Editora: Record
ISBN: 978-85-0105-878-2
Opinião: ★★★★★
Páginas: 174
“O território não é apenas o resultado da
superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de
coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a população, isto é,
uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O
território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e
espirituais e da vida, sobre os quais ele influi. Quando se fala em território
deve-se, pois, de logo, entender que se está falando em território usado,
utilizado por uma dada população. Um faz o outro, à maneira da célebre frase de
Churchill: primeiro fazemos nossas casas, depois elas nos fazem... A ideia de
tribo, povo, nação e, depois, de Estado nacional decorre dessa relação tornada
profunda.”
“A consciência da diferença pode conduzir
simplesmente à defesa individualista do próprio interesse, sem alcançar a
defesa de um sistema alternativo de ideias e de vida. De um ponto de vista das
ideias, a questão central reside no encontro do caminho que vai do imediatismo
às visões finalísticas; e de um ponto de vista da ação, o problema é
ultrapassar as soluções imediatistas (por exemplo, eleitoralismos interesseiros
e apenas provisoriamente eficazes) e alcançar a busca política genuína e
constitucional de remédios estruturais e duradouros.
Nesse processo, afirma-se, também, segundo novos
moldes, a antiga oposição entre o mundo e o lugar. A informação mundializada
permite a visão, mesmo em flashes, de ocorrências distantes. O conhecimento de
outros lugares, mesmo superficial e incompleto, aguça a curiosidade. Ele é
certamente um subproduto de uma informação geral enviesada, mas, se for ajudado
por um conhecimento sistêmico do acontecer global, autoriza a visão da história
como uma situação e um processo, ambos críticos. Depois, o problema crucial é:
como passar de uma situação crítica a uma visão crítica – e, em seguida,
alcançar uma tomada de consciência. Para isso, é fundamental viver a própria
existência como algo de unitário e verdadeiro, mas também como um paradoxo:
obedecer para subsistir e resistir para poder pensar o futuro. Então a
existência é produtora de sua própria pedagogia.”
“O denso sistema ideológico que envolve e sustenta
as ações determinantes parece não resistir à evidência dos fatos. A velocidade
não é um bem que permita uma distribuição generalizada, e as disparidades no
seu uso garantem a exacerbação das desigualdades. A vida cotidiana também
revela a impossibilidade de fruição das vantagens do chamado tempo real para a
maioria da humanidade. A promessa de que as técnicas contemporâneas pudessem
melhorar a existência de todos caem por terra e o que se observa é a expansão
acelerada do reino da escassez, atingindo as classes médias e criando mais
pobres.”
“É fato, também, que, com a interdependência
globalizada dos lugares e a planetarização dos sistemas técnicos dominantes,
estes parecem se impor como invasores, servindo como parâmetro na avaliação da
eficácia de outros lugares e de outros sistemas técnico. É nesse sentido que os
sistema técnico hegemônico aparece como algo absolutamente indispensável e a
velocidade resultante como um dado desejável a todos que pretendem participar
de pleno direito, da modernidade atual. Todavia, a velocidade atual e tudo que
vem com ela, e que dela decorre, não é inelutável nem imprescindível. Na
verdade, ela não beneficia nem interessa à maioria da humanidade. Para quê, de
fato, serve esse relógio despótico do mundo atual? As crises atuais são, em
última análise, uma resultante da aceleração contemporânea, mediante o uso
privilegiado, por alguns atores econômicos, das possibilidades atuais de
fluidez. Como tal exercício não responde a um objetivo moral e, desse modo, é
desprovido de sentido, o resultado é a instalação de situações em que o movimento
encontra justificativa em si mesmo – como é o caso do mercado de capitais
especulativos – tal autonomia sendo uma das razões da desordem característica
do período atual.
Quando aceitamos pensar a técnica em conjunto com a
política e admitimos atribuir-lhe outro uso, ficamos convencidos de que é
possível acreditar em uma outra globalização e em um outro mundo. O problema
central é o de retomar o curso da história, isto é, recolocar o homem no seu
lugar central.”
“O mundo do tempo real busca uma homogeneização
empobrecedora e limitada, enquanto o universo do cotidiano é o mundo da
heterogeneidade criadora.”
