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segunda-feira, 29 de maio de 2017

Textos escolhidos (Os Pensadores): Parte I – Denis Diderot

Editora: Abril Cultural
Tradução e notas: Marilena de Souza Chauí e J. Guinsburg
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 138
Sinopse: 1. Carta sobre os cegos para o uso dos que veem [1749]: Embora publicada anonimamente, esta obra de Diderot acarretou a prisão do filósofo no castelo de Vincennes. É que o sensualismo epistemológico que ela defende foi considerado deletério pela repressão exercida, naquele momento, pelo governo de Luís XV.
2. O sobrinho de Rameau [1761]: Diálogo sobre a música e arte, em geral, apresenta-se como uma “Sátira Segunda”, pois é sequência da “Sátira Primeira”, o opúsculo “Sobre os Caracteres e as Palavras Caráter, Profissão etc.”, escrito anteriormente por Diderot.
3. Diálogo entre D’Alembert e Diderot; O sonho de D’Alembert; Continuação do diálogo [1769]: Publicadas apenas em 1830, as três obras pertencem ao que de mais imaginativo produziu a especulação filosófica de Diderot.
4. Suplemento à viagem de Bougainville ou Diálogo entre A e B [1772]: Utilizando também a forma dialogada, a obra possui significativo subtítulo: “Sobre o inconveniente de atribuir ideias morais a certas ações físicas que não se comportam”.
5. Paradoxo sobre o comediante [1769]: Obra de permanente atualidade, enquanto teoria do ator, ultrapassa porém o plano estético ao propor uma teoria geral da sensibilidade.
6. Dos autores e dos críticos [1773]: Capítulo final do “Discurso Sobre a Poesia Dramática”.
7. Diálogo de um filósofo com a Marechala de... [1774]: O diálogo circulou inicialmente em cópias manuscritas, antes de ser impresso. A marechala é provavelmente a esposa de Victor François, Duque de Broglie e Marechal de França.



Carta sobre os cegos para uso dos que veem (★★★☆☆)
“Se vos prestardes por um instante a tal suposição, ela vos lembrará, sob traços supostos, a história e as perseguições dos que tiveram a desgraça de encontrar a verdade em séculos de trevas, e a imprudência de revelá-la aos cegos contemporâneos, entre os quais não deparavam inimigos mais cruéis do que aqueles que, por sua condição e sua educação, pareciam dever estar menos afastados de seus sentimentos.”


“Um meio quase seguro de enganar-se em metafísica é não simplificar bastante os objetos de que nos ocupamos; e um segredo infalível para chegar em físico-matemática a resultados defeituosos é supô-los menos compostos do que o são.”


“Tudo o que é do homem perece com o homem.”


“Vem um tempo em que o gosto dá conselhos cuja justeza se reconhece, mas que não se tem mais a força de seguir.”

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O sobrinho de Rameau (★★★★☆)
“EU — Há uma eternidade que não vos via. Não penso muito em vós quando não vos vejo. Mas sempre me agrada rever-vos. Que tendes feito?
ELE — O que vós, eu e todos fazem: o bem, o mal e nada. Depois tive fome e comi quando a ocasião se apresentou. Após ter comido, tive sede e bebi algumas vezes. Entrementes minha barba crescia, e quando ficou grande mandei raspá-la.
EU — Fizestes mal. É a única coisa que vos falta para serdes um sábio.”


