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quinta-feira, 12 de março de 2020

Dialética Negativa (Parte IV) — Theodor W. Adorno

Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-3780-143-7
Tradução: Marco Antonio Casanova
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 351
Sinopse: Ver Parte I


A tendência nominalista induz equivocadamente o pensamento, que não pode abdicar da proteção da moral em face da violência imediata que irrompe por toda parte, a fixar a moral na pessoa como em um bem indestrutível. A liberdade que não surgiria senão na instituição de uma sociedade livre é buscada lá onde a instituição da sociedade existente o recusa, nos respectivos indivíduos singulares que necessitariam dela, mas que não a garantem a partir de sua própria constituição. A reflexão sobre a sociedade tanto quanto a reflexão sobre a própria pessoa estão ausentes no personalismo ético. No momento em que é completamente arrancada ao universal, a pessoa também não consegue mais constituir nenhum universal; esse provém então sub-repticiamente das formas estabelecidas de dominação. No período pré-fascista, o personalismo e o falatório relativo à noção de interdependência não conviviam mal um com o outro. A pessoa enquanto algo absoluto nega a universalidade que deve ser recolhida a partir dela e alcança para o arbítrio o seu precário título de direito. Seu carisma é tomado de empréstimo à irresistibilidade do universal, por mais que, desorientada em relação à sua legitimidade, a pessoa se volte sobre si mesma em detrimento do pensamento. Seu princípio, o princípio da unidade inabalável tal como esse é constituído pela sua ipseidade, repete obstinadamente a dominação. A pessoa é o nó atado historicamente que deveria ser desatado pela liberdade, ao invés de ser eternizado; ela é o antigo encanto do universal, entrincheirado agora no particular. A moral que podemos retirar da pessoa permanece contingente como a existência imediata. De uma maneira diversa do discurso kantiano que concerne à personalidade, a pessoa se tornou uma tautologia para aqueles que já não possuem mais absolutamente nada além do “isso aqui” aconceitual de seu ser-aí. A transcendência que algumas neo-ontologias esperam da pessoa não faz outra coisa senão superestimar sua consciência. Essa consciência, contudo, não existiria sem esse universal que o recurso à pessoa como fundamento ético gostaria de excluir. É por isso que o conceito de pessoa, assim como as suas variantes, por exemplo, a relação eu-tu, assumiram o tom oleoso de uma teologia na qual não se acredita. Do mesmo modo que o conceito de um homem justo não pode ser antecipado, ele também não pode ser igualado à pessoa, essa duplicata santificada de sua própria autoconservação. Segundo o ponto de vista da história da filosofia, esse conceito implica por um lado o sujeito que se objetiva no caráter, e, por outro lado, a decadência desse sujeito. A perfeita fraqueza do eu, a passagem dos sujeitos para um comportamento passivo e atomista, similar aos reflexos, é ao mesmo tempo a condenação merecida pela pessoa na qual o princípio econômico da apropriação tornou-se antropológico. Aquilo que precisaria ser pensado nos homens como o seu caráter inteligível não é o elemento pessoal neles, mas aquilo por meio do que eles se distinguem de seu ser-aí. Na pessoa, esse caráter distintivo aparece necessariamente como não-idêntico. Todo estímulo humano contradiz a unidade daquele que ele mobiliza; cada impulso para o melhor não se mostra apenas como, dito em termos kantianos, razão, mas antes também como estupidez. Os homens só são humanos quando não agem como pessoas, nem, com maior razão, se posicionam como tais; o elemento difuso da natureza, o elemento no qual os homens não são pessoas, é similar aos traços de um ser inteligível, desse si próprio que estaria redimido do eu; a arte contemporânea incorpora radicalmente algo disso. O sujeito é mentira porque, em virtude da incondicionalidade da própria dominação, ele nega as determinações objetivas de si mesmo; só seria sujeito aquilo que se desprendesse dessa mentira e que, por sua própria força, estabelecida graças à identidade, se desembaraçasse do revestimento dessa identidade. A inessência ideológica da pessoa é criticável em termos imanentes. O elemento substancial que, segundo essa ideologia, emprestaria à pessoa a sua dignidade, não existe. Os homens, sem nenhuma exceção, ainda não são de maneira alguma eles mesmos. Com toda a razão, poder-se-ia pensar com o conceito de si próprio a sua possibilidade, e essa possibilidade se opõe de modo polêmico à realidade do si próprio. É exatamente por isso que o discurso sobre a alienação do eu é insustentável. Apesar de seus melhores dias