Do artifício à
escassez
Hoje, tanto os objetivos quanto as ações derivam da
técnica. As técnicas estão, pois, em toda parte: na produção, na circulação, no
território, na política, na cultura. Elas estão também – e permanente – no
corpo e no espírito do homem. Vivemos todos num emaranhado de técnicas, o que
em outras palavras significa que estamos todos mergulhados no reino do
artifício. Na medida em que as técnicas hegemônicas, fundadas na ciência e
obedientes aos imperativos do mercado, são hoje extremamente dotadas de intencionalidade,
há igualmente tendência à hegemonia de uma produção “racional” de coisas e de
necessidades; e desse modo uma produção excludente de outras produções, com a
multiplicação de objetos técnicos estritamente programados que abrem espaço
para essa orgia de coisas e necessidades que impõem relações e nos governam.
Cria-se um verdadeiro totalitarismo tendencial da racionalidade – isto é, dessa
racionalidade hegemônica, dominante –, produzindo-se a partir do respectivo
sistema certas coisas, serviços, relações e ideias. Esta, aliás, é a base
primeira da produção de carências e de escassez, já que uma parcela
considerável da sociedade não pode ter acesso às coisas, serviços, relações,
ideias que se multiplicam na base da racionalidade hegemônica.
A situação contemporânea revela, entre outras
coisas, três tendências: 1. uma produção acelerada e artificial de
necessidades; 2. uma incorporação limitada de modos de vida ditos racionais; 3.
uma produção ilimitada de carência e escassez.
Nessa situação, as técnicas a velocidade, a
potência criam desigualdades e, paralelamente, necessidades, porque não há
satisfação para todos. Não é que a produção necessária seja globalmente
impossível. Mas o que é produzido – necessária ou desnecessariamente – é desigualmente
distribuído. Daí a sensação e, depois, a consciência de escassez: aquilo que
falta a mim, mas que o outro mais bem situado na sociedade possui. A ideia vem
de Sartre, quando registra que “não há bastante para todo o mundo”. Por isso o
outro consome e não eu. O homem, cada homem, é afinal definido pela soma dos
possíveis que lhe cabem, mas também pela soma dos seus impossíveis.
O reino da necessidade existe para todos, mas
segundo formas diferentes, as quais simplificamos mediante duas situações –
tipo: para os “possuidores”, para os “não possuidores”.
Quanto aos “possuidores”, torna-se viável, mediante
possibilidades reais ou artifícios renovados, a fuga à escassez e a superação
ainda que provisória da escassez. Como o processo da criação de necessidades é
infinito, impõe-se uma readaptação permanente. Cria-se um círculo vicioso com a
rotina da falta e da satisfação. Na realidade, para essa parcela da sociedade a
falta já é criada como a expectativa e a perspectiva de satisfação. As negociações
para regressar ao status de consumidor satisfeito conduzem à repetição de
experiências exitosas. Desse modo, a parcela de consumidores contumazes obtém
uma convivência relativamente pacífica com a escassez. Mas a busca permanente
de bens finitos e por isso condenados ao esgotamento (e à substituição por
outros bens finitos) condena os aparentemente vitoriosos à aceitação da
contrafinalidade contida nas coisas e em consequência ao enfraquecimento da
individualidade.
Quanto aos “não-possuidores” sua convivência com a
escassez é conflituosa e até pode ser guerreira. Para eles, viver na esfera do
consumo é como querer subir uma escada rolante no sentido da descida. Cada dia
acaba oferecendo uma nova experiência da escassez. Por isso não há lugar para o
repouso e a própria vida acaba por ser um verdadeiro campo de batalha. Na briga
cotidiana pela sobrevivência, não há negociação possível para eles, e,
individualmente, não há força de negociação. A sobrevivência só é assegurada
porque as experiências imperativamente se renovam. E como a surpresa se dá como
rotina, a riqueza dos “não-possuidores” é a prontidão dos sentidos. É com essa
força que eles se eximem da contrafinalidade e ao lado da busca de bens
materiais finitos cultivam a procura de bens infinitos como a solidariedade e a
liberdade: estes, quanto mais se distribuem, mais aumentam.
“A experiência da escassez é a ponte entre o
cotidiano vivido e o mundo. Por isso, constitui um instrumento primordial na
percepção da situação de cada um e uma possibilidade de conhecimento e de
tomada de consciência.