“(...) ELE — Se ajuda alguém é sem desconfiar. É um filósofo à sua moda. Só pensa em si próprio. O resto do mundo não lhe interessa. Sua filha e sua mulher poderão morrer quando quiserem; desde que os sinos da paróquia continuem a tanger a décima e a décima sétima badaladas, tudo estará bem, e é uma sorte para ele. O que prezo particularmente nas pessoas de gênio é que são boas só para uma coisa; fora esta, mais nada. Não sabem o que é ser cidadão, pai, mãe, irmão, parente, amigo. Cá entre nós: é necessário assemelhar-se a ele sob todos os aspectos, mas não querer ser farinha do mesmo saco. É preciso homens, mas não homens de gênio. Palavra de honra, não é preciso mesmo. São os reformadores da face do globo, e, como nas menores coisas a estupidez é tão habitual quanto potente, sua reforma não pode ocorrer sem confusão. Por isso, parte do que imaginaram chega a ser instituída, mas o resto fica como dantes. Resultado: dois evangelhos, um traje de arlequim. A sabedoria do monge de Rabelais é a verdadeira sabedoria, para seu repouso e o dos outros: cumprir mal e mal o dever, sempre falar bem do senhor prior e deixar o mundo ao sabor de seus caprichos. O mundo vai bem, pois a multidão está contente com ele. Se conhecesse história, eu vos mostraria que o mal sempre veio cá embaixo pelas artes de algum homem de gênio. Mas não conheço história porque nada sei. O diabo que me carregue se alguma vez aprendi alguma coisa, e se estou pior por não ter aprendido. Um dia, estava à mesa de um ministro do rei de França, cujo espírito vale por quatro. Pois bem, o ministro nos demonstrou, como um e um são dois, que nada era mais útil aos povos do que a mentira, nada mais nocivo do que a verdade. Não me recordo muito de suas provas, mas delas decorria com evidência que as pessoas de gênio são detestáveis. E se uma criança, ao nascer, trouxesse na fronte a marca desse perigoso presente da natureza, dever-se-ia sufocá-la ou lançá-la num antro de vagabundos.
EU — No entanto, todas essas personagens, tão inimigas do gênio, estão certas de possuí-lo.
ELE — Creio que no íntimo pensam dessa maneira, mas não creio que ousassem confessá-lo.
EU — É por modéstia. Desde então concebeste um ódio terrível contra o gênio?
ELE — Para nunca voltar atrás.
EU — Mas lembro-me de uma ocasião em que o desespero vos dominava por serdes apenas um homem comum. Se o pró e o contra vos afligirem igualmente, nunca sereis feliz. É preciso tomar um partido e permanecer fiel a ele. Ninguém voltará atrás ao concordar inteiramente convosco, aceitando que os homens de gênio frequentemente são singulares, ou, como diz o provérbio, que não há grandes inteligências sem um grão de loucura. Desprezar-se-ão os séculos que não os produzirem. Serão a honra dos povos entre os quais tiverem existido. Cedo ou tarde, estátuas lhes serão erguidas. E serão encarados como benfeitores do gênero humano. Sem desagradar ao sublime ministro que me haveis citado, creio que a mentira pode servir um momento, mas a longo prazo é necessariamente nociva, e que, ao contrário, a verdade serve necessariamente a longo prazo, embora possa ocorrer que prejudique no momento. Por isso, eu me sentiria tentado a concluir que o homem de gênio, capaz de desacreditar um erro geral ou de empenhar-se numa grande verdade, é sempre um ser digno de nossa veneração. Pode acontecer que se torne vítima do preconceito e das leis, porém há dois tipos de leis: umas, absolutamente equânimes e gerais, outras, estranhas, cuja sanção provém apenas da necessidade ou da cegueira das circunstâncias. Se estas cobrem de ignomínia o culpado que as infringe, a ignomínia é passageira e o tempo se encarrega de revertê-las definitivamente sobre os juízes e as nações. Hoje, quem é o desonrado: Sócrates ou o magistrado que o obrigou a beber cicuta?”


