apenas as torna visíveis. 124 Seria incorreto confundir a investigação dessas leis com a análise da concorrência, das relações de crédito que as pressupõem etc. Para compreender as formas de manifestação, primeiro é necessário investigar o que se manifesta nelas. Isso se torna mais importante porque na concorrência tudo se apresenta, e deve apresentar-se, invertido125 (o preço não parece ser determinado pelo trabalho, mas o trabalho pelo preço etc.). Nela, o capital aparece como o agente que “determina os preços, gera trabalho, regula e é fonte da produção”.126 Portanto, para poder investigar em estado puro as leis imanentes do capital, deve-se abstrair a concorrência e seus fenômenos correlatos, adotando-se como ponto de partida o “capital como tal” ou o “capital em geral”. “A intervenção de diversos capitais não deve perturbar nossa análise neste ponto. A relação entre os diversos capitais ficará clara tão logo tenhamos considerado o que todos têm em comum: ser capital.”127

Que determinações podem ser consideradas comuns a todos os capitais? Evidentemente, aquelas que são válidas para o capital, mas não para outras formas de riqueza; aquelas que expressam o caráter historicamente determinado do modo de produção capitalista.

Os economistas (aqui, Marx pensa em Adam Smith) frequentemente concebem o capital como “trabalho acumulado (objetivado)”, que “serve como um meio para o trabalho vivo”. Porém, “é tão impossível passar diretamente do trabalho ao capital como passar diretamente das diversas raças humanas ao banqueiro, ou da natureza à máquina a vapor [...]. Para alcançar o conceito128 de capital é necessário partir do valor e não do trabalho, mais precisamente do valor de troca já desenvolvido no movimento da circulação.”129 Trata-se do dinheiro, na medida em que não opera como mero meio de troca nem se paralisa entesourado, mas está em um circuito no qual se mantém e se multiplica, mediante o trabalho alheio. Portanto, o que distingue o capital do mero valor ou do dinheiro é, em primeiríssimo lugar, o seguinte: ele é um valor que “gera mais-valia”, que se baseia em uma relação específica, historicamente determinada: a relação do trabalho assalariado. Todavia, “sob o capital se subsumem muitos [elementos] que, de acordo com seu conceito, não parecem caber nele. Por exemplo, o capital é emprestado, é acumulado etc. Em todas essas relações,130 ele parece ser uma mera coisa e coincidir completamente com a matéria que o molda.”131 “Mas não nos ocupamos aqui nem de uma forma particular do capital, nem de tal ou qual capital, naquilo em que ele se diferencia de outros capitais etc. Acompanhamos o processo de sua formação.132 Esse processo dialético é apenas a expressão ideal do movimento real de devir do capital.133 As relações posteriores devem ser consideradas como desenvolvimento desse germe.”134

O que se revela como sendo comum a todos os capitais é sua propriedade de expandir seu valor, o fato de que eles se apropriam, direta ou indiretamente, da mais-valia gerada no processo capitalista de produção. Por isso, a análise do “capital em geral” deve começar pela investigação do processo de produção. Deve demonstrar como o dinheiro “ultrapassa sua simples determinação como dinheiro” e se converte em capital; como o consumo do trabalho humano engendra mais-valia; finalmente, como a produção dessa mais-valia permite a reprodução do capital e a própria relação capitalista. Tudo isso pode ser estudado sem que seja necessário levar em conta a existência de diversos capitais ou as diferenças entre eles. Pois, qualquer que seja a forma como os diversos capitais individuais distribuem entre si a mais-valia criada no processo de produção, esses capitais “nunca podem repartir mais do que a mais-valia total, ou o mais-produto total”.135 Tal repartição não pode explicar a origem da mais-valia; pelo contrário, só pode obscurecê-la. No lucro, por exemplo, a mais-valia aparece como se fosse criada igualmente por todas as partes do capital, e o próprio capital aparece como “fonte de riqueza, independente do trabalho”.136 Portanto, se compreendemos a premissa fundamental da relação do capital — a relação entre capital e trabalho e o papel da mais-valia como motor da produção capitalista —, devemos partir não da “pluralidade de capitais”, mas sim do capital, ou do “capital de toda a sociedade”,137 ou seja, do “capital em geral”. Só então é possível desenvolver verdadeiramente o conceito de capital.

