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domingo, 3 de junho de 2018

O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica (Parte I) – Jean-Paul Sartre

Editora: Vozes
ISBN: 978-85-3261-762-0
Tradução e notas: Paulo Perdigão
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 784
Sinopse: Publicado, em 1943, O ser e o nada dá continuidade a uma reflexão que já se iniciara no princípio do século com pensadores como Kierkegaard, Jaspers e Heidegger, exercendo uma incontornável influência sobre as cinco últimas décadas. Sartre desenvolveu um prodigioso e completo sistema de ‘explicação total do mundo’ através de um exame detalhado da realidade humana como ela se manifesta, estudando o abstrato concretamente. Ao ser publicado, O ser e o nada causou espanto, polêmica, protestos, admiração. Com sua originalidade transgressora e contestações às verdades eternas da tradição filosófica, constitui o apogeu da primeira fase da filosofia sartriana.



“Se, de fato, toda metafísica presume uma teoria do conhecimento, em troca toda teoria do conhecimento presume uma metafísica. Significa, entre outras coisas, que um idealismo empenhado em reduzir o ser ao conhecimento que dele se tem deve, previamente, comprovar de algum modo o ser do conhecimento.”


“A consciência não se produz como exemplar singular de uma possibilidade abstrata, mas que, surgindo no bojo do ser, cria e sustenta sua essência, quer dizer, a ordenação sintética de suas possibilidades. Significa também que o tipo de ser da consciência é o reverso do que nos revela a prova ontológica: como a consciência não é possível antes de ser, posto que seu ser é fonte e condição de toda possibilidade, é sua existência que implica sua essência.”


“Assim, renunciando à primazia do conhecimento, descobrimos o ser do cognoscente e encontramos o absoluto, o mesmo absoluto que racionalistas do século XVII tinham definido e constituído logicamente como objeto de conhecimento. Mas, exatamente por se tratar de absoluto de existência e não de conhecimento, escapa à famosa objeção de que um absoluto conhecido não é mais absoluto, por se tornar relativo ao conhecimento que dele se tem. Realmente, o absoluto, aqui, não é resultado de construção lógica no terreno do conhecimento, mas sujeito da mais concreta das experiências. E não é relativo a tal experiência, porque é essa experiência. É também um absoluto não-substancial. O erro ontológico do racionalismo cartesiano foi não ver que, se o absoluto se define pela primazia da existência sobre a essência, não poderia ser substância. A consciência nada tem de substancial, é pura “aparência”, no sentido de que só existe na medida que aparece. Mas, precisamente por ser pura aparência, um vazio total (já que o mundo inteiro se encontra fora dela), por essa identidade que nela existe entre aparência e existência, a consciência pode ser considerada o absoluto.”


“O nada não pode nadificar-se a não ser sobre um fundo de ser: se um nada pode existir, não é antes ou depois do ser, nem de modo geral, fora do ser, mas no bojo do ser, em seu coração, como um verme.”


“Ainda não é possível abordar o problema da liberdade em toda amplitude. Com efeito, os passos até aqui dados mostram bem claro que a liberdade não é uma faculdade da alma apta a ser encarada e descrita isoladamente. Queremos definir o ser do homem na medida em que condiciona a aparição do nada, ser que nos apareceu como liberdade. Assim, condição exigida para nadificação do nada, a liberdade não é uma propriedade que pertença entre outras coisas à essência do ser humano. Por outro lado, já sublinhamos que a relação entre existência e essência não é igual no homem e nas coisas do mundo. A liberdade humana precede a essência do homem e torna-a possível: a essência do ser humano acha-se em suspenso na liberdade. Logo, aquilo que chamamos liberdade não pode se diferençar do ser da “realidade humana”. O homem não é primeiro para ser livre depois: não há diferença entre o ser do homem e seu “ser-livre”.


“O nada, como vimos, é fundamento da negação porque a carrega oculta em si, é negação como ser. Portanto, é necessário que o ser consciente se constitua com relação a seu passado separado dele por um nada; que seja consciente desta ruptura de ser, não como fenômeno padecido, e sim como estrutura da consciência que é. A liberdade é o ser humano colocando seu passado fora de circuito e segregando seu próprio nada.”


