Editora: Campus-Elsevier
ISBN: 978-85-352-1561-8
Tradução: Celso Márcio Teixeira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 238
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Sinopse: Ver Parte
I
“Tenho dito frequentemente que, quando nos referimos
a uma democracia, seria mais correto falar de soberania dos cidadãos e não de soberania
popular. “Povo” é um conceito ambíguo, do qual se serviram também todas as ditaduras
modernas. É uma abstração por vezes enganosa: não fica claro que parcela dos indivíduos
que vivem num território é compreendida pelo termo “povo”. As decisões coletivas
não são tomadas pelo povo, mas pelos indivíduos, muitos ou poucos, que o compõem.
Numa democracia, quem toma as decisões coletivas,
direta ou indiretamente, são sempre e apenas indivíduos singulares, no momento em
que depositam seu voto na urna. Isso pode soar mal para quem só consegue pensar
a sociedade como um organismo; mas, quer isso agrade ou não, a sociedade democrática
não é um corpo orgânico, mas uma soma de indivíduos. Se não fosse assim, não teria
nenhuma justificação o princípio da maioria, o qual, não obstante, é a regra fundamental
de decisão democrática. E a maioria é o resultado de uma simples soma aritmética,
onde o que se soma são os votos dos indivíduos, um por um. Concepção individualista
e concepção orgânica da sociedade estão em irremediável contradição. É absurdo perguntar
qual é a mais verdadeira em sentido absoluto. Mas não é absurdo – e sim absolutamente
razoável – afirmar que a única verdadeira para compreender e fazer compreender o
que é a democracia é a segunda concepção, não a primeira.
É preciso desconfiar de quem defende uma concepção
antiindividualista da sociedade. Através do antiindividualismo, passaram mais ou
menos todas as doutrinas reacionárias. Edmundo Burke dizia: “Os indivíduos desaparecem
como sombras; só a comunidade é fixa e estável.” De Maistre declarou peremptoriamente:
“Submeter o governo à discussão individual significa destruí-lo.” Lammenais dizia:
“O individualismo, destruindo a ideia de obediência e de dever, destrói o poder
e a lei”' Não seria muito difícil encontrar citações análogas na esquerda antidemocrática.
Ao contrário, não existe nenhuma Constituição democrática, a começar pela Constituição
republicana da Itália, que não pressuponha a existência de indivíduos singulares
que têm direitos enquanto tais. E como seria possível dizer que eles são “invioláveis”
se não houvesse o pressuposto de que, axiologicamente, o indivíduo é superior à
sociedade de que faz parte? (...)
A democracia moderna repousa na soberania não
do povo, mas dos cidadãos. O povo é uma abstração, que foi frequentemente utilizada
para encobrir realidades muito diversas. Foi dito que, depois do nazismo, a palavra
VoIk tornou-se impronunciável. E quem não se lembra que o órgão oficial do regime
fascista se chama Il Popolo d‘Italia? Não gostaria de ser mal entendido,
mas até mesmo a palavra “peuple”, depois do abuso que dela se fez durante a Revolução
Francesa, tornou-se suspeita: o povo de Paris derruba a Bastilha, promove os massacres
de setembro, julga e executa o rei. Mas o que esse “povo” tem a ver com os cidadãos
de uma democracia contemporânea? O mesmo equívoco se ocultava no conceito de populus
romanus, ou de povo das cidades medievais, que impunha, entre outras coisas,
a distinção entre povo graúdo e povo miúdo. À medida que a democracia real se foi
desenvolvendo, a palavra “povo” tornou-se cada vez mais vazia e retórica, embora
também a Constituição italiana enuncie o princípio de que “a soberania pertence
ao povo”. Numa democracia moderna, quem toma as decisões coletivas, direta ou indiretamente,
são sempre e somente os cidadãos uti singuli, no momento em que depositam
o seu voto na urna. Não é um corpo coletivo. Se não fosse assim, não teria nenhuma
justificação a regra da maioria, que é a regra fundamental do governo democrático.
A maioria e o resultado da soma aritmética, onde o que se somam são os votos de
indivíduos singulares, precisamente daqueles indivíduos que a ficção de um estado
de natureza pré-político permitiu conceber como dotados de direitos originários,
entre os quais o de determinar – mediante sua livre vontade própria – as leis que
lhe dizem respeito.
Se a concepção individualista da sociedade for
eliminada, não será mais possível justificar a democracia como uma boa forma de
governo. Todas as doutrinas reacionárias, passaram através das várias concepções
antiindividualistas.”