Mas o ciclo de vida do capital não se limita ao processo direto de produção. Ao contrário. Para que o capital possa renovar-se, o produto do capital, incluindo o mais-produto, deve “transformar-se em dinheiro, e não como em etapas anteriores da produção, quando o intercâmbio só dizia respeito à produção excedente e aos produtos excedentes, mas de nenhum modo a todos os produtos”.138 Por isso, o processo de produção deve ser complementado pelo processo de circulação. O movimento do capital converte-se, pois, em um circuito no qual aparecem formas novas (capital fixo e circulante) que deixam de ser determinações provisórias do capital e se tornam modos de existência deste. Também essas formas devem ser entendidas como diferenciações internas à abstração do “capital em geral” (“particularização do capital”),139 já que “caracterizam todos os tipos de capital”.140 Por isso devem ser entendidas sem que se considere a interação recíproca da “pluralidade de capitais”. Por outro lado, o percurso do capital pelas diversas fases da circulação aparece agora “como uma barreira à produção, uma barreira erigida pela natureza específica do próprio capital”. A circulação exige tempo, e durante esse tempo o capital não pode criar mais-valia. Assim, sua valorização não depende apenas da duração do tempo durante o qual o capital cria valores (tempo de trabalho), mas também do tempo de circulação, durante o qual esses valores se realizam.141 Da mesma forma, também a mais-valia do capital já não aparece agora como sendo “simplesmente determinada pelo mais-trabalho apropriado no processo de produção”. Já não pode ser avaliada “por sua medida real, a proporção entre o mais-trabalho e o trabalho necessário”, mas pela magnitude do próprio capital. “Um capital de um valor determinado, em um período determinado, produz uma mais-valia determinada.”142

Em consequência, a mais-valia assume agora (e com isso chegamos à terceira e última seção dos Grundrisse) a forma transformada e derivada de lucro, e a taxa de mais-valia assume a forma de taxa de lucro. Só o lucro total da classe capitalista deve coincidir com a mais-valia total apropriada.143 Os diversos capitais podem embolsar mais ou menos do que corresponderia à mais-valia criada por cada um no processo de produção. Não obstante, nos Grundrisse Marx adia esse problema “até que consideremos a existência da pluralidade de capital’, pois a fixação de uma taxa geral de lucro e a correspondente transformação dos valores em preços de produção pressupõem a concorrência, ocorrendo em um nível que, de acordo com o plano inicial de Marx, havia sido excluído das considerações sobre o “capital em geral”.144

120. Grundrisse, p. 317 e 323. Diz uma nota de pé de página: “Como o valor constitui a base do capital, e este só existe graças a um intercâmbio com um outro valor, o capital repele necessariamente a si mesmo. Por isso, é uma quimera a ideia de um capital universal, um capital que não enfrente capitais alheios com os quais estabeleça relações de troca [...]. A repulsão recíproca dos capitais está implícita nele como valor de troca realizado” (ibid., p. 324). Um “capitalismo de Estado” só se tornaria possível na medida em que nele se enfrentassem vários capitais, embora organizados sob forma estatal.

121. Ibid., p. 543.

122. Ibid., p. 544-545. Nessa passagem, escrita em 1857, Marx prevê a forma do capitalismo monopolista. Isso poderia ser chamado de uma “visão”, mas nós preferimos a palavra “dialética”, menos mística.

123. Ibid., p. 542-544 e 317. “A concorrência é, em geral, a maneira pela qual o capital faz prevalecer o seu modo de produção” (Grundrisse, p. 617).

124. Ibid., p. 450. Cf. as excelentes observações de Henryk Grossmann em seu livro Das Akkumulations- und Zusammenbruchsgesetz des kapitalistischen Systems, p. 96-99.

125. “Para impor ao capital suas leis imanentes como se fossem necessidade externa, a concorrência as inverte na aparência” (Grundrisse, p. 647. Cf. Das Kapital III, p. 65, 235, 252-253, 742 etc. Também nesse caso estamos diante de um conceito hegeliano.

126. Grundrisse, p. 186-187.

127. Ibid., p. 416.

128. “Como toda a produção capitalista se baseia na compra direta do trabalho para apropriar-se de parte dele, sem pagamento, no processo de produção, parte que é vendida no produto, já que é o motivo da existência do capital, o próprio conceito de capital[...]” (Theorien, I, p. 265).

