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quinta-feira, 6 de julho de 2017

Crítica da Razão Prática (Parte I) – Immanuel Kant

Editora: Brasil (Versão digitalizada da obra)
Tradução e prefácio: Afonso Bertagnoli
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 248
Sinopse: Na história da filosofia ocidental, o pensamento de Kant é uma etapa decisiva, cuja fecundidade está longe de ter se esgotado. Ele foi o ponto de partida da moderna filosofia alemã e marcou pensadores como Fichte, Schelling e Shopenhauer. Na Crítica da Razão Prática, Kant expôs a doutrina ética que lhe serviu de base para a demonstração de uma ordem transcendente, sem que fosse necessário recorrer à metafísica especulativa. A ética, para ele, não precisa dos dados da sensibilidade e, portanto, não pode cair em “ilusões”. O imperativo categórico kantiano pode ser assim enunciado: “Age de tal modo que o motivo que te levou a agir possa tornar-se lei universal”.


“Vida é a faculdade que possui um ser de agir segunda as leis da faculdade de desejar. A faculdade de desejar é a faculdade desse mesmo ser, de ser, por meio de suas representações, causa da realidade dos objetos dessas representações. Prazer é a representação da coincidência do objeto ou da ação com as condições subjetivas da vida, isto é, com a faculdade da causalidade de uma representação em consideração da realidade do seu objeto (ou da determinação das forças do sujeito para a ação de produzi-lo).”


“Princípios práticos são proposições que encerram uma determinação universal da vontade, subordinando-se a essa determinação diversas regras práticas. São subjetivos, ou máximas, quando a condição é considerada pelo sujeito como verdadeira só para a sua vontade; são, por outro lado, objetivos ou leis práticas quando a condição é conhecida como objetiva, isto é, válida para a vontade de todo ser natural.
No conhecimento prático, isto é, aquele que só tem que tratar dos fundamentos da determinação da vontade, os princípios que alguém formula em si mesmo nem por isso constituem leis a que inevitavelmente se veja submetido, porque a razão na prática se ocupa do sujeito, ou seja da faculdade de desejar, segundo cuja constituição especial pode a regra referir-se por formas bem diversas. A regra prática é sempre um produto da razão, porque prescreve a ação, qual meio para o efeito, considerado como intenção.
Esta regra, porém, para um ser no qual a razão não é o fundamento único da determinação da vontade é um imperativo, isto é, uma regra designada por um “deve ser” que exprime a compulsão objetiva da ação e significa que se a razão determinasse totalmente a vontade, a ação ocorreria indefectivelmente segundo essa regra. Desse modo, os imperativos valem objetivamente, sendo em tudo distintos das máximas, não obstante estas constituírem princípios subjetivos. Determinam aqueles, porém, ou as condições da causalidade do ser racional como causa eficiente, só em consideração do efeito e suficiência para o mesmo, ou, então, determinam só a vontade, seja ou não ela suficiente para o efeito. Os primeiros seriam imperativos hipotéticos e encerrariam meros preceitos da habilidade; os segundos, de forma inversa, seriam categóricos, constituindo, somente eles, leis práticas. Assim, pois, são as máximas, em verdade, princípios, mas não imperativos. Os próprios imperativos, contudo, quando condicionados, isto é, quando não determinam a vontade exclusivamente como vontade, mas somente em vista de um efeito apetecido, ou seja quando são imperativos hipotéticos, constituem, portanto, preceitos práticos mas não, leis. Devem estas últimas determinar suficientemente a vontade, mesmo antes que eu indague se tenho a faculdade necessária para um efeito apetecido ou o que devo fazer para produzir esse efeito; devem, portanto, ser categóricas, pois do contrário não são leis, faltando-lhes a necessidade que, se tem de ser prática, urge ser independente de condições patológicas e, por isso mesmo, casualmente ligadas à vontade. (...)
A razão, da qual unicamente pode sair toda a regra que deva conter necessidade, inclui imediatamente também a necessidade nesse seu preceito (pois sem esta não seria imperativo); mas esta necessidade só está condicionada subjetivamente e não cabe supô-la em todos os objetos em grau idêntico. Contudo, para a sua lei se exige que só necessite supor-se ela a si mesma, porque a regra é objetiva e universalmente verdadeira só quando vale sem as condições subjetivas, contingentes, que distinguem um ser natural de outro.”


