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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

A era dos direitos (Parte II), de Norberto Bobbio

Editora: Campus-Elsevier

ISBN: 978-85-352-1561-8

Tradução: Celso Márcio Teixeira

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 238

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Sinopse: Ver Parte I



“Tenho dito frequentemente que, quando nos referimos a uma democracia, seria mais correto falar de soberania dos cidadãos e não de soberania popular. “Povo” é um conceito ambíguo, do qual se serviram também todas as ditaduras modernas. É uma abstração por vezes enganosa: não fica claro que parcela dos indivíduos que vivem num território é compreendida pelo termo “povo”. As decisões coletivas não são tomadas pelo povo, mas pelos indivíduos, muitos ou poucos, que o compõem.

Numa democracia, quem toma as decisões coletivas, direta ou indiretamente, são sempre e apenas indivíduos singulares, no momento em que depositam seu voto na urna. Isso pode soar mal para quem só consegue pensar a sociedade como um organismo; mas, quer isso agrade ou não, a sociedade democrática não é um corpo orgânico, mas uma soma de indivíduos. Se não fosse assim, não teria nenhuma justificação o princípio da maioria, o qual, não obstante, é a regra fundamental de decisão democrática. E a maioria é o resultado de uma simples soma aritmética, onde o que se soma são os votos dos indivíduos, um por um. Concepção individualista e concepção orgânica da sociedade estão em irremediável contradição. É absurdo perguntar qual é a mais verdadeira em sentido absoluto. Mas não é absurdo – e sim absolutamente razoável – afirmar que a única verdadeira para compreender e fazer compreender o que é a democracia é a segunda concepção, não a primeira.

É preciso desconfiar de quem defende uma concepção antiindividualista da sociedade. Através do antiindividualismo, passaram mais ou menos todas as doutrinas reacionárias. Edmundo Burke dizia: “Os indivíduos desaparecem como sombras; só a comunidade é fixa e estável.” De Maistre declarou peremptoriamente: “Submeter o governo à discussão individual significa destruí-lo.” Lammenais dizia: “O individualismo, destruindo a ideia de obediência e de dever, destrói o poder e a lei”' Não seria muito difícil encontrar citações análogas na esquerda antidemocrática. Ao contrário, não existe nenhuma Constituição democrática, a começar pela Constituição republicana da Itália, que não pressuponha a existência de indivíduos singulares que têm direitos enquanto tais. E como seria possível dizer que eles são “invioláveis” se não houvesse o pressuposto de que, axiologicamente, o indivíduo é superior à sociedade de que faz parte? (...)

A democracia moderna repousa na soberania não do povo, mas dos cidadãos. O povo é uma abstração, que foi frequentemente utilizada para encobrir realidades muito diversas. Foi dito que, depois do nazismo, a palavra VoIk tornou-se impronunciável. E quem não se lembra que o órgão oficial do regime fascista se chama Il Popolo d‘Italia? Não gostaria de ser mal entendido, mas até mesmo a palavra “peuple”, depois do abuso que dela se fez durante a Revolução Francesa, tornou-se suspeita: o povo de Paris derruba a Bastilha, promove os massacres de setembro, julga e executa o rei. Mas o que esse “povo” tem a ver com os cidadãos de uma democracia contemporânea? O mesmo equívoco se ocultava no conceito de populus romanus, ou de povo das cidades medievais, que impunha, entre outras coisas, a distinção entre povo graúdo e povo miúdo. À medida que a democracia real se foi desenvolvendo, a palavra “povo” tornou-se cada vez mais vazia e retórica, embora também a Constituição italiana enuncie o princípio de que “a soberania pertence ao povo”. Numa democracia moderna, quem toma as decisões coletivas, direta ou indiretamente, são sempre e somente os cidadãos uti singuli, no momento em que depositam o seu voto na urna. Não é um corpo coletivo. Se não fosse assim, não teria nenhuma justificação a regra da maioria, que é a regra fundamental do governo democrático. A maioria e o resultado da soma aritmética, onde o que se somam são os votos de indivíduos singulares, precisamente daqueles indivíduos que a ficção de um estado de natureza pré-político permitiu conceber como dotados de direitos originários, entre os quais o de determinar – mediante sua livre vontade própria – as leis que lhe dizem respeito.

Se a concepção individualista da sociedade for eliminada, não será mais possível justificar a democracia como uma boa forma de governo. Todas as doutrinas reacionárias, passaram através das várias concepções antiindividualistas.”

 

 

“Dissemos que a Declaração de 1789 foi precedida pela norte-americana. Uma indiscutível verdade. Mas foram os princípios de 1789 que constituíram, durante um século ou mais, a fonte ininterrupta de inspiração ideal para os povos que lutavam por sua liberdade e, ao mesmo tempo, o principal objeto de irrisão e desprezo por parte dos reacionários de todos os credos e facções, que escarneciam “a apologia das retumbantes blagues da Revolução Francesa: Justiça, Fraternidade, Igualdade, Liberdade”. O significado histórico de 1789 não escapou a Tocqueville, embora ele tenha sido o primeiro grande historiador a refutar a imagem que a Revolução tivera de si mesma: “O tempo em que foi concebida a Declaração foi o tempo de juvenil entusiasmo, de orgulho, de paixões generosas e sinceras, tempo do qual, apesar de todos os erros, os homens iriam conservar eterna memória e que, por muito tempo ainda, perturbará o sono dos que querem subjugar ou corromper os homens.”

Num dos muitos documentos contrarrevolucionários de Pio VI, contemporâneo dos eventos, chama-se de “direito monstruoso” o direito de liberdade de pensamento e de imprensa, “deduzido da igualdade e da liberdade de todos os homens”, e se comenta: “Não se pode imaginar nada mais insensato do que estabelecer uma tal igualdade e uma tal liberdade entre nós.” Cerca de dois séculos depois, numa mensagem ao secretário das Nações Unidas por ocasião do trigésimo aniversário da Declaração Universal, João Paulo II aproveitava a oportunidade para demonstrar “o seu constante interesse e solicitude ‘pelos direitos humanos fundamentais, cuja expressão encontramos claramente formulada na mensagem do próprio Evangelho’”. Que melhor prova poderíamos ter do caminho vitorioso realizado por aquele texto em sua secular história? No final desse caminho, parece agora ter ocorrido, para além dos insensatos e estéreis facciosismos, a reconciliação do pensamento cristão com uma das mais altas expressões do pensamento racionalista e laico.”

 

 

“Nos tempos de hoje, quando a cega vontade de poder que dominou a história do mundo tem a seu serviço meios extraordinários para se impor, menos do que nunca a honra do douto pode ser separada de um renovado senso de responsabilidade, no duplo significado da palavra, para o qual ser responsável quer dizer, por um lado, levar em conta as consequências da própria ação, e, por outro, responder pelas próprias ações diante de nosso próximo. Em outras palavras: trata-se de evitar tanto a fuga na pura ética das boas intenções (“faça o que deve e que ocorra o que tiver de ocorrer”) quanto o fechamento num esplêndido isolamento (“desprezo o som de tua harpa, que me impede de escutar a voz da justiça”).