129. Grundrisse, p. 170. Cf. o capítulo 11 da Parte III deste trabalho, onde se consideram de forma mais detalhada essas ideias.

130. No original, “descrições”.

131. Grundrisse, p. 412-413.

132. Várias passagens dos Grundrisse assinalam que o verdadeiro objeto de análise é a “história geral do nascimento do capital”, sua “autodeterminação”, ou “autoformação” (ibid., p. 307,317 e 427).

133. “Como aqui nos ocupamos do capital, do capital em devir, ainda não observamos nada fora dele mesmo — já que ainda não existe para nós a pluralidade de capitais—, com exceção do próprio capital e da circulação simples [...]” (ibid., p. 617). Nesse sentido, nos Grundrisse (assim como em O capital e nas Teorias da mais-valia) opõe-se o capital em devir ao capital já constituído, “que aparece como uma unidade dos processos de circulação e de produção’’ (Theorien, III, p. 473; 11, p. 513-514). Sobre a “forma acabada” do capital, cf. Das Kapital III, p. 235.

134. Grundrisse, p. 217.

135. Cf. ibid., p. 673: “O lucro dos capitalistas como classe, ou o lucro do capital, deve existir antes que seja possível reparti-lo [...].”

136. Ibid., p. 645.

137. “Aqui nos vemos diante do capital enquanto tal, say the capital of the whole society [ou seja, o capital do conjunto da sociedade]. A diversidade etc. dos capitais ainda não nos interessa” (ibid., p. 252).

138. Ibid., p. 309.

139. Ibid., p. 186. “Particularização” é mais um conceito especificamente hegeliano (Marx também se baseia na Lógica de Hegel quando usa os termos “generalidade”, “particularidade” e “singularidade”).

140. Ibid., p. 353.

141. Ibid., p. 521.

142. Ibid., p. 632.

143. Ibid., p 673.

144. Ibid., p. 645-646.

 

 

No começo do primeiro tomo de O capital podemos ler: “O tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para produzir algum valor de uso nas condições normais de produção vigentes em uma sociedade e com o nível social médio de destreza e intensidade do trabalho.” Ele é “o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir um valor de uso e determina a magnitude de seu valor”.69

Em O capital e em outras obras de Marx voltaremos a encontrar várias vezes essa interpretação “tecnológica” do conceito de tempo de trabalho socialmente necessário. Mas, além dela, encontramos também outra interpretação, segundo a qual só poderia ser considerado como “socialmente necessário” o trabalho que correspondesse a uma necessidade social coletiva, produzindo um determinado valor de uso.”

69. Das Kapital, I, p. 43-44.

 

 

Sabemos que os produtos do trabalho só são valores na medida em que sejam considerados encarnações de uma mesma substância social, o trabalho humano geral. Todavia, o trabalho “não existe como objeto universal de troca, independente e desvinculado [...] das particularidades naturais das mercadorias”.3 O trabalho de indivíduos isolados apresenta diversos graus de intensidade e habilidade; é trabalho determinado, concreto, que “adapta materiais naturais específicos a necessidades específicas do homem”.4 Como tal, resulta objetivado “em uma mercadoria determinada e específica, dotada de qualidades específicas, mantendo relações específicas com as necessidades”. Na condição de trabalho humano geral — na condição de valor —, deve objetivar-se “em uma mercadoria que expresse apenas sua cota, ou quantidade, que seja indiferente às suas qualidades naturais e por isso possa ser metamorfoseada em — ou trocada por — qualquer outra mercadoria que seja objetivação de um mesmo tempo de trabalho”.5 Em outras palavras: “Tal como é diretamente, a mercadoria só é tempo de trabalho individual objetivado, portador de um conteúdo específico, e não tempo de trabalho geral. Não é diretamente valor de troca; deve tornar-se valor de troca.” Mas, como “representar uma mercadoria particular, diretamente, como tempo de trabalho geral objetivado? Ou, o que dá no mesmo, como conferir diretamente ao tempo de trabalho individual, incorporado em uma mercadoria particular, o caráter de universalidade?”6

