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sábado, 6 de outubro de 2018

Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (Parte I) – Carlos Eduardo Martins

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-191-8
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 368
Sinopse: Em Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina, Carlos Eduardo Martins cumpre a difícil tarefa de atualizar as teorias sobre esses três conceitos-chave para o pensamento contemporâneo e a compreensão das sociedades, principalmente as periféricas. Em uma época de grandes incertezas e enorme aceleração do tempo histórico, o autor se propõe o desafio de captar o movimento de crescente articulação entre o global e as particularidades regionais, nacionais e locais, bem como os choques entre forças sociais, políticas e ideológicas.
Mapeando as forças dinâmicas de um mundo paradoxal, Martins parte dos estudos de Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi sobre o capitalismo histórico e avança para uma discussão rigorosa da crise do moderno sistema mundial. ‘Estruturas, tendências seculares e ciclos permeiam o nosso trabalho, que não tem a pretensão de oferecer certezas matemáticas’, afirma o autor sobre a análise retrospectiva e prospectiva do livro.
Logo no início da obra, Martins apresenta uma introdução metodológica à globalização, com ênfase nas teorias do sistema mundial e da dependência. Nesse percurso, incorpora um elemento explicativo fundamental para a compreensão do processo de globalização: a teoria de Marx sobre a tendência decrescente da taxa de lucro provocada pela revolução científico-tecnológica, quando ciência e tecnologia entram no processo como meios de acumulação do capital.
O autor também busca identificar as tendências seculares e os ciclos para situar o espaço histórico da etapa atual do capitalismo e do sistema mundial em que vivemos. ‘Defendemos que a globalização é uma força revolucionária e, como tal, destrói e constrói. Entretanto, destruição e construção são processos relativamente autônomos e estabelecem uma dialética de desdobramentos imprevistos, onde um dos polos pode prevalecer e condicionar o outro’, afirma Martins. ‘No momento em que estamos, a globalização não encontrou ainda sua estrutura institucional e societária criadora. Os períodos de crise sistêmica são épocas de bifurcações históricas, e nossa tese é a de que caminhamos nos próximos dez a quarenta anos para uma bifurcação totalmente nova, em relação às que se estabeleceram no moderno sistema mundial’.
Para discutir as relações entre dependência e desenvolvimento no moderno sistema mundial, o autor utiliza a análise empírica e as principais teses formuladas pelo pensamento latino-americano. Assim foi possível avaliar o papel do capital estrangeiro nesse processo, a persistência do subdesenvolvimento e da pobreza, os efeitos do neoliberalismo sobre a base econômica e social e os caminhos da elevação da renda e do bem-estar dos latino-americanos.
O estudo contempla ainda uma análise minuciosa da crise do sistema mundial e da hegemonia norte-americana decorrente do desenvolvimento desigual e da superexploração dos trabalhadores, além de uma análise prospectiva das possibilidades da América Latina no século XXI e da influência sobre seu desenvolvimento da projeção da China na economia mundial. ‘O balanço da questão da hegemonia e das perspectivas do século XXI permite ao autor abordar um capítulo extremamente novo na história das ideias sociais ao estudar as relações entre a teoria da dependência e a teoria do sistema mundial’, diz Theotonio dos Santos no prefácio. ‘Creio que o leitor compreenderá rapidamente que este é um livro essencial e necessário, com grandes possibilidades de se converter num clássico das ciências sociais latino-americanas, sobretudo neste momento histórico, em que a região necessita de um rigoroso aparelho teórico para fundamentar suas políticas progressistas em marcha com crescente apoio popular’.