“Eis, portanto, nova questão: se a liberdade é o ser da consciência, a consciência deve existir como consciência de liberdade. Qual a forma desta consciência? Na liberdade, o ser humano é seu próprio passado (bem como seu próprio devir) sob a forma de nadificação. Se nossa análise está no rumo certo, deve haver para o ser humano, na medida que é consciente de ser, determinada maneira de situar-se frente a seu passado e seu futuro como sendo esse passado e esse futuro e, ao mesmo tempo, como não os sendo. Podemos dar uma resposta imediata: é na angústia que o homem toma consciência de sua liberdade, ou, se se prefere, a angústia é o modo de ser da liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade está em seu ser colocando-se a si mesma em questão. Kierkegaard, descrevendo a angústia antes da culpa, caracteriza-a como angústia frente à liberdade. Mas Heidegger, que, como se sabe, sofreu profundamente a influência de Kierkegaard, considera a angústia, ao contrário, como captação do nada. Duas descrições da angústia que não parecem contraditórias, mas, ao contrário, implicam-se mutuamente. Em primeiro lugar, há que se dar razão a Kierkegaard: a angústia se distingue do medo porque medo é medo dos seres do mundo, e angústia é angústia diante de mim mesmo. A vertigem é angústia na medida em que tenho medo, não de cair no precipício, mas de me jogar nele. Uma situação que provoca medo, pois ameaça modificar de fora minha vida e meu ser, provoca angústia na medida em que desconfio de minhas reações adequadas a ela. A armação de artilharia que precede um ataque pode provocar medo no soldado que sofre um bombardeio, mas a angústia começará quando ele tentar prever as ações contra o bombardeio e se perguntar se poderá “suportar”. Igualmente, o convocado que se incorpora a seu regimento no início da guerra, pode, em certos casos, ter medo da morte; mas, mais comumente, ele tem “medo de ter medo”, ou seja, angustia-se diante de si mesmo. Quase sempre as situações perigosas ou ameaçadoras têm facetas: serão captadas por um sentimento de medo ou de angústia conforme se encare seja a situação agindo sobre o homem, seja o homem agindo sobre a situação. O homem que acaba de receber “um rude golpe”, tendo perdido em quebra da bolsa grande parte de seus bens, pode temer a pobreza que o ameaça. Irá angustiar-se logo depois, quando, esfregando nervosamente as mãos (reação simbólica à ação que se impõe mas permanece ainda inteiramente indeterminada), exclama: “Que fazer? Mas que fazer?” Neste sentido, medo e angústia são mutuamente excludentes, já que o medo é apreensão irrefletida (irréfléchie) do transcendente e angústia apreensão reflexiva de si; uma nasce da destruição da outra, e o processo normal, no caso, é um trânsito constante de uma à outra.”


“Me angustio precisamente porque minhas condutas não passam de possíveis, e isso significa exatamente: embora constituindo um conjunto de motivos para repelir a situação, ao mesmo tempo capto esses motivos como insuficientemente eficazes.”


“Chamaremos precisamente de angústia a consciência de ser seu próprio devir à maneira de não sê-lo. E exatamente a nadificação do horror como motivo, que tem por efeito reforçar o horror como estado, traz como contrapartida positiva a aparição de outras condutas (em particular, a de lançar-me no precipício) como meus possíveis possíveis. Se nada me constrange a salvar minha vida, nada me impede de jogar-me no abismo. A conduta decisiva emanará de um eu que ainda não sou. Assim, o eu que sou depende em si mesmo do eu que ainda não sou, na medida exata em que o eu que ainda não sou independe do eu que sou. E a vertigem surge como captação dessa dependência. Aproximo-me do precipício e meu olhar procura a mim mesmo lá no fundo. A partir daí, jogo com meus possíveis. Meus olhos, percorrendo o abismo de alto a baixo, mimetizam minha possível queda, realizando-a simbolicamente; ao mesmo tempo, a conduta suicida, pelo fato de converter-se em “meu possível” possível, faz surgir por sua vez motivos possíveis para adotá-la (o suicídio fará cessar a angústia). Felizmente, tais motivos, por sua vez, só pelo fato de serem motivos de um possível, mostram-se ineficazes, não-determinantes: não podem produzir o suicídio, assim como meu horror à queda não pode me determinar a evitá-la. Em geral, esta contra-angústia faz cessar a angústia, transformando-a em indecisão. Por sua vez, a indecisão chama a decisão: afasto-me bruscamente da borda do precipício e retomo o caminho.”