“— Mas pesai o mal e o bem. Daqui a mil anos fará derramar lágrimas; será a admiração dos homens de todos os recantos da terra. Inspirará humanidade, comiseração, ternura. Perguntar-se-á quem foi, qual o seu país, e invejar-se-á a França. Causou sofrimento a algumas pessoas que já não vivem e às quais damos pouco ou nenhum valor. Nada temos a temer de seus vícios e de seus defeitos. Teria sido melhor, sem dúvida, se tivesse recebido da natureza as virtudes de um homem de bem com os talentos de um grande homem. É uma árvore que secou algumas outras, plantadas ao seu redor, que sufocou as plantas que cresciam aos seus pés; mas elevou sua copa até as nuvens e seus ramos se estenderam ao longe, oferecendo sua sombra aos que vinham, vêm e virão repousar à volta de seu tronco majestoso; produziu frutos de raro sabor e que se renovam incessantemente. Seria desejável que Voltaire tivesse também a doçura de Duclos, a candura do Abade Trublet, a retidão do Abade D’Olivet, mas, como isto não é possível, olhemos a coisa por seu lado verdadeiramente interessante. Esqueçamos por um momento o ponto que ocupamos no espaço e na duração, e estendamos nossa vista aos séculos por vir, às regiões mais afastadas e aos povos por nascer. Sonhemos com o bem de nossa espécie. Se não somos bastante generosos, pelo menos perdoemos a natureza por ter sido mais sábia do que nós. Se lançardes água fria sobre a cabeça de Greuze, extinguireis, talvez, seu talento com sua vaidade.”


“Apodrecer sob o mármore, apodrecer sob a terra, é sempre apodrecer.”


“A voz da consciência e da honra é muito fraca quando as tripas gritam.”


“Se ficar rico farei a devolução, e estou mesmo disposto a devolver de todas as maneiras possíveis: pela mesa, pelo jogo, pelo vinho, pelas mulheres.”


“ELE — Vós outros, filósofos, pensais de maneira diversa, pois acreditais que a mesma felicidade é feita para todos. Que estranha visão! Vossa felicidade supõe uma certa propensão romanesca que não temos, uma alma singular, um gosto particular. Enfeitais essa esquisitice com o nome de virtude, chamando-a, também, filosofia. Mas a virtude e a filosofia são feitas para todo mundo? Quem pode tem; quem pode conserva. Imaginai o universo sensato e filosofante. Que terrível chatice! Escutai. Viva a filosofia, viva a sabedoria de Salomão: beber bons vinhos, saborear petiscos delicados, rolar sobre belas mulheres, repousar em camas macias. O resto é vaidade.
EU — Como? E servir à pátria?
ELE — Vaidade! Não há mais pátria. De um polo ao outro só vejo tiranos e escravos.
EU — Servir aos amigos?
ELE — Vaidade! Quem tem amigos? E quem os tivesse deveria torná-los ingratos? Atentai e vereis que é sempre isso o que se recolhe dos favores prestados. O reconhecimento é um fardo e todo fardo deve ser sacudido.
EU — Ter uma posição na sociedade e cumprir os deveres?
ELE — Vaidade! Que importa que se tenha ou não uma posição, desde que se seja rico, pois só se arranja uma posição para isso. Cumprir os deveres? Aonde isso leva? Ao crime, à perturbação, à perseguição. É assim que se progride? Fazer a corte, raios! Fazer a corte! Ver os grandes, estudar seus gostos, prestar-se às suas fantasias, servir aos seus vícios, aprovar suas injustiças. Eis o segredo.
EU — Cuidar da educação de seus filhos?
ELE — Vaidade! É tarefa de um preceptor.
EU — Mas, se o preceptor, convicto de vossos princípios, negligenciar seus deveres, quem deverá ser castigado?
ELE — Palavra! Garanto que não serei eu! Talvez, um dia, o marido de minha filha, ou a mulher de meu filho.
EU — Mas, se ambos caírem na orgia e no vício?
ELE — Será uma consequência de sua posição.
EU — Se se desonrarem?
ELE — Faça o que fizer, o rico nunca se desonra.”


“Louva-se a virtude, mas é odiada e dela se foge.”


“Por que vemos frequentemente devotos tão duros, tão irritados, tão insociáveis? Porque impuseram a si próprios uma tarefa que não é natural; sofrem, e quem sofre faz os outros sofrerem também.”


“Só o ridículo e a loucura fazem rir.”


“O espírito e a arte têm seus limites, menos para Deus e para alguns espíritos raros que veem a estrada alongar-se à medida que avançam.”


“Os gênios leem pouco, praticam muito e se fazem por si próprios.”


“É melhor escrever grandes coisas do que executar pequenas.”


“Engolimos em grandes sorvos uma mentira que nos lisonjeia; bebemos gota a gota uma verdade que nos amargura.”


