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terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Fundamentos da ética (Parte I) — Antonio Djalma Braga Junior e Ivan Luiz Monteiro

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-120-1
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
Sinopse: Temas como aborto, clonagem, eutanásia e fertilização in vitro têm causado muita divergência na sociedade e inspirado opiniões, ações e comportamentos controversos. Como se posicionar eticamente em relação a essas questões? Como aplicar a ética na realidade em que vivemos? Para que você possa refletir criticamente sobre tantos assuntos polêmicos da atualidade e desenvolver posicionamentos éticos a respeito dessas questões, apresentamos nesta obra o desenvolvimento histórico da ética e as ideias de seus principais pensadores.



“Imagine ainda que você esteja vivendo em um país que está passando por diversas transformações políticas. Elas causam uma série de conflitos entre policiais e civis. Em um momento de choque entre eles, um dos manifestantes foge para dentro de sua casa para se esconder de policiais furiosos. Tudo acontece muito rápido e você não tem oportunidade de processar direito o que está acontecendo. O fato é que o manifestante está ali, escondido em sua residência, quando então chega um policial e pergunta se você viu determinado manifestante, considerado pelo policial como um fora da lei que merece a morte. Você sabe que, se falar a verdade para o policial, ele matará o manifestante ali mesmo, no exato momento em que o vir. O que você faria em uma situação dessas: falaria a verdade e permitiria que o policial matasse o manifestante ou mentiria para preservar a vida do rapaz que está escondido? Qual valor deve prevalecer: falar a verdade ou preservar uma vida humana?
Também podemos perceber conflitos dessa natureza, quando um pai ou uma mãe, desesperados por salvar o filho da fome, decidem roubar; quando um soldado, cumprindo ordens, acaba tendo de puxar o gatilho de sua arma para ferir ou matar civis; quando pessoas que passam uma imagem de caridosas quando estão em uma igreja, mas em suas residências demonstram ações altamente contraditórias com essa imagem e fazem com que pessoas as julguem de maneira desonrosa; quando um ente querido está em estado vegetativo no hospital e os médicos aconselham os familiares a desligar os aparelhos por não haver mais esperança de recuperação da saúde do paciente por conta de uma grave doença; quando jovens, que têm uma vida inteira pela frente; ao terem relações sexuais, acabam engravidando e pensam na hipótese de um aborto; quando a ciência pode curar, por meio de células-tronco embrionárias, um indivíduo que poderia ficar tetraplégico em decorrência de um acidente, mas seus princípios religiosos o levam crença de que tais embriões são considerados vidas humanas e por isso não deveriam ser sacrificados; entre outros casos.
Em situações como essas, nem sempre temos uma visão clara e precisa do que é certo ou errado ou do que realmente devemos fazer, qual caminho devemos tomar, o que é justo ou injusto fazer. Em todas essas circunstâncias, deparamo-nos com algum problema prático próprio da vida humana, o qual não diz respeito apenas aos indivíduos citados, podendo envolver inúmeras outras pessoas e a sociedade como um todo.
Diante disso, presenciamos diariamente atitudes e comportamentos de diferentes pessoas para tentar solucionar esses conflitos; ao mesmo tempo, há observadores que julgam esses atos e comportamentos como bons ou maus, justos ou injustos, certos ou errados. Esse julgamento, que é a emissão de um juízo de valor sobre situações consideradas morais na sociedade, é uma forma de valoração que todos nós praticamos, tomando sempre como base aquilo que entendemos e incorporamos como valor: um valor moral.
Neste ponto, caro leitor, apresentamos uma definição essencial que envolve a temática e servirá de base para todo o desenvolvimento deste livro: moral é um conjunto de normas, regras, valores e costumes que rege uma sociedade ou um grupo de indivíduos. Essas normas, regras, valores e costumes são considerados os parâmetros do nosso juízo sobre os fatos, os acontecimentos e os comportamentos dos homens diante de situações como as descritas anteriormente. O objetivo da moral é normalizar as ações dos indivíduos de um agrupamento humano.
A moral, por se referir ao conjunto de valores de um grupo de tem de ser pensada com base em seu caráter histórico. Em outras palavras, assim como os diversos agrupamentos humanos variam ao longo da história, os valores morais também se alteram. Portanto, temos uma primeira característica da moral: ela é relativa a um grupo de indivíduos. Se o grupo muda, a moral pode mudar também. Por isso, Adolfo Sánchez Vázquez (2014, p, 37), em seu livro Ética, afirma: “pode-se falar da moral da Antiguidade, da moral feudal própria da Idade Média, da moral burguesa na sociedade moderna etc. Portanto, a moral é um fato histórico. Essa característica histórica e relativa da moral se define pelo fato de que os seres que a produzem são históricos também, conforme ressalta o autor:
Mas a moral é histórica precisamente porque é um modo de comportar-se de um ser — o homem — que por natureza é histórico, isto é, um ser cuja característica é a de estar-se fazendo ou se autoproduzindo constantemente tanto no plano de sua existência material, prática, como no de sua vida espiritual, incluída nesta a moral. (Vásquez, 2014, p. 37)
Diante dessa primeira caracterização da moral, como histórica e relativa, podemos analisar como os filósofos e pensadores, ao longo da história, refletiram sobre o conjunto de normas, regras, valores e costumes de cada povo, em cada contexto histórico. Ao ponderarmos sobre essa questão, temos a definição de mais um conceito fundamental para nossos estudos na área: ética é uma reflexão que fazemos sobre os vários padrões morais instituídos pelas diversas culturas e sociedades dos mais variados períodos e contextos históricos. Ser ético, portanto, é refletir sobre os valores que permeiam as sociedades, sejam do nosso tempo, sejam dos tempos antigos. Assim, quando buscamos identificar os princípios e os fundamentos que estão na base dos valores morais, quando nos questionamos sobre o porquê da existência desses valores, estamos sendo éticos.”