“O exemplo que acabamos de analisar mostrou o que se pode chamar de “angústia ante o futuro”. Existe outra: a angústia ante o passado. É a do jogador que livre e sinceramente decidiu parar de jogar e, ao aproximar-se do “tapete verde”, vê “naufragarem” suas decisões. Costuma-se descrever o fenômeno como se a visão da mesa de jogo despertasse uma tendência que entraria em conflito com nossa decisão anterior e, apesar desta, acabaria por nos arrastar. Além de constituída por termos coisificantes e de povoar o espírito de forças antagônicas (por exemplo, a famosa “luta da razão contra as paixões” dos moralistas), essa descrição não atenta à verdade dos fatos. Na realidade – e aí estão as cartas de Dostoievski para prová-lo –, nada há em nós que se assemelhe a um debate interior, como se tivéssemos de pesar motivos e móveis antes de tomar uma decisão. A resolução anterior de “não jogar mais” acha-se sempre aí, e, na maioria dos casos, o jogador diante da mesa de jogo a ela recorre em busca de ajuda: não quer mais jogar, ou melhor, tendo tomado a decisão na véspera, acredita que continua não querendo mais jogar, acredita na eficácia da decisão. Mas apreende na angústia exatamente sua total ineficácia. A resolução passada acha-se aí, sem dúvida, porém congelada, ineficiente, ultrapassada pelo próprio fato de que tenho consciência dela. Uma decisão que ainda é minha, na medida em que realizo perpetuamente minha identidade comigo mesmo através do fluxo temporal; mas que já não é minha pelo fato de que existe para minha consciência. Dela me liberto, e ela fracassa na missão que lhe dei. Também aqui, sou essa decisão à maneira de não sê-lo. Mais uma vez, o que o jogador capta neste instante é a ruptura permanente do determinismo, o nada que o separa de si mesmo: eu tinha desejado tanto não jogar mais que, ontem mesmo, tive uma apreensão sintética da situação (ameaça de ruína, desespero de meus parentes) como algo que me proíbe de jogar. Parecia-me ter criado assim uma barreira real entre o jogo e mim, mas eis que – percebo de repente – essa apreensão sintética não passa de recordação de uma ideia, lembrança de um sentimento: para que aquela decisão venha de novo me prestar ajuda, é preciso que eu a refaça ex nihilo e livremente; é apenas um de meus possíveis, assim como o fato de jogar é outro, nem mais nem menos. O medo de desolar minha família tem de ser recuperado por mim, recriado como medo vivido, pois se mantém à minha retaguarda como um fantasma sem ossos, na dependência de que eu lhe empreste minha carne. Estou só e desnudo, tal como diante da tentação do jogo, na véspera, e, depois de erguer pacientemente barreiras e muros e me enfurnado no círculo mágico de uma decisão, percebo com angústia que nada me impede de jogar. E essa angústia sou eu, porque, só pelo fato de me conduzir à existência como consciência de ser, faço-me como não sendo mais esse passado de boas decisões que sou.
Seria inútil objetar que essa angústia depende da ignorância do determinismo psicológico subjacente: eu ficaria ansioso por desconhecer os móveis reais e eficazes que, à sombra do inconsciente, determinam minha ação. Responderemos, em primeiro lugar, que a angústia não surgiu como prova da liberdade humana, a qual nos aparece como condição necessária à interrogação. Queríamos apenas mostrar que existe uma consciência específica de liberdade e esta consciência é angústia. Buscamos estabelecer a angústia, em sua estrutura essencial, como consciência de liberdade. Nesse ponto de vista, a existência de um determinismo psicológico não poderia invalidar os resultados da nossa descrição: ou bem, com efeito, a angústia é ignorância ignorada desse do transcendente como temível.
A liberdade que se revela na angústia pode caracterizar-se pela existência do nada que se insinua entre os motivos e o ato. Não é porque sou livre que meu ato escapa à determinação dos motivos, mas, ao contrário, a estrutura ineficiente dos motivos é que condiciona minha liberdade. E se indagar-se que nada é esse que fundamenta a liberdade, responderemos que não se pode descrevê-lo, posto que ele não é, mas ao menos podemos captar seu sentido, na medida em que é tendo sido pelo ser humano em suas relações consigo mesmo. Corresponde à necessidade que o motivo tem de só aparecer como tal enquanto correlação de uma consciência de motivo. Em suma, a partir do momento em que renunciamos à hipótese dos conteúdos de consciência, devemos admitir que não existe motivo na consciência: existe, sim, para a consciência. E, pelo fato de só poder surgir como aparição, o motivo constitui-se a si como ineficaz. Sem dúvida, não tem a exterioridade da coisa espaço-temporal: pertence sempre à subjetividade e é apreendido como meu, mas, por natureza, é transcendência na imanência, e a consciência lhe escapa pelo fato mesmo de designá-lo, pois cabe à consciência, neste momento, conferir-lhe sua significação e importância. Assim, o nada que separa motivo e consciência caracteriza-se como transcendência na imanência; ao produzir-se a si como imanência, a consciência nadifica o nada que a faz existir para si como transcendência. Mas esse nada, condição de toda negação transcendente, só pode ser elucidado a partir de duas outras nadificações primordiais: 1 º) a consciência não é seu próprio motivo, sendo vazia de todo conteúdo, o que nos remete a uma estrutura nadificadora do cogito pré-reflexivo: 2º) a consciência está frente a seu passado e futuro tal como frente a um si-mesmo que ela é à maneira de não sê-lo, e isso leva-nos a uma estrutura nadificadora da temporalidade.”


“Na angústia, a liberdade se angustia diante de si porque nada a solicita ou obstrui jamais. (...)
Com efeito, angústia é reconhecimento de uma possibilidade como minha possibilidade, ou seja, constitui-se quando a consciência se vê cortada de sua essência pelo nada ou separada do futuro por sua própria liberdade. Significa que um nada nadificador me deixa sem desculpas, e, ao mesmo tempo, que o que eu projeto como meu ser futuro está sempre nadificado e reduzido à categoria de mera possibilidade, porque o futuro que sou permanece fora de meu alcance. Mas convém notar que, nesses casos, fizemos uso de uma forma temporal pela qual me aguardo no futuro, “marco encontro comigo mesmo para além desta hora, dia ou mês”. A angústia é o temor de não estar nesse encontro, o temor de sequer querer comparecer a ele.”


