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quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Teoria e prática em antropologia – Alessandra Stremel Pesce Ribeiro

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-250-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 252
Sinopse: Aquele que se aventura nos caminhos da antropologia tem suas percepções de mundo e de si mesmo alteradas, ampliando e renovando seu olhar em relação ao desconhecido, ao outro e ao diferente. Com base em um estudo sobre cultura, etnocentrismo, identidade, alteridade e fronteiras culturais, veremos que tomar consciência de diferentes costumes e crenças pode desfazer a ideia do indivíduo de que seus valores e modos de vida são unânimes. Portanto, por meio da reflexão crítica sobre nossa realidade, esta obra pretende desfazer preconceitos, estereótipos e mitos.



“Um dos principais objetivos da antropologia é demonstrar que todos os indivíduos e grupos sociais, nos mais variados tempos e lugares, significam suas ações e dão sentido ao mundo. A espécie humana não vive apenas uma, mas múltiplas realidades. Por muito tempo, o conceito de cultura foi a resposta para equacionar a diversidade humana e, ao mesmo tempo, a unidade da espécie.”


“Em seu livro Cultura: um conceito antropológico, o antropólogo Roque Laraia (2002) desconstruiu a ideia de que os instintos ou o ambiente são determinantes para o comportamento humano. Esse autor fez diversos questionamentos ao leitor, por exemplo: De que modo é possível falar em instinto de sobrevivência em face de fenômenos como o suicídio? Como falar em instinto materno se, em várias sociedades, a morte de recém-nascidos portadores de características específicas pode ser provocada? Como é possível afirmar que o homem é determinado pelo ambiente se, ao compararmos sociedades distintas vivendo em ambientes semelhantes, verificamos respostas e estratégias diferentes de adaptação?


“De modo geral, o dualismo entre natureza e cultura perpassou toda a obra de Lévi-Strauss. Em As estruturas elementares do parentesco (1982), esse mesmo autor argumentou que a passagem da natureza para a cultura ocorre no estabelecimento da primeira regra: a proibição do incesto, que consiste em interditar o ato sexual com algumas pessoas de acordo com a relação de parentesco entre elas.
A importância de tal proibição, para Lévi-Strauss, é emblemática, por forçar o estabelecimento de relações (alianças) fora das fronteiras do grupo. As trocas entre grupos, sendo a troca matrimonial a mais poderosa, revelam semelhança com a linguagem, pois ambas são tidas como processos comunicativos.
Mesmo reconhecendo a interdependência entre os planos da natureza e da cultura, Lévi-Strauss considerava que o aparato conceitual da cultura permitiria organizar o plano da natureza. Segundo o antropólogo, são os processos lógicos de classificação do mundo que dão forma e coerência à realidade. Para esse autor (1989; O pensamento selvagem, 1982), o que transformaria o homem em um ser social — isto é, quando ele escapa às determinações impostas pela natureza — seria a criação do universo das regras.”


“Segundo o antropólogo britânico Edward Tylor (1832-1917), a cultura (e a civilização) seria “um conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (Tylor, 1871, p. 1, citado por Denys Cuche, A noção de cultura nas ciências sociais, 1999, p. 35).
Embora outros etnólogos já tivessem utilizado o termo cultura antes de Tylor, ele o utilizou como um conceito. A cultura, para o autor, adquire um status coletivo, capaz de abarcar a totalidade do social. Nota-se que o conceito de Tylor é amplo o bastante para envolver o homem em várias dimensões. A cultura, ao ser tratada como algo adquirido, escapa às determinações biológicas.”


“Segundo Denys Cuche (1999), havia em Durkheim uma profunda preocupação com os aspectos simbólicos, os quais aproximaram o sociólogo de uma abordagem antropológica da sociedade. Ao menos dois aspectos do pensamento durkheimiano indicam sua preocupação com questões antropológicas:
1. a explicação de como o vínculo social é estabelecido, ou seja, como se dá a relação entre indivíduo e sociedade;
2. a ênfase nas representações coletivas — a ideia de consciência coletiva consistia em um conjunto de valores, ideais e sentimentos compartilhados impostos ao indivíduo.
Durkheim concebia a sociedade como uma totalidade orgânica, na qual todos os aspectos da vida social seriam interdependentes. A metáfora da sociedade como organismo foi inspiradora para vários pensadores. A noção da sociedade como totalidade orgânica teve grande impacto sobre os antropólogos ingleses, os quais, no início do século XX, estavam realizando seus primeiros trabalhos de campo. As ideias de Durkheim, quando confrontadas com outras sociedades, pareciam oferecer conceitos poderosos para se analisar a totalidade do social, objetivo último dos funcionalistas. Grosso modo, o conceito de função, desenvolvido por autores como Bronislaw Malinowski (1884-1942) e Alfred Radcliffe-Brown (1881-1955), considerava que todas as instituições sociais estavam interligadas e desempenhavam um papel específico (ou seja, tinham uma função) para a manutenção da coesão social.”