O que vale para o trabalho vivo também vale para o trabalho objetivado, ou seja, para a mercadoria. “As mercadorias — por exemplo, um metro de algodão e uma medida de azeite, considerados como algodão e azeite — são naturalmente diferentes, possuem qualidades diferentes, são medidas de maneiras diferentes, são incomensuráveis.” No entanto, “na condição de valores, todas as mercadorias são qualitativamente iguais e só quantitativamente diferentes; por isso, todas servem de medida, umas às outras e se substituem [...] em determinadas proporções quantitativas. O valor é sua relação social,7 sua qualidade econômica.” O valor “supõe o trabalho social como substância de todos os produtos, prescindindo completamente de suas propriedades naturais [...]. Um livro que possui determinado valor e um pedaço de pão que possui o mesmo valor são intercambiáveis; são materiais diferentes, mas têm o mesmo valor.” Portanto, “na condição de valor, a mercadoria é um equivalente; [...] ela é o padrão universal, o representante universal e também o meio universal de troca de todas as outras mercadorias. Como valor, ela é dinheiro.”

Justamente “porque as mercadorias, como valores, só diferem umas das outras quantitativamente”, “a diversidade natural das mercadorias deve entrar em contradição com sua equivalência econômica”. Logo, seu valor também deve adquirir uma “existência qualitativamente distinguível” delas mesmas. Pois, “na condição de valor, toda mercadoria é divisível; em sua existência natural, no entanto, isso não é verdade. Na condição de valor, ela segue sendo sempre a mesma, apesar das metamorfoses e, formas de existência pelas quais pode passar sucessivamente; na realidade, só há intercâmbio de mercadorias porque elas são diferentes e correspondem a necessidades diferentes. Na condição de valor, ela é universal; como mercadoria real, é algo particular. Como valor, é sempre intercambiável; na troca real, isso só ocorre quando ela satisfaz certas condições particulares. Como valor, a medida de seu potencial de troca está determinada por ela mesma, pois o valor de troca expressa precisamente a relação em que ela substitui outras mercadorias; na troca real, ela só é intercambiável em quantidades fixadas por suas qualidades naturais e correspondentes às necessidades dos que participam da troca. (Em suma, todas as qualidades apontadas como qualidades particulares do dinheiro são qualidades das mercadorias como valores de troca,8 do produto como valor, diferente do valor como produto.)”9 Portanto, o que antes aparecia como uma contradição entre tempo geral e tempo individual de trabalho aparece agora como uma contradição entre o caráter geral da mercadoria como valor e seu caráter particular como valor de uso. Essa contradição visível, prossegue Marx, “só pode ser resolvida se for objetivada”, “desdobrando-se” a mercadoria no intercâmbio real, ou seja, criando-se para ela “uma forma de existência social separada de sua forma de existência natural: o dinheiro”.10

Entenda-se bem: só no intercâmbio real. Pois, enquanto se trate da mera determinação do valor, importa tão-somente descobrir a substância do valor das mercadorias, na qual se baseiam as relações de troca, ou, para dizer em outras palavras, a “medida imanente do valor”.11 Ao trocar duas mercadorias, estabeleço que “cada uma das mercadorias é igual a uma terceira, ou seja, é diferente de si mesma. Esta terceira mercadoria, diferente de ambas, já que expressa uma relação”, é precisamente seu valor: para que se possa compará-la a outras mercadorias, a mercadoria “deve ser antes de tudo convertida em tempo de trabalho, ou seja, em algo qualitativamente diferente dela mesma”. “No papel e mentalmente, essa metamorfose se efetua por simples abstração; na troca real, porém, é preciso haver uma mediação12 real [...]; a abstração deve ser novamente objetivada.”13 Isso só pode ocorrer na relação entre mercadoria e mercadoria, pois os proprietários de mercadorias não estão inseridos em nenhuma comunidade de produção e só se relacionam uns com os outros com a mediação de seus produtos. Por isso, só outra mercadoria pode expressar o valor da mercadoria (assim como, por exemplo, só é possível expressar o peso de um pão comparando o com outro corpo, por exemplo o ferro).14 Logo, já não basta que a mercadoria “tenha no espírito uma dupla existência”. “Este desdobramento ideal implica (e deve seguir implicando) que a mercadoria [também] se apresente na troca real sob dupla forma: por um lado, como produto natural; por outro, como valor de troca. Isso quer dizer que seu valor de troca adquire uma existência material separada dela”, que se materializa de forma independente no dinheiro.15