“Todos os princípios práticos que supõem um objeto (matéria) da faculdade de desejar como fundamento de determinação da vontade, são, todos eles, empíricos e não podem proporcionar qualquer lei prática.
Entendo por matéria da faculdade de desejar um objeto cuja realidade é apetecida. Se o apetecimento para com esse objeto precede à regra prática e é a condição para adotá-la como princípio, nesse caso, digo (primeiramente): esse princípio, então, é sempre empírico. O fundamento da determinação do arbítrio é então a representação de um objeto, e constitui a relação da representação com o sujeito, pela qual é determinada a faculdade de desejar para a realização do objeto. Mas toda a relação com o sujeito se chama o prazer na realidade de um objeto. Assim, pois, esse prazer devia ter sido pressuposto como condição da possibilidade da determinação do arbítrio. Mas de nenhuma representação de qualquer objeto, seja qual for, pode conhecer-se a priori se está ligada com o prazer, com a dor ou, se é indiferente.
Desse modo, em tal caso, o fundamento de determinação do arbítrio deve sempre ser empírico e, por tanto, também o princípio prático material que o supunha como condição.
Pois bem (em segundo lugar), como um princípio se fundamenta somente na condição subjetiva da receptibilidade de um prazer ou de uma dor (que em qualquer caso só empiricamente é conhecida e não pode ser verdadeira de modo idêntico para todos os seres racionais), não obstante possa servir, para o sujeito que a possui, como sua máxima, não pode, por outro lado, servir para este mesmo como lei (porque carece de necessidade objetiva, a qual deve ser conhecida a priori), resultando que a tal princípio nunca é dado proporcionar uma lei prática.”


Ser consequente é a máxima obrigação do filósofo; entretanto, é o que menos se observa. As antigas escolas gregas nos apresentam muitos exemplos dessas virtudes, exemplos que não encontramos nesta época sincretística, na qual se constroem com princípios totalmente contraditórios sistemas conciliadores, destituídos de solidez e boa fé, porque se recomendam melhor a um público que se satisfaz com saber um pouco de tudo, sem saber afinal coisa alguma, pretendendo, contudo, tratar de todos os assuntos.”


“A quem convém o efeito convirá também a causa.”


“Cada um coloca o seu bem-estar ou felicidade nisto ou naquilo, de acordo com a sua opinião particular do prazer ou da dor, fazendo as variações desta opinião experimentar diferentes necessidades ao mesmo indivíduo; e uma lei subjetivamente necessária (como lei natural) é, portanto, objetivamente um princípio prático de inteiro contingente, podendo e devendo ser diverso em diferentes sujeitos e que, por conseguinte, não pode proporcionar uma lei, se bem que no desejo da felicidade não se trate de uma forma da lei mas apenas da matéria, isto é, se posso eu esperar prazer do cumprimento da lei e em que proporção. Os princípios do amor-próprio podem, certamente, encerrar regras universais da habilidade (na pesquisa dos meios para os fins em mira), não sendo, porém, mais do que princípios teóricos como, por exemplo, o do que todo aquele que quer comer pão deverá imaginar um moinho. Mas os preceitos práticos que assentam no amor-próprio não podem ser universais, porque o princípio que determina a faculdade de desejar se fundamenta no sentimento de prazer ou de dor, o qual nunca pode ser aplicado universalmente aos mesmos objetos.
     Ainda quando os seres racionais finitos pensassem todos absolutamente do mesmo modo acerca dos objetos dos seus sentimentos de prazer ou de dor, bem como acerca dos meios ajustados para conseguir uns e evitar outros, não poderiam, todavia, tomar por uma lei prática o princípio do amor-próprio, porque essa identidade seria por si mesma contingente, casual. O fundamento de determinação continuaria sendo só objetivamente verdadeiro e meramente empírico, não havendo aquela necessidade objetiva que se funda em princípios a priori e que acompanha a ideia de qualquer lei. Não se deveria, então, dar de modo algum essa necessidade como prática, mas como meramente física, ou seja: que a ação não é tão inevitavelmente imposta por nossa inclinação, como o bocejo quando vemos outros bocejar. Melhor ainda, poderíamos sustentar que não há nenhuma lei prática, mas apenas conselhos para os nossos apetites, em lugar de erigir princípios puramente subjetivos à condição de leis práticas, porque estas devem ter uma necessidade inteiramente objetiva e não apenas subjetiva, tendo que ser conhecidas pela razão a priori e não pela experiência (por empiricamente universal que possa ser).”