hegelianos e marxistas,ab ou mesmo por causa deles, esse discurso se tornou apologético porque dá a entender, com facetas paternais, que o homem seria separado de um ser-em-si que ele sempre foi, por mais que ele nunca tenha sido, e que, por consequência, recorrendo às suas ρχαί (princípios), ele não pode esperar nada que se submeta a uma autoridade, àquilo que justamente lhe é estranho. O fato de esse conceito não figurar mais em O Capital de Marx não é apenas condicionado pela temática econômica da obra, mas possui um sentido filosófico. — A Dialética negativa não se detém nem diante do fechamento da existência, da mesmidade sólida do eu, nem tampouco diante de sua antítese não menos cristalizada: o papel que é utilizado pela sociologia subjetiva contemporânea como uma panaceia universal, como a derradeira determinação da sociabilização, de maneira análoga à existência da ipseidade em alguns ontólogos. O conceito de papel sanciona hoje a despersonalização falsa e perversa: a não-liberdade, que não toma o lugar da autonomia penosa e conquistada como que por tempo determinado senão em virtude da adaptação plena, está abaixo e não acima da liberdade. A miséria da divisão do trabalho é hipostasiada no conceito de papel como se se tratasse de uma virtude. Com esse papel, o eu prescreve uma vez mais a si mesmo aquilo a que a sociedade o condena. O eu liberto, não mais aprisionado em sua identidade, também não estaria mais condenado a se submeter a papéis. Se o tempo de trabalho fosse radicalmente encurtado, o que restaria socialmente da divisão do trabalho perderia o poder apavorante de formar inteiramente os seres individuais. A rigidez coisal do si próprio, a sua prontidão para entrar em ação e a sua disponibilidade para o desempenho dos papéis sociais desejados são cúmplices. Mesmo no âmbito moral, a identidade não pode ser negada abstratamente, mas precisa ser conservada na resistência, se é que ela deve se transformar um dia em seu outro. O Estado atual é destrutivo: perda da identidade por causa da identidade abstrata, da autoconservação nua e crua.”
ab “Essa ‘alienação’, para permanecer compreensível aos filósofos, só pode ser naturalmente suspendida sob dois pressupostos práticos.” (Karl Marx e Friedrich Engels, Die deutsche Ideologie [A ideologia alemã], Berlim, 1960, p.31.)


Se o conceito de universalidade fosse extraído da pluralidade dos sujeitos e, em seguida, autonomizado na objetividade lógica da razão na qual todos os sujeitos individuais, e, ao que parece, a subjetividade enquanto tal, desapareceriam, Kant poderia, sobre a aresta estreita entre o absolutismo lógico e a validade universal empírica, retornar àquele ente que, no sistema, tinha sido anteriormente banido pela lógica consecutiva. Nesse ponto, a filosofia moral antipsicológica converge com as descobertas psicológicas posteriores. No que a psicologia desvela o supereu como norma social interiorizada, ela quebra suas barreiras monadológicas. Essas barreiras, por sua vez, são socialmente produzidas. A consciência moral retira sua objetividade em relação aos homens da objetividade da sociedade na qual e por meio da qual eles vivem, e que alcança até o cerne de sua individuação. Os momentos antagônicos encontram-se em uma tal objetividade inseparavelmente entrelaçados: a coerção heterônoma e a ideia de uma solidariedade que ultrapassa os interesses particulares divergentes. Aquilo que reproduz na consciência moral a monstruosidade obstinadamente insistente e repressiva da sociedade é o contrário da liberdade e deve ser desmistificado pela apresentação de sua própria determinação. Em contrapartida, a norma universal que é apropriada de maneira inconsciente pela consciência moral presta testemunho sobre aquilo que, na sociedade, enquanto o princípio de sua totalidade, ultrapassa a particularidade. Esse é o seu momento veritativo. Recusa-se uma resposta conclusiva à pergunta sobre o justo e o injusto da consciência moral porque o justo e o injusto são absolutamente inerentes à consciência moral e porque nenhum juízo abstrato poderia isolá-los: é só em sua figura repressiva que se forma a figura solidária da consciência que suspende essa figura repressiva. É essencial à filosofia moral que haja tanto menos diferença entre o indivíduo e a sociedade quanto mais eles estejam reconciliados. Na exigência estabelecida pelo indivíduo que não é satisfeita socialmente, o caráter ruim da universalidade se declarou. Esse é o conteúdo veritativo supraindividual da crítica à moral. Todavia, o indivíduo que, culpado por necessidade, transforma-se em algo derradeiro e absoluto, decai por sua vez nesse caso na ilusão da sociedade individualista, desconhecendo-se a si mesmo; Hegel compreendeu muito bem isso uma vez