O nosso tempo consagra a multiplicação das fontes
de escassez, seja pelo número avassalador dos objetos presentes no mercado,
seja pelo chamado incessante ao consumo. Cada dia, nessa época de globalização,
apresenta-se um objeto novo, que nos é mostrado para provocar o apetite. A
noção de escassez se materializa, se aguça e se reaprende cotidianamente, assim
como, já agora, a certeza de que cada dia é dia de uma nova escassez. A
sociedade atual vai dessa maneira, mediante o mercado e a publicidade, criando
desejos insatisfeitos, mas também reclamando explicações. (...) Para os pobres,
a escassez é um dado permanente da existência, mas como sua presença na vida de
todos os dias é o resultado de uma metamorfose também permanente, o trabalho
acaba por ser, para eles, o lugar de uma descoberta cotidiana e de um combate
cotidiano, mas também uma ponte entre a necessidade e o entendimento.”
“O exame do papel atual dos pobres na produção do
presente e do futuro exige, em primeiro lugar, distinguir entre pobreza e
miséria. A miséria acaba por ser a privação total, com o aniquilamento, ou
quase, da pessoa. A pobreza é uma situação de carência, mas também de luta, um
estado vivo, de vida ativa, em que a tomada de consciência é possível.
Miseráveis são os que se confessam derrotados. Mas
os pobres não se entregam. Eles descobrem cada dia formas inéditas de trabalho
e de luta. Assim, eles enfrentam e buscam remédio para suas dificuldades. Nessa
condição de alerta permanente, não têm repouso intelectual. A memória seria sua
inimiga. A herança do passado é temperada pelo sentimento de urgência, essa
consciência do novo que é, também, um motor do conhecimento.
A socialidade urbana pode escapar aos seus
intérpretes, nas faculdades; ou aos seus vigias, nas delegacias de polícia. Mas
não aos atores ativos do drama, sobretudo quando, para prosseguir vivendo, são
obrigados a lutar todos os dias. Haverá quem descreva o quadro material dessa
batalha como se fosse um teatro, quando, por exemplo, se fala em estratégia de
sobrevivência, mas na realidade esse palco, junto com seus atores, constitui a
própria vida concreta da maioria das populações. A cidade, pronta a enfrentar
seu tempo a partir do seu espaço, cria e recria uma cultura com a cara do seu
tempo e do seu espaço e de acordo ou em oposição aos “donos do tempo”, que são
também os donos do espaço.
É dessa forma que, na convivência com a necessidade
e com o outro, se elabora uma política, a política dos de baixo, constituída a partir das suas visões do mundo e dos
lugares. Trata-se de uma política de novo tipo, que nada tem a ver com a
política institucional. Esta última se funda na ideologia do crescimento, da
globalização etc. e é conduzida pelo cálculo dos partidos e das empresas. A
política dos pobres é baseada no cotidiano vivido por todos, pobres e não
pobres, e é alimentada pela simples necessidade de continuar existindo. Nos
lugares, uma e outra se encontram e confundem, daí a presença simultânea de
comportamentos contraditórios, alimentados pela ideologia do consumo. Este, ao
serviço das forças socioeconômicas hegemônicas, também se entranha na vida dos
pobres, suscitando neles expectativas e desejos que não podem contentar.
Num mundo tão complexo, pode escapar aos pobres o
entendimento sistêmico do sistema do mundo. Este lhes aparece nebuloso,
constituído por causas próximas e remotas, por motivações concretas e
abstratas, pela confusão entre os discursos e as situações, entre a explicação
das coisas e a sua propaganda.
Mas há também a desilusão das demandas não
satisfeitas, o exemplo do vizinho que prospera, o cotidiano contraditório.
Talvez por aí chegue o despertar.”
“Vale realçar que no Brasil do milagre, e até
durante boa parte da década de 1980, a classe média se expande e se desenvolve
sem que houvesse verdadeira competição dentro dela quanto ao uso dos recursos
que o mercado ou o Estado lhe ofereciam para a melhoria do seu poder aquisitivo
e do seu bem-estar material. Todos iam subindo juntos, embora para andares
diferentes. Mas todos das classes médias estavam cônscios de sua ascensão
social e esperançosos de conseguir ainda mais. Daí sua relativa coesão e o
sentimento de se haver tornado um poderoso estamento. A competição foi, na
realidade, com os pobres, cujo acesso aos bens e serviços se torna cada vez
mais difícil, à medida que estes se multiplicam. Vale a pena lembrar as
facilidades para a aquisição da casa própria, mediante programas governamentais
com que foram privilegiados, enquanto os brasileiros mais pobres apenas foram
incompletamente atendidos nos últimos anos do regime autoritário. A classe
média é a grande beneficiária do crescimento econômico, do modelo político e
dos projetos urbanísticos adotados.