     “Seria portanto estranhável que sendo esta máxima o desejo da felicidade universal, por conseguinte, também resultasse universal a máxima, segundo a qual cada um faz desse desejo o fundamento da determinação de sua vontade, como é de assombrar que tenha vindo à mente de homens de raciocínio tomar este princípio como lei prática universal. Efetivamente, se emprestássemos a esta máxima a universalidade de uma lei, em lugar da ordem que uma lei universal da natureza estabelece onde quer que seja, conseguiríamos precisamente o contrário, uma extrema desordem, ou então desapareceriam a finalidade da máxima ou ela própria. A vontade de todos não tem nesse particular um objetivo idêntico e único, mas cada um tem o seu (o seu próprio bem-estar), o qual, se pode concordar acidentalmente com os desígnios dos outros, dirigidos também, identicamente, por eles a si próprios, não é, entretanto, nem mesmo com esforço, suficiente para perfazer em lei, porque as exceções, que ocasionalmente se tem o direito de fazer, além de serem infinitas em número, não têm fundamento, sendo impossível compreendê-las de modo determinado em uma regra universal; de forma que se chegaria a uma harmonia semelhante a que nos mostra certo poema satírico a propósito de dois esposos que tem o mesmo escopo de arruinar-se: “Maravilhosa harmonia! O que ele quer, também ela quer”. Ou, então, semelhante à do rei Francisco I, aceitando um compromisso para com o imperador Carlos V: “O que meu irmão Carlos quer possuir (Milão), também eu o quero”. Os princípios de determinação empíricos não se prestam para uma legislação universal exterior, mas também não podem assentar uma interior, porque, tendo a inclinação a sua base na natureza de cada um, há também inclinações diferentes, dominando-as o indivíduo, ora a uma e ora a outra. Atinar-se com uma lei que venha reger todas as inclinações em conjunto, sob esta condição, ou seja a coincidência entre todas, é absolutamente impossível.”


     “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal. (...)
     A regra prática é, portanto, incondicionada, sendo, por consequência, representada como proposição categoricamente a priori, em virtude da qual a vontade é determinada, objetiva, absoluta e imediatamente (pela mesma regra prática que aqui, evidentemente, é lei). Com efeito, a razão pura, em si mesma prática, aqui resulta imediatamente legisladora. A vontade é concebida como independente de condições empíricas e, por conseguinte, como vontade pura, determinada mediante a simples forma da lei, sendo esse motivo de determinação considerado como a suprema condição de todas as máximas.”


     “Esta santidade da vontade, é contudo uma ideia prática que, necessariamente, avulta como modelar, como protótipo; aproximarmo-nos dela no infinito é a única coisa que corresponde a todos os seres racionais finitos, pondo-lhes tal ideia constantemente diante dos olhos a lei moral pura, por esse motivo também chamada santa. Possuir a segurança do progresso no infinito das suas máximas e da imutabilidade das mesmas para uma ininterrupta marcha progressiva, ou seja chegar a possuir a virtude, é a coisa mais elevada que a razão prática finita possa conseguir, sendo que esta, pelo menos, como poder, adquirido naturalmente, nunca chega a ser perfeita, porque, neste caso, a segurança nunca é uma certeza apodítica, resultando, portanto, como persuasão, extremamente perigosa.”


     “O conceito do bem e do mal não deve ser determinado antes da lei moral (para a qual esse conceito aparentemente deverá servir de fundamento) mas somente (como ocorre aqui) depois desta lei e pela mesma.”