mais, e, em verdade, o mais acuradamente lá onde favorece o abuso reacionário. A sociedade que, em sua exigência universal, age injustamente em relação ao indivíduo, também tem razão contra ele, na medida em que, no indivíduo, o princípio social da autoafirmação irrefletida, ele mesmo o mal universal, é hipostasiado. A sociedade o mensura gota a gota. A sentença kantiana tardia de que a liberdade de cada homem só deveria ser restrita na medida em que trouxesse um dano para a liberdade de um outroad codifica um Estado reconciliado que não se elevaria apenas acima do mal universal, do mecanismo de coerção da sociedade, mas também acima do indivíduo calcificado no qual esse mecanismo de coerção se repete microcosmicamente. A questão acerca da liberdade não exige um sim ou não, mas uma teoria que se alce tanto acima da sociedade estabelecida quanto da individualidade estabelecida. Ao invés de sancionar a instância interiorizada e cristalizada do supereu, essa teoria leva a termo a dialética entre o ser individual e o gênero. O rigorismo do supereu é simplesmente um reflexo em face daquilo que é impedido pelo Estado antagonista. O sujeito só seria liberto se fosse reconciliado com o não-eu, e, com isso, ele também se encontraria acima da liberdade, porquanto a liberdade está entretecida com a sua contraparte, a repressão. O quanto de agressão reside até aqui na liberdade é algo que fica visível sempre que os homens agem como homens livres no interior da não-liberdade universal. Não obstante, em um Estado de liberdade, nem o indivíduo poderia proteger convulsivamente a antiga particularidade — a individualidade é o produto tanto da pressão quanto do centro de força que resiste a essa pressão —, nem esse Estado se compatibilizaria com o conceito atual de coletividade. O fato de o coletivismo, enquanto subordinação do singular à sociedade, ser imediatamente recomendado nos países que hoje monopolizam o nome “socialismo” condena esse seu socialismo a mentiras e consolida o antagonismo. O enfraquecimento do eu por meio de uma sociedade socializada que incansavelmente impele os homens a se reunir e que, em sentido próprio tanto quanto em sentido figurado, torna-os incapazes de existir sozinhos, não se manifesta menos nas queixas contra o isolamento do que na frieza verdadeiramente insuportável difundida sobre tudo, paralelamente à expansão da relação de troca que é prolongada no regime autoritário das pretensas democracias populares que não levam em conta as necessidades dos sujeitos. Acreditar que, em uma associação de homens livres, esses homens precisam constantemente se amotinar é constitutivo da esfera de representações dos desfiles, das marchas militares e dos discursos oficiais de líderes políticos. Tudo isso não floresce senão enquanto a sociedade procura como que cimentar juntos de maneira irracional aqueles que são obrigados a ser seus membros; objetivamente, isso é inútil. O coletivismo e o individualismo completam-se mutuamente na falsidade. Contra os dois, vem protestando a filosofia especulativa da história desde Fichte na doutrina do Estado de pecado absoluto, e, mais tarde, na doutrina da perda de sentido. A modernidade é equiparada a um mundo desprovido de forma, enquanto Rousseau, o precursor da animosidade retrospectiva contra seu próprio tempo, a inflamava no último grande estilo: sua aversão voltava-se contra um excesso de forma, contra a desnaturação da sociedade. Seria o momento de denunciar a imagem do mundo vazio de sentido que, de um emblema da nostalgia, degenerou-se na palavra de ordem dos enfurecidos da ordem. Em lugar algum na Terra a sociedade atual é aberta como o certificam seus apologetas científicos; em lugar algum, tampouco, ela é desprovida de forma. A crença em uma tal deformação emergiu das desertificações das cidades e dos campos por meio da indústria que se expandiu sem qualquer planejamento, de uma falta de racionalidade, não de seu excesso desmedido. Quem reporta a deformação a processos metafísicos, em vez de a relações da produção material, produz virtualmente ideologias. Com a transformação dessas relações, poder-se-ia atenuar a imagem da violência pela qual o mundo — violentado pelos homens — se apresenta aos homens. O mal em si não seria absolutamente o fato de as vinculações supraindividuais desaparecerem — elas não desapareceram de maneira alguma; as obras de arte verdadeiramente emancipadas do século XX também não são afinal piores do que todas aquelas que tiveram sucesso nos estilos dos quais a modernidade se desvinculou com razão. Como no espelho, inverte-se a experiência de que se espera dos homens, dado o estado da consciência e das forças materiais produtivas, que eles sejam livres, que eles também esperem isso de si mesmos; e, contudo, eles não são livres, apesar de, no estado de sua não-liberdade radical, não restar nenhum padrão de pensamento, de comportamento, e, para empregar o termo mais vergonhoso, de “valor”, que, enquanto seres não-livres, eles gostariam de possuir. O lamento sobre a falta de vinculação tem por substância a constituição de uma sociedade que dá a ilusão de liberdade, sem a realizar. A liberdade só existe, de maneira suficientemente esvaecida, na superestrutura; seu fracasso perenizante incita a nostalgia a se desviar para a não-liberdade. É provável que a pergunta sobre o sentido da existência como um todo seja expressão desse fracasso.”