“Na esfera moral, temos conjuntos de valores e costumes cristalizados por um agrupamento humano que são considerados válidos ou inválidos, bons ou maus, justos ou injustos e benéficos ou maléficos para a sociedade como um todo, tendo em vista ainda que, se os atos dos indivíduos convergem para o que é considerado válido, são atos morais; se convergem para o que é considerado inválido, são considerados imorais.
Na esfera civil, os valores, os costumes e as regras morais consideradas como fundamentais para o grupo se tornam leis. Essas leis são fruto de uma convenção entre os indivíduos que compõem a sociedade e são de caráter obrigatório, válidas para todos aqueles que pertencem ao grupo, para garantir o que este compreende como justiça, assegurando direitos considerados por ele como fundamentais.
Com efeito, podemos afirmar que a esfera da moralidade e a esfera civil apresentam algumas características semelhantes, tais como: tanto uma quanto a outra se transformam em instrumentos para alcançar o que se compreende ser justo, bom, válido, correto; ambas são fruto de uma necessidade humana que visa a erradicar (ou ao menos diminuir) a violência na sociedade; essas esferas, embora diferentes entre si, caracterizam-se por serem convencionais, históricas, sociais, questionáveis e dependem de instituições para sua preservação. Um bom exemplo disso é que os valores da esfera moral podem ser transmitidos por meio de instituições como a família, igrejas e escolas. Já as leis civis são asseguradas pelo Estado.
Todavia, algumas diferenças entre essas duas esferas se sobressaem. Em primeiro lugar, podemos entender que, enquanto a moral é um instrumento informal que as sociedades utilizam para alcançar ajustiça, a lei é um instrumento formal por excelência criado e promulgado pelo Estado para assegurar a justiça.
Em segundo lugar, podemos falar de uma infinidade de códigos e valores morais de uma única sociedade, como os valores morais religiosos tão diversos que permeiam nossa nação — cristãos, afrodescendentes, indígenas, espíritas etc. ao contrário das leis, que apresentam um sistema jurídico único, válido para todos que pertencem a um grupo ou uma nação. Independentemente dos valores morais religiosos que permeiam nossa existência, temos de seguir as leis que o Estado brasileiro impõe como obrigatórias.
Outro aspecto de distinção importante acerca dessas duas áreas é que a moral, quando não cumprida, causa a rejeição e o afastamento do indivíduo em relação ao grupo; já a lei, quando violada, gera mais do que uma rejeição, gera uma punição.
Por fim, podemos afirmar também que a moral é sempre compreendida como algo bom a ser seguido, como um direcionamento e uma orientação para que os indivíduos do grupo cheguem à felicidade e à justiça. Já a lei é imposta como obrigatória, e cada pessoa deve segui-la independentemente de sua noção de felicidade.”