“Dissemos que a Declaração de 1789 foi precedida
pela norte-americana. Uma indiscutível verdade. Mas foram os princípios de 1789
que constituíram, durante um século ou mais, a fonte ininterrupta de inspiração
ideal para os povos que lutavam por sua liberdade e, ao mesmo tempo, o principal
objeto de irrisão e desprezo por parte dos reacionários de todos os credos e facções,
que escarneciam “a apologia das retumbantes blagues da Revolução Francesa:
Justiça, Fraternidade, Igualdade, Liberdade”. O significado histórico de 1789 não
escapou a Tocqueville, embora ele tenha sido o primeiro grande historiador a refutar
a imagem que a Revolução tivera de si mesma: “O tempo em que foi concebida a Declaração
foi o tempo de juvenil entusiasmo, de orgulho, de paixões generosas e sinceras,
tempo do qual, apesar de todos os erros, os homens iriam conservar eterna memória
e que, por muito tempo ainda, perturbará o sono dos que querem subjugar ou corromper
os homens.”
Num dos muitos documentos contrarrevolucionários
de Pio VI, contemporâneo dos eventos, chama-se de “direito monstruoso” o direito
de liberdade de pensamento e de imprensa, “deduzido da igualdade e da liberdade
de todos os homens”, e se comenta: “Não se pode imaginar nada mais insensato do
que estabelecer uma tal igualdade e uma tal liberdade entre nós.” Cerca de dois
séculos depois, numa mensagem ao secretário das Nações Unidas por ocasião do trigésimo
aniversário da Declaração Universal, João Paulo II aproveitava a oportunidade para
demonstrar “o seu constante interesse e solicitude ‘pelos direitos humanos fundamentais,
cuja expressão encontramos claramente formulada na mensagem do próprio Evangelho’”.
Que melhor prova poderíamos ter do caminho vitorioso realizado por aquele texto
em sua secular história? No final desse caminho, parece agora ter ocorrido, para
além dos insensatos e estéreis facciosismos, a reconciliação do pensamento cristão
com uma das mais altas expressões do pensamento racionalista e laico.”
“Nos tempos de hoje, quando a cega vontade de
poder que dominou a história do mundo tem a seu serviço meios extraordinários para
se impor, menos do que nunca a honra do douto pode ser separada de um renovado senso
de responsabilidade, no duplo significado da palavra, para o qual ser responsável
quer dizer, por um lado, levar em conta as consequências da própria ação, e, por
outro, responder pelas próprias ações diante de nosso próximo. Em outras palavras:
trata-se de evitar tanto a fuga na pura ética das boas intenções (“faça o que deve
e que ocorra o que tiver de ocorrer”) quanto o fechamento num esplêndido isolamento
(“desprezo o som de tua harpa, que me impede de escutar a voz da justiça”).
À medida que nossos conhecimentos se ampliaram
(e continuam a se ampliar) com velocidade vertiginosa, a compreensão de quem somos
e para onde vamos tornou-se cada vez mais difícil. Contudo, ao mesmo tempo, pela
insólita magnitude das ameaças que pesam sobre nós, essa compreensão é cada vez
mais necessária. Esse contraste entre a exigência incontornável de captar em sua
globalidade o conjunto dos problemas que devem ser resolvidos para evitar catástrofes
sem precedentes, por um lado, e, por outro, a crescente dificuldade de dar respostas
sensatas a todas as questões que nos permitiriam alcançar aquela visão global, única
a permitir um pacífico e feliz desenvolvimento da humanidade, esse contraste é um
dos muitos paradoxos de nosso tempo, e, ao mesmo tempo, uma das razões das angústias
em que se encontra o estudioso, ao qual é confiado, de modo eminente, o exercício
da inteligência esclarecedora, bem como o empenho em não deixar irrealizada nenhuma
tentativa para acolher o desafio posto à razão pelas paixões incontroladas e pelo
mortal conflito dos interesses.”