Embora esta dedução do dinheiro pareça totalmente lógica, certas vacilações sobre ela ainda estão presentes nos Grundrisse. Como a Lassalle, discípulo de Hegel, também a Marx parecia evidente que o dinheiro — ao contrário das mercadorias que, para usar a linguagem hegeliana, representavam “o real o particular, o múltiplo” — deveria ser considerado como “o ideal, o universal, a unidade”, e nesse sentido concebido como a encarnação do valor.16 Assim como Lassalle, e partindo dessa consideração, no início Marx tendia a ver no dinheiro “só a unidade ideal ou a expressão em valor de todos os produtos reais circulantes”.17 (Aqui também se percebe a influência da teoria do dinheiro proposta por Ricardo, que destaca unilateralmente a função do dinheiro como meio de circulação, e na qual ele aparece de fato como mero signo de valor.) Ainda se encontram nos Grundrisse, especialmente na primeira parte, numerosas passagens em que o dinheiro em geral (e não só o papel-moeda) aparece como mero signo de valor ou “símbolo”. Lemos ali, por exemplo: “A mercadoria é transformada em valor de troca. Para equipará-la a si mesma, na condição de valor de troca, ela é trocada por um signo que a representa na condição de valor de troca como tal. Como valor de troca assim simbolizado, ela pode ser novamente trocada, em determinadas proporções, por qualquer outra mercadoria.”18 Nesse manuscrito, é certo, Marx já destaca aqui e ali que, “embora sendo apenas um signo”, o dinheiro deve ser “uma mercadoria particular”; por isso, o papel­moeda não pode expressar diretamente o valor das mercadorias, devendo operar sempre como representante do dinheiro-ouro.19 Não obstante, a expressão do primeiro caderno dos Grundrisse, segundo a qual o dinheiro não só “representa” o valor das mercadorias, mas também o “simboliza”20 está em flagrante contradição com o verdadeiro sentido da teoria marxiana do dinheiro, tendo sido abandonada mais adiante. Já se vê esse abandono na Contribuição à crítica.21 A partir desse texto não encontramos, na obra de Marx, rastros dessa “teoria do símbolo”.

Eis a dedução dialética do dinheiro a partir do valor, tal como a encontramos desde os Grundrisse. Porém, um leitor não familiarizado com a obra de Marx poderia considerar que essa dedução é uma “construção”, um exemplo de uma simples “dialética conceptual” que atribui vida própria às categorias econômicas e faz com que elas, de um modo autenticamente hegeliano, surjam umas das outras e se transformem umas nas outras. Tal impressão equivocada pode surgir com facilidade, como o próprio Marx percebeu, redigindo por isso uma interessante nota nos Grundrisse: “Em outro momento, antes de esgotar a questão, será necessário corrigir a maneira idealista de tratá-la, que passa a impressão de que lidamos com definições conceptuais puras e com a dialética desses conceitos. Por isso, será preciso criticar, antes de tudo, a afirmação: o produto (ou atividade) torna-se mercadoria; a mercadoria, valor de troca; o valor de troca, dinheiro.”22 Em outras palavras: as categorias econômicas representam relações reais e não podem ser deduzidas apenas pela lógica, independentemente da história. Pelo contrário, como Engels escreveu em 1859 ao tratar da Contribuição à crítica, o modo de tratamento lógico “não é diferente do histórico, só que está despojado da forma histórica e dos acasos perturbadores. Ali onde começa a história também deve começar o raciocínio, cujo desenvolvimento será apenas o reflexo, em forma abstrata e teoricamente consequente, do devir histórico; uma imagem corrigida, segundo leis que apresentam o curso histórico real, no qual se pode considerar cada momento no estágio de sua plena maturidade, de sua pureza clássica.”23 Isso foi um princípio metodológico de Marx, como se pode ver em numerosas passagens dos Grundrisse, da Contribuição à crítica e de O capital que oferecem uma dedução histórica do valor, paralela à sua dedução lógica. O próprio Marx confronta os resultados de sua análise abstrata com o desenvolvimento histórico efetivo.