“Sentir-me-ia humilhado se aqueles que falam mal de tanta gente boa resolvessem falar bem de mim.”


“ELE — Não caio nunca, e por uma simples questão de proporção, pois, para uma vez que se deve evitar o ridículo, felizmente há cem outras em que é preciso lançar-se nele. Junto aos grandes não há melhor papel do que o de um louco. Durante muito tempo houve o título de louco do rei. Que eu saiba, nunca houve o de sábio do rei. Sou o louco de Bertin e de muitos outros, o vosso talvez, neste momento. Ou quem sabe se vós sois o meu? Aquele que fosse sábio não teria um louco; portanto, o que tem um louco não é sábio. Ora, se não é sábio talvez seja louco, e talvez, se fosse rei, o louco de seu louco. Além disso, lembrai-vos de que, num assunto tão controvertido como o dos costumes, nada há que seja absoluta, essencial e geralmente verdadeiro ou falso, mas que se deve ser aquilo que o interesse deseja que sejamos: bom ou mau, sábio ou louco, decente ou ridículo, honesto ou vicioso. Se, por acaso, a virtude tivesse conduzido à fortuna, eu teria sido virtuoso ou simulado a virtude como um outro qualquer. Quiseram-me ridículo, assim me fiz. Quanto aos vícios; a despesa ficou por conta da natureza. Quando digo vicioso, digo-o apenas para falar vossa língua, pois, se viéssemos a nos explicar, poderia ocorrer que chamásseis vício o que chamo virtude, e virtude o que chamo vício.”


“Os mendigos se reconciliam quando comem na mesma gamela.”


“Se há um gênero onde é importante ser sublime, este gênero é o mal. Cospe-se num pequeno gatuno, mas não é possível recusar uma certa consideração por um grande criminoso: sua coragem espanta, sua atrocidade arrepia. Estima-se muito a coerência do caráter.”


“Geralmente a grandeza de caráter resulta do equilíbrio natural de várias qualidades opostas.”


“A criança como o homem, o homem como a criança preferem divertir-se a instruir-se.”


“Os trouxas e os loucos se divertem uns com os outros. Procuram-se. Atraem-se.”


“Se ao chegar não tivesse encontrado já pronto o provérbio que diz que ‘o dinheiro dos trouxas é patrimônio dos sabidos’, eu o teria inventado.”

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Diálogo entre D’alembert e Diderot / O sonho de D’alembert / Continuação do diálogo (★★★☆ )
“Nosso verdadeiro sentimento não é aquele no qual jamais vacilamos; mas aquele ao qual mais habitualmente retornamos.”


“SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Mas o que é a nossa duração comparada à eternidade dos tempos? Menos que a gota que peguei com a ponta de uma agulha, comparada ao espaço ilimitado que me rodeia. Sequência indefinida de animálculos no átomo que fermenta, a mesma sequência indefinida de animálculos no outro átomo que se chama Terra. Quem conhece as raças de animais que nos precederam? Quem conhece as raças de animais que sucederão às nossas? Tudo muda, tudo passa, só o todo permanece. O mundo começa e acaba incessantemente, está a cada instante no início e no fim; nunca houve outro e nunca haverá outro. “Neste imenso oceano de matéria, não existe molécula que se assemelhe a outra molécula, molécula que se assemelhe a si própria por um instante: Rerum novus nascitur ordo (Uma nova ordem de coisas nasce), eis sua inscrição eterna...” Depois ajuntou, suspirando: “ó vaidade de nossos pensamentos! Ó pobreza da glória e de nossos trabalhos! Ó miséria! Ó pequeneza de nossas concepções! Não há nada sólido exceto beber, comer, viver, amar e dormir...”


“A conformação original se altera ou se aperfeiçoa pela necessidade e pelas funções habituais. Andamos tão pouco, trabalhamos tão pouco e pensamos tanto, que não desespero que o homem acabe sendo (no futuro) apenas uma cabeça.”


“— É tão comum tomar qualidades naturais por hábitos adquiridos e quase tão velhos como nós.
— E reciprocamente.”