“Kant sabia muito bem que a mola do progresso
não é a calmaria, mas o conflito. Todavia, compreendera que existe um limite para
além do qual o antagonismo se faz demasiadamente destrutivo, tornando-se necessário
um autodisciplinamento do conflito, que possa chegar até a constituição de um ordenamento
civil universal. Numa época de guerras incessantes entre Estados soberanos, ele
observa lucidamente que “a liberdade selvagem” dos Estados já constituídos, “por
causa do emprego de todas as forças da comunidade nos armamentos, das devastações
que decorrem das guerras e, mais ainda, da necessidade de manter-se continuamente
em armas, impede, por um lado, o pleno e progressivo desenvolvimento das disposições
naturais, e, por outro, em função dos males que daí derivam, obrigará a nossa espécie
a buscar uma lei de equilíbrio entre muitos Estados que, pela sua própria liberdade,
são antagonistas, bem como a estabelecer um poder comum que dê força a tal lei,
de modo a fazer surgir um ordenamento cosmopolita de segurança pública”.”
“Uma das características marcantes das ideologias
políticas do século XIX, que deixou de merecer a devida atenção, foi a crença no
fenecimento natural do Estado. Tendo chegado com Hegel à sua máxima expressão a
ideia, cara aos grandes filósofos políticos da época moderna (a Hobbes, a Rousseau,
a Kant), de que o Estado era a realização do domínio da razão na história, o “racional
em si e para si”, todas as grandes correntes políticas do século passado inverteram
o caminho, passando a contrapor a sociedade ao Estado, descobrindo na sociedade
(e não no Estado) as forças que se orientam no sentido da libertação e do progresso
histórico, e vendo no Estado uma forma residual arcaica, em via de extinção, do
poder do homem sobre o homem. Dessa desvalorização – que foi uma típica expressão
da profunda transformação produzida na sociedade, e, por reflexo, na concepção geral
da sociedade e do progresso histórico, pelo crescimento da sociedade industrial
e pela ideia de que os homens deviam agora se deixar guiar mais pelas leis naturais
da economia do que pelas leis artificiais da política –, são conhecidas essencialmente
três versões: a liberalista* à Spencer, segundo a qual o Estado, nascido e fortalecido
nas sociedades militares, iria perder grande parte de suas funções à medida que
fosse crescendo a sociedade industrial; a socialista marx-engelsiana, segundo a
qual, depois do Estado burguês, haveria certamente uma ditadura, mas cuja finalidade
era suprimir no futuro qualquer forma de Estado; a libertária, de Godwin a Proudhon
e Bakunin, segundo a qual as instituições políticas, caracterizadas pelo exercício
da força, ao contrário do que haviam suposto Hobbes e Hegel (os grandes teóricos
do Estado moderno), não só não eram indispensáveis para salvar o homem da barbárie
do estado de natureza ou da insensatez da sociedade civil, mas eram inúteis, ou
melhor, danosas, podendo tranquilamente desaparecer sem deixar traço ou saudade.”
*: Nota do tradutor: Em italiano, há termos diversos
para caracterizar o defensor do liberalismo no terreno político (liberale) e o defensor
de uma irrestrita liberdade de mercado (liberista)
“Do ponto de vista institucional, o Estado liberal
e (posteriormente) democrático, que se instaurou progressivamente ao longo de todo
o arco do século passado, foi caracterizado por um processo de acolhimento e regulamentação
das várias exigências provenientes da burguesia em ascensão, no sentido de conter
e delimitar o poder tradicional. Dado que tais exigências tinham sido feitas em
nome ou sob a espécie do direito à resistência ou à revolução, o processo que deu
lugar ao Estado liberal e democrático pode ser corretamente chamado de processo
de “constitucionalização” do direito de resistência e de revolução. Os institutos
através dos quais se obteve esse resultado podem ser diferenciados com base nos
dois modos tradicionais mediante os quais se supunha que ocorresse a degeneração
do poder: o abuso no exercício do poder (otyrannus quoad exercitium) e o
déficit de legitimação (o tyrannus absque titulo). Como tive ocasião de esclarecer
melhor em outro local, essa diferença pode se tornar ainda mais clara se recorrermos
à distinção entre dois conceitos (que, habitualmente, não são devidamente distinguidos):
o de legalidade e o de legitimidade.”
“Agora sabemos com certeza algumas coisas: a)
o desenvolvimento da sociedade industrial não diminuiu as funções do Estado, como
acreditavam os liberais que juravam sobre a validade absoluta das leis da evolução,
mas aumentou-as desmesuradamente; b) nos países onde ocorreu a revolução socialista,
a ideia do desaparecimento do Estado foi por enquanto posta de lado; c) as ideias
libertárias continuam a alimentar pequenos grupos de utopistas sociais, não se transformando
num real movimento político. O enorme interesse suscitado nestes últimos anos pela
obra de Max Weber depende também do fato de que ele, como bom conservador e como
realista desencantado (como costumam ser os conservadores com inspiração religiosa),
viu o avanço ameaçador mas inelutável, que se dá conjuntamente com o desenvolvimento
da sociedade industrial (tivesse essa sido promovida por uma camada empresarial
ou por uma classe de funcionários do Estado coletivista), da era do domínio dos
aparelhos burocráticos; ou seja, não o enfraquecimento, mas o fortalecimento do
Estado.