Tal classe média, ao mesmo tempo em que se
diversifica profissionalmente, aumenta seu poder aquisitivo e melhora
qualitativamente por meio das oportunidades de educação que lhe são abertas,
tudo isso levantado à ampliação do seu bem-estar (o que hoje se chama de
qualidade de vida), conduzindo-a a acreditar que a preservação das suas
vantagens e perspectivas estivesse assegurada. Conforme mostraram Amélia Rosa
S. Barreto e Ana Clara T. Ribeiro, “o acesso ao crédito transforma-se em
instrumento para alcançar a estabilidade social”. Tudo o que alimenta a classe
média dá-lhe, também um sentimento de inclusão no sistema político e econômico
e um sentimento de segurança, estimulado pelas constantes medidas do poder
público em seu favor. Tratava-se, na realidade, de uma moeda de troca, já que a
classe média constituía uma base de apoio às ações do governo.
Forma-se, dessa maneira, uma classe média sequiosa
de bens materiais, a começar pela propriedade, e mais apegada ao consumo que à cidadania, sócia despreocupada do crescimento e do poder com os quais se
confundia. Daí a tolerância, senão a cumplicidade com o regime autoritário. O
modelo econômico importava mais que o modelo cívico. Eram essas, aliás,
condições objetivas necessárias a um crescimento econômico sem democracia.
Quando o regime militar esgota o seu ciclo, a democracia se instala
incompletamente na década de 1980, guardando todos esses vícios de origem e
sustentando um regime representativo falsificado pela ausência de partidos
políticos consequentes. Seguindo essa lógica, as próprias esquerdas são levadas
a dar mais espaço às preocupações eleitoras e menos à pedagogia propriamente
política. A gênese e as formas de expansão das classes médias brasileiras têm
relação direta com a maneira como hoje se desempenham os partidos.
Tal situação tende a mudar, quando a classe média
começa a conhecer a experiência da escassez, o que poderá levá-la a uma
reinterpretação de sua situação. Nos anos recentes, primeiro de forma lenta ou
esporádica e já agora de modo mais sistemático e continuado, a classe média
conhece dificuldades que lhe apontam para uma situação existencial bem
diferente daquela que conhecera há poucos anos. Tais dificuldades chegam em um
tropel: a educação dos filhos, o cuidado com a saúde, a aquisição ou aluguel da
moradia, a possibilidade de pagar pelo lazer, a falta de garantia no emprego, a
deterioração dos salários, a poupança negativa e o crescente endividamento
estão levando ao desconforto quanto ao presente e à insegurança quanto ao futuro,
tanto o futuro remoto quanto o imediato. Tais incertezas são agravadas pelas
novas perspectivas da previdência social e do regime de aposentadorias, da
prometida reforma dos seguros privados e da legislação do trabalho. A tudo isso
se acrescentam, dentro do próprio lar, a apreensão dos filhos em relação ao
futuro profissional e as manifestações cotidianas desse desassossego.
Já que não mais encontram os remédios que lhe eram
oferecidos pelo mercado ou pelo Estado como solução aos seus problemas
individuais emergentes, as classes médias ganham a percepção de que já não
mandam, ou de que já não participam da partilha do poder. Acostumadas a
atribuir aos políticos a solução dos seus problemas, proclamam, agora, seu
descontentamento, distanciando-se deles. Elas já não veem espelhadas nos
partidos e por isso se instalam num desencanto mais abrangente quanto à
política propriamente dita. Isso é justificado, em parte, pela visão de
consumidor desabusado que alimentou durante décadas, agravada com a fragmentação
pela mídia, sobretudo televisiva, da informação e da interpretação do processo
social. A certeza de não mais influir politicamente é fortalecida nas classes
médias, levando-as, não raro, a reagir negativamente, isto é, a desejar menos
política e menos participação, quando a reação correta poderia e deveria ser
exatamente a oposta.
A atual experiência de escassez pode não conduzir
imediatamente à desejável expansão da consciência. E quando esta se impõe, não
o faz igualmente, segundo as pessoas. Visto esquematicamente, tal processo pode
ter, como primeiro degrau, a preocupação de defender situações individuais
ameaçadas e que se deseja reconstituir, retomando o consumo e o conforto
material como o principal motor de uma luta, que, desse modo, pode se limitar a
novas manifestações de individualismo. É num segundo momento que tais reivindicações,
fruto de reflexão mais profunda, podem alcançar um nível qualitativo superior,
a partir de um entendimento mais amplo do processo social e de uma visão
sistêmica de situações aparentemente isoladas. O passo seguinte pode levar à
decisão de participar de uma luta pela sua transformação, quando o consumidor
assume o papel de cidadão. Não importa que esse movimento de tomada de
consciência não seja geral, nem igual para todas as pessoas. O importante é que
se instale.