ad “É justa toda ação cujas máximas podem servir de base para a conciliação da liberdade do arbítrio de cada um com a liberdade de todos segundo uma lei universal.” (Kant, Metaphysik der Sitten: Einleitung in die Rechtslehre [Metafísica dos costumes: Introdução à doutrina do direito], §C, Werke VI, Akademie-Ausgabe, p.230.)


O conceito da história universal — cuja validade inspira a filosofia hegeliana de maneira similar à inspiração da filosofia kantiana pelas ciências matemáticas da natureza — tornou-se tanto mais problemático quanto mais o mundo uniformizado se aproximou de um processo conjunto. De um lado, a ciência histórica, progredindo de modo positivista, desintegrou a concepção da totalidade e de uma continuidade sem interrupções. Em relação à ciência histórica, a construção filosófica tinha a vantagem duvidosa de um menor conhecimento dos detalhes, algo que ela se dispunha facilmente a imaginar como uma distância soberana; com certeza, ela também tinha menos medo de dizer algo essencial que só ganha contornos à distância. De outro lado, a filosofia avançada precisava preservar o acordo entre a história universal e a ideologia5 e manter a vida deslocada como descontínua. O próprio Hegel tinha concebido a história universal uniforme meramente por força de suas contradições. Com a reformulação materialista da dialética, o acento mais forte caiu sobre a intelecção da descontinuidade daquilo que não era mantido coeso por nenhuma unidade consoladora do espírito e do conceito. Todavia, a descontinuidade e a história universal precisam ser pensadas juntas. Riscar essa história universal como resíduo de uma crença metafísica confirmaria intelectualmente a mera facticidade enquanto a única coisa a ser conhecida e por isso aceita, do mesmo modo que a soberania, que subordinava os fatos à marcha triunfal do espírito uno, a ratificara antes como expressão dessa história. A história universal precisa ser construída e negada. Depois das catástrofes passadas e em face das catástrofes futuras, a afirmação de um plano do mundo dirigido para o melhor, um plano que se manifesta na história e que a sintetiza, seria cínica. No entanto, não se precisa negar com isso a unidade que solda as fases e os momentos descontínuos, caoticamente estilhaçados, da história, uma unidade que, a partir da dominação da natureza, se transforma em domínio sobre os homens e, por fim, em domínio sobre a natureza interior. Não há nenhuma história universal que conduza do selvagem à humanidade, mas há certamente uma que conduz da atiradeira até a bomba atômica. Essa história termina com a ameaça total da humanidade organizada contra os homens organizados, na suma conceitual da descontinuidade. Por meio daí, Hegel é verificado até o horror e colocado de cabeça para baixo. Se ele transfigurava a totalidade do sofrimento histórico na positividade do absoluto se autorrealizando, o uno e o todo que até hoje, com pausas para a respiração, não pararam de avançar seriam, teleologicamente, o sofrimento absoluto. A história é a unidade de continuidade e descontinuidade. A sociedade não se mantém viva apesar de seu antagonismo, mas graças a ele; os interesses ligados ao lucro, e, com isso, a relação de classes, são objetivamente o motor do processo de produção do qual depende a vida de todos, e seu primado tem o seu ponto de fuga na morte de todos. Isso também implica o elemento reconciliador no irreconciliável; na medida em que só é permitido ao homem viver, sem ele não haveria nem mesmo a possibilidade de uma vida transformada. O que criou historicamente essa possibilidade pode igualmente destruí-la. Seria preciso definir o espírito do mundo, objeto digno de definição, como catástrofe permanente. Sob o jugo universal do princípio de identidade, aquilo que não imerge na identidade e que se subtrai à racionalidade planificante no reino dos meios torna-se algo angustiante, revanche pela desgraça que aconteceu com o não-idêntico por meio da identidade. Quase não haveria outra forma de interpretar a história sem a transformar, como que por encanto, em ideia.”