“Embora o conceito de capitalismo histórico seja importante para assinalar as forças concretas que atuam para impulsionar o desenvolvimento capitalista, é necessário articulá-lo com o de modo de produção. Marx nunca postulou que o desenvolvimento de uma sociedade concreta pudesse realizar as leis gerais de seu modo de produção em toda sua pureza, uma vez que este expressa suas tendências mais fundamentais. Entretanto, o conceito de modo de produção traz uma importante dimensão para a análise histórica e para uma teoria da longa duração. Ela se refere à abordagem das relações entre homem e natureza como condição para a existência humana e do trabalho como produtor dessa existência.
Em A ideologia alemã (1846), Marx e Engels estabelecem as premissas metodológicas do conceito de modo de produção e os seus elementos básicos, que seriam refinados mais tarde. Segundo esses autores, os homens fazem a história, mas em condições materiais de escassez, alheias à sua vontade, que demandam uma larguíssima acumulação civilizacional para serem superadas e humanizadas. Essa situação de escassez está determinada pela necessidade de os homens trabalharem para sobreviver. Mas, ao fazerem isso, mais que sobreviver, eles produzem sua própria existência. Iniciam um processo de humanização da natureza que apenas se realiza plenamente quando os homens dirigem o seu trabalho para atender às determinações de sua própria subjetividade, independentemente das necessidades determinadas pela natureza. Isso ocorre quando eles desenvolvem um nível de elaboração das forças produtivas que garante de forma sistemática sua sobrevivência, independente do trabalho.
A satisfação, mediante o trabalho, das necessidades básicas diferencia os homens dos animais e gera padrões específicos de pensamento, sentimentos e sensibilidades. A produção dos instrumentos de satisfação amplia o domínio humano sobre a natureza e conduz a novas necessidades que também são impulsionadas pela extensão da procriação. Mas, como Marx e Engels mencionam, essa produção de novas necessidades ainda se conjuga com a busca da sobrevivência.
Não se deve considerar estes três aspectos da atividade social – garantia da sobrevivência, satisfação de novas necessidades e procriação (C.E.M.) – como três fases diferentes, mas simplesmente como três aspectos, ou, para escrever de maneira clara aos alemães, como três “momentos” que coexistem desde os primórdios da história e desde os primeiros homens, e que ainda hoje se fazem valer na história. (Marx e Engels, 1986, p. 42.)
Forças produtivas, relações de produção e superestrutura ideológica constituem um conjunto articulado que fundamenta o modo de produção e produz as formas de vida dos homens. Podemos distinguir, no pensamento de Marx e Engels, três padrões gerais histórico-estruturais de relações entre o homem e a natureza. O primeiro, referente ao comunismo primitivo, em que os homens estão basicamente dedicados à reprodução da sua existência física, onde as forças produtivas e as relações de produção são incipientes. O segundo, referente aos modos de produção classistas, onde a expansão da produção dos meios de vida e o aumento populacional criam novas necessidades que organizam a sociedade para a geração do excedente. O terceiro, ainda imaginário e utópico, mas cujas condições já se configuram parcialmente, em que a escassez seria abolida pela automação do trabalho e criação de relações de produção comunistas.
Durante o segundo padrão geral de relações entre o homem e a natureza, as forças produtivas exercem um papel condicionante sobre o conjunto do desenvolvimento social. Elas são impulsionadas pelas relações de produção que são um de seus componentes e dirigem a organização social de um determinado modo de produção. Radovan Richta, ao analisar o pensamento de Marx e Engels, destaca que o conceito de forças produtivas se refere ao amplo conjunto de forças que produzem a vida humana (Richta, 1971, p. 6). Elas não incluem apenas os meios de produção e objetos de trabalho, mas também a população, a força de trabalho, as relações de trabalho e a superestrutura (sistemas de ideias, valores, sentimentos e formas de organização social). Para se observar a composição real das forças produtivas em cada estrutura ou conjuntura histórica, isto é, como cada um dos elementos indicados compõe parte de sua atividade, deve-se verificar a participação deles como insumo no processo produtivo.
No segundo padrão de relações entre o homem e a natureza, os meios de produção predominam como força produtiva. Mas, ao atingir um determinado grau de desenvolvimento, os meios de produção entram em contradição com a forma de trabalho-chave da organização social. A continuidade de seu desenvolvimento tende a dissolvê-la10. Sobrevém então um período de crise revolucionária, provocado pelo fato de as relações de propriedade assumirem o papel determinante no âmbito das relações de produção para impedir o ajuste das relações de trabalho e a dissolução do modo de produção dominante. Esse tema foi tratado de forma concentrada por Marx nos Grundrisse (1857-1858) e na Contribuição à crítica da economia política (1859), em particular em seu Prefácio.
Nesse padrão histórico-estrutural, as superestruturas tenderam a desempenhar um papel marginal como força produtiva. Isso ocorreu porque durante um longo período os sistemas de pensamento não alcançaram um suficiente desenvolvimento para ingressar de forma sistemática no processo produtivo. Mas essa não foi a única razão. O desenvolvimento das classes sociais marginalizou das decisões econômicas o pensamento, os valores, os sentimentos e as sensibilidades das classes trabalhadoras e demais segmentos populares. Essa restrição da subjetividade dos trabalhadores chegou ao auge com a Revolução Industrial e o fordismo.”
10 Esse foi o caso do trabalho servil no campo da Europa Ocidental, ameaçado pelo avanço nas técnicas de cultivo da terra, entre as quais se destaca o sistema de rotação do plantio (Anderson, 1974, e Wallerstein, 1979b), e é o caso do trabalho assalariado no capitalismo contemporâneo, ameaçado pelo avanço da automação (Richta, 1971, e Dos Santos, 1983 e 1987).


