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sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-2094-179-9

Tradução: Homero Freitas de Andrade

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 176

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Sinopse: O deserto dos tártaros é a obra-prima de Dino Buzzati. Publicado originalmente em 1940, o livro marcou a consagração do autor entre os grandes nomes da literatura italiana e foi eleito pela crítica especializada um dos melhores livros do século XX. A obra narra a história do jovem tenente Giovanni Drogo, que recebe com alegria uma missão no forte Bastiani — para ele, a primeira etapa de uma carreira gloriosa. Embora não pretendesse ficar por muito tempo, o oficial de repente se dá conta de que os anos se passaram enquanto, quase sem perceber, ele e seus companheiros alimentavam a expectativa de uma invasão estrangeira que nunca acontece. A espera pelo inimigo transforma-se na espera por uma razão de viver, na renúncia da juventude e na mistura de fantasia e realidade.

 


“Os dois amigos não conversavam. Drogo pensava em como podia ser o Forte Bastiani, mas não conseguia imaginá-lo. Não sabia sequer onde ficava exatamente nem quanto do caminho devia percorrer. Uns haviam-lhe dito um dia a cavalo, outros menos, nenhum daqueles a quem perguntara estivera lá realmente.”

 

 

“As paredes nuas e úmidas, o silêncio, a exiguidade das luzes: todos lá dentro pareciam ter-se esquecido de que em algum lugar do mundo existiam flores, mulheres sorridentes, casas alegres e hospitaleiras. Tudo ali dentro era uma renúncia, mas para quem, para que misterioso bem? Agora eles se dirigiam ao terceiro andar, através de um corredor, exatamente idêntico ao primeiro. Ouvia-se, por trás de algumas paredes, o distante eco de uma risada, que a Drogo pareceu inverossímil.”

 

 

“Até então ele passara pela despreocupada idade da primeira juventude, uma estrada que na meninice parece infinita, onde os anos escoam lentos e com passo leve, tanto que ninguém nota a sua passagem. Caminha-se placidamente, olhando com curiosidade ao redor, não há necessidade de se apressar, ninguém empurra por trás e ninguém espera, também os companheiros procedem sem preocupações, detendo-se frequentemente para brincar. Das casas, a porta, a gente grande cumprimenta-se benigna e aponta para o horizonte com sorrisos de cumplicidade; assim o coração começa a bater por heroicos e suaves desejos, saboreia-se a véspera das coisas maravilhosas que aguardam mais adiante; ainda não se veem, não, mas é certo, absolutamente certo, que um dia chegaremos a elas.

Falta muito? Não, basta atravessar aquele rio lá longe, no fundo, ultrapassar aquelas verdes colinas. Ou já não se chegou, por acaso? Não são talvez estas árvores, estes prados, esta casa branca o que procurávamos? Por alguns instantes tem-se a impressão que sim, e quer-se parar ali. Depois ouve-se dizer que o melhor está mais adiante, e retomasse despreocupadamente a estrada. Assim, continua-se o caminho numa espera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o sol brilha alto no céu e parece não ter mais vontade de desaparecer no poente.

Mas a uma certa altura, quase instintivamente, vira-se para trás e vê-se que uma porta foi trancada às nossas costas, fechando o caminho de volta. Então sente-se que alguma coisa mudou, o sol não parece mais imóvel, desloca-se rápido, infelizmente, não dá tempo de olhá-lo, pois já se precipita nos confins do horizonte, percebe-se que as nuvens não estão mais estagnadas nos golfos azuis do céu, fogem, amontoando-se umas sobre as outras, tamanha é sua afoiteza; compreende-se que o tempo passa e que a estrada, um dia, deverá inevitavelmente acabar.

A um certo momento batem às nossas costas um pesado portão, fecham-no a uma velocidade fulminante, e não há tempo de voltar. Mas Giovanni Drogo, naquele momento, dormia, inocente, e sorria no sono, como fazem as crianças.

Passarão alguns dias antes que Drogo entenda o que aconteceu. Será então como um despertar. Olhará à sua volta, incrédulo; depois ouvirá um barulho de passos vindo de trás, verá as pessoas, despertadas antes dele, que correm afoitas e o ultrapassam para chegar primeiro. Ouvirá a batida do tempo escandir avidamente a vida. Nas janelas não mais aparecerão figuras risonhas, mas rostos imóveis e indiferentes. E se perguntar quanto falta do caminho, ainda lhe apontarão o horizonte, mas sem nenhuma bondade ou alegria. Entretanto, os companheiros se perderão de vista, um porque ficou para trás, esgotado, outro porque desapareceu antes e já não passa de um minúsculo ponto no horizonte.

Além daquele rio — dirão as pessoas —, mais dez quilômetros, e terá chegado. Ao contrário, não termina nunca, os dias se tornam cada vez mais curtos, os companheiros de viagem, mais raros, nas janelas estão apáticas figuras pálidas que balançam a cabeça.