À medida que nossos conhecimentos se ampliaram (e continuam a se ampliar) com velocidade vertiginosa, a compreensão de quem somos e para onde vamos tornou-se cada vez mais difícil. Contudo, ao mesmo tempo, pela insólita magnitude das ameaças que pesam sobre nós, essa compreensão é cada vez mais necessária. Esse contraste entre a exigência incontornável de captar em sua globalidade o conjunto dos problemas que devem ser resolvidos para evitar catástrofes sem precedentes, por um lado, e, por outro, a crescente dificuldade de dar respostas sensatas a todas as questões que nos permitiriam alcançar aquela visão global, única a permitir um pacífico e feliz desenvolvimento da humanidade, esse contraste é um dos muitos paradoxos de nosso tempo, e, ao mesmo tempo, uma das razões das angústias em que se encontra o estudioso, ao qual é confiado, de modo eminente, o exercício da inteligência esclarecedora, bem como o empenho em não deixar irrealizada nenhuma tentativa para acolher o desafio posto à razão pelas paixões incontroladas e pelo mortal conflito dos interesses.”

 

 

“Kant sabia muito bem que a mola do progresso não é a calmaria, mas o conflito. Todavia, compreendera que existe um limite para além do qual o antagonismo se faz demasiadamente destrutivo, tornando-se necessário um autodisciplinamento do conflito, que possa chegar até a constituição de um ordenamento civil universal. Numa época de guerras incessantes entre Estados soberanos, ele observa lucidamente que “a liberdade selvagem” dos Estados já constituídos, “por causa do emprego de todas as forças da comunidade nos armamentos, das devastações que decorrem das guerras e, mais ainda, da necessidade de manter-se continuamente em armas, impede, por um lado, o pleno e progressivo desenvolvimento das disposições naturais, e, por outro, em função dos males que daí derivam, obrigará a nossa espécie a buscar uma lei de equilíbrio entre muitos Estados que, pela sua própria liberdade, são antagonistas, bem como a estabelecer um poder comum que dê força a tal lei, de modo a fazer surgir um ordenamento cosmopolita de segurança pública”.”

 

 

“Uma das características marcantes das ideologias políticas do século XIX, que deixou de merecer a devida atenção, foi a crença no fenecimento natural do Estado. Tendo chegado com Hegel à sua máxima expressão a ideia, cara aos grandes filósofos políticos da época moderna (a Hobbes, a Rousseau, a Kant), de que o Estado era a realização do domínio da razão na história, o “racional em si e para si”, todas as grandes correntes políticas do século passado inverteram o caminho, passando a contrapor a sociedade ao Estado, descobrindo na sociedade (e não no Estado) as forças que se orientam no sentido da libertação e do progresso histórico, e vendo no Estado uma forma residual arcaica, em via de extinção, do poder do homem sobre o homem. Dessa desvalorização – que foi uma típica expressão da profunda transformação produzida na sociedade, e, por reflexo, na concepção geral da sociedade e do progresso histórico, pelo crescimento da sociedade industrial e pela ideia de que os homens deviam agora se deixar guiar mais pelas leis naturais da economia do que pelas leis artificiais da política –, são conhecidas essencialmente três versões: a liberalista* à Spencer, segundo a qual o Estado, nascido e fortalecido nas sociedades militares, iria perder grande parte de suas funções à medida que fosse crescendo a sociedade industrial; a socialista marx-engelsiana, segundo a qual, depois do Estado burguês, haveria certamente uma ditadura, mas cuja finalidade era suprimir no futuro qualquer forma de Estado; a libertária, de Godwin a Proudhon e Bakunin, segundo a qual as instituições políticas, caracterizadas pelo exercício da força, ao contrário do que haviam suposto Hobbes e Hegel (os grandes teóricos do Estado moderno), não só não eram indispensáveis para salvar o homem da barbárie do estado de natureza ou da insensatez da sociedade civil, mas eram inúteis, ou melhor, danosas, podendo tranquilamente desaparecer sem deixar traço ou saudade.”

*: Nota do tradutor: Em italiano, há termos diversos para caracterizar o defensor do liberalismo no terreno político (liberale) e o defensor de uma irrestrita liberdade de mercado (liberista)

 

 

“Do ponto de vista institucional, o Estado liberal e (posteriormente) democrático, que se instaurou progressivamente ao longo de todo o arco do século passado, foi caracterizado por um processo de acolhimento e regulamentação das várias exigências provenientes da burguesia em ascensão, no sentido de conter e delimitar o poder tradicional. Dado que tais exigências tinham sido feitas em nome ou sob a espécie do direito à resistência ou à revolução, o processo que deu lugar ao Estado liberal e democrático pode ser corretamente chamado de processo de “constitucionalização” do direito de resistência e de revolução. Os institutos através dos quais se obteve esse resultado podem ser diferenciados com base nos dois modos tradicionais mediante os quais se supunha que ocorresse a degeneração do poder: o abuso no exercício do poder (otyrannus quoad exercitium) e o déficit de legitimação (o tyrannus absque titulo). Como tive ocasião de esclarecer melhor em outro local, essa diferença pode se tornar ainda mais clara se recorrermos à distinção entre dois conceitos (que, habitualmente, não são devidamente distinguidos): o de legalidade e o de legitimidade.”

 

 

“Agora sabemos com certeza algumas coisas: a) o desenvolvimento da sociedade industrial não diminuiu as funções do Estado, como acreditavam os liberais que juravam sobre a validade absoluta das leis da evolução, mas aumentou-as desmesuradamente; b) nos países onde ocorreu a revolução socialista, a ideia do desaparecimento do Estado foi por enquanto posta de lado; c) as ideias libertárias continuam a alimentar pequenos grupos de utopistas sociais, não se transformando num real movimento político. O enorme interesse suscitado nestes últimos anos pela obra de Max Weber depende também do fato de que ele, como bom conservador e como realista desencantado (como costumam ser os conservadores com inspiração religiosa), viu o avanço ameaçador mas inelutável, que se dá conjuntamente com o desenvolvimento da sociedade industrial (tivesse essa sido promovida por uma camada empresarial ou por uma classe de funcionários do Estado coletivista), da era do domínio dos aparelhos burocráticos; ou seja, não o enfraquecimento, mas o fortalecimento do Estado.

Do ponto de vista institucional, a situação de nosso tempo caracteriza-se não só (como é natural) nos países de economia coletivista, mas também nos países capitalistas – por um processo inverso ao que designamos como desmonopolização do poder econômico e ideológico, ou seja, por um processo que se orienta tanto para a remonopolização do poder econômico, através da progressiva concentração das empresas e dos bancos, quanto para a remonopolização do poder ideológico, através da formação de grandes partidos de massa, chegando ao limite do partido único, que detém o direito, em medida maior do que o soberano absoluto de outrora (um verdadeiro “novo Príncipe”), de estabelecer o que é bom e o que é mau para a salvação dos próprios súditos, bem como através do controle que os detentores do poder econômico exercem, nos países capitalistas, sobre os meios de formação da opinião pública.

A ilusão jurídico-institucional do século passado consistia em crer que o sistema político fosse ou autossuficiente (e, portanto, gozasse de certa independência em face do sistema social global), ou fosse ele mesmo o sistema dominante (e, portanto, que bastasse buscar remédios aptos a controlar o sistema político para controlar, com isso, o sistema de poder da sociedade como um todo). Hoje, ao contrário, estamos cada vez mais conscientes de que o sistema político é um subsistema do sistema global, e de que o controle do primeiro não implica absolutamente o controle do segundo. Dos quatro remédios de que falamos no item anterior, o que parecia mais decisivo, o quarto (ou o controle a partir de baixo, o poder de todos, a democracia participativa, o Estado baseado no consenso, a realização no limite do ideal rousseauísta da liberdade como autonomia), é também aquele para o qual se orientam, com particular intensidade, as formas mais recentes e mais insistentes de contestação.