Do ponto de vista institucional, a situação de
nosso tempo caracteriza-se não só (como é natural) nos países de economia coletivista,
mas também nos países capitalistas – por um processo inverso ao que designamos como
desmonopolização do poder econômico e ideológico, ou seja, por um processo que se
orienta tanto para a remonopolização do poder econômico, através da progressiva
concentração das empresas e dos bancos, quanto para a remonopolização do poder ideológico,
através da formação de grandes partidos de massa, chegando ao limite do partido
único, que detém o direito, em medida maior do que o soberano absoluto de outrora
(um verdadeiro “novo Príncipe”), de estabelecer o que é bom e o que é mau para a
salvação dos próprios súditos, bem como através do controle que os detentores do
poder econômico exercem, nos países capitalistas, sobre os meios de formação da
opinião pública.
A ilusão jurídico-institucional do século passado
consistia em crer que o sistema político fosse ou autossuficiente (e, portanto,
gozasse de certa independência em face do sistema social global), ou fosse ele mesmo
o sistema dominante (e, portanto, que bastasse buscar remédios aptos a controlar
o sistema político para controlar, com isso, o sistema de poder da sociedade como
um todo). Hoje, ao contrário, estamos cada vez mais conscientes de que o sistema
político é um subsistema do sistema global, e de que o controle do primeiro não
implica absolutamente o controle do segundo. Dos quatro remédios de que falamos
no item anterior, o que parecia mais decisivo, o quarto (ou o controle a partir
de baixo, o poder de todos, a democracia participativa, o Estado baseado no consenso,
a realização no limite do ideal rousseauísta da liberdade como autonomia), é também
aquele para o qual se orientam, com particular intensidade, as formas mais recentes
e mais insistentes de contestação.
Quando comparada à democracia de inspiração rousseauísta,
com efeito, a participação popular nos Estados democráticos reais está em crise
por pelo menos três razões: a) a participação culmina, na melhor das hipóteses,
na formação da vontade da maioria parlamentar; mas o parlamento, na sociedade industrial
avançada, não é mais o centro do poder real, mas apenas, frequentemente, uma câmara
de ressonância de decisões tomadas em outro lugar; b) mesmo que o parlamento ainda
fosse o órgão do poder real, a participação popular limita-se a legitimar, a intervalos
mais ou menos longos, uma classe política restrita que tende à própria autoconservação,
e que é cada vez menos representativa; c) também no restrito âmbito de uma eleição
una tantum sem responsabilidades políticas diretas, a participação é distorcida,
ou manipulada, pela propaganda das poderosas organizações religiosas, partidárias,
sindicais, etc. A participação democrática deveria ser eficiente, direta e livre:
a participação popular, mesmo nas democracias mais evoluídas, não é nem eficiente,
nem direta, nem livre. Da soma desses três déficits de participação popular nasce
a razão mais grave de crise, ou seja, a apatia política, o fenômeno, tantas vezes
observado e lamentado, da despolitização das massas nos Estados dominados pelos
grandes aparelhos partidários. A democracia rousseauísta ou é participativa ou não
é nada.”
“A tolerância não implica a renúncia à própria
convicção firme, mas implica pura e simplesmente a opinião (a ser eventualmente
revista em cada oportunidade concreta, de acordo com as circunstâncias e as situações)
de que a verdade tem tudo a ganhar quando suporta o erro alheio, já que a perseguição,
como a experiência histórica o demonstrou com frequência, em vez de esmagá-lo, reforça-o.
A intolerância não obtém os resultados a que se propõe. Mesmo nesse nível elementar,
capta-se a diferença entre o tolerante e o cético: o cético é aquele para quem não
importa que a fé triunfe; o tolerante por razões práticas dá muita importância ao
triunfo de uma verdade, a sua, mas considera que, através da tolerância, o seu fim,
que é combater o erro ou impedir que ele cause danos, é melhor alcançado do que
mediante a intolerância.”