“O capitalismo histórico para se desenvolver estabelece duas lógicas distintas e expansivas, marcadas pela unidade e pela contradição: a capitalista e a territorialista. Elas se articulam pelo fato de o capitalismo necessitar do andar superior, isto é, do sistema interestatal para o seu desenvolvimento. Os impérios-mundo eram sistemas territorialistas que utilizavam a acumulação de capital como um meio para a aquisição de poder, identificado com a extensão de territórios e a densidade populacional dos domínios. Mas as riquezas eram em parte consumidas e esterilizadas na atividade de conquista e preservação do poder. Uma vez que o império-mundo alcançava certos limites, se elevavam os custos de preservação do poder acima das riquezas acumuladas, ameaçando sua unidade política, que tendia a sofrer retrações e invasões bárbaras. O capitalismo, inversamente, tende a utilizar a aquisição de territórios como um meio para acumular capital. Sua lógica econômica está estritamente ligada ao cálculo. Este lhe permite prever com elevada precisão os excedentes a serem obtidos sobre os custos de produção de uma determinada atividade, o que a viabiliza ou não. A existência de um amplo mercado capaz de medir o preço dos diversos valores de uso e do crédito é fundamental para isso. Mas as incertezas ligadas aos custos da incorporação de territórios e populações trazem limites ao cálculo.
Esses limites podem restringir a ação expansiva do capitalismo. Mas este necessita da incorporação de uma base crescente de valores de uso para a reprodução ampliada do capital. A ação de uma instituição política, dotada do direito ao monopólio da violência para intervir sobre territórios e populações e viabilizar a acumulação de capital, é fundamental para romper o impasse. Essa instituição é o sistema interestatal, dirigido e organizado pelo Estado hegemônico e demais Estados que lhe dão suporte, agregando-lhe poder relativo. A oscilação entre a ação mais ligada ao cálculo econômico e a ação mais dirigida à intervenção política para viabilizá-lo define, segundo Arrighi, as trajetórias do pêndulo que regula os padrões institucionais do capitalismo histórico.
Os ciclos sistêmicos podem ser divididos em cosmopolitas-imperialistas e corporativos-nacionalistas. Os primeiros desenvolvem regimes de acumulação extensivos e conquistadores, em que o aumento de produtividade está fortemente ligado à incorporação de uma nova base demográfica e territorial à economia-mundo que redefine os seus paradigmas de gestão. Os últimos estabelecem regimes de acumulação intensivos e consolidadores. Estes sucedem os primeiros e vinculam o aumento de produtividade a mudanças qualitativas da gestão institucional da economia-mundo existente, sem implicar em maiores alterações de seus limites geográficos.
A oscilação pendular não diz ainda tudo sobre os padrões específicos dos sistemas interestatais. Ela não significa uma descontinuidade absoluta em relação ao movimento precedente. Cada novo ciclo sistêmico apresenta uma estrutura que incorpora traços daquela desenvolvida no ciclo anterior. Essa cumulatividade sistêmica implica que cada novo ator hegemônico configura uma base organizacional de dimensões e complexidades crescentes. Ele significa uma nova articulação entre o Estado e os capitalistas que se funda em tecnologias e padrões de gestão pública e privada inovadores, bases territoriais e demográficas ampliadas e nova localização geográfica. Desenvolvem-se assim os seguintes ciclos sistêmicos: o genovês-espanhol e o britânico, de caráter cosmopolita-imperialista; e o holandês e o estadunidense, de formato nacionalista-corporativista.”


“O conceito de globalização dificilmente tem sido tratado de forma apropriada. Raramente tem sido concebido como um processo dialético que articula e confronta estruturas de produção e forças produtivas radicalmente distintas. Em geral, a globalização tem sido entendida como um processo institucionalizado ou em fase de institucionalização: nesses enfoques, ela pode representar, nas versões mais ousadas, uma nova era controlada pelo capital, na qual se afirma um sistema produtivo global dirigido pelo capital financeiro sob o comando de empresas-rede ou do capital em geral; pode significar a etapa avançada de uma longa continuidade de desenvolvimento do sistema mundial; pode designar uma nova etapa a ser dirigida por regimes internacionais baseados na hegemonia compartilhada entre os Estados mais poderosos da economia-mundo; ou ainda representar a mundialização do capital financeiro que submete a economia mundial a um regime de depressão permanente. Mas essas visões tomam unilateralmente em consideração momentos ou certas potencialidades do processo e não conseguem reconstrui-lo numa totalidade prático-teórica.
Propomos aqui compreender a globalização como um processo revolucionário que confronta o modo de produção capitalista e sua superestrutura jurídico-política e ideológica com uma nova estrutura de forças produtivas que ele não pode absorver integralmente. Ela designa um processo de transição de dimensões civilizacionais que exaure os limites da existência capitalista e exige, para se efetivar, a construção das bases de uma civilização planetária.”