“O valor só pode revelar-se a uma liberdade ativa que o faz existir como valor simplesmente por reconhecê-lo como tal. Daí que minha liberdade é o único fundamento dos valores e nada, absolutamente nada, justifica minha adoção dessa ou daquela escala de valores. Enquanto ser pelo qual os valores existem, sou injustificável. E minha liberdade se angustia por ser o fundamento sem fundamento dos valores. Além disso, porque os valores, por se revelarem por essência a uma liberdade, não podem fazê-lo sem deixar de ser “postos em questão”, já que a possibilidade de inverter a escala de valores aparece, complementarmente, como minha possibilidade. A angústia ante os valores é o reconhecimento de sua idealidade.”


“Convém sublinhar aqui que a liberdade manifestada pela angústia se caracteriza por uma obrigação perpetuamente renovada de refazer o Eu que designa o ser livre. Quando mostramos, há pouco, que meus possíveis eram angustiantes porque dependia só de mim, com efeito, mantê-los em sua existência, não significava que derivavam de um eu – este sim, ao menos – dado de antemão e que passasse de uma consciência a outra, no fluxo temporal. O jogador que precisa ter novamente a percepção sintética de uma situação, a qual lhe impediria de jogar, deve reinventar ao mesmo tempo o eu capaz de apreciar essa situação e que “está em situação”. Esse eu, como seu conteúdo a priori e histórico, é a essência do homem. E a angústia, como manifestação da liberdade frente a si, significa que o homem acha-se sempre separado de sua essência por um nada. Devemos retomar aqui a frase de Hegel: “Wesen ist was gewesen ist”, ou seja, “a essência é o é tendo sido”. A essência é tudo que se pode indicar do ser humano por meio das palavras: isso é. Por isso, é a totalidade dos caracteres que explicam o ato. Mas o ato está sempre além dessa essência, só é ato humano quando transcende toda explicação que se lhe dê, precisamente porque tudo que se possa designar no homem pela fórmula “isso é”, na verdade, por esse fato mesmo, é tendo sido. O homem leva consigo, continuamente, uma compreensão pré-judicativa de sua essência, mas, por isso, acha-se separado dela por um nada. A essência é tudo que a realidade humana apreende de si mesmo como tendo sido. E aqui aparece a angústia como captação do si-mesmo na medida em que este existe como modo perpétuo de arrancamento àquilo que é; ou melhor, na medida em que o si-mesmo se faz existir como tal. Porque jamais podemos captar uma “Erlebnis” como consequência viva dessa natureza que é a nossa. O fluxo de nossa consciência constitui, em seu transcurso, essa natureza, que no entanto se mantém sempre à nossa retaguarda e nos infesta enquanto objeto permanente de nossa compreensão retrospectiva. Esta natureza, na medida em que é exigência sem ser recurso, é captada como angustiante.
Na angústia, a liberdade se angustia diante de si porque nada a solicita ou obstrui jamais. Dir-se-á que a liberdade está sendo aqui definida como estrutura permanente do ser humano: mas, se a angústia manifesta tal estrutura, deveria então ser um estado permanente de minha afetividade. Ora, ao contrário, é totalmente excepcional. Como explicar a raridade do fenômeno?
Em primeiro lugar, note-se que as situações mais correntes de nossa vida, em que captamos nossos possíveis como tais na e pela realização ativa desses possíveis, não se manifestam através da angústia porque sua estrutura exclui a apreensão angustiada. Com efeito, angústia é reconhecimento de uma possibilidade como minha possibilidade, ou seja, constitui-se quando a consciência se vê cortada de sua essência pelo nada ou separada do futuro por sua própria liberdade. Significa que um nada nadificador me deixa sem desculpas, e, ao mesmo tempo, que o que eu projeto como meu ser futuro está sempre nadificado e reduzido à categoria de mera possibilidade, porque o futuro que sou permanece fora de meu alcance. Mas convém notar que, nesses casos, fizemos uso de uma forma temporal pela qual me aguardo no futuro, “marco encontro comigo mesmo para além desta hora, dia ou mês”. A angústia é o temor de não estar nesse encontro, o temor de sequer querer comparecer a ele. Mas também posso me ver comprometido em atos que revelam minhas possibilidades no instante que elas se realizam. No ato de acender este cigarro, capto minha possibilidade concreta, ou, se preferirmos, meu desejo de fumar; pelo gesto de aproximar de mim este papel e esta caneta, capto como minha possibilidade mais imediata a ação de trabalhar neste livro: eis-me comprometido nesta possibilidade, que descubro no mesmo momento em que a ela me lanço. Sem dúvida, neste momento continua sendo minha possibilidade, já que posso a qualquer instante largar o trabalho, afastar o papel, tampar a caneta. Mas tal possibilidade de interromper a ação é rechaçada a segundo plano porque a ação que a mim se revela através de meu ato tende a cristalizar-se como forma transcendente e relativamente independente. A consciência do homem em ação é consciência irrefletida. É consciência de alguma coisa, e o transcendente que a ela se revela é de natureza particular: é uma estrutura de exigência do mundo que, correlativamente, revela em si complexas relações de utensilidade. No ato de escrever as letras que escrevo, a frase total, ainda