“Enquanto a tolerância como mero ato de suportar
o mal e o erro é doutrina teológica, a tolerância como algo que implica o método
da persuasão foi um dos grandes temas dos sábios mais iluminados, que contribuíram
para fazer triunfar na Europa o princípio de tolerância, ao término das sangrentas
guerras de religião. Na ilha da Utopia, pratica-se a tolerância religiosa; e Utopo
explica as suas razões do seguinte modo: “Seria temerário e tolo (Insolens et
ineptum) pretender, através de violências e ameaças, que aquilo que tu crês
verdadeiro apareça como tal para todos. Além do mais, sobretudo se só uma religião
fosse verdadeira e todas as outras falsas, (Utopo) prevê que, no futuro, contanto
que se proceda de modo racional e moderado, a verdade virá finalmente à luz, impondo-se
por seus próprios méritos. Se, ao contrário, as contendas se dessem entre armas
e brigas, dado que precisamente os piores são os mais obstinados, a melhor e mais
santa das religiões estaria destinada a ser esmagada na luta, em meio às mais vãs
superstições, como trigo em meio ao joio.” O maior teórico da tolerância, John Locke,
escreveu:
Seria de desejar que um dia se permitisse a verdade
defender-se por si só. Muito pouca ajuda lhe conferiu o poder dos grandes, que nem
sempre a conhecem e nem sempre lhe são favoráveis. (...) A verdade não precisa da
violência para ser ouvida pelo espírito dos homens; e não se pode ensiná-la pela
boca da lei. São os erros que reinam graças à ajuda externa, tomada emprestada de
outros meios. Mas a verdade, se não é captada pelo intelecto com sua luz, não poderá
triunfar com a força externa.”
“Uma das definições possíveis de democracia é
a que põe em particular evidência a substituição das técnicas da força pelas técnicas
da persuasão como meio de resolver conflitos.”
“Se o outro deve chegar à verdade, deve fazê-lo
por convicção íntima e não por imposição. Desse ponto de vista, a tolerância não
é apenas um mal menor, não é apenas a adoção de um método de convivência preferível
a outro, mas é a única resposta possível à imperiosa afirmação de que a liberdade
interior é um bem demasiadamente elevado para que não seja reconhecido, ou melhor,
exigido. A tolerância, aqui, não é desejada porque socialmente útil ou politicamente
eficaz, mas sim por ser um dever ético. Também nesse caso o tolerante não é cético,
porque crê em sua verdade. Tampouco é indiferente, porque inspira sua própria ação
num dever absoluto, como é o caso do dever de respeitar a liberdade do outro.
“Ao lado dessas três doutrinas, que consideram
a tolerância do ponto de vista da razão prática, há outras que a consideram do ponto
de vista teórico, ou do ponto de vista da própria natureza da verdade. São as doutrinas
segundo as quais a verdade só pode ser alcançada através do confronto, ou mesmo
da síntese de verdades parciais. Segundo tais doutrinas, a verdade não é una. A
verdade tem muitas faces. Vivemos não num universo, mas num multiverso. Num multiverso,
a tolerância não é apenas um método de convivência, não é apenas um dever moral,
mas uma necessidade inerente à própria natureza da verdade.
São pelo menos três as posições filosóficas representativas
dessa exigência: o sincretismo, de que foi expressão, na época das grandes controvérsias
teológicas, o humanismo cristão, e hoje, numa época de grandes conflitos ideológicos,
as várias tentativas de conjugar cristianismo e marxismo; o ecletismo, ou filosofia
do “justo meio”, que teve o seu breve momento de celebridade como filosofia da restauração,
e, portanto, também numa perspectiva irênica, após período de choque violento entre
revolução e reação, revivendo hoje nas várias propostas de “terceira via”, entre
liberalismo e socialismo, entre mundo ocidental e mundo oriental, entre capitalismo
e coletivismo; e o historicismo relativista, segundo o qual, para retomar a famosa
afirmação de Max Weber, numa era de politeísmo de valores, o único templo aberto
deveria ser o Panteão, um templo no qual cada um pode adorar seu próprio deus.”