“Marx, em O capital, já havia mencionado que a contribuição da ciência à sociedade se assemelhava à da natureza. Pois ambas eram capazes de oferecer gratuitamente bens aos homens. A natureza, por expandir-se independentemente do trabalho humano. A ciência, por sua capacidade de economizá-lo e por sua perenidade, que a situa em uma dimensão superior a do trabalho coletivo: a do trabalho universal. Por essa categoria, Marx menciona a capacidade de acumulação fornecida pela ciência, presente em sua capacidade simbólica de organizar a produção da vida humana. O trabalho universal se acumula através das gerações e permite aos indivíduos concretos se utilizarem dele, mesmo que não tenham contribuído, por meio da divisão do trabalho existente, para produzir seus resultados.”


“Wallerstein assinala que a civilização capitalista foi construída em torno da centralidade do indivíduo, considerado o sujeito da história. Essa centralidade do indivíduo foi tratada de duas formas complementares no capitalismo histórico. De um lado, pelo universalismo, que afirma a homogeneidade fundamental da espécie humana e olha com desconfiança para privilégios e desigualdades; de outro, pelo etnocentrismo, racismo e sexismo, que procuram enfatizar suas diferenças e limitar ou descartar sua igualdade. Para o universalismo, as diferenças se explicam por desempenhos diferenciados num sistema meritocrático em que todos têm oportunidades iguais. Entretanto, o capitalismo sempre teve demasiadas dificuldades para impor um sistema meritocrático. O desenvolvimento do universalismo como ideologia, necessário para impulsionar o princípio da concorrência que fundamenta a lei do valor, se estabeleceu a partir da afirmação dos monopólios. É com o desenvolvimento da grande indústria – e do monopólio tecnológico que impõe – que se desenvolve com maior amplitude o princípio da concorrência. O princípio da concorrência se impõe com mais força quanto mais poderosos são os desvios da lei do valor. O objetivo do capital é concentrar mais-valia e não dispersá-la entre múltiplos concorrentes. Para isso, recorre a expedientes anticoncorrenciais sempre que o resultado da competição for incerto.
Para evitar as ameaças à acumulação, o capital se utiliza do etnocentrismo, racismo, sexismo. Diferentemente do universalismo que propõe um sistema de oportunidades iguais, essas formas ideológicas justificam a desigualdade apelando à “inferioridade” cultural ou biológica de determinados grupos sociais. Através da imposição da desigualdade de direitos, o capital pode rebaixar o valor da força de trabalho desses grupos e se proteger contra as pressões sociais da competição e da igualdade. O modelo mais bem-sucedido de capitalismo no século XIX, não foi o francês que partiu de uma revolução que mobilizou camponeses em torno das bandeiras da liberdade, igualdade e fraternidade, mas o britânico, onde a burguesia se aliou com a aristocracia e com as forças conservadoras da Santa Aliança para moderar a radicalidade dos princípios da revolução francesa.
Wallerstein afirma que o padrão ideológico da civilização capitalista foi a de um zig-zag entre o universalismo e a desigualdade para situar os indivíduos e grupos sociais. Esses zig-zags, nos momentos de estabilidade política e de hegemônica, foram complementares. O universalismo incitava à mudança e transformação, justificando a ascensão de grupos ou indivíduos, ou estabelecendo o roteiro para ela. O etnocentrismo justificava as razões da desigualdade.
A complementaridade entre ambos se manifestou no fato de a civilização capitalista afirmar o particularismo da ideologia da potência hegemônica como universal, impondo o eurocentrismo e a cultura anglo-saxã como padrões. A teoria das vantagens comparativas ou a sociologia da modernização afirmavam a necessidade de se adotar comportamentos avançados e universais, supostamente implementados nos países centrais, para se buscar a reprodução dos níveis de renda ou o desenvolvimento de padrões políticos, sociais e ideológicos dos grandes centros nas regiões mais atrasadas.
Durante a crise da potência hegemônica, a complementaridade entre universalismo e desigualdade ameaça se desfazer. A articulação entre o particularismo hegemônico e o universal entra em rota de colapso. Sua reconstrução é fundamental para estabilização da ordem capitalista. O discurso universalista busca novas formas que podem vir a ameaçar o capitalismo histórico, questionando o monopólio e a desigualdade de oportunidades inerentes ao capitalismo. O discurso meritocrático é altamente instável para qualquer forma de dominação de classes ou grupos sociais, como assinala Wallerstein, por seu compromisso radical com a igualdade de oportunidades133. Sua unilateralidade é insustentável para o capitalismo. De outro lado, o etnocentrismo também se descola de seus compromissos com o universal e ameaça se transformar numa ideologia predominantemente racista e sexista, encerrando suas ligações com a ordem competitiva, o que representa um risco para o sistema capitalista, caso se imponha como mundialmente dominante.