Seja como for, as classes médias brasileiras, já
não mais aduladas, e feridas de morte nos seus interesses materiais e
espirituais, constituem, em sua condição atual, um dado novo da vida social e
política. Mas seu papel não estará completo enquanto não se identificar com os
clamores dos pobres, contribuindo, juntos, para o rearranjo e a regeneração dos
partidos, inclusive os partidos do progresso. Dentro destes, são muito os que
ainda aceitam as tentações do triunfalismo oposicionista – sempre que as
ocasiões se apresentam – e se rendem ao oportunismo eleitoreiro, limitando-se
às respectivas mobilizações ocasionais, desgarrando-se, assim, do seu papel de
formadores não apenas da opinião mas da consciência cívica sem a qual não pode
haver neste país política verdadeira.
As classes média brasileira, agora mais ilustradas
e, também, mais despojadas materialmente, têm, agora, a tarefa histórica de
forçar os partidos a complementar, no Brasil, o trabalho, apenas começado, de
implantação de uma democracia que não seja apenas eleitoral, mas, também,
econômica, política e social. A experiência da escassez, um revelador cotidiano
da verdadeira situação de cada pessoa é, desse modo, um dado fundamental na
aceleração da tomada de consciência. Nas condições brasileiras atuais, as novas
circunstâncias podem levar as classes médias a forçar uma mudança substancial
do ideário e das práticas políticas, que incluam uma maior responsabilidade
ideológica e a correspondente representatividade político-eleitoral dos
partidos.”
“Para entender o processo que conduziu à
globalização atual, é necessário levar em conta dois elementos fundamentais: o
estado das técnicas e o estado da política. Há, frequentemente, tendência a
separar uma coisa da outra. Daí nascem as muitas interpretações da história a
partir das técnicas ou da política, exclusivamente. Na verdade, nunca houve, na
história humana, separação entre as duas coisas. A história fornece o quadro
material e a política molda as condições que permitem a ação.”
“Nas presentes circunstâncias, conforme já vimos, a
centralidade é ocupada pelo dinheiro, em suas formas mais agressivas, um
dinheiro em estado puro sustentado por uma informação ideológica, com a qual se
encontra em simbiose. Daí a brutal distorção do sentido da vida em todas as
suas dimensões, incluindo o trabalho e o lazer, e alcançando a valoração íntima
de cada pessoa e a própria constituição do espaço geográfico. Com a prevalência
do dinheiro em estado puro como motor primeiro e último das ações, o homem
acaba por ser considerado um elemento residual. Dessa forma, o território, o
Estado-nação e a solidariedade social também se tornam residuais.
A primazia do homem supõe que ele estará colocado
no centro das preocupações do mundo, como um dado filosófico e como uma inspiração
para as ações. Dessa forma, estarão assegurados o império da compaixão nas
relações interpessoais e o estímulo à solidariedade social, a ser exercida
entre indivíduos, entre o indivíduo e a sociedade e a vice-versa e entre a
sociedade e o Estado, reduzindo as fraturas sociais, impondo uma nova ética, e,
destarte, assentando bases sólidas para uma nova sociedade, uma nova economia,
um novo espaço geográfico. O ponto de partida para pensar alternativas seria,
então, a prática da vida e a existência de todos.
A nova paisagem social resultaria do abandono e da
superação do modelo atual e sua substituição por um outro, capaz de garantir
para o maior número a satisfação das necessidades essenciais a uma vida humana
digna, relegando a uma posição secundária necessidades fabricadas, impostas por
meio da publicidade e do consumo conspícuo. Assim o interesse social
suplantaria a atual precedência do interesse econômico e tanto levaria a uma
nova agenda de investimentos como a uma nova hierarquia nos gastos público,
empresariais e privados. Tal esquema conduziria, paralelamente, ao
estabelecimento de novas relações internacionais. Num mundo em que fosse
abolida a regra da competitividade como padrão essencial de relacionamento, a
vontade de ser potência não seria mais um norte para o comportamento dos
estados, e a ideia de mercado interno será uma preocupação central.
Agora, o que está sendo privilegiado são as
relações pontuais entre grandes atores, mas falta sentido ao que eles fazem.