Marx não podia compartilhar da concepção ingenuamente a-histórica de Adam Smith, para quem as relações de troca decorriam de uma pretensa “propensão ao intercâmbio” inata ao gênero humano.24 Marx rejeitava a “ideia fantasiosa” de algum fabricante de arcos isolado que, em uma tribo primitiva de caçadores, assumia a tarefa de trocar arcos e flechas por caça e animais, dando início à divisão social do trabalho.25 O produtor de mercadorias isolado resulta, na verdade, de uma evolução histórica muito prolongada. É certo que o intercâmbio foi “um dos principais meios para construir esse isolamento”, mas o próprio intercâmbio pressupõe um determinado nível de produtividade do trabalho, que não estava dado de antemão. Nosso ponto de partida precisa ser o das comunidades naturais, tais como as que “surgem originalmente no reino animal [...], ainda impotentes diante das forças da natureza e ignorantes de suas leis; eram pobres como os animais e sua produtividade quase não superava a deles” (Engels). Nesse caso, o homem produz “apenas o que necessita imediatamente. O limite de suas necessidades é o limite de sua produção [...]. Não há intercâmbio, ou então há apenas intercâmbio entre seu trabalho e o produto de seu trabalho. Este intercâmbio é a forma latente, o germe, do intercâmbio real.”26

Só se produz um ponto de inflexão quando o homem passa a produzir mais do que necessita para o sustento cotidiano, quando seu trabalho lhe proporciona um “produto excedente”. Agora se pode produzir um intercâmbio de produtos, embora em primeira instância ele não ocorra no interior das próprias comunidades naturais, mas sim ali “onde [estas] terminam, em seus pontos de contato com outras comunidades ou com integrantes delas”.27 Essa troca primitiva, no entanto, está muito distante do intercâmbio real de mercadorias, aquele que emprega a mediação do dinheiro. De fato — e também ali onde o intercâmbio abarca todo um conjunto de produtos—, representa “a transformação incipiente dos valores de uso em mercadorias, antes da transformação das mercadorias em dinheiro”. Nesse caso, o valor de troca ainda não adquiriu uma forma livre: “Ainda está diretamente ligado ao valor de uso. Isso se revela em um duplo aspecto. Toda a produção permanece orientada para o valor de uso, e não para o valor de troca. Por isso, os valores de uso só se convertem em meios de troca, em mercadorias, quando ultrapassam a quantidade necessária ao consumo, havendo excedente. Por outro lado, só se convertem em mercadorias dentro dos limites do valor de uso imediato [...], de modo que as mercadorias a serem intercambiadas devem ser valores de uso para ambas as partes, pois cada uma delas deve ser valor de uso para o lado que não a possui.”28

Aqui se manifesta “a contradição interna entre valor de uso e valor de troca, implícita na mercadoria. Por exemplo: como valores de uso, as mercadorias não são divisíveis à vontade, mas devem sê-lo como valores de troca. Ou então a mercadoria de A poderá ser valor de uso para B, enquanto a mercadoria de B não é valor de uso para A; ou é possível que os donos das mercadorias necessitem delas em proporções desiguais, não compatíveis com a divisibilidade.”29 (Ou então, acrescentamos, pode ser que não necessitem delas no mesmo momento.) Em todos esses casos não haverá intercâmbio, pois as características naturais da mercadoria contradizem seu caráter geral de valor. Para eliminar essas dificuldades, o produto, como valor de troca, deve ser liberado de seus inconvenientes naturais; deve assumir uma “forma-valor independente de seu próprio valor de uso ou da necessidade individual dos agentes que participam do intercâmbio”.

Marx prossegue: “O problema surge junto com os meios que permitem resolvê-lo. Não se efetua uma troca em que os possuidores de mercadorias intercambiam seus artigos por outros, e os comparam com estes, sem que, nessa troca, as diferentes mercadorias dos diferentes donos sejam intercambiadas com uma terceira mercadoria, sempre a mesma, e sejam comparadas com ela na condição de valores. Esta terceira mercadoria, na medida em que se converte em equivalente de outras mercadorias, diferentes dela e entre si, assume a forma de equivalente geral, ou social, mesmo que isso ocorra dentro de limites estreitos. Esta forma de equivalente geral nasce e morre com o contato social que lhe permitiu vir à luz. Recai nessa ou naquela mercadoria, de forma alternativa e fugaz. Porém, com o desenvolvimento do intercâmbio mercantil, ela adere firme e exclusivamente a tipos específicos de mercadorias, ou seja, se cristaliza na forma de dinheiro.”30