“Intolerância em sentido positivo é sinônimo de
severidade, rigor, firmeza, qualidades todas que se incluem no âmbito das virtudes;
tolerância em sentido negativo, ao contrário, é sinônimo de indulgência culposa,
de condescendência com o mal, com o erro, por falta de princípios, por amor da vida
tranquila ou por cegueira diante dos valores. É evidente que, quando fazemos o elogio
da tolerância, reconhecendo nela um dos princípios fundamentais da vida livre e
pacífica, pretendemos falar da tolerância em sentido positivo. Mas não devemos jamais
esquecer que os defensores da intolerância se valem do sentido negativo para denegri-la:
se Deus não existe, então tudo é permitido. De resto, foi precisamente essa a razão
pela qual Locke não admitia que se tolerassem os ateus, os quais, segundo uma doutrina
comum naquela época, não tinham nenhuma razão para cumprir uma promessa ou observar
um juramento, e, portanto, seriam sempre cidadãos em que não se podia confiar. Textualmente:
“Para um ateu, nem a palavra dada, nem os pactos, nem os juramentos, que são os
liames da sociedade humana, podem ser estáveis ou sagrados: eliminado Deus, ainda
que só no pensamento, todas essas coisas caem por terra”.
Tolerância em sentido positivo se opõe a intolerância
(religiosa, política, racial), ou seja, à indevida exclusão do diferente. Tolerância
em sentido negativo se opõe a firmeza nos princípios, ou seja, à justa ou devida
exclusão de tudo o que pode causar dano ao indivíduo ou à sociedade. Se as sociedades
despóticas de todos os tempos e de nosso tempo sofrem de falta de tolerância em
sentido positivo, as nossas sociedades democráticas e permissivas sofrem de excesso
de tolerância em sentido negativo, de tolerância no sentido de deixar as coisas
como estão, de não interferir, de não se escandalizar nem se indignar com mais nada.
(Nestes dias, recebi um questionário onde se pede apoio à exigência do “direito
à pornografia”.)”
“O único critério razoável é o que deriva da ideia
mesma de tolerância, e pode ser formulado assim: a tolerância deve ser estendida
a todos, salvo àqueles que negam o princípio de tolerância, ou, mais brevemente,
todos devem ser tolerados, salvo os intolerantes. Essa era a razão pela qual Locke
considerava que o princípio da tolerância não deveria ser estendido aos católicos,
sendo também a que justifica hoje, na esfera da política, a negação do direito de
cidadania aos comunistas e aos fascistas. Trata-se, de resto, do mesmo princípio
pelo qual se afirma que a regra da maioria não vale para as minorias opressoras,
ou seja, para aqueles que, se se tornassem maioria, suprimiriam o princípio da maioria.
Naturalmente, também esse critério de distinção
– que, abstratamente, parece claríssimo – não é de fácil realização na prática,
como parece à primeira vista, e não pode ser aceito sem reservas.
A razão pela qual não é tão claro como parece
quando enunciado reside no fato de que há várias gradações de intolerância e são
vários os âmbitos onde a intolerância pode manifestar-se. Não pode ser aceito sem
reservas por uma razão de modo algum negligenciável: quem crê na bondade da tolerância
o faz não apenas porque constata a irredutibilidade das crenças e opiniões – com
a consequente necessidade de não empobrecer, mediante proibições, a variedade de
manifestações do pensamento humano –, mas também porque crê na sua fecundidade,
e considera que o único modo de fazer com que o intolerante aceite a tolerância
não é a perseguição, mas o reconhecimento de seu direito de expressar-se. Responder
ao intolerante com a intolerância pode ser formalmente irreprochável, mas é certamente
algo eticamente pobre e talvez também politicamente inoportuno. Não estamos afirmando
que o intolerante, acolhido no recinto da liberdade, compreenda necessariamente
o valor ético do respeito às ideias alheias. Mas é certo que o intolerante perseguido
e excluído jamais se tornará um liberal. Pode valer a pena pôr em risco a liberdade
fazendo com que ela beneficie também o seu inimigo, se a única alternativa possível
for restringi-la até o ponto de fazê-la sufocar, ou, pelo menos, de não lhe permitir
dar todos os seus frutos. É melhor uma liberdade sempre em perigo, mas expansiva,
do que uma liberdade protegida, mas incapaz de se desenvolver. Somente uma liberdade
em perigo é capaz de se renovar. Uma liberdade incapaz de se renovar transforma-se,
mais cedo ou mais tarde, numa nova escravidão.”
“Como sempre, a lição da história é ambígua (e,
por isso, é difícil aceitar a tese de que a história é mestra da vida).”
“Os sinais dos tempos não são apenas faustos.