5 Cf. Walter Benjamin, Schriften I [Escritos I], Frankfurt am Main, 1955, p.494s.


“A teoria só consegue movimentar o enorme peso da necessidade histórica se esta é reconhecida como aparência que se tornou realidade e a determinação histórica, como metafisicamente contingente. Um tal reconhecimento é impelido pela metafísica da história. À catástrofe que se prepara corresponde antes a suposição de uma catástrofe irracional nos começos. Hoje, a possibilidade malograda do diverso concentrou-se na possibilidade de, apesar de tudo, a catástrofe.”


“Aquilo que Hegel denomina como síntese não é apenas a qualidade emergente da negação determinada e simplesmente nova, mas o retorno do negado; a progressão dialética é sempre também um recurso àquilo que se tornou vítima do conceito progressivo: o progresso na concreção do conceito é a sua autocorreção.”


O fato de a metafísica da reconciliação entre o universal e o particular ter fracassado na construção da realidade efetiva, enquanto filosofia do direito e enquanto filosofia da história, não podia permanecer velado para a necessidade sistemática de Hegel. Ele empenhou-se por mediação. A sua categoria da mediação, o espírito do povo, estende-se até o interior da história empírica. Para os sujeitos individuais, ele seria a figura concreta do universal. Por sua parte, porém, “o espírito do mundo determinado” não seria “senão um indivíduo no curso da história universal”,31 uma individuação de um grau mais elevado e, enquanto tal, autônomo. Precisamente a tese dessa autonomia dos espíritos dos povos legitima em Hegel o domínio violento sobre os homens particulares; e isso de maneira similar à que aconteceu mais tarde com Durkheim por meio das normas coletivas e com Spengler por meio das almas de uma cultura. Quanto mais ricamente um universal recebe as insígnias do sujeito coletivo, tanto mais os sujeitos desaparecem aí sem deixar vestígios. Não obstante, essa categoria da mediação que não é aliás expressamente mediação, mas só desempenha a função de mediação, fica aquém do próprio conceito hegeliano de mediação. Ela não reina na coisa mesma, nem determina de maneira imanente o seu outro, mas funciona como um conceito-ponte, como um meio hipostasiado entre o espírito do mundo e os indivíduos. Hegel interpreta a perecibilidade dos espíritos dos povos, de maneira análoga à perecibilidade dos indivíduos, enquanto a verdadeira vida do universal. Em verdade, porém, perecível é a categoria do povo e do espírito do povo, de maneira alguma apenas as suas manifestações específicas. Também na medida em que os espíritos dos povos que recentemente vieram à tona deveriam continuar a levar adiante a tocha do espírito do mundo hegeliano, eles ameaçam reproduzir a vida do gênero humano ao nível mais baixo. Já em face do universal kantiano de sua época, da humanidade apreensível, a doutrina hegeliana do espírito do povo era reacionária: ela cultivava um elemento que já tinha sido percebido como particular. Sem hesitação, com a categoria enfática dos espíritos dos povos, ele tomou parte no mesmo nacionalismo cujo caráter funesto ele tinha diagnosticado junto aos agitadores das corporações estudantis. Seu conceito de nação, portadora do espírito do mundo em meio à mudança constante, revela-se como um dos invariantes a partir dos quais a obra dialética, paradoxal e, contudo, coerente com o seu aspecto uno, flui. Em Hegel, as constantes não-dialéticas que impõem um desmentido à dialética e