     “Acresce que, como de todo o inteligível não existe absolutamente nada mais do que a liberdade (por meio da lei moral) que para nós possua realidade e, ainda, só como liberdade é uma suposição inseparável da lei moral, como também todos os objetos inteligíveis, aos quais quiçá pudesse conduzir-nos a razão, guiada por essa lei, não têm, para nós, chegada a sua vez, nenhuma realidade que não seja em relação a essa mesma lei, e ao uso da razão pura prática, e como esta razão está autorizada e compelida a usar da natureza (segundo as formas puras de entendimento da mesma) como tipo do juízo, resulta que a presente observação serve para impedir que o que pertence só à típica dos conceitos seja incluído entre os próprios conceitos. Esta, portanto, como típica do juízo vem preservar-nos do empirismo da razão prática, o qual situa os princípios correlatos advindos do bem e do mal simplesmente nas consequências da experiência (na chamada felicidade), embora esta e um número infinito de consequências úteis de uma vontade determinada mediante o amor próprio, se essa vontade arvorasse ao mesmo tempo em si mesma a lei universal da natureza, pode, na verdade, servir de tipo em tudo adequado ao bem moral, sem ser, contudo, idêntico a ele. Esta mesma típica também nos preserva do misticismo da razão prática, o qual, daquilo que só servia como símbolo faz um esquema, isto é, submete à aplicação dos conceitos morais intuições reais, mas, contudo, insensíveis (de um reino invisível de Deus), perdendo-se no transcendental. Correlato ao uso dos conceitos morais, só temos como apto o racionalismo do juízo, porque este não toma da natureza sensível mais do que aquilo que lhe é dado pensar por si mesma a razão pura, isto é, a conformação à lei, não introduzindo no suprassensível nada mais do que aquilo que por si mesmo, dada a sua vez, possa realmente ser representado no mundo dos sentidos mediante ações, segundo a regra formal de uma lei da natureza em geral. Entretanto, preservar-se contra o empirismo da razão prática é muito mais importante e digno de recomendação especial, porque o misticismo também se imiscui na sublime pureza da lei moral, não sendo, além disso, adequado com precisão natural ao modo de pensar comum distender a imaginação própria até onde residem as intuições supra-sensíveis; por isso, neste setor, o perigo não é tão generalizado. Por outro lado, como o empirismo extirpa a raiz da moralidade nas intenções (nas quais e não apenas nas ações reside o alto valor que a humanidade pode e deve adquirir mediante a moral), substituindo o dever, por coisa bem distinta, ou seja, pelo interesse empírico, com isso as inclinações em geral entram em relação entre si; e como, além disso, precisamente por estar unido com todas as inclinações que (tomem as formas que porventura recebem), elevadas à dignidade de um princípio supremo prático, degradam a humanidade, por favoráveis que sejam, embora, no modo de pensar de todos, resulte esse empirismo, por isso mesmo, mais perigoso do que qualquer exaltação mística, a qual, de forma geral, nunca pode constituir um estado durável para muitos homens.”