inacabada, revela-se como exigência passiva de ser escrita. A frase é o sentido mesmo das letras que escrevo e seu poder não é posto em questão porque, justamente, não posso escrever as palavras sem transcendê-las até a frase total, que descubro ser a condição necessária do sentido das palavras que escrevo. Simultaneamente, e na mesma cena do ato, um complexo indicativo de utensílios revela-se e se organiza (caneta-tinta-papel-linhas-margem, etc.), complexo esse que não pode ser captado por si mesmo, mas surge como exigência passiva no bojo da transcendência por mim descoberta pela frase a ser escrita. Assim, na quase totalidade dos atos cotidianos, estou comprometido, apostei em meus possíveis e os descubro realizando-os – e isso no próprio ato de realizá-los como exigências, algo urgente, utensilidades. E, sem dúvida, em todo ato dessa espécie, permanece a possibilidade de questionar o ato, na medida em que remete a fins mais distantes e essenciais, tais como suas significações finais e minhas possibilidades essenciais. Por exemplo: a frase que escrevo é a significação das letras escritas, mas o livro inteiro que pretendo concluir é a significação das frases. E este livro é uma possibilidade que pode me angustiar: é verdadeiramente meu possível, e não sei se amanhã irei continuá-lo: amanhã, com relação a ele, minha liberdade pode exercer seu poder nadificador. Só que esta angústia encerra a apreensão do livro enquanto tal como minha possibilidade: preciso me colocar diretamente diante dele e vivenciar minha relação com ele. Significa que não devo fazer apenas perguntas objetivas a seu respeito – como “devo escrever este livro?” –, porque me levam apenas a significações objetivas mais amplas, do gênero: “Será oportuno escrevê-lo neste momento?”, “Não estará repetindo aquele outro livro?”, “O assunto é de interesse suficiente?”, “Terá sido bastante meditado?”, etc. Significações que permanecem transcendentes e surgem como pluralidade de exigências do mundo. Para que minha liberdade venha a se angustiar com este livro que escrevo, é preciso que ele apareça em sua relação comigo, ou seja, que eu descubra, por um lado, minha essência como aquilo que fui (fui um “querer escrever este livro”, pois o concebi, achei de interesse escrevê-lo e me tornei de tal modo que já não posso ser compreendido sem levar em conta o fato de que este livro foi meu possível essencial); por outro lado, que eu descubra o nada que separa minha liberdade dessa essência (fui um “querer escrever este livro”, mas nada, sequer aquilo que fui, pode me obrigar a escrevê-lo); e, por fim, que eu descubra o nada que me separa do que serei (descubro a possibilidade permanente de abandonar o livro como condição mesmo da possibilidade de escrevê-lo e sentido da minha liberdade). Na própria constituição do livro como meu possível, é preciso que capte minha liberdade como possível destruidora daquilo que sou, no presente e futuro. Ou seja, preciso situar-me no plano da reflexão. Enquanto permaneço no plano da ação, o livro a escrever não passa da significação remota e pressuposta do ato que revela meus possíveis, algo subentendido no ato, não tematizado* e designado para si, algo que “não questiona”. O livro não é concebido como necessário ou contingente, mas apenas como sentido permanente e longínquo a partir do qual posso compreender o que agora estou escrevendo. Por isso, é concebido como ser – quer dizer: somente ao designá-lo como fundo existente sobre o qual emerge minha frase atual e existente é que posso conferir a esta um sentido determinado. Pois bem: a cada instante somos lançados no mundo e ficamos comprometidos. Significa que agimos antes de designar nossos possíveis, e estes, que se revelam realizados ou em vias de se realizar, remetem a sentidos que, para serem postos em questão, requerem atos especiais. O despertador que toca de manhã remete à possibilidade de ir ao trabalho, minha possibilidade. Mas captar o chamado do despertador como chamado é levantar-se. Assim, o ato de levantar da cama é tranquilizador, porque evita a pergunta: “Será que o trabalho é minha possibilidade?” – e, em consequência, não me deixa em condições de captar a possibilidade do quietismo, da recusa ao trabalho e, em última instância, da morte e da negação do mundo. Em resumo, na medida em que apreender o sentido da campainha do despertador já é ficar de pé a seu chamado, tal apreensão me protege contra a angustiante intuição de que sou eu – eu e mais ninguém – quem confere ao despertador seu poder de exigir meu despertar. Da mesma forma, o que se poderia chamar de moralidade cotidiana exclui a angústia ética. Há angústia ética quando me considero em minha relação original com os valores. Estes, com efeito, são exigências que reclamam um fundamento. Mas fundamento que não poderia ser de modo algum o ser, pois todo valor que fundamentasse sua natureza ideal sobre seu próprio ser deixaria por isso de ser valor e realizaria a heteronomia de minha vontade. O valor extrai seu ser de sua exigência, não sua exigência de seu ser. Portanto, não se entrega a uma intuição contemplativa que o apreenderia como sendo valor e, por isso mesmo, suprimisse seus direitos sobre minha liberdade. Ao contrário: o valor só pode revelar-se a uma liberdade ativa que o faz existir como valor simplesmente por reconhecê-lo como tal. Daí que minha liberdade é o único fundamento dos valores e nada, absolutamente nada, justifica minha adoção dessa ou daquela escala de valores. Enquanto ser pelo qual os valores existem, sou injustificável. E minha liberdade se angustia por ser o fundamento sem fundamento dos valores. Além disso, porque os valores, por se revelarem por essência a uma liberdade, não podem fazê-lo sem deixar de ser “postos em questão”, já que a possibilidade de inverter a escala de valores aparece, complementarmente, como minha possibilidade. A angústia ante os valores é o reconhecimento de sua idealidade.