Assim, a busca de um futuro diferente tem de passar pelo abandono das lógicas
infernais que, dentro dessa racionalidade viciada, fundamentam e presidem as
atuais práticas econômicas e políticas hegemônicas.”
“A combinação hegemônica de que resultam as formas
econômicas modernas atinge diferentemente os diversos países, as diversas
culturas, as diferentes áreas dentro de um mesmo país. A diversidade
sociogeográfica atual o exemplifica. Sua realidade revela um movimento
globalizador seletivo, com a maior parte da população do planeta sendo menos
diretamente atingida – e em certos casos pouco atingida – pela globalização
econômica vigente. Na Ásia, na África e mesmo na América Latina, a vida local
se manifesta ou mesmo tempo como uma resposta e uma reação a essa globalização.
Não podendo essas populações majoritárias consumir o Ocidente globalizado em
suas formas puras (financeira, econômica e cultural), as respectivas áreas
acabam por serem os lugares onde a globalização é relativizada ou recusada.
Uma coisa parece certa: as mudanças a serem
introduzidas, no sentido de alcançarmos uma outra globalização, não virão do
centro do sistema, como em outras fases de ruptura na margem de capitalismo. As
mudanças sairão dos países subdesenvolvidos.
É previsível que o sistemismo sobre o qual trabalha
a globalização atual erga-se como um obstáculo e torne difícil a manifestação
da vontade de desengajamento. Mas não impedirá que cada país elabore, a partir
de características próprias, modelos alternativos, nem tão pouco proibirá que
associações de tipo horizontal se deem entre países vizinhos igualmente
hegemonizados, atribuindo uma nova feição aos blocos regionais e ultrapassando
a etapa das relações meramente comerciais para alcançar um estágio mais elevado
de cooperação. Então, uma globalização constituída de baixo para cima, em que a
busca de classificação entre potências deixe de ser uma meta, poderá permitir
que preocupações de ordem social, cultural e moral possam prevalecer.”
“A globalização atual e as formas brutas que adotou
para impor mudanças levam à urgente necessidade de rever o que fazer com as
coisas, as ideias e também com as palavras. Qualquer que seja o debate, hoje,
reclama a explicitação clara e coerente dos seus termos, sem o que se pode
facilmente cair no vazio ou na ambiguidade. É o caso do próprio debate
nacional, exigente de novas definições e vocabulário renovado. Como sempre, o
país deve ser visto como uma situação estrutural em movimento, na qual cada
elemento está intimamente relacionado com os demais.
Agora, porém, no mundo da globalização, o
reconhecimento dessa estrutura é difícil, do mesmo modo que a visualização de
um projeto nacional pode tornar-se obscura. Talvez por isso, os projetos das
grandes empresas, impostos pela tirania das finanças e trombeteados pela mídia,
acabam, de um jeito ou de outro, guiando a evolução dos países, em acordo ou
não com as instâncias públicas frequentemente dóceis e subservientes, deixando
de lado o desenho de uma geopolítica própria a cada nação e que leve em conta
suas características e interesses.
Assim, as noções de destino nacional e de projeto
nacional cedem frequentemente a frente da cena a preocupações menores,
pragmáticas, imediatistas, inclusive porque, pelas razões já expostas, os
partidos políticos nacionais raramente apresentam plataformas conduzidas por
objetivos políticos e sociais claros e que exprimam visões de conjunto. A ideia
de história, sentido, destino é amesquinhada em nome da obtenção de metas
estatísticas, cuja única preocupação é o conformismo frente às determinações do
processo atual de globalização. Daí a produção sem contrapartida de
desequilíbrios e distorções estruturais, acarretando mais fragmentação e
desigualdade, tanto mais graves quanto mais abertos e obedientes se mostrem os
países.”
“Além das múltiplas formas com que, no período
histórico atual, o discurso da globalização serve de alicerce às ações
hegemônicas dos Estados, das empresas e das instituições internacionais, o
papel da ideologia na produção das coisas e o papel ideológico dos objetos que
nos rodeiam contribuem, juntos, para agravar essa sensação de que agora não há
outro futuro senão aquele que nos virá como um presente ampliado e não como
outra coisa. Daí a pesada onda de conformismo e inação que caracteriza nosso
tempo, contaminando os jovens e, até mesmo uma densa camada de intelectuais.
É muito difundida a ideia segundo a qual o processo
e a forma atuais da globalização seriam irreversíveis. Isso também tem a ver
com a força com a qual o fenômeno se revela e instala em todos os lugares e em
todas as esferas da vida, levando a pensar que não há alternativas para o
presente estado de coisas.