Até Drogo ficar completamente sozinho e no horizonte surgir a estria de um imensurável mar parado, cor de chumbo. Então já estará cansado, as casas, ao longo da rua, terão quase todas as janelas fechadas, e as raras pessoas visíveis lhe responderão com um gesto desconsolado: o que era bom ficou para trás, muito para trás, e ele passou adiante, sem dar por isso. Ah, é demasiado tarde para voltar, atrás dele aumenta o fragor da multidão que o segue, impelida pela mesma ilusão, mas ainda invisível, na branca estrada deserta.”

 

 

As muralhas naquele ponto seguiam o declive do desfiladeiro, formando uma complicada escada de terraços e varandas. Embaixo dele, escuríssimas contra a neve. Drogo via, à luz do luar, as sucessivas sentinelas, seus passos metódicos fazendo cric-cric sobre a camada de gelo.

A mais próxima, num terraço abaixo, a uma dezena de metros, menos friorenta que as demais, permanecia imóvel, com as costas apoiadas a um muro, e parecia adormecida. Drogo ouviu-a cantarolar uma nênia com voz profunda.

Era uma sucessão de palavras (que Drogo não conseguia distinguir), ligadas entre si por uma ária monótona e sem fim. Falar e, pior, cantar em serviço era severamente proibido. Giovanni deveria puni-la, mas teve dó, pensando no frio e na solidão da noite. Começou então a descer uma curta escada que conduzia ao terraço e deu uma pequena tossida, para pôr de sobreaviso o soldado.

A sentinela virou a cabeça e, quando viu o oficial, retificou a posição, mas não interrompeu a nênia.

Drogo ficou enfurecido: aqueles soldados achavam que podiam zombar dele? Iam ver só a dureza que lhes imporia.

A sentinela percebeu logo a postura ameaçadora de Drogo e, apesar de a formalidade da senha, por antiquíssimo e mudo acordo, não ser praticada entre os soldados e o comandante da guarda, foi tomada de um excesso de escrúpulo. Sobraçando o fuzil, perguntou, com o sotaque muito particular usado no forte: “Quem vem lá? Quem vem lá?”

Drogo se deteve de repente, desorientado. A menos de cinco metros de distância, à luz límpida da lua, ele enxergava muito bem o rosto do militar, e sua boca estava fechada. Mas a nênia não tinha parado.

De onde vinha a voz, então?

Pensando nesse estranho fato, uma vez que o soldado continuava à espera, Giovanni disse mecanicamente a senha: “Milagre”. “Miséria”, respondeu a sentinela, e repôs a arma em posição de descanso.

Seguiu-se um silêncio imenso, no qual, mais forte que antes, navegava um sussurro de palavras e de canto.

Finalmente Drogo entendeu, e um lento arrepio percorreu-lhe a espinha. Era a água, era uma longínqua cascata rumorejante, a pique nos despenhadeiros próximos. O vento que fazia oscilar o longo jorro, o misterioso jogo dos ecos, o diferente som das pedras em percussão, formavam uma voz humana, que falava, falava: palavras de nossa vida, que se estava sempre prestes a entender, mas que na verdade nunca se entendia.

Não era então o soldado que cantarolava, não era um homem sensível ao frio, às punições e ao amor, mas a montanha hostil. Que triste engano, pensou Drogo, talvez tudo seja assim; acreditamos que ao redor haja criaturas semelhantes a nós e, ao contrário, só há gelo, pedras que falam uma língua estrangeira; preparamo-nos para cumprimentar o amigo, mas o braço recai inerte, o sorriso se apaga, porque percebemos que estamos completamente sós.”

 

 

Aproximou-se naquela manhã, dirigindo os olhos para o triângulo visível de deserto, e acreditou estar morto. Não pensou que pudesse ser um sonho. No sonho sempre há alguma coisa de absurdo e confuso, nunca se fica livre da vaga sensação de que tudo é falso, de que, num repente, teremos de acordar. No sonho, as coisas não são nunca límpidas e materiais como aquela desolada planície sobre a qual avançavam fileiras de homens desconhecidos.

Mas era coisa tão estranha, tão idêntica a certos devaneios seus de quando era moço, que Prosdocimo sequer pensou que pudesse ser verdade e acreditou estar morto.

Acreditou estar morto e que Deus o perdoara. Pensou estar no mundo do além, aparentemente idêntico ao nosso, só que lá as boas coisas se realizam segundo os desejos justos, e, após estes terem sido satisfeitos, fica-se com o ânimo sereno, não como aqui, onde há sempre alguma coisa que envenena até os melhores dias.

Prosdocimo acreditou estar morto, e não se movia, supondo que não lhe cabia mais mexer-se, como defunto, mas que uma secreta intervenção o sacudiria. Em vez disso, foi um sargento-mor que respeitosamente lhe tocou o braço: “Sargento”, disse-lhe. “O que foi? Não se sente bem?” Só então Prosdocimo começou a compreender.”

 

 

“Talvez a questão esteja toda nisso. Talvez nós pretendamos demasiado. Cabe-nos sempre o que merecemos, realmente.”

 

 

“Justamente naquela época Drogo deu-se conta de que os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre distantes; que, se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém mais pode tomar para si uma mínima parte dela; que, se alguém sofre, os outros não vão sofrer por isso, ainda que o amor seja grande, e é isso o que causa a solidão da vida.”

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