“Na origem, serve de moeda a mercadoria [...] mais trocada como objeto necessário, aquela que mais circula [...], aquela que, em uma determinada organização social, representa a riqueza por excelência [...]: o sal, os couros, o gado,31 os escravos [...]; a utilidade específica da mercadoria, seja como objeto particular de consumo (couros), seja como instrumento de produção imediato (escravos) [...] a transforma em dinheiro. Mas, na medida em que o desenvolvimento avança, ocorre o fenômeno inverso: a mercadoria que é menos objeto de consumo ou instrumento de produção passa a desempenhar melhor aquele papel, pois responde às necessidades da troca como tal. No primeiro caso, a mercadoria se converte em dinheiro por causa de seu valor de uso específico; no segundo, seu valor de uso específico decorre do fato de servir como dinheiro. Durável, inalterável, passível de ser dividida e somada, transportável com relativa facilidade, pode conter um valor de troca máximo em um volume mínimo; tudo isso torna os metais preciosos particularmente adequados nesse último estágio.”32

Eis um exemplo suficiente do procedimento que Marx usa na primeira parte (como se sabe, a mais abstrata) de sua obra. Reencontramos tudo ali: a dedução do dinheiro a partir da troca direta; a sucessão dos três estágios do intercâmbio (que aparecem em O capital como as formas-valor “simples”, “total” e “geral”); a antítese de valor de uso e valor de troca; e, finalmente, o desdobramento — que surge desta antítese — da mercadoria em mercadoria e dinheiro. “O controle pelos fatos [...] se produz aqui a cada passo da análise”, que avança simultaneamente sob forma “dedutiva” e “indutiva”, lógica e histórica. Lenin, cujas palavras acabamos de citar, também tem razão quando afirma que O capital, de Marx, em seu sentido mais profundo, é uma obra que expõe claramente a história do capitalismo (no caso que vimos analisando, da sociedade produtora de mercadorias) através da “análise dos conceitos que resumem essa história”.33 Desse ponto de vista, certamente não há nenhuma obra econômica mais realista que O capital, apesar do método expositivo aparentemente obscuro em algumas de suas passagens.”

3. Grundrisse, p. 85.

4. Das Kapital I, p. 47.

5. Grundrisse, p. 85.

6. Zur Kritik, p. 38 e 41-42.

7. A “objetividade do valor [da mercadoria] é puramente social” (Das Kapital I, p. 52). Desse fato, porém, não se deduz que ele não possua uma existência material, independente da consciência e da vontade dos homens. Nas Teorias podemos ler: “As mesmas circunstâncias independentes da consciência, apesar de atuarem sobre ela, e que obrigam os produtores a vender seus produtos como mercadorias [...] conferem aos produtos, também em sua: consciência, um valor de troca independente do valor de uso. Sua consciência não necessita saber disso. Pode não reconhecer como na realidade se determina o valor de suas mercadorias ou seus produtos se tornam valores. [Os homens] foram colocados em uma relação que determina sua consciência, sem que necessitem saber disso. Qualquer um pode precisar de dinheiro sem saber o que é o dinheiro. As categorias econômicas aparecem invertidas na consciência” (Theorien, III, p. 163).

8. Nos Grundrisse (e, como acabamos de ver, também nas Theorien), Marx emprega com muita frequência a expressão “valor de troca” em lugares onde deveria usar simplesmente “valor”. Aqui, também vale o que ele diz no primeiro tomo de O capital “No começo deste capítulo, usando a terminologia em voga, dissemos que a mercadoria é valor de uso e valor de troca. Porém, se buscarmos maior precisão, a afirmação é falsa. A mercadoria é valor de uso, ou objeto voltado para o uso, e ‘valor’. Apresenta-se como esse ser de dupla face (que é) quando seu valor possui uma forma própria de manifestação — a de valor de troca —, diferente de sua forma natural. Porém, considerada isoladamente, nunca possui aquela forma: isso só ocorre na relação de valor ou de intercâmbio com uma segunda mercadoria, de tipo diferente. Desde que isso seja claro, o modo de expressão que usamos não cria problemas e serve para simplificar” (Das Kapital, I, p. 65-66).