“Diante disso, podemos tomar as palavras de Chaui (Convite à filosofia, 2000, p, 434) para resumir os fatores essenciais que constituem o campo da ética e da moral:
O sujeito ético, isto é, a pessoa, só pode existir se preencher as seguintes condições:
·        ser consciente de si e dos outros, isto é, ser capaz de reflexão e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele;
·        ser dotado de vontade, isto é, de capacidade para controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos (para que estejam em conformidade com a consciência) e de capacidade para deliberar e decidir entre várias alternativas possíveis;
·        ser responsável, isto é, reconhecer-se como autor da ação, avaliar os efeitos e consequências dela sobre si e sobre os outros, assumi-la bem como às suas consequências, respondendo por elas;
·        ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se como causa interna de seus sentimentos, atitudes e ações, por não estar submetido a poderes externos que o forcem e o constranjam a sentir, a querer e a fazer alguma coisa. A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder para autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta. [grifo do original]


“Em Sócrates, devemos entender que o termo alma (psyché) é a própria consciência humana; trata-se de nossa faculdade intelectual e moral. Nesse sentido, a alma diz respeito a nossa habilidade de compreender. Sócrates procurou, durante muito tempo, compreender qual era a essência do homem, até que chegou à conclusão de que o homem é sua alma. Ela é que permite a virtude (em grego, areté), isto é, a realização do melhor que pode ser alcançável pelo ser humano. Isso é assim pois a alma, como nossa “atividade cognoscitiva”, possibilita a nós a promoção ou a ação em favor de conhecer as coisas como são em si mesmas. Portanto, um conceito que está intrinsecamente conectado com o conceito de alma em Sócrates é o de virtude. Por meio dele buscamos o conhecimento certo e seguro (entendido como ciência, como episteme).
Ao investigarmos a ética socrática, temos de entender um elemento central: há uma só virtude, que, por seu turno, serve de princípio ao conjunto de ações virtuosas. Essa virtude é o conhecimento, um saber seguro e certo sobre si mesmo. Decorre daí o jargão “Conhece a ti mesmo”, que se refere propriamente à virtude. Quando o ser humano comete um erro ao agir, devemos entender esse erro, ou a ação não virtuosa, como fruto da ignorância (desconhecimento de algo). Assim, compreendemos que é a falta de conhecimento que nos leva a agir errado.
Como forma de evitar o erro, devemos entender que o conhecimento das essências seria, então, aquilo que nos possibilita conhecer as coisas como realmente são, e não somente como parecem ser. O conhecimento seguro e certo (epistemé — ciência) é aquele tipo de saber que a alma racional alcança e por meio do qual podemos saber o que é bem e, assim, escolher sem cair no erro.
Com base nesse conceito de alma, podemos determinar outro conceito central para Sócrates, a saber, o de liberdade. Esse termo é entendido como “disposição interna” (como autocontrole — enkráteia). É aquilo que nossa alma racional nos possibilita escolher racionalmente, prescindindo dos impulsos e das paixões. Por meio dessa disposição de autodomínio, podemos nos lançar ao saber seguro e certo das essências. Por meio da natureza racional que define o ser do homem, podemos, ou melhor, devemos — já que estamos nos referindo ao tema da ética prescindir das paixões e dos instintos na realização de nossas ações. Com o conhecimento de si mesmo, o homem usufrui de sua liberdade diante das coisas do mundo, pois pode julgar a contingência das coisas mundanas em relação àquilo que é necessário (na qualidade de essência) mediante o autoconhecimento de sua própria essência (sua alma).
Como consequência ou resultado das ações para o bem, mediante a virtude, que é o conhecimento alcançado pela alma racional, temos então a felicidade. Ela é, para Sócrates, o estado de ordem em que a alma se encontra: “0 homem age retamente quando conhece o bem e, conhecendo-o, não pode deixar de praticá-lo; por outro lado, aspirando ao bem, sente-se dono de si mesmo e, por conseguinte, é feliz.” (Vázquez, 2014, p. 271-272).
Isso nos permite entender que a virtude é um bem em si mesma. Não é a busca pela felicidade que nos leva à ação virtuosa, mas é a própria ação realizada com base na virtude que possibilita que sejamos felizes, ou seja, que percebamos que nossa alma está em ordem, pois ela está buscando aquilo que é próprio dela.”