sem as quais, porém, não haveria dialética alguma possuem tanta verdade quanto a história como igualdade eterna, como a má infinitude da culpa e da expiação que transcorreu exatamente como Heráclito, testemunha principal de Hegel, já tinha reconhecido em tempos arcaicos e elevado ontologicamente. Mas a nação — como termo e como coisa — é de uma data recente. Depois do ocaso do feudalismo e para a proteção dos interesses burgueses, uma forma de organização centralista precária deveria controlar as associações naturais difusas. Ela acabou por se tornar fetiche porque não poderia integrar de outro modo os homens que necessitam economicamente dessa forma de organização assim como ela não cessa de exercer um poder violento contra eles. Lá onde a unificação da nação, condição prévia de uma sociedade burguesa autoemancipatória, fracassa completamente, na Alemanha, o seu conceito é superestimado e torna-se destrutivo. Para tocar as gentes, Hegel mobiliza de maneira adicional lembranças regressivas da raiz étnica arcaica. Como fermentos malévolos, essas lembranças são apropriadas para manter o indivíduo, resultado igualmente frágil e tardio de uma evolução, no estágio inferior onde seu conflito com a universalidade está a ponto de se transformar em crítica racional dessa universalidade: a irracionalidade dos fins da sociedade burguesa quase não teria podido ser estabelecida sem os meios irracionais eficazes. A situação especificamente alemã no começo da era pós-napoleônica pôde dissimular para Hegel o quanto sua doutrina do espírito do povo era anacrônica em comparação com o seu próprio conceito de espírito, de cujo progresso não pode ser separada uma sublimação progressiva, a libertação de uma naturalidade rudimentar. Nele, a doutrina do espírito do povo já era uma consciência falsa, ainda que provocada pela necessidade de unidade administrativa, já era ideologia. Mascarados, acoplados enquanto particularização ao ente dado, os espíritos dos povos são imunes a essa razão cuja memória também é conservada na universalidade do espírito. Segundo o tratado da Paz perpétua, os elogios hegelianos à guerra não podem mais se proteger por detrás da ingenuidade relativa a uma falta de experiência histórica. Aquilo que ele elogia como o elemento substancial dos espíritos dos povos, as mores, já tinha sido outrora irremediavelmente depravado e transformado naquele conjunto de usos que foram desencavados então na era das ditaduras para multiplicar em nome do Estado a despotencialização dos indivíduos por meio da tendência histórica. Por si só, já o fato de Hegel precisar falar dos espíritos dos povos no plural revela o caráter ultrapassado da pretensa substancialidade desses espíritos. Ela é negada logo que se fala de uma pluralidade de espíritos dos povos, logo que se tem em vista uma internacional das nações. Depois do fascismo, ela reapareceu.”


“Aquilo que se prefere chamar de angústia e que é dignificado como um existencial não passa de uma claustrofobia no mundo: no sistema fechado. Ela perpetua o encanto sob a forma da frieza que reina entre os homens, uma frieza sem a qual a desgraça não poderia se repetir. Quem não é frio torna-se frio (como o assassino torna fria a sua vítima, segundo a figura de linguagem vulgar) e deve se sentir condenado. Com a angústia e o seu fundamento, talvez desaparecesse também a frieza. Na frieza universal, a angústia é a figura necessária da maldição que pesa sobre aqueles que padecem dela.”