9. Grundrisse, p. 59-60. Cf. Briefwechsel, II, p. 384: “A categoria dinheiro surge da contradição entre as características gerais do valor e sua existência material confinada em uma mercadoria específica etc.; essas características gerais são as mesmas que aparecem no dinheiro.”

10. Grundrisse, p. 63.

11. Não se deve confundir essa “medida imanente dos valores” com o que se convencionou chamar “medida inalterável dos valores”, buscada em vão por alguns clássicos. Marx demonstrou que a mercadoria que serve como padrão externo do valor deve, ter, ela mesma, um valor passível de modificar-se, pois “só como materialização do tempo de trabalho pode converter-se no equivalente de outras mercadorias. Mas, com a alteração das forças produtivas do trabalho, esse tempo de trabalho se traduz em um volume desigual dos mesmos valores de uso” (Zur Kritik, p. 65; Theorien, III, p. 130-131).

12 Sobre a categoria da “mediação”, tomada de Hegel, ver G. Lukács, op. cit., p. 178-179.

13. Grundrisse, p. 61 e 62.

14. Ver Das Kapital I, p. 62.

15. Grundrisse, p. 63.

16. Ver a carta de Marx a Engels datada de 1 ° de fevereiro de 1858, na qual ele se refere ao livro de Lassalle sobre Heráclito (Briefwechsel, II, n; p. 352). Ver G. W. F. Hegel, Philosophie des Rechts [Filosofia do direito]: “Se considerarmos o conceito de valor, chegaremos à conclusão que a própria coisa só é considerada como um signo; não conta como sendo ela mesma, mas sim como o que vale” (citado em Das Kapital 1, p. 97).

17. F. Lassalle, Die Philosophie Herakleitos des Dunklen von Ephesos, 1858, I, p. 224. Citado segundo Lenin em Aus dem philosophischen Nachlas, p. 270. Uma página antes, Lenin escreve: “Lassalle fala aqui sobre o valor [...], tratando-o de maneira hegeliana (como uma ‘unidade abstrata que se liberta’) e acrescentando: ‘[...] O fato de que essa unidade, o dinheiro, não é algo real, mas somente algo ideal [grifos de Lassalle], se revela em que’ etc. [...].” Lenin anota na margem: “Incorreto (o idealismo de Lassalle).”

18. Grundrisse, p. 63.

19. Ibid., p. 84, 126 etc.

20. Cf. ibid., p. 84: “Como a mercadoria torna-se valor de troca geral, o valor de troca torna-se uma mercadoria particular: isso se deve ao fato de que uma mercadoria específica recebe o privilégio de representar, de simbolizar o valor de troca das demais, ou seja, o privilégio de converter-se em dinheiro.” (Aqui, o erro está em equiparar os conceitos de “representar” e “simbolizar”.)

21. Cf. a seguinte passagem, na qual Marx (polemizando consigo mesmo, por assim dizer) observa: “O dinheiro não é um símbolo, tal como não o é a existência de um valor de uso como mercadoria. Que uma relação social de produção se apresente como um objeto existente fora dos indivíduos, e que as relações específicas que eles estabelecem no processo de produção de sua vida social se apresentem como propriedades de um objeto, trata-se de uma reversão e uma mistificação não imaginária, mas sim prosaicamente real, que caracteriza todas as formas sociais do trabalho que fixa o valor de troca. No dinheiro, porém, isso aparece de forma mais nítida que na mercadoria” (Zur Kritik, p. 45). Ver também a observação polêmica em Das Kapital I, p. 110, segundo a qual Lassalle “concebe erroneamente o ouro como mero signo do valor”, assim como as p. 96-97.

22. Grundrisse, p. 69. A necessidade dessa “correção” levou Marx, entre outras coisas, a iniciar a Contribuição à crítica com a análise da mercadoria, e não do valor, como havia pensado originalmente (no plano de 2 de abril de 1858). Cf. a anotação de Marx na p. 76 do livro de Kaufmann, Teoria das flutuações dos preços (em russo): “O erro é, em geral, partir do valor como uma categoria suprema, em lugar de partir do concreto, da mercadoria [...]. Yes, but not the single-man, and not as an abstract being [Sim, mas não o homem isolado, e não como um ser abstrato]. [...] O erro é partir do homem como sujeito pensante, e não atuante [...]” (Karl Marx Album, 1953, p. 115).

23. Ausg. Schriften, I, p. 348.

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