Quando comparada à democracia de inspiração rousseauísta, com efeito, a participação popular nos Estados democráticos reais está em crise por pelo menos três razões: a) a participação culmina, na melhor das hipóteses, na formação da vontade da maioria parlamentar; mas o parlamento, na sociedade industrial avançada, não é mais o centro do poder real, mas apenas, frequentemente, uma câmara de ressonância de decisões tomadas em outro lugar; b) mesmo que o parlamento ainda fosse o órgão do poder real, a participação popular limita-se a legitimar, a intervalos mais ou menos longos, uma classe política restrita que tende à própria autoconservação, e que é cada vez menos representativa; c) também no restrito âmbito de uma eleição una tantum sem responsabilidades políticas diretas, a participação é distorcida, ou manipulada, pela propaganda das poderosas organizações religiosas, partidárias, sindicais, etc. A participação democrática deveria ser eficiente, direta e livre: a participação popular, mesmo nas democracias mais evoluídas, não é nem eficiente, nem direta, nem livre. Da soma desses três déficits de participação popular nasce a razão mais grave de crise, ou seja, a apatia política, o fenômeno, tantas vezes observado e lamentado, da despolitização das massas nos Estados dominados pelos grandes aparelhos partidários. A democracia rousseauísta ou é participativa ou não é nada.”

 

 

“A tolerância não implica a renúncia à própria convicção firme, mas implica pura e simplesmente a opinião (a ser eventualmente revista em cada oportunidade concreta, de acordo com as circunstâncias e as situações) de que a verdade tem tudo a ganhar quando suporta o erro alheio, já que a perseguição, como a experiência histórica o demonstrou com frequência, em vez de esmagá-lo, reforça-o. A intolerância não obtém os resultados a que se propõe. Mesmo nesse nível elementar, capta-se a diferença entre o tolerante e o cético: o cético é aquele para quem não importa que a fé triunfe; o tolerante por razões práticas dá muita importância ao triunfo de uma verdade, a sua, mas considera que, através da tolerância, o seu fim, que é combater o erro ou impedir que ele cause danos, é melhor alcançado do que mediante a intolerância.”

 

 

“Enquanto a tolerância como mero ato de suportar o mal e o erro é doutrina teológica, a tolerância como algo que implica o método da persuasão foi um dos grandes temas dos sábios mais iluminados, que contribuíram para fazer triunfar na Europa o princípio de tolerância, ao término das sangrentas guerras de religião. Na ilha da Utopia, pratica-se a tolerância religiosa; e Utopo explica as suas razões do seguinte modo: “Seria temerário e tolo (Insolens et ineptum) pretender, através de violências e ameaças, que aquilo que tu crês verdadeiro apareça como tal para todos. Além do mais, sobretudo se só uma religião fosse verdadeira e todas as outras falsas, (Utopo) prevê que, no futuro, contanto que se proceda de modo racional e moderado, a verdade virá finalmente à luz, impondo-se por seus próprios méritos. Se, ao contrário, as contendas se dessem entre armas e brigas, dado que precisamente os piores são os mais obstinados, a melhor e mais santa das religiões estaria destinada a ser esmagada na luta, em meio às mais vãs superstições, como trigo em meio ao joio.” O maior teórico da tolerância, John Locke, escreveu:

Seria de desejar que um dia se permitisse a verdade defender-se por si só. Muito pouca ajuda lhe conferiu o poder dos grandes, que nem sempre a conhecem e nem sempre lhe são favoráveis. (...) A verdade não precisa da violência para ser ouvida pelo espírito dos homens; e não se pode ensiná-la pela boca da lei. São os erros que reinam graças à ajuda externa, tomada emprestada de outros meios. Mas a verdade, se não é captada pelo intelecto com sua luz, não poderá triunfar com a força externa.”

 

 

“Uma das definições possíveis de democracia é a que põe em particular evidência a substituição das técnicas da força pelas técnicas da persuasão como meio de resolver conflitos.”

 

 

“Se o outro deve chegar à verdade, deve fazê-lo por convicção íntima e não por imposição. Desse ponto de vista, a tolerância não é apenas um mal menor, não é apenas a adoção de um método de convivência preferível a outro, mas é a única resposta possível à imperiosa afirmação de que a liberdade interior é um bem demasiadamente elevado para que não seja reconhecido, ou melhor, exigido. A tolerância, aqui, não é desejada porque socialmente útil ou politicamente eficaz, mas sim por ser um dever ético. Também nesse caso o tolerante não é cético, porque crê em sua verdade. Tampouco é indiferente, porque inspira sua própria ação num dever absoluto, como é o caso do dever de respeitar a liberdade do outro.

 

 

“Ao lado dessas três doutrinas, que consideram a tolerância do ponto de vista da razão prática, há outras que a consideram do ponto de vista teórico, ou do ponto de vista da própria natureza da verdade. São as doutrinas segundo as quais a verdade só pode ser alcançada através do confronto, ou mesmo da síntese de verdades parciais. Segundo tais doutrinas, a verdade não é una. A verdade tem muitas faces. Vivemos não num universo, mas num multiverso. Num multiverso, a tolerância não é apenas um método de convivência, não é apenas um dever moral, mas uma necessidade inerente à própria natureza da verdade.

São pelo menos três as posições filosóficas representativas dessa exigência: o sincretismo, de que foi expressão, na época das grandes controvérsias teológicas, o humanismo cristão, e hoje, numa época de grandes conflitos ideológicos, as várias tentativas de conjugar cristianismo e marxismo; o ecletismo, ou filosofia do “justo meio”, que teve o seu breve momento de celebridade como filosofia da restauração, e, portanto, também numa perspectiva irênica, após período de choque violento entre revolução e reação, revivendo hoje nas várias propostas de “terceira via”, entre liberalismo e socialismo, entre mundo ocidental e mundo oriental, entre capitalismo e coletivismo; e o historicismo relativista, segundo o qual, para retomar a famosa afirmação de Max Weber, numa era de politeísmo de valores, o único templo aberto deveria ser o Panteão, um templo no qual cada um pode adorar seu próprio deus.”

 

 

“Intolerância em sentido positivo é sinônimo de severidade, rigor, firmeza, qualidades todas que se incluem no âmbito das virtudes; tolerância em sentido negativo, ao contrário, é sinônimo de indulgência culposa, de condescendência com o mal, com o erro, por falta de princípios, por amor da vida tranquila ou por cegueira diante dos valores. É evidente que, quando fazemos o elogio da tolerância, reconhecendo nela um dos princípios fundamentais da vida livre e pacífica, pretendemos falar da tolerância em sentido positivo. Mas não devemos jamais esquecer que os defensores da intolerância se valem do sentido negativo para denegri-la: se Deus não existe, então tudo é permitido. De resto, foi precisamente essa a razão pela qual Locke não admitia que se tolerassem os ateus, os quais, segundo uma doutrina comum naquela época, não tinham nenhuma razão para cumprir uma promessa ou observar um juramento, e, portanto, seriam sempre cidadãos em que não se podia confiar. Textualmente: “Para um ateu, nem a palavra dada, nem os pactos, nem os juramentos, que são os liames da sociedade humana, podem ser estáveis ou sagrados: eliminado Deus, ainda que só no pensamento, todas essas coisas caem por terra”.

Tolerância em sentido positivo se opõe a intolerância (religiosa, política, racial), ou seja, à indevida exclusão do diferente. Tolerância em sentido negativo se opõe a firmeza nos princípios, ou seja, à justa ou devida exclusão de tudo o que pode causar dano ao indivíduo ou à sociedade. Se as sociedades despóticas de todos os tempos e de nosso tempo sofrem de falta de tolerância em sentido positivo, as nossas sociedades democráticas e permissivas sofrem de excesso de tolerância em sentido negativo, de tolerância no sentido de deixar as coisas como estão, de não interferir, de não se escandalizar nem se indignar com mais nada. (Nestes dias, recebi um questionário onde se pede apoio à exigência do “direito à pornografia”.)”