Mas, em geral, minha atitude frente aos valores é eminentemente tranquilizadora. Estou, de fato, comprometido em um mundo de valores. A percepção angustiada dos valores como algo sustentado no ser por minha liberdade é fenômeno posterior e mediatizado. O imediato é o mundo com seu caráter de urgência, e, neste mundo em que me engajo, meus atos fazem os valores se erguerem como perdizes: é por minha indignação que me é dado o antivalor “baixeza”, e, por minha admiração, o valor “grandeza”. Sobretudo, minha obediência a uma multidão de tabus, que é real, me revela esses tabus como existentes de fato. Os burgueses que se autodenominam “gente honesta” não ficam honestos depois de contemplar os valores morais, mas sim porque, desde que surgem no mundo, são lançados em uma conduta cujo sentido é a honestidade. Assim, a honestidade adquire um ser e não é questionada; os valores estão semeados em meu caminho na forma de mil pequenas exigências reais, similares aos cartazes que proíbem pisar na grama.
Portanto, naquilo que denominaremos mundo do imediato, que se dá à nossa consciência irrefletida, não aparecemos primeiro para sermos lançados depois a tal ou qual atividade. Nosso ser está imediatamente “em situação”, ou seja, surge no meio dessas atividades e se conhece primeiramente na medida em que nelas se reflete. Descobrimo-nos, pois, em um mundo povoado de exigências, no seio de projetos “em curso de realização”: escrevo, vou fumar, tenho encontro com Pedro esta noite, não devo esquecer de responder a Simão, não tenho direito de esconder a verdade de Cláudio por mais tempo. Todas essas pequenas esperas passivas pelo real, todos esses valores banais e cotidianos tiram seu sentido, na verdade, de um projeto inicial meu, espécie de eleição que faço de mim mesmo no mundo. Mas, precisamente, esse projeto meu para uma possibilidade inicial, que faz com que haja valores, chamados, expectativas e, em geral, um mundo, só me aparece para além do mundo, como sentido e significação abstratos e lógicos de minhas empresas. De resto, existem concretamente despertadores, cartazes, formulários de impostos, agentes de polícia, ou seja, tantos e tantos parapeitos de proteção contra a angústia. Porém, basta que a empresa a realizar se distancie de mim e eu seja remetido a mim mesmo porque devo me aguardar no futuro, descubro-me de repente como aquele que dá ao despertador seu sentido, que se proíbe, a partir de um cartaz, de andar por um canteiro ou gramado, aquele que confere poder à ordem do chefe, decide sobre o interesse do livro que está escrevendo – enfim, aquele que faz com que existam os valores, cujas exigências irão determinar sua ação. Vou emergindo sozinho, e, na angústia frente ao projeto único e inicial que constitui meu ser, todas as barreiras, todos os parapeitos desabam, nadificados pela consciência de minha liberdade: não tenho nem posso ter qualquer valor a recorrer contra o fato de que sou eu quem mantém os valores no ser; nada pode me proteger de mim mesmo; separado do mundo e de minha essência por esse nada que sou, tenho de realizar o sentido do mundo e de minha essência: eu decido, sozinho, injustificável e sem desculpas.
A angústia, portanto, é a captação reflexiva da liberdade por ela mesma. Nesse sentido, é mediação, porque, embora consciência imediata de si, surge da negação dos chamados do mundo, aparece se me desgarro do mundo em que havia me comprometido de modo a me apreender como consciência dotada de compreensão pré-ontológica de sua essência e de sentido pré-judicativo de seus possíveis. Opõe-se ao “espírito de seriedade”, que capta os valores a partir do mundo e reside na substancialização tranquilizadora e coisista dos valores. Na seriedade, defino-me a partir do objeto, deixando de lado a priori, como impossíveis, todas as empresas que não vou realizar e captando como proveniente do mundo e constitutivo de minhas obrigações e meu ser o sentido que minha liberdade deu ao mundo. Na angústia, capto-me ao mesmo tempo como totalmente livre e não podendo evitar que o sentido do mundo provenha de mim.