“O etnocentrismo é produzido quando o encontro entre grupos diferentes acontece. Ao nos depararmos com as diferenças, que podem ser as mais variadas (éticas, estéticas, religiosas etc.), ocorre um esforço para darmos sentido ao diferente este é o momento da tradução. No etnocentrismo, a tradução se dá ao interpretarmos as coisas do outro de nosso ponto de vista.”


“Se foi difundida uma visão de uma democracia racial à brasileira, foi porque a valorização do caráter miscigenado camuflou os processos históricos de conflitos e a dominação do sistema colonial. Apesar de hierárquico e conservador, o Brasil se pensa tolerante, liberal e igualitário.”


“Dumont foi um antropólogo francês que propôs uma interpretação da ideologia moderna de modo comparativo, partindo do seu oposto, a hierarquia. Em sua obra, o estudo da sociedade indiana mostrou ser uma importante ferramenta, pois permitiu um distanciamento do Ocidente, para olhar de modo analítico aquilo que antes era natural. Dumont (Homo Hierarchicus, 2008) estabeleceu dois modelos sociais e ideológicos* distintos:
1. Hierárquico — É o modelo predominante em sociedades tradicionais, em especial, na sociedade indiana. De modo geral, podemos afirmar que a hierarquia pressupõe que a ênfase é dada à totalidade, não às partes. Cada pessoa ou grupo ocupa um lugar definido na ordem social. As partes não ocupam os mesmos lugares, isto é, estes são diferentes, e é na relação entre os homens que a sociedade (o todo) adquire sentido.
2. Individualista — Trata-se de um modelo historicamente construído no Ocidente, e sua ênfase, ao contrário da hierarquia, não está no todo, mas nas partes (indivíduos ou grupos sociais). Nesse modelo, todos os indivíduos são considerados iguais, pois cada um é concebido como uma encarnação da sociedade inteira. A ideologia individualista pressupõe que a sociedade é constituída por um conjunto de indivíduos.
Roberto DaMatta aplicou o modelo de Dumont para analisar a sociedade brasileira. Segundo DaMatta (A casa e a rua, 1985), enquanto países como os Estados Unidos e a França obedeciam à lógica individualista, o Brasil seria um híbrido, combinando elementos individualistas e hierárquicos. Formalmente, no Brasil, o Estado, a Constituição e todos os modelos oficiais foram elaborados seguindo valores ocidentais — modernos e individualistas.
No entanto, as relações entre as pessoas são hierárquicas e tradicionais. O resultado é a navegação do brasileiro entre esses dois modelos, para os quais DaMatta (1985) utilizou a metáfora da rua e da casa.
A rua representa esse modelo impessoal e individualista, ao passo que a casa encarna o universo da rede de relações pessoais no interior da qual o sentido de pertencimento ao todo é possível. Nessa leitura do Brasil, o mundo da rua não é confortável, tanto que as redes de relações às quais pertencemos são acionadas sempre que possível. Daí as estratégias de aproximação com estranhos, procurando-se elementos de afinidade.
A valorização das relações pessoais no Brasil tem raízes históricas, sendo um dos únicos modos de navegação social possíveis na sociedade colonial. Aqui, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, a mobilidade foi atrelada não à igualdade de condições, mas às relações da pessoa com aqueles mais bem posicionados social e economicamente. Não é por acaso que, em nosso país, o compadrio se tornou uma instituição poderosa e que, por muito tempo, ser apadrinhado por um político ou coronel era um dos poucos caminhos para a ascensão social.
O compadrio consistia em um parentesco espiritual, com base no qual o padrinho do indivíduo assume uma responsabilidade moral pelo afilhado — uma espécie de paternidade. No Nordeste, por exemplo, os coronéis, donos de engenho, fazendeiros, eram muito requisitados para serem padrinhos de seus empregados. Ter essas pessoas como compadres possibilitava constituir laços sociais com alguém em posição privilegiada. E, para o padrinho, qual era a vantagem? A lealdade adquirida em troca, garantindo, assim, seu prestígio e poder na região. Ocorre que o compadrio, ao mesmo tempo que era hierárquico, era personalizado e implicava relações de amizade e confiança. Embora as distinções sociais entre os compadres fossem mantidas, elas eram sustentadas pela cordialidade.
Agora, é possível entender melhor por que, ao tratarmos do racismo no Brasil, afirmamos que ele também era hierárquico, de tal forma que até a classificação racial das pessoas podia variar segundo vários critérios, entre os quais sua rede de relações sociais ou situação econômica. O próprio mito da democracia racial implica hierarquia, pois, segundo a lógica moderna, igualitária, o único modo de atribuir a igualdade de condições é reconhecer a diferença entre elas.”
*: Para Dumont (2008), a ideologia é um conjunto de ideias e valores.