No entanto, essa visão repetitiva do mundo confunde
o que já foi realizado com as perspectivas de realização. Para exorcizar esse
risco, devemos considerar que o mundo é formado não apenas pelo que já existe
(aqui, ali, em toda parte), mas pelo que pode efetivamente existir (aqui, ali,
em toda parte). O mundo datado de hoje deve ser enxergado como o que na verdade
ele nos traz, isto é, somente, o conjunto presente de possibilidades reais,
concretas, todas factíveis sob determinadas condições.
O mundo definido pela literatura oficial do
pensamento único é, somente, o conjunto de formas particulares de realização de
apenas certo número dessas possibilidades. No entanto, um mundo verdadeiro se
definirá a partir da lista completa de possibilidades presentes em certa data e
que incluem não só o que já existe sobre a face da terra, como também o que
ainda não existe, mas é empiricamente factível. Tais possibilidades, ainda não
realizadas, já estão presentes como tendência ou como promessa de realização.
Por isso, situações como a que agora defrontamos parecem definitivas, mas não
são verdades eternas.
É somente a partir dessa constatação, fundada na
história real do nosso tempo, que se torna possível retornar, de maneira
concreta, a ideia de utopia e de projeto. Este será o resultado da conjugação
de dois tipos de valores. De um lado, estão os valores fundamentais,
essenciais, fundadores do homem, válidos em qualquer tempo e lugar, como a
liberdade, a dignidade, a felicidade; de outro lado, surgem os valores
contingentes, devidos à história do presente, isto é, à historia atual. A
densidade e a factibilidade histórica do projeto, hoje, dependem da maneira
como empreendamos sua combinação.
Por isso, é lícito dizer que o futuro são muitos; e
resultarão de arranjos diferentes, segundo nosso grau de consciência, entre o
reino das possibilidades e da vontade. É assim que iniciativas serão
articuladas e obstáculos serão superados, permitindo contrariar a força das
estruturas dominantes, sejam elas presentes ou herdadas. A identificação das
etapas e os ajustamentos a empreender durante o caminho dependerão da
necessária clareza do projeto.”
“Lembramos, também, que um dos elementos, ao mesmo
tempo ideológico e empiricamente existencial, da presente forma de globalização
é a centralidade do consumo, com a qual muito têm a ver a vida de todos os dias
e suas repercussões a produção, as formas presentes de existência e as
perspectivas das pessoas. Mas as atuais relações instáveis de trabalho, a expansão
de desemprego e a baixa do salário médio constituem um contraste em relação à
multiplicação dos objetos e serviços, cuja a acessibilidade se torna, desse
modo, improvável, ao mesmo tempo que até os consumos tradicionais acabam sendo
difíceis ou impossíveis para uma parcela importante da população. É como se o
feitiço virasse contra o feiticeiro.
Essa recriação da necessidade, dentro de um mundo
de coisas e serviços abundantes, atinge cada vez mais as classes médias, cuja
definição, agora, se renova, à media que passam a conhecer a experiência da
escassez. Esse é um dado relevante para compreender a mudança na visibilidade
da história que está processando. De tal modo, às visões oferecidas pela
propaganda ostensiva ou pela ideologia contida nos objetos e nos discursos
opõem-se as visões propiciadas pela existência. É por meio desse conjunto de
movimentos, que se reconhece uma saturação dos símbolos pré-construídos e que
os limites da tolerância às ideologias são ultrapassados, o que permite a ampliação
do campo da consciência. (...)
Vivemos em um mundo complexo, marcado na ordem
material pela multiplicação incessante do número de objetos e na ordem
imaterial pela infinidade de relações que aos objetos nos unem. Nos últimos
cinquenta anos criaram-se mais coisas do que nos cinquenta mil precedentes.
Nosso mundo é complexo e confuso ao mesmo tempo, graças à força com a qual a
ideologia penetra objetos e ações. Por isso mesmo, a era da globalização, mais
do que qualquer outra antes dela, é exigente de uma interpretação sistêmica
cuidadosa, de modo a permitir que cada coisa, natural ou artificial, seja
redefinida em relação com o todo planetário.”