Há também muitos infaustos. Aliás, nunca se multiplicaram tanto os profetas de desventuras
como hoje em dia: a morte atômica, a segunda morte, como foi chamada, a destruição
progressiva e irrefreável das próprias condições de vida nesta terra, o niilismo
moral ou a “inversão de todos os valores”. O século (que chegou ao fim) já começou
com a ideia do declínio, da decadência, ou, para usar uma metáfora célebre, do crepúsculo.
Mas sempre se vai difundindo, sobretudo por sugestão de teorias físicas apenas ouvidas,
o uso de uma palavra muito forte: catástrofe. Catástrofe atômica, catástrofe econômica,
catástrofe moral. Havíamos nos contentado até ontem com a metáfora kantiana do homem
como madeira torta. Em um dos ensaios mais fascinantes do rigorosíssimo crítico
da razão, Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita,
Kant perguntou a si mesmo como, de uma madeira torta como a que constitui o homem,
podia sair algo inteiramente reto. Mas o próprio Kant acreditava na lenta aproximação
ao ideal da retificação através dos “conceitos justos”, “grande experiência” e,
sobretudo, “boa vontade”. Da divisão da sociedade, razão pela qual a humanidade
continua a ir em direção ao pior, e que ele chamava de terrorista, Kant dizia que
“recair no pior não pode ser um estado constantemente duradouro na espécie humana
porque, em um determinado grau de regressão, ela destruiria a si mesma”. Mas é exatamente
a imagem dessa corrida para a autodestruição que aflora nas visões catastróficas
de hoje. Segundo um dos mais impávidos e melancólicos defensores da concepção terrorista
da história, o homem é um “animal errado”, não culpado, atenção, porque essa é uma
velha história que conhecemos bem, culpado, porém redimível e, talvez, sem que ele
mesmo saiba, já redimido, mas errado. É possível retificar uma madeira torta. Porém,
parece que o erro do qual fala esse amaríssimo intérprete do nosso tempo é incorrigível.”
“A princípio, a enorme importância do tema dos
direitos do homem depende do fato de ele estar extremamente ligado aos dos problemas
fundamentais do nosso tempo, a democracia e a paz. O reconhecimento e a proteção
dos direitos do homem são a base das constituições democráticas, e, ao mesmo tempo,
a paz é o pressuposto necessário para a proteção efetiva dos direitos do homem em
cada Estado e no sistema internacional. Vale sempre o velho ditado – e recentemente
tivemos uma nova experiência – que diz inter arma silent leges [durante a
guerra, as leis são cegas]. Hoje, estamos cada vez mais convencidos de que o ideal
das paz perpétua só pode ser perseguido através de uma democratização progressiva
do sistema internacional e que essa democratização não pode estar separada da gradual
e cada vez mais efetiva proteção dos direitos do homem acima de cada um dos Estados.
Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento
histórico: sem direitos do homem reconhecidos e efetivamente protegidos não existe
democracia, sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica
dos conflitos que surgem entre os indivíduos, entre grupos e entre as grandes coletividades
tradicionalmente indóceis e tendencialmente autocráticas que são os Estados, apesar
de serem democráticas com os próprios cidadãos.
Não será inútil lembrar que a Declaração Universal
dos Direitos do Homem começa afirmando que “o reconhecimento da dignidade inerente
a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui
o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, e que, a essas palavras,
se associa diretamente a Carta da ONU, na qual à declaração de que é necessário
“salvar as gerações futuras do flagelo da guerra”, segue-se logo depois a reafirmação
da fé nos direitos fundamentais do homem.
Leio em uma obra recente, Etica y derechos
humanos: “Não há dúvidas de que os direitos do homem são uma das maiores invenções
da nossa civilização. Se a palavra “invenção” pode parecer forte demais, digamos
“inovação” e entendamos “inovação” no sentido em que Hegel dizia que o ditado bíblico
“nada de novo sob o sol” não vale para o sol do Espírito, pois o seu curso nunca
é uma repetição de si mesmo, mas é a mutável manifestação que o Espírito dá de si
mesmo em formas sempre diferentes, é essencialmente o progresso. (...)