Contudo, não se deve crer que basta passar ao plano reflexivo e encarar seus possíveis longínquos ou imediatos para captar-se em pura angústia. Em cada caso de reflexão, a angústia nasce como estrutura da consciência reflexiva na medida em que esta leva em consideração a consciência refletida; mas continua válido o fato de que posso adotar condutas a respeito de minha própria angústia – em particular, condutas de fuga. Tudo se passa, com efeito, como se nossa conduta essencial e imediata com relação à angústia fosse conduta de fuga. O determinismo psicológico, antes de ser uma concepção teórica, é em primeiro lugar uma conduta de fuga, ou, se preferirmos, o fundamento de todas as condutas de fuga. É uma conduta refletida com relação à angústia; afirma existirem em nós forças antagônicas cujo tipo de existência é comparável ao das coisas; tenta suprimir os vazios que nos rodeiam, restabelecer os vínculos entre passado e presente, presente e futuro; nos provê de uma natureza produtora de nossos atos e converte estes mesmos atos em transcendências, dotando-as de uma inércia e uma exterioridade que atribuem seu fundamento a algo que não os próprios atos e são eminentemente tranquilizadoras por constituírem um jogo permanente de desculpas; nega essa transcendência da realidade humana que a faz emergir na angústia para além de sua própria essência; ao mesmo tempo, reduzindo-nos a não ser jamais senão o que somos, reintroduz em nós a positividade absoluta do ser-Em-si, e, assim, nos reintegra ao seio do ser.
Mas tal determinismo, defesa reflexiva contra a angústia, não se dá como intuição reflexiva. Nada pode contra a evidência da liberdade e assim se apresenta como crença de fuga, termo ideal no rumo do qual podemos fugir da angústia. Isto se manifesta, no terreno filosófico, pelo fato de os psicólogos deterministas não pretenderem fundamentar sua tese sobre os puros dados da observação interna. Apresentam-na como hipótese satisfatória, cujo valor está em dar conta dos fatos – ou como postulado necessário ao estabelecimento de toda psicologia. Admitem a existência de uma consciência imediata de liberdade, que seus adversários lhes opõem sob o nome de “prova por intuição do senso íntimo”. Simplesmente, fazem o debate recair sobre o valor desta revelação interna. Assim, a intuição que nos permite captar-nos como causa primeira de nossos estados e atos não é discutida por ninguém. Continua valendo o fato de estar ao alcance de qualquer um de nós tentar mediatizar a angústia mantendo-se acima dela e julgando-a como uma ilusão da nossa ignorância sobre as causas reais de nossos atos. O ágàrâ será o do grau de crença nessa mediação. Angústia ulgada será angústia desarmada? Evidentemente, não; contudo, nasce aqui um fenômeno novo, um processo de alheamento com relação à angústia, o qual, mais uma vez, pressupõe em si um poder nadificador.
Por si só, o determinismo não bastaria para fundamentar esse alheamento, já que não passa de postulado ou hipótese. É um esforço de fuga mais concreto, que se opera no próprio terreno da reflexão. Em primeiro lugar, é uma tentativa de alheamento quanto aos possíveis contrários ao meu possível. Quando me constituo como compreensão de um possível enquanto meu, é preciso que reconheça sua existência no fim do meu projeto e o apreenda como sendo eu mesmo, lá adiante, aguardando-me no futuro, separado de mim por um nada. Nesse sentido, capto-me como origem primeira de meu possível, e isto é o que ordinariamente se denomina consciência de liberdade; é tal estrutura da consciência e somente ela que têm em vista os partidários do livre-arbítrio ao se referir à intuição do sentido íntimo. Mas ocorre que, ao mesmo tempo, esforço-me para me alhear da constituição dos outros possíveis que contradizem o meu. Para dizer a verdade, não posso deixar de colocar sua existência pelo mesmo movimento que engendra como meu o possível escolhido, não posso evitar constituí-los como possíveis viventes, ou seja, dotados da possibilidade de ser meus possíveis. Mas esforço-me para vê-los dotados de um ser transcendente e puramente lógico, como coisas, em suma. Se encaro no plano reflexivo a possibilidade de escrever este livro como possibilidade minha, faço surgir entre esta possibilidade e minha consciência um nada de ser que a constitui como possibilidade e que eu apreendo precisamente na possibilidade permanente de que a possibilidade de não escrevê-lo seja a minha possibilidade. Mas tento me conduzir com relação a essa possibilidade de não escrevê-lo como se estivesse diante de um objeto observável e me compenetro daquilo que quero ver nele: trato de captá-la como algo que deve ser citado apenas para constar, algo que não me concerne. É preciso que seja uma possibilidade externa com relação a mim, tal como o movimento com relação a esta bola imóvel. Se me fosse possível, os possíveis antagônicos ao meu possível, constituídos como entidades lógicas, perderiam sua eficácia; já não seriam ameaçadores, pois seriam exterioridades, cercariam meu possível como eventualidades puramente concebíveis, quer dizer, concebíveis no fundo por um outro, ou como possíveis de outro que se encontrasse no mesmo caso. Pertencem à situação objetiva como uma estrutura transcendente; ou, se preferirmos, para usar a terminologia de Heidegger: eu escreverei este livro, mas poder-se-ia também não escrevê-lo. Assim eu dissimularia de mim mesmo o fato de que esses possíveis são eu mesmo e as condições imanentes da possibilidade de meu possível. Conservariam apenas suficientes ser para manter em meu possível seu caráter de gratuidade, de livre possibilidade de um ser livre, mas ficariam desarmados de seu caráter ameaçador: não me interessariam; o possível elegido apareceria, devido à eleição, como meu único possível concreto, e, em consequência, o nada que dele me separa e lhe confere justamente sua possibilidade seria preenchido.