 

 

“O único critério razoável é o que deriva da ideia mesma de tolerância, e pode ser formulado assim: a tolerância deve ser estendida a todos, salvo àqueles que negam o princípio de tolerância, ou, mais brevemente, todos devem ser tolerados, salvo os intolerantes. Essa era a razão pela qual Locke considerava que o princípio da tolerância não deveria ser estendido aos católicos, sendo também a que justifica hoje, na esfera da política, a negação do direito de cidadania aos comunistas e aos fascistas. Trata-se, de resto, do mesmo princípio pelo qual se afirma que a regra da maioria não vale para as minorias opressoras, ou seja, para aqueles que, se se tornassem maioria, suprimiriam o princípio da maioria.

Naturalmente, também esse critério de distinção – que, abstratamente, parece claríssimo – não é de fácil realização na prática, como parece à primeira vista, e não pode ser aceito sem reservas.

A razão pela qual não é tão claro como parece quando enunciado reside no fato de que há várias gradações de intolerância e são vários os âmbitos onde a intolerância pode manifestar-se. Não pode ser aceito sem reservas por uma razão de modo algum negligenciável: quem crê na bondade da tolerância o faz não apenas porque constata a irredutibilidade das crenças e opiniões – com a consequente necessidade de não empobrecer, mediante proibições, a variedade de manifestações do pensamento humano –, mas também porque crê na sua fecundidade, e considera que o único modo de fazer com que o intolerante aceite a tolerância não é a perseguição, mas o reconhecimento de seu direito de expressar-se. Responder ao intolerante com a intolerância pode ser formalmente irreprochável, mas é certamente algo eticamente pobre e talvez também politicamente inoportuno. Não estamos afirmando que o intolerante, acolhido no recinto da liberdade, compreenda necessariamente o valor ético do respeito às ideias alheias. Mas é certo que o intolerante perseguido e excluído jamais se tornará um liberal. Pode valer a pena pôr em risco a liberdade fazendo com que ela beneficie também o seu inimigo, se a única alternativa possível for restringi-la até o ponto de fazê-la sufocar, ou, pelo menos, de não lhe permitir dar todos os seus frutos. É melhor uma liberdade sempre em perigo, mas expansiva, do que uma liberdade protegida, mas incapaz de se desenvolver. Somente uma liberdade em perigo é capaz de se renovar. Uma liberdade incapaz de se renovar transforma-se, mais cedo ou mais tarde, numa nova escravidão.”

 

 

“Como sempre, a lição da história é ambígua (e, por isso, é difícil aceitar a tese de que a história é mestra da vida).”

 

 

“Os sinais dos tempos não são apenas faustos. Há também muitos infaustos. Aliás, nunca se multiplicaram tanto os profetas de desventuras como hoje em dia: a morte atômica, a segunda morte, como foi chamada, a destruição progressiva e irrefreável das próprias condições de vida nesta terra, o niilismo moral ou a “inversão de todos os valores”. O século (que chegou ao fim) já começou com a ideia do declínio, da decadência, ou, para usar uma metáfora célebre, do crepúsculo. Mas sempre se vai difundindo, sobretudo por sugestão de teorias físicas apenas ouvidas, o uso de uma palavra muito forte: catástrofe. Catástrofe atômica, catástrofe econômica, catástrofe moral. Havíamos nos contentado até ontem com a metáfora kantiana do homem como madeira torta. Em um dos ensaios mais fascinantes do rigorosíssimo crítico da razão, Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, Kant perguntou a si mesmo como, de uma madeira torta como a que constitui o homem, podia sair algo inteiramente reto. Mas o próprio Kant acreditava na lenta aproximação ao ideal da retificação através dos “conceitos justos”, “grande experiência” e, sobretudo, “boa vontade”. Da divisão da sociedade, razão pela qual a humanidade continua a ir em direção ao pior, e que ele chamava de terrorista, Kant dizia que “recair no pior não pode ser um estado constantemente duradouro na espécie humana porque, em um determinado grau de regressão, ela destruiria a si mesma”. Mas é exatamente a imagem dessa corrida para a autodestruição que aflora nas visões catastróficas de hoje. Segundo um dos mais impávidos e melancólicos defensores da concepção terrorista da história, o homem é um “animal errado”, não culpado, atenção, porque essa é uma velha história que conhecemos bem, culpado, porém redimível e, talvez, sem que ele mesmo saiba, já redimido, mas errado. É possível retificar uma madeira torta. Porém, parece que o erro do qual fala esse amaríssimo intérprete do nosso tempo é incorrigível.”

 

 

“A princípio, a enorme importância do tema dos direitos do homem depende do fato de ele estar extremamente ligado aos dos problemas fundamentais do nosso tempo, a democracia e a paz. O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem são a base das constituições democráticas, e, ao mesmo tempo, a paz é o pressuposto necessário para a proteção efetiva dos direitos do homem em cada Estado e no sistema internacional. Vale sempre o velho ditado – e recentemente tivemos uma nova experiência – que diz inter arma silent leges [durante a guerra, as leis são cegas]. Hoje, estamos cada vez mais convencidos de que o ideal das paz perpétua só pode ser perseguido através de uma democratização progressiva do sistema internacional e que essa democratização não pode estar separada da gradual e cada vez mais efetiva proteção dos direitos do homem acima de cada um dos Estados. Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e efetivamente protegidos não existe democracia, sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos que surgem entre os indivíduos, entre grupos e entre as grandes coletividades tradicionalmente indóceis e tendencialmente autocráticas que são os Estados, apesar de serem democráticas com os próprios cidadãos.

Não será inútil lembrar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem começa afirmando que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, e que, a essas palavras, se associa diretamente a Carta da ONU, na qual à declaração de que é necessário “salvar as gerações futuras do flagelo da guerra”, segue-se logo depois a reafirmação da fé nos direitos fundamentais do homem.

Leio em uma obra recente, Etica y derechos humanos: “Não há dúvidas de que os direitos do homem são uma das maiores invenções da nossa civilização. Se a palavra “invenção” pode parecer forte demais, digamos “inovação” e entendamos “inovação” no sentido em que Hegel dizia que o ditado bíblico “nada de novo sob o sol” não vale para o sol do Espírito, pois o seu curso nunca é uma repetição de si mesmo, mas é a mutável manifestação que o Espírito dá de si mesmo em formas sempre diferentes, é essencialmente o progresso. (...)

Chamem-na de invenção ou inovação, mas quando lemos, não mais em um texto filosófico, como o segundo ensaio sobre o governo civil de Locke, mas em um documento político como a Declaração dos Direitos da Virgínia (1778): “Todos os homens são por natureza igualmente livres e possuem alguns direitos inatos dos quais, ao entrar no estado de sociedade, não podem, por nenhuma convenção, privar nem despojar a sua posteridade”, temos de admitir que nasceu naquele momento uma nova, e quero dizer aqui literalmente sem precedentes, forma de regime político, que não é mais apenas o governo das leis contraposto ao dos homens, já louvado por Aristóteles, mas o governo que é ao mesmo tempo dos homens e das leis, dos homens que fazem as leis, e das leis que encontram um limite em direitos preexistentes dos indivíduos que as próprias leis, e das leis que encontram um limite em direitos preexistentes dos indivíduos que as próprias leis não podem ultrapassar, em uma palavra, o Estado liberal moderno que se desdobra sem solução de continuidade, e por desenvolvimento interno, no Estado democrático.”