“O Brasil, como vimos, transita entre o individualismo moderno e os princípios tradicionais da hierarquia, característica que influencia diretamente o modo como concebemos e vivemos a cidadania. Nos últimos anos, com a introdução de políticas mais inclusivas, como as ações afirmativas, temos observado um esboço de sociedade mais igualitária, mas há ainda um longo percurso até alcançarmos uma cidadania mais inclusiva. A noção de igualdade entre indivíduos como princípio da cidadania não pode existir em países onde ainda há distinções e privilégios conforme o grau de instrução e a classe social da pessoa. Como certa vez afirmou DaMatta (O que faz o Brasil, Brasil?, 1984), estipulamos todas as classificações possíveis para estabelecer distinções entre as pessoas: vestimenta; condição econômica; cor da pele; família a que pertencem. Enfim, trata-se de um sistema em que cada integrante sabe o lugar que ocupa.
Marisa Peirano (A teoria vivida e outros casos de antropologia, 2006) revelou como, em duas situações diferentes, a noção de cidadania esteve ligada à posse de determinados documentos oficiais: a carteira de trabalho e o título de eleitor. A vinculação desses documentos a uma ideia de cidadania no Brasil faz distinções entre as relações sociais estabelecidas nos meios urbano e rural.
Segundo essa antropóloga, na década de 1930, a carteira de trabalho se tornou um documento que atribuía ao indivíduo o status de cidadão. Para isso, era necessário que a profissão exercida estivesse na lista das atividades regulamentadas pelo Estado. Já os trabalhadores urbanos e rurais desprovidos do registro em carteira não eram percebidos como cidadãos plenos. A correlação entre profissão e cidadania foi tão saliente que, por algum tempo, as associações profissionais podiam fazer a expedição do documento de identidade. No entanto, essa característica indica que
A carteira profissional, privilégio de uma parcela especifica da população, traz em si uma concepção de cidadania que mostra a face da distinção e a marca de status. Os cidadãos da nação, assim definidos, constituem uma minoria privilegiada. A nação existe como categoria ideológica, sendo composta de indivíduos hierarquizados que se diferenciam pela profissão e pelo lugar que ocupam na sociedade. (Peirano, 2006, p. 125)
Essa noção de cidadania desigual teve múltiplas implicações. O acesso ao sistema de saúde, por exemplo, esteve diretamente relacionado ao registro em carteira. Antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) os serviços de saúde ligados ao Ministério da Saúde cobriam praticamente campanhas de vacinação e atendimento em poucos casos de doença, quando se tratava de indigentes.
Em 1974, o governo militar criou o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), destinado apenas àquelas pessoas que contribuíam com a Previdência Social, ou seja, que tinham carteira de trabalho assinada. Talvez por essa razão, várias categorias de profissionais não eram contempladas com o atendimento dos serviços públicos de saúde. A universalização da saúde brasileira foi possível apenas com a homologação da Constituição Federal de 1988 — o SUS foi criado apenas no início dos anos 1990.”


“As relações pessoais na política não são malvistas pelos trabalhadores do interior. Trocar o voto por pequenos favores políticos (ou econômicos) faz a pessoa sentir que tem aliados em esferas às quais normalmente não tem acesso. A lógica local não vê isso como “venda de votos”, mas como ajuda mútua. O político ou comerciante tem acesso a determinados espaços aos quais o habitante local não tem, atuando, assim, como um mediador entre a pessoa e o Estado. Segundo Marisa Peirano (2006, p. 127), essa lógica só pode funcionar em um modelo de “política vinculado a relações personalizadas e hierárquicas que muito se distanciam do ideal universalista”. Trata-se de um modelo de política pelo qual os indivíduos não se percebem como iguais.”