“— Digo que o espírito monástico se conserva porque o mosteiro se refaz pouco a pouco, e quando entra um novo monge, encontra uma centena de velhos que o arrastam a pensar e a sentir como eles. Uma abelha vai embora, sucede-lhe no cacho outra que logo se põe a par.”


“D’ALEMBERT. — Vós o credes?
BORDEU. — E sois vós quem me propondes semelhante pergunta! Vós que, entregue a especulações profundas, passastes dois terços de vossa vida a sonhar de olhos abertos e a agir sem querer; sim, sem querer, bem menos que em vossos sonhos. Em vosso sonho comandais, ordenais, sois obedecido; ficais descontente ou satisfeito, experimentais contradição, deparais obstáculos, vós vos irritais, amais, odiais, censurais, ides, vindes. No decurso de vossas meditações, mal vossos olhos se abriam de manhã quando, presa novamente da ideia que vos preocupara na véspera, vós haveis vos vestido, sentado à vossa mesa, meditado, traçado figuras, seguido os cálculos, almoçado, retomado vossas combinações e às vezes deixado a mesa para verificá-las; vós haveis falado a outrem, dado ordens à vossa criada, ceado, vós haveis vos deitado, adormecido sem ter praticado o menor ato de vontade. Não fostes senão um ponto; agistes mas não quisestes. Será que se quer, por si? A vontade nasce sempre de algum motivo interior ou exterior, de alguma impressão presente, de alguma reminiscência do passado, de alguma paixão, de algum projeto no futuro. Depois disso, dir-vos-ei sobre a liberdade apenas uma palavra, é que a derradeira de nossas ações é o efeito necessário de uma causa una: nós, muito complicada, porém una.
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Necessário?
BORDEU. — Sem dúvida. Tentai conceber a produção de outra ação, supondo que o ser atuante seja o mesmo.
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Ele tem razão. Uma vez que eu ajo assim, aquele que pode agir de outro modo não é mais eu; e assegurar que no momento em que faço ou digo uma coisa, posso dizer ou fazer outra, é assegurar que eu sou eu e que eu sou um outro. Mas, doutor, e o vício e a virtude? A virtude, esta palavra tão santa em todas as línguas, esta ideia tão sagrada em todas as nações!
BORDEU. — Cumpre transformá-la na de beneficência, e seu oposto na de maleficência. A gente nasce afortunada ou desafortunadamente; somos irresistivelmente arrastados pela torrente geral que conduz um à glória e outro à ignomínia.
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E a autoestima, e a vergonha e o remorso?
BORDEU. — Puerilidade fundada na ignorância e na vaidade de um ser que se imputa a si próprio o mérito ou o demérito de um instante necessário.
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E as recompensas e os castigos?
BORDEU. — São meios de corrigir o ser modificável que se denomina mau, e encorajar o que se denomina bom.
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — E essa doutrina toda nada tem de perigoso?
BORDEU. — Ela é verdadeira ou falsa?
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Creio que é verdadeira.
BORDEU. — Isto quer dizer que pensais que a mentira tem suas vantagens, e a verdade seus inconvenientes.
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Assim penso.
BORDEU. — E eu também: mas as vantagens da mentira são momentâneas, e as da verdade são eternas; mas as consequências vergonhosas da verdade, quando ela as têm, passam depressa, e as da mentira só terminam com esta.”


“Quem mistura o útil ao agradável obtém todos os votos.” (Horácio, Arte Poética, v. 343)


“BORDEU. — Senhorita, poderíeis informar-me que proveito e que prazer a castidade e a continência rigorosas produzem, seja ao indivíduo que as pratica, seja à sociedade?
SENHORITA DE l’ESPINASSE. — Por Deus, nenhum.
BORDEU. — Logo, a despeito dos magníficos elogios que o fanatismo lhes prodigalizou, a despeito das leis civis que as protegem, nós as excluiremos do catálogo das virtudes, e conviremos que nada há de tão pueril, de tão ridículo, de tão absurdo, de tão nocivo, de tão desprezível, nada há de pior, à exceção do mal positivo, do que essas duas raras qualidades...”

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