 

 

“A primazia do direito não implica de forma alguma a eliminação do dever, pois o direito e dever são dois termos correlatos e não se pode afirmar um direito sem ao mesmo tempo o dever do outro de respeitá-lo.”

 

 

“Em sua dimensão mais ampla, os direitos sociais entraram na história do constitucionalismo moderno com a Constituição de Weimar. A mais fundamentada razão da sua aparente contradição, mas real complementaridade, com relação aos direitos de liberdade é a que vê nesses direitos uma integração dos direitos de liberdade, no sentido de que eles são a própria condição do seu exercício efetivo. Os direitos de liberdade só podem ser assegurados garantindo-se a cada um o mínimo de bem-estar que permite um vida digna.”

 

 

“A relação política por excelência é uma relação entre poder e liberdade. Há uma estreita correlação entre um e outro. Quanto mais se estende o poder de um dos dois sujeitos da relação, mais diminui a liberdade do outro, e vice-versa.”

 

 

“No discurso Le fondement théologique dês droits de l’homme [O fundamento teológico dos direitos do homem], pronunciado em novembro de 1988, o bispo de Roltenburg-Stuttgart, Walter Kasper, escreveu uma frase que pode constituir a conclusão do meu discurso: “Os direitos do homem constituem no dia de hoje um novo ethos mundial”. Naturalmente, é necessário não esquecer que um ethos representa o mundo do dever ser. O mundo real nos oferece, infelizmente, um espetáculo muito diferente. À visionária consciência a respeito da centralidade de uma política tendente a uma formulação, assim como a uma proteção, cada vez melhor dos direitos do homem, corresponde a sua sistemática violação em quase todos os países do mundo, nas relações entre um país e outro, entre uma raça e outra, entre poderosos e fracos, entre ricos e pobres, entre maiorias e minorias, entre violentos e conformados. O ethos dos direitos do homem resplandece nas declarações solenes que permanecem quase sempre, e quase em toda parte, letra morta. O desejo de potência dominou e continua a dominar o curso da história. A única razão para a esperança é que a história conhece os tempos longos e os tempos breves. A história dos direitos do homem, é melhor não se iludir, é a dos tempos longos. Afinal, sempre aconteceu que, enquanto os profetas das desventuras anunciam a desgraça que está prestes a acontecer e convidam à vigilância, os profetas dos tempos felizes olham para longe. (...)

 O tempo vivido não é o tempo real: algumas vezes pode ser mais rápido; algumas vezes, mais lento. As transformações do mundo que vivenciamos nos últimos anos, seja por causa da precipitação da crise de um sistema de poder que parecia muito sólido e, aliás, ambicionava representar o futuro do planeta, seja por causa da rapidez dos progressos técnicos, suscitam em nós o dúplice estado de espírito do encurtamento e da aceleração dos tempos. Sentimo-nos por vezes à beira do abismo e a catástrofe impende. Nós nos salvaremos? Como nos salvaremos? Quem nos salvará? Estranhamente, essa sensação de estar acossados pelos acontecimentos em relação ao futuro contrasta com a sensação oposta do alongamento e refreamento do tempo passado, em relação ao qual a origem do homem remonta cada vez mais para trás. Quanto mais a nossa memória afunda em um passado remoto que continua a se alongar, mais a nossa imaginação se inflama com a ideia de uma corrida sempre mais rápida em direção ao fim. É um pouco o estado de espírito do velho, que conheço bem: para ele, o passado é tudo; o futuro, nada. Teríamos pouco motivo para ficar alegres se não fosse pelo fato de um grande ideal como o dos direitos do homem subverter completamente o sentido do tempo, pois se projeta nos tempos longos, como todo ideal, cujo advento não pode ser objeto de uma previsão, como eu dizia no início, mas apenas de um presságio.”

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

1968: O ano que não terminou (Parte III), de Zuenir Ventura

Editora: Planeta

ISBN: 978-85-7665-361-5

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 286

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Sinopse: Ver Parte I



“Pela movimentação da véspera, podia-se esperar uma sexta-feira, 13, cheia de desassossego. Mas nem a superstição podia adivinhar que aquele dia iria durar mais de uma década. Costa e Silva, segundo seus exegetas, acreditava que o AI-5 acabaria em oito ou nove meses. Costa e Silva acabou antes.

Naquele dia 13, o marechal seria protagonista de um espetáculo em que 22 dos 23 figurantes pareciam dirigidos pela estética de José Celso Martinez Corrêa, que era capaz de dar a uma tragédia a forma de farsa, misturando chanchada, teatro de revista, circo e Chacrinha. Em apenas um ato, os atores que comandavam o país representaram todas as alegorias que o Tropicalismo havia posto na moda: o Cinismo, a Hipocrisia, o Servilismo, a Pusilanimidade, a Lisonja, a Subserviência. Mas isso foi mais tarde.

Às 9h30min da manhã, como estava programado, o presidente compareceu à Escola Naval para presidir as solenidades de formatura de cadetes e a entrega da Ordem do Mérito Naval. Acompanhado dos seus oficiais de gabinete, Costa e Silva foi recebido pelo ministro Augusto Rademaker, pelo comandante da Escola e por outros oficiais.

Antes da cerimônia de declaração dos novos guardas marinha, haveria a entrega das condecorações no pátio externo da Escola Naval.

Enquanto a comitiva presidencial passava por entre as 111 personalidades a serem agraciadas – militares, senadores, deputados, embaixadores – o discreto secretário de imprensa, a alguns metros de distância ia observando a reação dos diversos militares presentes – do exército, da Aeronáutica e da Marinha. Heráclio viu, por exemplo, quando um coronel do Exército encontrou-se com o general César Montagna e perguntou:

– Olá chefe. Como que está o senhor?

– Como é que posso estar rapaz? Estou com meu clube, quero o AI-5.

Como membro da comitiva, o major D’Aguiar pôde perceber o mal-estar do ambiente:

O lugar estava engalanado, muito bonito, mas nós fomos mal-recebidos; as fisionomias estavam fechadas, carrancudas, não havia aquela espontaneidade, alegria de outras solenidades. O presidente foi recebido quase friamente. Estava todo mundo desconfiado de todo mundo.

Talvez por isso, o general Portella tenha tido que repetir tantas vezes o que dissera a noite toda, sem trair o segredo, mas como uma senha: “Não sei qual é a decisão, mas é pra valer”.

Da solenidade na Escola Naval, o presidente foi direto para a reunião com seu alto comando, às onze horas no Laranjeiras, onde pediu a cada um dos presentes que desse a sua opinião sobre a medida que iria adotar. Ao chegar atrasado, o ministro da justiça provocou os dois únicos momentos de riso daquele encontro de tenebrosas intenções: o primeiro, quando o presidente resolveu gozar o atraso de Gama e Silva; o segundo, quando esse fez a sua exposição, começando por ler um manifesto à nação, para em seguida propor um ato adicional tão radical que o próprio Lira Tavares interrompeu-o, arrancando risos gerais:

– Assim, não, Gama; assim você desarruma a casa toda.

Gama e Silva propunha o recesso do Supremo Tribunal Federal e um fechamento definitivo do Congresso, das Assembleias e das câmaras de vereadores. Não era aquilo que o presidente queria. Gaminha não se abalou: tirou rapidamente da pasta o rascunho de outro texto menos drástico.

A reunião não ofereceu surpresas. Costa e Silva levara anotações das medidas a serem tomadas e, no final, pediu ao ministro da justiça e ao deputado Rondon Pacheco que transformasse o esboço no que viria a ser o Ato Institucional nº 5. Mas antes, por sugestão de Rondon, mandou chamar os ministros do Planejamento e da Fazenda para saber se a medida provocaria repercussões negativas na política econômico-financeira do governo. Jayme Portella, o emissário da convocação, relata: “Os ministros Hélio Beltrão e Delfím Neto declararam que nada a afetava, podendo ser o ato editado tranquilamente”.