O ponto comum fatal entre a necessidade e o acaso, porém, um ponto que já Aristóteles atribuía também ao meramente ente, é o destino. Este possui o seu lugar tanto no círculo que o pensamento dominante coloca à sua volta, quanto naquilo que permanece de fora e, abandonado pela razão, adquire uma irracionalidade que converge com a necessidade estabelecida pelo sujeito. O processo de dominação cospe pedaços da natureza subjugada sem os digerir. O fato de o particular não se dissolver filosoficamente na universalidade exige que ele também não se feche na obstinação do acaso. O que ajuda na reconciliação entre o universal e o particular é a reflexão da diferença, não a sua extirpação. O pathos hegeliano que atribui ao espírito do mundo a única realidade efetiva, eco celeste de uma gargalhada infernal, prescreve a si mesmo uma tal extirpação. O encanto mítico secularizou-se e se transformou em interpenetração real e adaptada, sem solução de continuidade. O princípio de realidade ao qual os homens espertos obedecem para sobreviver cativa-os como magia negra; eles são tanto menos capazes e estão tanto menos dispostos a se livrar do fardo porque o mágico dissimula esse peso para eles: eles tomam esse fardo pela vida. Em termos metapsicológicos, o discurso sobre regressão é pertinente. Tudo aquilo que se denomina hoje em dia comunicação, sem qualquer exceção, não é senão o barulho que não nos deixa escutar a mudez dos que estão encantados. As espontaneidades humanas individuais, e em uma larga medida também as supostamente oposicionais, são condenadas à pseudocriatividade; e, potencialmente, à debilidade. Os técnicos da lavagem cerebral e similares praticam de fora a tendência antropológico-imanente que, por sua parte, é com certeza extrinsecamente motivada. A norma histórico-natural da adaptação, uma norma com a qual mesmo Hegel concorda a partir da sabedoria de botequim segundo a qual é preciso quebrar a cara, é, exatamente como em seu caso, o esquema do espírito do mundo concebido como encanto. Talvez a biologia mais recente projete a experiência desse encanto, tabu entre os homens, sobre os animais, a fim de desonerar os homens que os maltratam; a ontologia dos animais imita a animalidade arcaica dos homens, constantemente reconquistada uma vez mais como posse. Também nessa medida, mas de um modo diverso do que Hegel queria, o espírito do mundo é sua própria contradição. O que há de animalizado na razão autoconservadora expulsa o espírito da espécie que o venera. Por isso, em todos os seus níveis, a metafísica do espírito hegeliana já está próxima da hostilidade ao espírito.”


“Se a dialética negativa reclama a autorreflexão do pensamento, então isso implica manifestamente que o pensamento também precisa, para ser verdadeiro, hoje em todo caso, pensar contra si mesmo. Se ele não se mede pelo que há de mais exterior e que escapa ao conceito, então ele é de antemão marcado pela música de acompanhamento com a qual os SS adoravam encobrir os gritos de suas vítimas.”


O fato de as metafísicas da morte degenerarem ou bem na propaganda da morte heroica, ou bem na trivialidade de uma pura repetição do inegável de que se precisa mesmo morrer, a sua monstruosidade ideológica comum, funda-se certamente na fraqueza até hoje persistente da consciência humana quando se trata de se manter firme diante da experiência da morte e talvez mesmo de acolhê-la efetivamente em si. Nenhuma vida humana que se comporte de maneira aberta e livre em relação aos objetos é suficiente para consumar o que está potencialmente presente no espírito de cada homem; isso e a morte divergem. As reflexões que dão sentido à morte são tão inúteis quanto as reflexões tautológicas. Quanto mais a consciência se arranca à animalidade e se transforma em algo firme e duradouro em suas formas, tanto mais tenazmente ela se estabelece contra tudo o que torna suspeita para ela a sua própria eternidade. Com a entronização histórica do sujeito enquanto espírito, associa-se a ilusão de que ele não teria como perder a si mesmo. Se as formas primitivas da propriedade caminhavam lado a lado com as práticas mágicas que buscavam conjurar a morte, o que afugenta a morte, quanto mais plenamente todas as relações humanas são determinadas pela propriedade, é a ratio, e ela o faz com tanta obstinação quanto outrora os ritos. Em um estágio derradeiro, a própria morte se transforma, por desespero de causa, em propriedade. Sua elevação metafísica a desvincula de sua experiência. A metafísica corrente da morte não é nada além da consolação impotente da sociedade quanto ao fato de os homens poderem perder, por meio das transformações sociais, aquilo que outrora podia tornar a morte suportável: o sentimento de sua unidade épica com a vida que se mostra como preenchida. Mesmo esse sentimento não poderia transfigurar o domínio da morte em algo como o cansaço do homem velho e enfadado com a vida que imagina morrer