     “Para a finalidade da lei moral e para proporcionar-lhe um influxo sobre a vontade, não há necessidade de buscar qualquer motor estranho que substituísse o da lei moral, pois isso tudo resultaria em pura e inconsistente hipocrisia, sendo até perigoso deixar que alguns outros motores (como o do proveito) cooperem com a lei moral, ainda que seja apenas paralelo a ela; disso resulta, portanto, que não resta mais do que determinar cuidadosamente de que modo a lei moral resulta em motor, ou, quando o seja, o que ocorre com a faculdade humana de desejar, como consequência de tal fundamento determinante dessa faculdade. Porque a questão de como uma lei possa ser, imediatamente e por si mesma, o motivo determinante de uma vontade (que é essencial de toda a moralidade) é um problema insolúvel para a razão humana e idêntico ao de como seja possível uma vontade livre. Desse modo, devemos assinalar a priori não o fundamento pelo qual a lei moral em si proporciona um motor, mas o que ela, sendo motor, leva a efeito no espírito (ou, para dizer-se com mais propriedade, o que deve levar a efeito). Qualquer determinação da vontade mediante a lei moral tem alguma coisa essencial e que, como vontade livre, sem cooperação, portanto, não só de impulsos sensíveis, mas, ainda, com exclusão de todos eles e em prejuízo de todas as inclinações quando contrárias a essa lei, apenas pela lei é determinada. Nesta medida, portanto, o efeito da lei moral como motor é só negativo e, como tal, esse motor pode ser conhecido a priori. Mas, na verdade, toda a inclinação e todo o impulso sensível tem como base um sentimento, sendo o efeito negativo sobre tal sentimento (pelo dano que infere às inclinações) também um sentimento. Por conseguinte, podemos constatar a priori que a lei moral, como fundamento de determinação da vontade, deve produzir um sentimento ao prejudicar as inclinações, ao qual poderemos denominar dor; e aqui temos agora o primeiro e quiçá, também, o único caso em que podemos determinar por conceitos a priori a relação de um conhecimento (neste caso de uma razão pura prática) com o sentimento do prazer ou da dor. A união de todas as inclinações (que podem ser reduzidas a um sistema vulgar, ao qual se denominaria felicidade) constituem o egoísmo. É este o do amor de si mesmo, de uma benevolência excessiva para consigo mesmo ou da satisfação de si mesmo. Aquele denominamos particularmente amor-próprio e este presunção. A razão pura prática infere prejuízo ao amor-próprio pelo fato de apenas conceder-lhe os limites estritamente justos e que correspondem à lei moral, estando, ainda antes da mesma manifestar-se, natural e vivo em nós mesmos; então, é chamado de amor-próprio racional.
     Todavia, é completamente subjugada pela presunção, sendo todas as pretensões da estimativa de si mesmo, que precedem à coincidência com a lei moral, ocas e destituídas de qualquer direito, pois a certeza precisa de uma intenção que coincide com essa lei é a condição primordial de todo o valor da pessoa, sendo toda a pretensão anterior a ela falsa e contrária à lei. A tendência à estimativa de si mesmo pertence às inclinações a que a lei moral causa dano, enquanto essa estimativa só assenta na sensibilidade. Com isso a lei moral aniquila a presunção. Convenhamos, porém, que sendo essa lei moral, alguma coisa positiva por si mesma, isto é, a forma de uma causalidade intelectual, ou seja, da liberdade, resulta que, ao debilitar a presunção, opondo-se à resistência subjetiva, a saber, às inclinações que se manifestam em nós mesmos, é, ao tempo, objeto de respeito e ao derrotá-la completamente ou, então, humilhando-a, resulta um objeto de sumo respeito, sendo portanto também o fundamento de um sentimento positivo, que não é de origem empírica e que é conhecido a priori. Desse modo, pois, o respeito para com a lei moral é um sentimento que se produz por um fundamento intelectual, sendo esse sentimento o único que nos é dado conhecer anteriormente a priori e cuja necessidade podemos ter como evidente. Vimos que tudo aquilo que se apresenta como objeto da vontade antes da lei moral, resulta excluído dos fundamentos de determinação da vontade que levam o nome do bem incondicionado, mediante essa mesma lei como condição suprema da razão prática e, ainda, que a mera forma prática, consistente na aptidão das máximas para a legislação universal, determina em primeiro lugar o que é absolutamente bom em si, fundamentando a máxima de uma vontade pura que é boa em todos os sentidos. Julgamos, todavia, que a nossa natureza, como seres sensíveis que somos, constituindo-se de tal modo que a matéria da faculdade de desejar (objetos da inclinação, da esperança ou do temor) logo se impõe, antes de qualquer outra coisa, resultando o nosso eu patologicamente determinável, ainda que seja mediante as suas máximas totalmente desconforme à legislação universal; contudo, como se constituísse todo o nosso eu, esforça-se em fazer valer anteriormente as suas pretensões à guisa de principais e de mais genuínas na sua origem. Esta tendência de em fazer de si mesmo, segundo os fundamentos