“Tão importantes quanto a coexistência de duas ideologias distintas, ou formas de navegação social, são as analogias que DaMatta fez ao relacionar determinadas festas à realidade brasileira. As festas são importantes pois consistem em um período que escapam ao cotidiano e, por isso, têm a função de reforçar determinados valores. (...)
Podemos afirmar que os estudiosos dividiram os ritos em rituais de coesão social e rituais de rebelião (ou da desordem). Enquanto os primeiros consistem em reforçar para a sociedade valores e normas já existentes, os segundos invertem ou desconstroem a ordem social, ao menos durante o ritual. Os ritos cívicos e o carnaval operam nesses polos opostos, mas, ao mesmo tempo, se complementam para atribuir determinados sentidos à experiência do brasileiro: “cada um desses lados permite esquecer o outro, como as duas faces de uma mesma moeda. E, no entanto, os dois fazem parte e constituem expressões ou reflexões de uma mesma totalidade, uma mesma coisa” (DaMatta, 1984, p. 42, grifo nosso).
Dentre as festas da ordem, a mais conhecida é a parada militar. Na organização espacial da festa, é possível observar uma separação entre a população, o desfile e as autoridades (às últimas é destinado um lugar de destaque). O rito é apresentado ao mesmo tempo ao povo e às autoridades, mas encerra significados diferentes: quanto ao povo, a parada militar tem a função de mostrar a força do Estado, ao qual a população deve estar submetida; já sua apresentação às autoridades demonstra o reconhecimento em relação ao poder estabelecido. Por essas razões, as paradas militares no Brasil têm a função de reforçar as distinções hierárquicas estabelecidas no país.
Essa realidade é muito diferente do que ocorre nas paradas cívicas, por exemplo, nos Estados Unidos, em que o exército não desfila equipado com armas no intuito de enfatizar a força do Estado. Lá, a população é parte do evento e está integrada ao desfile propriamente dito, bem como na condição de quem dele participa efetivamente como espectador.
O carnaval vive situação oposta ao que acontece com os desfiles militares no Brasil. Nessa festividade, durante quatro dias, toda ordem estabelecida se dissolve. Se existe alguma hierarquia, durante o carnaval, ela está às avessas. Quando se trata da avenida por onde desfilam carros alegóricos e pessoas, o espetáculo gira em torno daqueles que, no dia a dia, são hierarquicamente inferiores: pobres, negros, empregadas domésticas, categorias sociais que se apresentam em maior número no carnaval. (...)
Durante os quatro dias de carnaval, talvez exista uma democracia “à brasileira”, pois é durante essa festividade que as redes de relações deixam de ser imperativas para a navegação social da pessoa. Tampouco tem expressão a figura opressora das autoridades que sempre “colocam o pobre no seu devido lugar”. Em outras palavras, ao longo do carnaval, toda e qualquer hierarquia sai de cena.”


“Há um lugar no planeta, no extremo ocidente, onde vive um povo muito interessante, e que há cerca de uns seiscentos anos atrás se achava inteiramente desprovido de cultura. Ele havia perdido toda a sua sabedoria ancestral ao cabo de inumeráveis invasões de bárbaros, de sucessivas catástrofes, pestes, secas, guerras, o diabo. A partir de certo momento, porém, esse povo começou a se reiventar, criando uma cultura artificial: começaram a imitar uma arquitetura de que só conheciam ruínas ou em velhos escritos, faziam traduções vernáculas de textos em línguas mortas a partir de traduções em outras línguas, tiravam conclusões delirantes, inventavam tradições esotéricas perdidas... Como se sabe, esse processo, que se passou na Europa ali mais ou menos entre os séculos XIV a XVI, ganhou o nome de Renascimento. O Ocidente moderno principia ali. O que é o Renascimento? Os europeus – mistura étnica confusa de germânicos e celtas, de itálicos e eslavos, que falam línguas híbridas [...] Refiguram o mundo grego, que não era o mundo grego (ou greco-romano) histórico, mas uma “Antiguidade clássica” feita – como sempre – de fantasias e projeções do presente. Erguem templos, casas, palácios imitativos, escrevem uma literatura que se refere privilegiadamente a esse mundo, uma poesia imitando a poesia grega, esculturas que imitam as esculturas gregas. [...] E Sahlins conclui: pois é, quando se trata dos europeus, chamamos esse processo de Renascimento. Quando se trata dos outros, chamamos de invenção da tradição. Alguns povos têm toda a sorte do mundo.”
(Sahlins, citado por Viveiros de Castro, No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é, 2006, p. 18-19)


“Acreditamos que a antropologia nada mais é do que uma ferramenta para pensar a existência a partir de outra perspectiva, isto é, não mais de forma etnocêntrica, julgando experiências e ideias que diferem das nossas, mas procurando compreendê-las em seus próprios termos.”

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