bem porque sua vida penosa não foi vida alguma e porque ela lhe roubou a força para resistir à morte. Na sociedade socializada, contudo, no tecido inextricavelmente denso da imanência, os homens só continuam sentindo a morte como algo que lhes é extrínseco e alheio, sem ilusão quanto à sua comensurabilidade com as suas vidas. Eles não conseguem metabolizar o fato de precisarem morrer. A isso se junta uma parcela de esperança incongruente e errática: justamente porque a morte não constitui, como em Heidegger, a totalidade do ser-aí, experimentamos, na medida em que não somos débeis, a morte e seus mensageiros, as doenças, como heterogêneos, como alheios ao eu. De maneira ágil, isso pode ser fundamentado por meio da afirmação de que o eu não é outra coisa senão o princípio da autoconservação oposto à morte e de que ele é incapaz de absorvê-la com a consciência que é ela mesma um eu. Mas a experiência da consciência dá pouca consistência a uma tal afirmação; em face da morte, ela não possui necessariamente a forma que seria de se esperar, a forma da resistência. A doutrina hegeliana segundo a qual o que é perece em si mesmo não é de maneira alguma confirmada pelo sujeito. O fato de se precisar morrer também se mostra para o homem que envelhece e percebe os sinais da decrepitude antes como um incidente provocado por sua própria physis (natureza), com traços da mesma contingência que caracteriza os incidentes exteriores hoje típicos. Isso reforça a especulação que estabelece um contraponto em relação à concepção do primado do objeto: saber se o espírito possui um momento de autonomia, de ausência de mistura, que se torna livre justamente quando ele por sua parte não devora tudo, nem reproduz a partir de si a decomposição da morte. Apesar do interesse enganador da autoconservação, a força de resistência da ideia de imortalidade, tal como ela ainda era cultivada por Kant, só muito dificilmente seria explicada sem esse momento. Com certeza, essa força de resistência, tal como nos indivíduos decadentes, também parece imergir na história da espécie. Depois do declínio há muito secretamente ratificado das religiões objetivas que tinham prometido retirar o ferrão da morte, esta se transformou hoje completamente naquela coisa de todo estranha, e isso por meio do declínio socialmente determinado da experiência contínua em geral.
Quanto menos intensamente os sujeitos vivem, tanto mais repentina e apavorante é a morte. Pelo fato de ela os transformar literalmente em coisas, eles se apercebem de sua morte permanente, da reificação, da forma de suas relações pelas quais eles têm uma parcela de responsabilidade. A integração civilizatória da morte, sem poder sobre ela e risível em face dela, por mais que ela a tente maquiar, é a formação da reação a esse elemento social, a essa tentativa desengonçada da sociedade de troca de tapar os últimos buracos que o mundo da mercadoria ainda tinha deixado abertos. Morte e história, sobretudo a história coletiva da categoria do indivíduo, formam uma constelação. Se o indivíduo Hamlet deduzisse algum dia a sua essencialidade absoluta da consciência emergente da irrevogabilidade da morte, então a queda do indivíduo traria consigo toda a construção da existência burguesa. O que é aniquilado é algo em si e talvez mesmo já por si nulo. Por isso, o pânico persistente em face da morte. Esse pânico não pode mais ser aplacado senão por meio de sua repressão. A morte enquanto tal ou enquanto fenômeno biológico originário não pode ser destacada de suas imbricações históricas;1 nesse sentido, o indivíduo que porta a experiência da morte é uma categoria por demais histórica. A afirmação de que a morte é sempre a mesma é tão abstrata quanto não-verdadeira; a forma com a qual a consciência se acomoda à morte varia juntamente com as condições concretas em que alguém morre, e isso até o interior da physis. A morte nos campos de concentração tem um novo horror: desde Auschwitz, temer a morte significa temer algo pior do que a morte. O que a morte faz com aqueles que são socialmente condenados pode ser biologicamente antecipado junto aos entes queridos de uma idade avançada; não apenas seu corpo, mas também seu eu, tudo aquilo por meio do que eles se determinam como humanos, esboroa-se sem doença e sem uma intervenção violenta. O resto de confiança em sua duração transcendente desaparece por assim dizer no curso da vida terrena: o que poderia ainda existir nele que não tivesse morrido? A crédula consolação segundo a qual o cerne dos homens continuaria existindo mesmo em uma tal desintegração ou na demência possui, indiferente em relação a essa experiência, algo de tolo e cínico. Ela prolonga essa impertinente sabedoria de botequim: não permanecemos sempre senão o que somos, ao infinito. Quem volta as costas para o que nega a sua realização possível zomba da necessidade metafísica.”

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