objetivos da determinação do seu arbítrio, o fundamento objetivo da determinação da vontade em geral, pode denominar-se de amor a si mesmo, o qual, em se tornando legislador é princípio prático incondicionado, pode chamar-se presunção. Pois bem: a lei moral, que só é verdadeira (em todo o sentido) como objetiva, exclui totalmente o influxo do amor a si mesmo sobre o princípio prático supremo, inferindo à presunção que prescreve como leis as condições subjetivas do amor a si mesmo, um dano infinito. Mas tudo o que infere dano à nossa presunção julgamos uma humilhação. Assim, portanto, a lei moral humilha inevitavelmente a todo o homem quando este compara a tendência sensível da sua natureza com aquela lei. Resulta disso que aquilo cuja representação, como motivo determinante de nossa vontade, humilha a nossa consciência, é o que excita (porque é um motivo positivo e determinante) em nós o respeito próprio. Desse modo, portanto, a lei moral é também um fundamento subjetivo do respeito. Pois bem: como tudo o que se situa, nessa objetivação, no amor de si mesmo pertence à inclinação, repousa também, como toda inclinação, nos sentimentos, e, portanto, o que infere dano no amor a si mesmo a todas as inclinações em conjunto tem, por isso mesmo, influência sobre o sentimento, por isso, concebemos como é possível compreender a priori que a lei moral, ao excluir as inclinações e a tendência a fazer delas a condição prática suprema, isto é, o amor a si mesmo, de todo o acesso à legislação suprema, possa exercer um efeito no sentimento, efeito que por um lado é meramente negativo, sendo por outro — isso em consideração da razão pura prática — positivo, não podendo para isso ser admitida qualquer espécie particular de sentimento com a nominação de prático ou moral, na qualidade de sentimento que precedesse ou que servisse de base à lei moral.
     O efeito negativo sobre o sentimento (do desagrado) é, como todo o influxo sobre o mesmo, e como todo o sentimento em geral, patológico. Mas o efeito da consciência da lei moral, consequentemente correlato com uma causa inteligível, a saber, o sujeito da razão pura prática, como suprema legisladora, designamos certamente assim a esse sentimento de um ser racional afetado por inclinações, humilhações (desprezo intelectual), mas, em relação com o fundamento positivo da humilhação, com a lei, chama-se, ao mesmo tempo, respeito a essa lei; para esta lei não há lugar em qualquer sentimento, a não ser no juízo da razão, quando a lei afasta do caminho a resistência, sendo então a remoção do obstáculo tida como igual a um impulso positivo da causalidade. Por isso, pode este sentimento ser denominado agora também um sentimento de respeito para com a lei moral, embora por esses dois fundamentos em conjunto possa ser denominado um sentimento moral.
     A lei moral, portanto, assim como é fundamento formal de determinação da ação mediante a razão pura prática, assim como, também é fundamento material, embora só objetivo da determinação dos objetos da ação sob o nome de bem e de mal, constitui também fundamento subjetivo de determinação, isto é, o motor dessa ação, porque tem influência sobre a sensibilidade do sujeito, produzindo um sentimento que fomenta o influxo da lei sobre a vontade. Aqui não precede ao sujeito qualquer sentimento que se sentisse com disposição à moralidade. Contudo, isso é impossível, dada a sensibilidade de todo o sentimento; o motor da intenção moral deve, todavia, estar livre de toda condição sensível. Preferentemente, é o sentimento sensível o que se encontra como fundamento de todas as nossas inclinações e a condição de toda a sensação a que denominamos de respeito; mas a causa da determinação desse sentimento reside na razão pura prática; por isto, e pela sua origem, não devemos chamá-la de uma sensação patológica, mas sim de uma sensação praticamente efetuada; porque, como a representação da lei moral usurpa ao amor de si mesmo o influxo, e à presunção a ilusão, é diminuto o obstáculo que se depara à razão pura prática, produzindo-se no juízo da razão a representação da superioridade de sua lei objetiva, acima dos impulsos da sensibilidade, resultando, portanto, aumentando o peso da lei de um modo relativo (em consideração de uma vontade afetada pelos impulsos sensíveis) mediante a supressão do contrapeso. Desse modo, o respeito para com a lei não constitui motor para a moralidade, mas sim a própria moralidade, considerada subjetivamente qual motor, porque a razão pura prática, ao deitar por terra todas as pretensões do amor a si mesmo em oposição a ela, proporciona autoridade à lei, que só agora tem influência. Deve-se notar agora nisso que, assim como o respeito é um efeito sobre o sentimento, portanto também sobre a sensibilidade de um ser racional, tal respeito presume essa sensibilidade e, assim, também o caráter finito daqueles seres a quem a lei moral impõe respeito, não podendo atribuir respeito para com a lei a um ser supremo ou também a um ser livre de toda a sensibilidade, para o qual, não pode, todavia, esta constituir qualquer obstáculo da razão prática.”