Logo depois da reunião preliminar, às 13 horas, o presidente autorizou que as decisões ali tomadas fossem comunicadas, em “caráter sigiloso”, aos escalões subordinados.

Alguns ex-assessores do presidente Costa e Silva alimentam até hoje a ilusão de que, se o ato proposto tivesse encontrado uma razoável oposição, alguma fórmula menos radical teria sido encontrada.

“Estou convencido”, diz D’Aguiar, “que se houvesse uma divisão grande – Pedro Aleixo, por exemplo, e mais oito ou nove de um lado – o presidente procuraria outra solução que não o AI-5”.

Como é uma hipótese, vale a pena introduzir outra: se, antes mesmo da oficialização, os principais escalões das Forças Armadas iam tomar conhecimento da decisão, que exigiam impacientemente há pelo menos 24 horas, seria possível admitir outro desfecho para a reunião das 17 horas?

Por uma razão ou por outra, Costa e Silva resolveu realizá-la com toda a liturgia de uma reunião histórica, decisiva, embora na prática ela só tivesse valor simbólico, já que o Conselho de Segurança Nacional, sem poder deliberativo, iria apenas sancionar uma decisão já tomada.

O presidente apresentava naquela tarde a disposição de quem se preparara para não perder nada do espetáculo que ia dirigir; nem a excitação em que se encontrava ele queria diminuir. Quando, às 16 horas, o seu médico, Dr. Élcio Simões, tirou-lhe a pressão e, assustado quis medicá-lo imediatamente,– segundo D’Aguiar, ela atingira 20 por 13, Costa e Silva retrucou:

– Não, hoje preciso dela bem alta.

Com a pressão mantida, o presidente Costa e Silva abriu uma hora depois, a 43ª sessão do Conselho de Segurança Nacional, no salão de despachos no segundo andar do palácio das Laranjeiras.

Quando era conduzido do seu gabinete pelo general Portella, o presidente encontrou o seu vice, a quem fez o carinho de segurá-lo pelo braço e levá-lo a um canto para uma conversa a dois. Segundo várias testemunhas, inclusive familiares, um tinha pelo outro muito apreço e respeito. “Dificilmente” – escreveria mais tarde José Carlos Brandi Aleixo num livro sobre o pai, “se encontrará na história republicana, um relacionamento tão correto e cordial entre um presidente e um vice como no caso de Costa e Silva e Pedro Aleixo”. Aleixo era tido como um conselheiro que pesava nas decisões do presidente, embora naquele dia isso não fosse ocorrer.

Observadores da cena, como Portella e D’Aguiar, calculam que os dois tenham conversado ali na porta do salão uma meia hora. Para quem estava ansioso em começar a reunião, olhando o relógio a cada instante e chamando a atenção do chefe do gabinete militar para o horário, o tempo gasto na conversa dava a medida da importância do interlocutor.

Aleixo que não participara da reunião das onze horas – vindo de Belo Horizonte, ele chegou depois, acompanhado do ministro Passarinho – expunha a sua desaprovação à medida a ser adotada. O vice procurava convencer o presidente de que o Estado de Sítio era o instrumento constitucional indicado para resolver a crise. A conversa foi interrompida quando os membros do conselho já estavam entrando no salão para ocupar seus lugares, em frente aos quais havia uma pasta com algumas folhas de papel datilografadas.

Na cabeceira, dois gravadores iriam funcionar como incômodos instrumentos da História.

Em volta da mesa e do presidente estavam sentados, os ministros e chefes do Estado Maior, isto é, as 24 autoridades mais poderosas do país. Costa e Silva abriu a reunião anunciando que o momento era crítico e por isso teria que tomar “uma decisão optativa”: ou a revolução continuava ou se desagregava.

Ele acreditava que todos ali, além do povo, eram testemunhas do seu empenho em promover a união da área política e da área militar.

Demonstrando ressentimento pelo que classificava de falta de apoio político, o presidente não se conformava com a recusa do Congresso. As “considerações” que o seu governo dispensara aos políticos já lhe tinham criado inclusive problemas na área militar e revolucionária.

O presidente declarava não ter apego ao cargo e desejava chegar rapidamente ao fim do governo para passá-lo a quem pudesse promover a “harmonia entre a área política e a área militar, porque sem ela o Brasil irá à desagregação”.

Em seguida, comunicou que se retiraria por uns 15 minutos para que os conselheiros pudessem ler mais à vontade o documento que estava nas pastas, o AI-5.

Vinte minutos depois, Costa e Silva voltava ao salão, conduzido pelo general Portella, e dava a palavra a Pedro Aleixo, “a maior autoridade deste conselho”.

O tom sereno do discurso do vice-presidente, a segurança da argumentação e a coragem de enfrentar uma plateia contrária, iriam impressionar até quem dele discordava, como o então major D'Agiar, que ainda se comove com a lembrança: “Ele parecia tocado pelo Divino Espírito Santo: fez uma corajosa, emocionante, brilhantíssima exposição”.

O orador começou sustentando que o caso Márcio Alves deveria ser encaminhado mais na área política do que propriamente na área jurídica, porque não seria legítimo esperar da Câmara um processo contra um dos seus membros por palavras proferidas durante os discursos, em debates ou em votos e pareceres. Ele não considerava “aconselhável”, do ponto de vista jurídico, a representação ao Supremo Tribunal Federal. Como o ato praticado implicaria o máximo, segundo Aleixo, crime de injúria, difamação e calúnia, as possíveis sanções ao deputado não poderiam ter o alcance da perda de mandato. O vice-presidente reconhecia o impacto do discurso nas Forças Armadas e admitia ser aquele “um dos momentos mais graves e mais difíceis para a vida nacional”.

Nesta oportunidade, pois, o que me parece aconselhável seria, antes do exame, de um ato institucional, a adoção de uma medida de ordem constitucional que viesse a permitir um melhor exame do caso em todas as suas consequências. A medida seria a suspensão da constituição por intermédio do recurso do estado de sitio, acrescento senhor presidente, que da leitura que fiz do ato Institucional cheguei a sincera conclusão de que o que menos se faz nele, é resguardar a Constituição (...) Da constituição, que é, antes de tudo, um instrumento de uma garantia dos direitos da pessoa humana e da garantia dos direitos políticos, não sobra, nos artigos posteriores, absolutamente nada que possa ser realmente parecido com uma caracterização do regime democrático (...) Pelo Ato Institucional, o que me parece, adotado este caminho, é que estaremos com uma aparente ressalva da existência de vestígios dos poderes constitucionais decorrentes da Constituição de 24-1-67, e instituindo o processo equivalente a uma própria ditadura.

Enfim, a palavra que dava nome real aos verdadeiros objetivos daquela solene encenação: ditadura. Aleixo admitia que pudesse haver necessidade de adotá-la, mas nesse caso, do ponto de vista jurídico, não havia dúvida: “O Ato Institucional elimina a própria Constituição”. Ele não entendia nenhum ato institucional que não significasse “uma nova revolução”, que não era, para ele, como “a de 31 de março de 1964”.