No período em que estamos hoje, de crise de hegemonia, a articulação do universalismo aos Estados Unidos e ao capitalismo histórico está cada vez mais em questão. Isso se evidencia com a crise do neoliberalismo como ideologia. De ideologia do Consenso de Washington e do fim da história, o neoliberalismo passa a ser apresentado como ideologia do dissenso, dos privilégios e da ameaça à humanidade. Estamos presenciando uma provável bifurcação, não obstante as tentativas de controlá-la, na qual o universalismo busca novas formas de encontrar a igualdade, pós-hegemônicas e pós-neoliberais, e o etnocentrismo busca formas próprias de afirmar a desigualdade. Entretanto, o fato de o neoliberalismo estar em crise não significa, como vimos afirmando, que está derrotado. As hesitações da esquerda em superá-lo podem trazer para ela a sua crise e abrir espaço ao fascismo como alternativa ao caos provocado pela crise ideológica.
Outra dimensão da crise do capitalismo e que se articula com a crise da ideologia é a crise ecológica. O indivíduo é visto na civilização capitalista como ser independente que utiliza a natureza para sua satisfação. A natureza é transformada em objeto e deixa de ser vista como um sistema de produção de vida e de biodiversidade que tem leis próprias de reprodução. O capitalismo estabelece uma racionalidade econômica. Busca reduzir o valor dos produtos através do aumento da produtividade, o que implica maior quantidade produzida com menos força de trabalho. A ênfase nas quantidades é impulsionada pela polarização da renda. Criam-se pressões sobre os recursos naturais advindas do consumismo e da pobreza. Elas se incrementam com a dominação cultural exercida pelo hegemón e implicam uma brutal superexploração dos recursos naturais. Essa superexploração se caracteriza por uma utilização superior dos recursos naturais à sua regeneração. A globalização neoliberal leva essa lógica ao paroxismo. Ela produz a acelerada entropia dos sistemas ecológicos, que têm sua biodiversidade significativamente reduzida, ameaçando sua sustentabilidade.
Tentar resolver a questão ecológica internalizando os custos dos poluidores não resolve a questão dos danos ambientais, dada sua incomensurabilidade, e cria fortes resistências no capital em razão dos efeitos depressivos sobre a taxa de lucro. Ela só pode ser resolvida no âmbito de um novo marco civilizacional que conduza a uma nova mentalidade, impulsionada por um novo sistema mundial.”
133 “Diz-se que a meritocracia é não apenas economicamente eficiente, mas politicamente estabilizadora [...]. Isto é, pensa-se que o privilégio aceitado pelo mérito é de alguma forma moralmente e politicamente mais aceitável pela maioria das pessoas que o privilégio ganho por herança. Esta é uma sociologia política duvidosa. O exato oposto é de fato o verdadeiro. Enquanto o privilégio ganho por herança tem sido ao menos marginalmente aceitável para os oprimidos na base de crenças místicas ou fatalistas numa ordem eterna, cuja crença ao menos oferece o conforto da certeza, privilégios ganhos por esperteza ou porque alguém é certamente melhor educado que outros são extremamente difíceis de aceitar, exceto pelos poucos que estão subindo a escada. Ninguém que não é um yuppie ama ou admira um yuppie. Príncipes ao menos podem parecer tipicamente figuras paternas. Um yuppie é nada mais que um irmão superprivilegiado. O sistema meritocrático é politicamente dos menos estáveis. E é precisamente por causa dessa fragilidade que o racismo e o sexismo entram em cena.” Immanuel Wallerstein, The Politics of the World-Economy, cit., p. 348.

Um comentário:

  1. O livro com certeza é muito bom, porém, infelizmente, a editora deixou muito a desejar na revisão da obra.
    São vários e vários erros de português ao longo do texto, erros nas referências... Aliás, sequer pude citá-las apropriadamente aqui, porque das três primeiras que fui destacar nos trechos, duas estavam erradas – não havia obra do referido autor no ano citado.
    A Boitempo poderia ter caprichado mais.

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