     “A consciência de uma livre submissão da vontade à lei, consenso também ligado a uma violência inevitável que é preciso exercer sobre todas as inclinações, violência essa que deve ser exercida unicamente mediante o ditame da própria razão, constitui o respeito à lei. Como acabamos de constatar, a lei que exige esse respeito não é outra senão a lei moral, que também o inspira (porque nenhuma outra exclui as inclinações, em razão da influência imediata que estas exercem sobre a vontade). A ação que por sua vez, segundo esta lei, exclui a participação dos motivos determinantes derivados da inclinação é uma ação objetivamente prática que se denomina dever contendo em virtude desta exclusão e no seu próprio conceito, uma compulsão prática, isto é, uma determinação que produz as ações, embora ocorram à nossa revelia. Do fato de ter consciência desse constrangimento, resulta um sentimento que não é patológico, assemelhando-se ao que fosse produzido por um objeto dos sentidos, mas apenas prático, isto é, possível mediante uma determinação precedente (objetiva) da vontade e pela causalidade da razão. Não encerra este sentimento, portanto, como submissão a uma lei, isto é, como mandato recebido (que significa coação para um sujeito sensivelmente afetado), prazer algum; antes, contém pesar para com a ação em si mesma. Mas, pelo contrário, como essa coação só é exercitada pela legislação da própria razão, encerra também elevação e o efeito subjetivo no sentimento, enquanto a sua causa única é a razão pura prática, podendo chamar-se portanto aprovação de si mesmo, no sentido vulgar, em consideração à última, desde que se conhece alguém como determinado a ele sem qualquer interesse mas, apenas, mediante a lei. Em virtude disso adquirimos imediatamente a consciência de um interesse diverso e, por esse motivo, produzido subjetivamente, o qual é inteiramente prático e livre, interesse que, segundo nos aconselha uma inclinação, não deveríamos tomar para uma ação que se coadune ao dever e que, por outro lado, a razão, mediante a lei prática, não só nos impõe como mandato para tomarmos interesse em tal ação, como, também produz por si mesma esse interesse, designando-o, por isso, com um nome especial: o de respeito.”