“Um dos estudiosos do período, o jornalista Elio Gaspari – quem talvez mais se tenha debruçado sobre os documentos dessa época – acha que Pedro Aleixo cometeu o monumental equívoco de fixar-se numa argumentação jurídica aceitando a possibilidade da ditadura, desde que, ela não se pretendesse constitucional”. Gaspari baseia-se, principalmente, no trecho em que o vice-presidente afirma: “Caso se torne necessário se fazer essa Revolução, é uma matéria que pode ser debatida e acredito até que se possa demonstrar que essa necessidade existe”. Segundo o jornalista, que está escrevendo um livro sobre os governos militares, a linha de argumentação de Aleixo desabou à medida em que ele estava numa mesa de senhores interessados em proclamar uma ditadura, e não em discutir a legalidade do ato”.

Mesmo assim, há indícios evidentes de que o discurso de Pedro Aleixo desagradou a maioria dos presentes, não só pela impaciência com que alguns o ouviram– a ponto de obrigar o presidente, a certa altura, a pedir silêncio – como pelos votos que se seguiram, todos os 22 a favor da edição do AI-5.

Quanto à reação do presidente, há um mistério. Observadores da reunião, como Heráclio Sales e Hernani D’Aguiar, um, assessor de Imprensa, e outro, de Relações Públicas, o primeiro contra o AI-5 e o segundo a favor, mas tendo em comum a mesma vontade de isenção., afirmam que Costa e Silva ficou tão impressionado com a fala de Aleixo que pediu ao sargento que cuidava dos gravadores que voltasse a fita. O pretexto era dar oportunidade aos que, sentados do outro lado da mesa, não perdessem nada do que fora dito. Na verdade, conforme aquelas testemunhas, Costa e Silva teria usado um hábil estratagema para, quem sabe, abalar algumas das convicções presentes e até reverter opiniões.

“Ele tinha esperança de que o Conselho de Segurança Nacional votasse contra”, garante Heráclio que reconstituiu o episódio:

Ficou aquele silêncio constrangedor e a voz de Pedro Aleixo massacrando novamente aquele colegiado todo favorável ao AI-5. Os argumentos jurídicos, políticos, éticos, morais e de conveniência apresentados com aquela lucidez, aquela articulação verbal, um negócio extraordinário.

O depoimento do assessor de Relações Públicas é semelhante.

Ouvida a mesa, determinou o presidente que se repetisse a gravação de toda a exposição de Pedro Aleixo. Talvez movido pelo seu subconsciente, recomendou que todos meditassem sobre as palavras do “ilustre brasileiro Pedro Aleixo”. No mais profundo e respeitoso silêncio, a gravação foi escutada por inteiro. Depois disso o presidente perguntou a cada um dos presentes se mantinham o voto anterior, ou se modificava em face da argumentação repetida.

D’Aguiar não entende porque o seu amigo Jayme Portella não registrou a cena – logo ele, um arguto repórter moderno, nunca desprezou detalhes de hora, clima, gestos, inclusive pequenos flagrantes do presidente fazendo palavras cruzadas em momentos críticos –, enfim tudo aquilo que faz do seu livro, ainda que mal escrito, imprescindível documento para a reconstituição da época.

O único registro oficial da 43ª reunião do Conselho de Segurança Nacional, porém, não se refere ao incidente. Nem a gravação feita por dois gravadores, nem a consequente ata da histórica sessão, arquivadas sigilosamente na Secretaria-Geral do CSN, fornecem sequer vestígios da cena. Sensível, a fita era, porque em uma hora de gravação captou inclusive ruídos de sirene vindos do exterior.

Também a cópia do discurso do vice-presidente, que o general Golbery do Couto e Silva ofereceu à família Aleixo, não contém qualquer registro do gesto de Costa e Silva.

Toda essa controvérsia, no entanto – se a cena de fato ocorreu, se o trecho foi apagado –, tudo isso poderia ser facilmente esclarecido, assim como o verdadeiro desempenho dos personagens. Talvez por efeito do tempo, o que eles disseram na histórica sessão do CSN tem sido oferecido à opinião pública em versões que, ou foram maquiladas pela imaginação, ou sofreram reparações cosméticas operadas pela vergonha retrospectiva de cada um. Neste ano de 88, quando a edição do AI-5 completa duas décadas e a Constituinte extinguiu o CSN, criando o Conselho de Defesa Nacional, alguns dos signatários – como Passarinho, Beltrão, Delfim, por exemplo – prestariam um grande serviço a suas biografias e à História tentando liberar o acesso à fita e à ata, se é que não têm nada a temer.

De mais a mais, a não ser por um suspeito sigilo, não existe razão para manter secreto o registro de uma reunião que foi ostensivamente gravada para a posteridade e da qual participaram duas dúzias de personalidades, além da assistência de uma dezena de observadores: assessores, ajudantes-de-ordens e oficiais de gabinete.

A rigor, o único que deveria temer pela divulgação da fita seria José Celso Martinez Corrêa, porque ela permite descobrir que na verdade a mais autêntica encenação tropicalista do ano não saiu de sua cabeça.

Mas de qualquer maneira, com ou sem reprise, o memorável discurso de Pedro Aleixo não mudou a opinião de qualquer dos outros 22 conselheiros.

Para votar a proposta presidencial, estavam ali dez oficiais-generais (Augusto Haman Rademaker Grunewald, ministro da Marinha; Aurélio de Lira Tavares, ministro do Exército; Márcio de Souza Mello, ministro da Aeronáutica; Afonso Albuquerque Lima, ministro do Interior; Emílio Garrastazu Médici, chefe do SNI; almirante Adalberto de Barros Nunes, chefe do Estado-Maior da Armada; general Adalberto Pereira dos Santos, chefe do Estado-Maior do Exército; general Orlando Geisel, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas; tenente-brigadeiro Carlos Alberto Huet Sampaio, chefe do Estado-Maior da Aeronáutica; e general Jayme Portella, chefe da Casa Militar, três oficiais da Reserva (Mário David Andreazza, ministro dos Transportes; Jarbas G. Passarinho, ministro do Trabalho e Previdência Social; e José Costa Cavalcanti, ministro das Minas e Energias) e dez civis (Pedro Aleixo, vice-presidente da República; José de Magalhães Pinto, ministro das Relações Exteriores; Antônio Delfim Netto, ministro da Fazenda; Ivo Arzua Pereira, ministro da Agricultura; Leonel Miranda, ministro da Saúde; Tarso Dutra, ministro da educação, Hélio Beltrão, ministro do Planejamento; Carlos F. de Simas, ministro das Comunicações; Rondon Pacheco, chefe da Casa Civil; e Luís Antônio Gama e Silva, ministro da Justiça).

Entre eles, seis eram parlamentares: Aleixo, Passarinho, Magalhães, Tarso, Rondon e Costa Cavalcanti.

No papel de memorando em que fazia questão de anotar os votos, o presidente Costa e Silva pôde colocar sim em todos os nomes, com exceção de Pedro Aleixo, à frente do qual escreveu “estado de sítio”, sublinhado várias vezes.

Os 22 eleitores do sim não apresentaram objeções nas suas justificativas de voto. Ressalte-se, ao contrário, o cuidado deles em não deixar dúvidas quanto à disposição de se colocarem intransigentemente a favor. Se Costa e Silva estava de fato esperando resistências, ele não chegou a encontrar nem hesitações. Uns, por inato desapego à dignidade, outros abrindo mão de suas histórias pessoais e muitos, por não tê-las, renunciando à oportunidade de começar a construí-las, aqueles 22 atores preferiam desempenhar o papel que o medo e a covardia lhes impunham. Era, como se disse, uma peça tropicalista: não havia lugar para a ética.