Chamem-na de invenção ou inovação, mas quando
lemos, não mais em um texto filosófico, como o segundo ensaio sobre o governo civil
de Locke, mas em um documento político como a Declaração dos Direitos da Virgínia
(1778): “Todos os homens são por natureza igualmente livres e possuem alguns
direitos inatos dos quais, ao entrar no estado de sociedade, não podem, por nenhuma
convenção, privar nem despojar a sua posteridade”, temos de admitir que nasceu naquele
momento uma nova, e quero dizer aqui literalmente sem precedentes, forma de regime
político, que não é mais apenas o governo das leis contraposto ao dos homens, já
louvado por Aristóteles, mas o governo que é ao mesmo tempo dos homens e das leis,
dos homens que fazem as leis, e das leis que encontram um limite em direitos preexistentes
dos indivíduos que as próprias leis, e das leis que encontram um limite em direitos
preexistentes dos indivíduos que as próprias leis não podem ultrapassar, em uma
palavra, o Estado liberal moderno que se desdobra sem solução de continuidade, e
por desenvolvimento interno, no Estado democrático.”
“A primazia do direito não implica de forma alguma
a eliminação do dever, pois o direito e dever são dois termos correlatos e não se
pode afirmar um direito sem ao mesmo tempo o dever do outro de respeitá-lo.”
“Em sua dimensão mais ampla, os direitos sociais
entraram na história do constitucionalismo moderno com a Constituição de Weimar.
A mais fundamentada razão da sua aparente contradição, mas real complementaridade,
com relação aos direitos de liberdade é a que vê nesses direitos uma integração
dos direitos de liberdade, no sentido de que eles são a própria condição do seu
exercício efetivo. Os direitos de liberdade só podem ser assegurados garantindo-se
a cada um o mínimo de bem-estar que permite um vida digna.”
“A relação política por excelência é uma relação
entre poder e liberdade. Há uma estreita correlação entre um e outro. Quanto mais
se estende o poder de um dos dois sujeitos da relação, mais diminui a liberdade
do outro, e vice-versa.”
“No discurso Le fondement théologique dês droits
de l’homme [O fundamento teológico dos direitos do homem], pronunciado em novembro
de 1988, o bispo de Roltenburg-Stuttgart, Walter Kasper, escreveu uma frase que
pode constituir a conclusão do meu discurso: “Os direitos do homem constituem no
dia de hoje um novo ethos mundial”. Naturalmente, é necessário não esquecer
que um ethos representa o mundo do dever ser. O mundo real nos oferece, infelizmente,
um espetáculo muito diferente. À visionária consciência a respeito da centralidade
de uma política tendente a uma formulação, assim como a uma proteção, cada vez melhor
dos direitos do homem, corresponde a sua sistemática violação em quase todos os
países do mundo, nas relações entre um país e outro, entre uma raça e outra, entre
poderosos e fracos, entre ricos e pobres, entre maiorias e minorias, entre violentos
e conformados. O ethos dos direitos do homem resplandece nas declarações
solenes que permanecem quase sempre, e quase em toda parte, letra morta. O desejo
de potência dominou e continua a dominar o curso da história. A única razão para
a esperança é que a história conhece os tempos longos e os tempos breves. A história
dos direitos do homem, é melhor não se iludir, é a dos tempos longos. Afinal, sempre
aconteceu que, enquanto os profetas das desventuras anunciam a desgraça que está
prestes a acontecer e convidam à vigilância, os profetas dos tempos felizes olham
para longe. (...)
O tempo
vivido não é o tempo real: algumas vezes pode ser mais rápido; algumas vezes, mais
lento. As transformações do mundo que vivenciamos nos últimos anos, seja por causa
da precipitação da crise de um sistema de poder que parecia muito sólido e, aliás,
ambicionava representar o futuro do planeta, seja por causa da rapidez dos progressos
técnicos, suscitam em nós o dúplice estado de espírito do encurtamento e da aceleração
dos tempos. Sentimo-nos por vezes à beira do abismo e a catástrofe impende. Nós
nos salvaremos? Como nos salvaremos? Quem nos salvará? Estranhamente, essa sensação
de estar acossados pelos acontecimentos em relação ao futuro contrasta com a sensação
oposta do alongamento e refreamento do tempo passado, em relação ao qual a origem
do homem remonta cada vez mais para trás. Quanto mais a nossa memória afunda em
um passado remoto que continua a se alongar, mais a nossa imaginação se inflama
com a ideia de uma corrida sempre mais rápida em direção ao fim. É um pouco o estado
de espírito do velho, que conheço bem: para ele, o passado é tudo; o futuro, nada.
Teríamos pouco motivo para ficar alegres se não fosse pelo fato de um grande ideal
como o dos direitos do homem subverter completamente o sentido do tempo, pois se
projeta nos tempos longos, como todo ideal, cujo advento não pode ser objeto de
uma previsão, como eu dizia no início, mas apenas de um presságio.”