     “Coaduna-se perfeitamente com isso a possibilidade do mandato que ordena: Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo*. Porquanto isto, na qualidade de mandamento, exige o respeito a uma lei que ordena amor, não relegando à escolha arbitrária a faculdade de fazer ou não de tal um princípio. Entretanto o amor de Deus, como inclinação (amor patológico) é impossível, porque não é nenhum objeto dos sentidos. Esse mesmo amor para com os homens, embora possível, não pode, todavia, ser ordenado, pois não está na faculdade de qualquer homem amar a alguém só por mandato. Assim, portanto, só ao amor prático concerne esse núcleo de leis. Amar a Deus, nessa significação, quer dizer: cumprir com satisfação os seus mandamentos; amar ao próximo quer dizer cumprir com satisfação todos os deveres para com o próximo. Mas o mandamento que com todo o ditame perfaz uma regra para nossa conduta, pode, entretanto, não ordenar que as nossas ações, consoantes ao dever, contenham a disposição de ânimo, que constitui essa regra, mas que encerrem apenas a aspiração a isso. É que um mandato de que se deve fazer algo com satisfação é, em si mesmo contraditório, porque se já sabemos por nós mesmos o que devemos fazer e se, ainda, tivéssemos consciência de que o faríamos com satisfação, seria um mandato sobre ele inteiramente desnecessário; mas se na verdade o fizéssemos, mas não precisamente com satisfação e sim apenas por respeito para com a lei, então um mandato que torna esse respeito precisamente o motor da máxima, agiria exatamente em sentido contrário à disposição de ânimo ordenada. Aquela lei de todas as leis, apresenta, pois, como todo o preceito moral do Evangelho, a disposição moral de ânimo em toda a sua perfeição, assim como, enquanto um ideal de santidade é inexequível para toda criatura, é também, apesar de tudo, o protótipo para o qual devemos propender a igualá-lo em progresso ininterrupto mais infinito. Pudesse alguma vez um ser racional chegar a cumprir com plena satisfação todas as leis morais, isso significaria tanto como não se encontrar nele nem mesmo a posição de um desejo que o incitasse a separar-se delas, porque superar semelhante desejo importa sempre em sacrifício para o sujeito; necessita, portanto, de coação sobre si mesmo, isto é, constrangimento íntimo no que não se opera inteiramente a seu gosto. Mas uma criatura nunca pode chegar a esse grau de disposição moral de ânimo. Porque, sendo uma criatura e, por consequência, sempre, em relação ao que exige para completa satisfação com seu estado, é dependente, nunca pode estar inteiramente livre de desejos e inclinações, os quais, assentando em causas físicas, não concordam por si mesmos com a lei moral, que tem uma fonte inteiramente diversa, tornando, por isso, sempre necessário que, tendo em conta essas inclinações, venha fundir-se a intenção de suas máximas em constrangimento moral, não em elevação espontânea mas, sim, no respeito que a observância da lei requer, embora este cumprimento não seja levado a efeito de boa-vontade, fazendo-se deste último, isto é, do amor vulgar à lei (que cessaria então de ser mandato, deixando também a moralidade, que se transformaria então subjetivamente em santidade, de ser virtude) o termo constante embora inexequível dos seus esforços. É que naquilo que muito prezamos, mas todavia (por termos consciência da nossa debilidade) tememos, isso para maior facilidade em satisfazê-lo, substituindo-se ainda ao respeito o amor, o que seria, pelo menos, a perfeição de uma intenção dedicada à lei, se a uma criatura tal perfeição fosse dado alcançar.”
     Esta consideração está destinada nesta altura não só a reduzir a conceitos claros o mencionado mandato evangélico para reprimir ou, na medida do possível, prevenir o misticismo religioso fanático em consideração ao amor de Deus, mas, também, a determinar com exatidão a intenção moral, também imediatamente no que se refere aos deveres para com os homens e, na medida do possível, reprimir ou prevenir um misticismo fanático meramente moral, que infeccione muitos espíritos. O grau moral em que o homem determinadamente se encontra (e assim, segundo o que nos é dado saber através dos nossos conhecimentos, também qualquer criatura racional) constitui respeito para com a lei moral. A intenção que lhe é imposta para cumprir essa lei é a de cumpri-la por dever, um dever do qual o mesmo tomou a iniciativa, não o sendo por arbitrária propensão ou por um esforço que alguém lhe ordene. O estado moral em que poderá encontrar-se sempre é o da virtude, isto é, a intenção moral na luta e não a santidade em suposta posse de uma pureza completa nas intenções da vontade. É simplesmente misticismo moral e crescimento da presunção a que se dispõem os ânimos quando incitados a ações apresentadas como nobres, sublimes e magnânimas, colocando-se os mesmos na ilusão equívoca de que não é o dever, isto é, o respeito para com a lei, cujo jugo (embora suave, por ser imposto pela razão) ainda que a contragosto, devem suportar, o que constitui o motivo determinante de suas ações e, também, a sua humilhação, sempre que tal ilusão aceitam (obedecem), como se dela e da presunção se devessem esperar as ações e, por conseguinte, não por dever mas por merecimento puro. Acresce que se eles imitassem essas ações ou fatos, isto é, além de não terem, mediante esses princípios, cumprido o espírito da lei nem mesmo no mínimo, o qual consiste na submissão da intenção à lei e não na conformação da ação à lei (seja qual for o princípio), não só assentam o motor patologicamente (na simpatia ou também na gabação) e não moralmente (na lei), produzindo desse modo um modo de pensar ligeiro, superficial e fantástico, por meio do qual se compenetram da bondade voluntária do seu espírito, que não necessita de látego e de freio, nem mesmo de mandato, esquecendo a sua sujeição, na qual, preferentemente ao mérito, deveriam pensar. Pode-se, perfeitamente, exaltar ações alheias, operadas com grande sacrifício, e ao certo só pelo dever, dando-lhes a denominação de nobres e sublimes, embora apenas, não obstante a isso, enquanto houver indícios que deixam supor que tenham ocorrido em tudo por respeito ao seu dever e não por um impulso do coração. Mas se quisermos apresentar alguém como exemplo a seguir, devemos usar imperativamente como motor o respeito ao dever (qual único sentimento moral verdadeiro), preceito sério e sagrado, que não permite ao amor-próprio fátuo julgar com impulsos patológicos (enquanto sejam análogos à moralidade) nem se vangloriar de um valor meritório. Se investigarmos bem, encontraremos para todas as ações que são dignas de exaltação uma lei do dever que ordena e não deixa depender do nosso capricho o que pudesse ser agradável à nossa inclinação. É esse o modo exclusivo de representação que a alma perfaz moralmente, porque só ele é capaz de princípios firmes e exatamente determinados.”
*: Contrasta esta lei com o princípio da nossa própria felicidade, princípio com o qual alguns pretendem fazer a base da moralidade, a qual equivaleria a reputar ajustado o ditame: Ama-te a ti mesmo sobre todas as coisas; mas a Deus e ao teu próximo, ama-os por amor de ti mesmo.

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