Mas a fuga da angústia não é apenas empenho de alheamento ante o devir: tenta, além disso, desarmar a ameaça do passado. Neste caso, tento escapar de minha própria transcendência, na medida em que sustenta e ultrapassa minha essência. Afirmo que sou minha essência à maneira de ser do Em-si. Ao mesmo tempo, todavia, recuso-me a considerar essa essência como sendo historicamente constituída e como se compreendesse o ato, tal como o círculo implica em suas propriedades. Capto essa essência ou tento captá-la como começo primordial de meu possível, e não admito que tenha em si mesma um começo; afirmo então que um ato é livre quando reflete exatamente minha essência. Mas, além disso, essa liberdade – que me inquietaria se fosse liberdade frente ao Eu –, tento reconduzi-la ao seio da minha essência, quer dizer, de meu Eu. Trata-se de encarar o Eu como um pequeno Deus que me habitasse e possuísse minha liberdade como uma virtude metafísica. Já não seria meu ser que seria livre enquanto ser, mas meu Eu que seria livre no seio de minha consciência. Ficção eminentemente tranquilizadora, pois a liberdade estaria enterrada no seio de um ser opaco: na medida em que minha essência não é translucidez e é transcendente na imanência, a liberdade se torna uma de suas propriedades. Em resumo, trata-se de captar minha liberdade em meu Eu como se fosse a liberdade de outro. Veem-se os temas principais desta ficção: meu Eu se converte na origem de seus atos tal como o outro na origem dos seus, a título de pessoa já constituída. Decerto, vive e se transforma, até se admite que cada um de seus atos possa contribuir para transformá-lo. Mas essas transformações harmoniosas e contínuas são concebidas segundo esse tipo biológico. (...)
Eis, portanto, o conjunto de processos pelos quais tentamos mascarar a angústia: captamos nosso possível evitando considerar os outros possíveis, que convertemos em possíveis de um outro indiferenciado; não queremos ver esse possível sustentado no ser por uma pura liberdade nadificadora, mas tentamos apreendê-lo como engendrado por um objeto já constituído, que não é senão o nosso Eu, encarado e descrito como se fosse a pessoa de um outro. Queremos conservar da intuição primeira aquilo que ela nos entrega como nossa independência e responsabilidade, mas procurando deixar à sombra tudo que há nela da nadificação original: sempre prontos, ademais, para nos refugiar-nos na crença no determinismo, caso tal liberdade nos pese ou necessitemos de uma desculpa. Assim, escapamos da angústia tentando captar-nos de fora, como um outro ou como uma coisa. Aquilo que se costuma chamar de revelação do senso íntimo ou intuição primeira de nossa liberdade nada tem de original: é um processo já construído, expressamente destinado a mascarar a angústia, verdadeiro “dado imediato” de nossa liberdade.
Por meio dessas diferentes construções, logramos sufocar ou dissimular nossa angústia? Certo é que não poderíamos suprimi-la, porque somos angústia. Quanto a velá-la, além de que a própria natureza da consciência e sua translucidez nos impedem de tomar a expressão ao pé da letra, convém observar o tipo particular de conduta que queremos significar com isso: podemos mascarar um objeto exterior porque existe independentemente de nós; pela mesma razão, podemos afastar dele nosso olhar ou nossa atenção, ou seja, fixar simplesmente os olhos em outro objeto qualquer; a partir desse momento, cada realidade – a minha e a do objeto – retoma sua vida própria, e a relação acidental que unia a consciência à coisa desaparece sem alterar por isso nem uma nem outra existência. Mas se aquilo que quero velar sou eu, a questão assume outra fisionomia; não posso querer “não ver” certo aspecto de meu ser, com efeito, salvo se estiver precisamente ciente do aspecto que não quero ver. Significa que preciso indicá-lo em meu ser para poder afastar-me dele: melhor dito, é necessário que pense nele constantemente para evitar pensar nele. Não se deve entender por isso apenas que, por necessidade, devo levar perpetuamente comigo aquilo de que quero fugir, mas também que devo encarar o objeto de minha fuga para evitá-lo, o que significa que angústia, enfoque intencional da angústia e fuga da angústia rumo a mitos tranquilizadores precisam ser dados na unidade de uma mesma consciência. Em resumo, fujo para ignorar, mas não posso ignorar que fujo, e a fuga da angústia não passa de um modo de tomar consciência da angústia. Assim, esta não pode ser, propriamente falando, nem mascarada nem evitada. Fugir da angústia e ser angústia, todavia, não podem ser exatamente a mesma coisa: se eu sou minha angústia para dela fugir, isso pressupõe que sou capaz de me desconcentrar com relação ao que sou, posso ser angústia sob a forma de “não sê-la”, posso dispor de um poder nadificador no bojo da própria angústia. Este poder nadifica a angústia enquanto dela fujo e nadifica a si enquanto sou angústia para dela fugir. É o que se chama de má-fé. Não se trata, pois, de expulsar a angústia da consciência ou constituí-la em fenômeno psíquico inconsciente; simplesmente, posso ficar de má-fé na apreensão da angústia que sou, e esta má-fé, destinada a preencher o nada que sou na minha relação comigo mesmo, implica precisamente esse nada que ela suprime.”

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