Os tropicalistas achavam que o absurdo brasileiro só poderia ser devolvido artisticamente pelo choque de elementos dramáticos antagônicos – o moderno e o arcaico, o rural e o urbano, a tecnologia e o artesanato, Ipanema e Iracema, banda e Carmem Miranda – encenados sob a forma de paródia. O resultado, hipertrofiado, revelava a realidade como o realismo era incapaz de fazê-lo. O problema é que às vezes a realidade permanecia mais absurda do que sua paródia, deixando o surreal aquém do real. Naquele palco, por exemplo, José Celso teria pouco a acrescentar. Os personagens reais eram suas próprias caricaturas, e o choque entre o que se propunha e as razões pelas quais se dizia aceitar o proposto era um jogo de cinismo que nenhuma transposição dramática conseguiria superar. Além disso, uma retórica de elipses e eufemismos produzia subversões semânticas capazes de colocar a palavra democracia que estava sendo expulsa daquela mesa e do país em quase todos os discursos, enquanto a ditadura, que se instaurava, era tratada como uma ausente distante. Houve até quem usasse o artifício de condená-la no passado para melhor aderir à do presente. Outros, considerando-a inevitável, aproveitaram para seguir o cínico conselho de reação ao estupro: experimentaram um forçado prazer.

Melhor do que ler a sinopse, porém, é assistir a peça. Era, como nenhum dos atores desconhecia, uma farsa. Eles estavam reunidos para celebrar um ritual, uma espécie de missa negra. Podia-se fingir ali qualquer reação, menos ingenuidade. Todos sabiam que aquele ato significava o início de uma ditadura explícita e declarada cujos efeitos eram óbvios.

Como anunciava o texto que todos foram obrigados a ler, ia-se fechar o Congresso por tempo indeterminado, interrompiam-se as garantias constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, podia-se cassar, demitir, transferir, reformar funcionários civis e militares a vontade e suspendia-se o habeas corpus, o que – com o reforço da posterior Lei de Segurança Nacional – permitia manter qualquer preso acusado de delito político em regime de incomunicabilidade por dez dias – cinco a mais do que o Alvará de 1705, usado para extorquir as confissões dos Inconfidentes.

Para encenar esse rito de celebração, que inaugurava o reino do Arbítrio e da Tortura, o elenco se apresentava completo.”

 

 

“A palavra ditadura só foi usada, depois de Aleixo, por três conselheiros: Magalhães Pinto, Passarinho e Hélio Beltrão. O primeiro admitia, citando o vice-presidente, que realmente aquele ato estava instituindo uma ditadura, mas “se ela é necessária, devemos tomar as responsabilidades de fazê-la”.

Passarinho não tinha dúvida de que era “uma ordem ditatorial” o que se estava instalando ali. “Repugna enveredar pelo caminho da ditadura”, confessava, para ressalvar: “É esta que está diante de nós”. Se era inevitável, propunha, então o ministro do Trabalho: “Às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência”.”

 

 

“Sobre Pedro Aleixo, Costa e Silva disse: “Peço a Deus que não me venha convencer amanhã de que ele é que estava certo, porque ele admitiu mesmo a hipótese do Ato final, porque entendo, como entende o Conselho na sua sabedoria de maioria, de quase unanimidade, que nesta escalada o degrau proposto se torna evidentemente desnecessário”.

O presidente terminou a sua exposição com um desabafo: “Eu confesso que é com verdadeira violência aos meus princípios e ideias que adoto uma atitude como esta. Adoto-as convencido de que elas são do interesse do país, do interesse nacional, que demos um basta à contrarrevolução”.”

 

 

“Às 22h30min, o ministro da Justiça e o locutor Alberto Cury, liam, em cadeia de TV, os seis considerandos e os 12 artigos que compunham o Ato Institucional nº 5, e mais o Ato Complementar n° 38, que decretava o recesso do Congresso. Foi uma leitura monótona e ameaçadora como uma sentença de morte: “O presidente da República poderá decretar...” repetiu incansavelmente o locutor.

A exemplo daquelas orações, todas regidas por um único sujeito, 90 milhões de brasileiros, a partir daquele momento, iriam ser comandados também por uma única vontade.”

 

 

“Em dez anos de vigência, o AI-5 já tivera tempo de punir 1607 cidadãos, dos quais 321 cassados: seis senadores, 110 deputados federais e 161 estaduais, 22 prefeitos, 22 vereadores – mais de seis milhões de votos anulados. Além da cassação, todos os senadores e 100 deputados federais tiveram seus direitos políticos suspensos por 10 anos. Entre as punições a funcionários públicos, estavam o afastamento de três ministros do Supremo Tribunal Federal – Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Vítor Nunes Leal – e de professores universitários como Caio Prado Júnior – condenado a quatro anos e meio de prisão por uma entrevista a um jornal estudantil – Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Mário Schemberg, Vilanova Artigas, Hélio Lourenço de Oliveira e uma dezena de pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, entre outros, muitos outros.

Paralelamente a essa caçada aos criadores, o AI-5 desenvolveu um implacável expurgo nas obras criadas. Em dez anos, cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovela foram censurados. Só Plínio Marcos teve 18 peças vetadas. O índex reunia um elenco variado, que ia de Chico Buarque, um dos artistas mais censurados e perseguidos da época, a Dercy Gonçalves e Clóvis Bornay. A violência, que o marechal Costa e Silva confessou ter sentido ao editar o AI-5, ia deixar de ser uma figura de retórica. A partir do dia 13 de dezembro de 1968, ela se abateria de fato sobre a alma e a carne de toda uma geração.”

 

 

“O que se pretendia fazer com o ex-presidente Juscelino Kubitschek, o escritor Carlos Heitor Cony pôde sentir nessa mesma noite ao ser preso no Leme. Conduzido para o Batalhão de Guardas, em São Cristóvão, ele assustou-se com a tropa embarcada num camburão. Cony contaria mais tarde:

– Um oficial muito moço, levando-me para a cela, onde já estava o jornalista Joel Silveira, explicou-me: “Esse pessoal aí de fora vai ter hoje muito trabalho”.

– Que tipo de trabalho? – indagou o prisioneiro. - Vamos fuzilar o Juscelino e o Lacerda.

Não se sabe por que essa vontade não foi cumprida, mas em compensação Juscelino sofreu muito nesses dias em que esteve preso. Em janeiro, uma junta de quatro médicos – Drs. Aloysio Salles, Oswaldo Pinheiro Campos, Décio de Souza e Ruy Goyanna – assinou um laudo sobre o paciente: “Para seu adequado tratamento, julgamos absolutamente inconveniente a situação de reclusão em que se encontra”.

Fundamentando essa conclusão, os médicos forneciam o diagnóstico do doente:

a) arteriosclerose coronariana; b) hipertensão arterial; c) diabete; d) gota; e) infecção urinária recidivante pós-operatória; f) rotura traumática do tendão de Aquiles esquerdo (em período de imobilização, após tratamento cirúrgico); g) síndrome de depressão psíquica.

Aos 66 anos e mesmo nesse estado, o criador de Brasília não perdia o humor, o que fez dele o mais doce e amoroso presidente que o Brasil já teve. Logo depois de deixar a prisão, ele se encontrou com Vitório Cabral, que se surpreendeu com o gesso na perna do amigo. Rindo, JK explicou:

– Pois é, aqueles merdas me obrigavam a ficar horas e horas em pé respondendo a perguntas idiotas.

O atual secretário de Planejamento do Estado do Rio comove-se com a lembrança:

– Juscelino dizia isso sem ódio, quase brincando, com uma grandeza impressionante. Ele sabia que tudo aquilo ia sair na urina da História.

De fato, todos os majores, coronéis e generais que maltrataram Juscelino Kubitschek naqueles tempos seguintes saíram, ao contrário dele, na urina da História.”