“De acordo com a concepção socrática, somente podemos conhecer o bem mediante o alcance de nossa alma racional. É esse o limite, é essa a condição que Sócrates coloca para fundamentar sua ética. Isso porque somos essencialmente alma. Assim, devemos compreender que a alma se serve do corpo (como instrumento) para praticar o bem que ela alcançou como resultado de um conhecimento certo e seguro. Quando o corpo passa a ditar as regras, invertemos a ordem, e as paixões e os instintos corpóreos nos fazem (irracionalmente) admitir como bem aquilo que, na realidade, se fosse lançado ao crivo da razão, se mostraria como equivocado.
Conforme a filosofia moral de Platão, o homem deve compreender que sua alma racional é o meio pelo qual ele pode atingir a redenção de sua existência, via conhecimento do mundo. A virtude é esse conhecimento, pois diz respeito diretamente ao elemento intelectual, que é próprio da alma do homem. Na essência humana, encontram-se dispostos elementos de três tipos, que são desenvolvidos ou suprimidos pelo indivíduo e refletem o seu agir, permitindo a alguns conhecer e ensinar o bem; a outros proteger e fazer respeitar o bem; a outros, ainda, vivenciar de forma limitada o bem, sob a influência dos tipos anteriores.
Já a filosofia moral aristotélica é tida como uma ética eudaimônica. Foca na racionalidade, a exemplo de todas as éticas do período, procurando estabelecer que a virtude do homem está no agir justo, ou seja, na ação moral capaz da justa medida entre o excesso e a falta. Isso somente é possível de ser alcançado mediante o emprego da deliberação, da escolha e da vontade humana em cada situação particular que se apresente ao homem.
A ética epicurista é mais um exemplo de ética pautada na capacidade racional da alma humana. Como o epicurismo é uma filosofia materialista, sua ética segue essa concepção e atribui a virtude ao plano da disposição ordenada dos átomos presentes em uma forma, a saber, a humana. A vivência dos prazeres é a virtude para o homem, que busca a ataraxia por meio da autarquia. Nesse sentido, o indivíduo precisa saber que há uma hierarquia dos prazeres e que necessita trilhar um caminho seguro, por meio dos “quatro remédios”, que podem auxiliá-lo na obtenção de uma vida prazerosa.
Por fim, vimos que reconhecer-se como parte de um plano cósmico engendrado pela razão universal (logos) é a tarefa do sábio estoico, que busca a virtude na vida de acordo com a sua natureza, ou seja, de acordo com a racionalidade que nele opera. A imperturbabilidade da alma (ataraxia) é o cume a ser atingindo pelo homem virtuoso, que busca alcançá-lo por meio da eliminação das paixões (apatia), centrado em conhecer as ações que são boas e que pode promover, outras que são más e que não deve promover e, ainda, aquelas às quais ele deve ser indiferente, pois estão fora do poderio humano no que diz respeito à capacidade tanto de promovê-las quanto de evitá-las.”


“Marcada essencialmente pela conduta embasada na religiosidade cristã, a ética medieval inaugura novos modos de pensar e propor a moralidade. Podemos entender a inovação sob dois aspectos, a saber, pelo abandono da cosmovisão mundana e pelo surgimento acentuado da subjetividade (a ideia de indivíduo é fundamental na moral medieval). No que diz respeito ao abandono da cosmovisão mundana, devemos compreender que a ética medieval concebe a ideia de que o fim último da vida humana (a felicidade) não está neste mundo, mas em outro plano a ser alcançado após a vida terrena. Nesse sentido, a recompensa (ser feliz) fica vinculada à condição de uma conduta pautada na busca pela perfeição moral (santidade), a qual, por sua vez, estava centrada no amor a Deus.
Naquilo que se refere ao surgimento da subjetividade, a noção de indivíduo assume uma importância jamais vista na história do pensamento ocidental. Isso porque, na ética antiga, que também pode ser chamada de ética pagã, prevalecia na moral o sentido de comunidade, marcando a centralidade de pensarmos a conduta dos sujeitos em relação intrínseca com a comunidade. Ao contrário, na ética medieval (intitulada também de ética cristã), há o trato da moral do ponto de vista estritamente pessoal, ou seja, da relação entre cada indivíduo e Deus. Desse modo, a subjetividade assume uma importância desconhecida se comparada ao período antigo.
Contudo, precisamos notar que a ética medieval herda da filosofia moral do período grego alguns aspectos e conceitos que são recombinados na formação da doutrina cristã. Um dos conceitos que são centrais para ambas é a noção de virtude como melhor ação possível para o homem. No período medieval (todo ele), a virtude é a santidade. Trata-se de como nós, seres humanos, buscamos agir de acordo com a vontade divina, correspondendo ao fundamento que deve sustentar as ações do homem de bem, que, naquele momento histórico, era entendido como sendo o cristão temente a Deus.”

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