“O mundo de hoje também autoriza uma outra
percepção da história por meio da contemplação da universalidade empírica
constituída com a emergência das novas técnicas planetarizadas e as
possibilidades aberta a seu uso. A dialética entre essa universalidade empírica
e as particularidades encorajará a superação das práxis invertidas, até agora
comandadas pela ideologia dominante, e a possibilidade de ultrapassar o reino
da necessidade, abrindo lugar para a utopia e para a esperança. Nas condições
históricas do presente, essa nova maneira de enxergar a globalização permitirá
distinguir, na totalidade, aquilo que já é dado e existe como um fato
consumado, e aquilo que é possível, mas ainda não realizado, vistos um e outro
de forma unitária. Lembremo-nos da lição de A. Schmidt quando dizia que “a
realidade é, além disso, tudo aquilo em que ainda não nos tornamos, ou seja,
tudo aquilo que a nós mesmos nos projetamos como seres humanos, por intermédio
dos mitos, das escolhas, das decisões e das lutas”. (...)
A crise por que passa hoje o sistema, em diferentes
países e continentes, põe à mostra não apenas a perversidade, mas também a
fraqueza da respectiva construção. Isso já está levando ao descrédito dos
discursos dominantes, mesmo que outro discurso, de crítica e de proposição,
ainda não haja sido elaborado de modo sistêmico.
O processo de tomada de consciência não é
homogêneo, nem segundo os lugares, nem segundo as classes sociais ou situações
profissionais, nem quanto aos indivíduos. A velocidade com que cada pessoa se
apropria da verdade contida na história é diferente, tanto quanto a
profundidade e coerência dessa apropriação. A descoberta individual é, já, um
considerável passo à frente, ainda que possa parecer ao seu portador um caminho
penoso, à medida das resistências circundantes a esse novo modo de pensar. O
passo seguinte é a obtenção de uma visão sistêmica, isto é, a possibilidade de
enxergar as situações e as causas atuantes como conjuntos e de localizá-los
como um todo, mostrando sua interdependência. A partir daí, a discussão
silenciosa consigo mesmo e o debate mais ou menos público com os demais ganham
uma nova clareza e densidade, permitindo enxergar as relações de causa e efeito
como uma corrente contínua, em que cada situação se inclui numa rede dinâmica,
estruturada, à escala do mundo e à escala dos lugares.
É a partir dessa visão sistêmica que se encontram,
interpenetram e completam as noções de mundo e de lugar, permitindo entender
como cada lugar, mas também cada coisa, cada pessoa, cada relação dependem do
mundo.”
“Tais raciocínios autorizam uma visão crítica da
história na qual vivemos, o que inclui uma apreciação filosófica da nossa
própria situação frente à comunidade, à nação, ao planeta, juntamente com uma
nova apreciação de nosso próprio papel como pessoa. É desse modo que, até mesmo
a partir da noção do que é ser um consumidor, poderemos alcançar a ideia de
homem integral e de cidadão. Essa valorização radical do indivíduo contribuirá
para a renovação qualitativa da espécie humana, servindo de alicerce a uma nova
civilização.
A reconstrução vertical do mundo, tal como a atual
globalização perversa está realizando, pretende impor a todos os países normas
comuns de existência e, se possível, ao mesmo tempo e rapidamente. Mas isto não
é definitivo. A evolução que estamos entrevendo terá sua aceleração em momentos
diferentes e em países diferentes, e será permitida pelo amadurecimento da
crise.
Esse mundo novo anunciado não será uma construção
de cima para baixo, como a que estamos hoje assistindo e deplorando, mas uma
edificação cuja trajetória vai se dar de baixo para cima.
As condições acima enumeradas deverão permitir a
implantação de um novo modelo econômico, social e político, que, a partir de
uma nova distribuição dos bens e serviços, conduza à realização de uma vida
coletiva solidária e, passando da escala do lugar à escala do planeta, assegure
uma reforma do mundo, por intermédio de outra maneira de realizar a
globalização.”
“As pretensões e a cobiça povoam e valorizam
territórios desertos.”
“Ousamos, desse modo, pensar que a história do
homem sobre a Terra dispõe afinal das condições objetivas, materiais e
intelectuais, para superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos técnicos e
enfrentar o começo de uma nova trajetória. Aqui, não se trata de estabelecer
datas, nem de fixar momentos da folhinha, marcos num calendário. Como o
relógio, a folhinha e o calendário são convencionais, repetitivos e
historicamente vazios. O que conta mesmo é o tempo das possibilidades
efetivamente criadas, o que, à sua época, cada geração encontra disponível,
isso a que chamamos tempo empírico,
cujas mudanças são marcadas pela irrupção de novos objetos, de novas ações e
relações e de novas ideias.”
Trechos interessantes.
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