Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-445-2
Tradução: Helena Pitta
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 592
Sinopse: Esta
premiadíssima e audaciosa obra do cubano Leonardo Padura, traduzida para vários
países (como Espanha, Cuba, Argentina, Portugal, França, Inglaterra e
Alemanha), é e não é uma ficção. A história é narrada, no ano de 2004, pelo
personagem Iván, um aspirante a escritor que atua como veterinário em Havana e,
a partir de um encontro enigmático com um homem que passeava com seus cães,
retoma os últimos anos da vida do revolucionário russo Leon Trotski, seu
assassinato e a história de seu algoz, o catalão Ramón Mercader, voluntário das
Brigadas Internacionais da Guerra Civil Espanhola e encarregado de executá-lo.
Esse ser obscuro, que Iván passa a denominar ‘o homem que
amava os cachorros’, confia a ele histórias sobre Mercader, um amigo bastante
próximo, de quem conhece detalhes íntimos. Diante das descobertas, o narrador
reconstrói a trajetória de Liev Davidovitch Bronstein, mais conhecido como
Trotski, teórico russo e comandante do Exército Vermelho durante a Revolução de
Outubro, exilado por Joseph Stalin após este assumir o controle do Partido
Comunista e da URSS, e a de Ramón Mercader, o homem que empunhou a picareta que
o matou, um personagem sem voz na história e que recebeu, como militante
comunista, uma única tarefa: eliminar Trotski. São descritas sua adesão ao
Partido Comunista espanhol, o treinamento em Moscou, a mudança de identidade e
os artifícios para ser aceito na intimidade do líder soviético, numa série de
revelações que preenchem uma história pouco conhecida e coberta, ao longo dos
anos, por inúmeras mistificações.
As duas trajetórias ganham sentido pleno quando Iván
projeta sobre elas sua própria experiência na Cuba moderna, seu desenvolvimento
intelectual e seu relacionamento com ‘o homem que amava os cachorros’. A
narrativa das histórias entrelaçadas dá o ritmo a uma leitura tensa,
influenciada pela experiência de Padura na literatura policial, sob a sombra do
final trágico que se aproxima a cada página. ‘Mesmo para quem não se interessa
pelos fatos históricos subjacentes à narrativa de Padura, seu romance impele o
leitor a uma tensão permanente em torno dos preparativos para a realização de
um crime de repercussões mundiais’, afirma Frei Betto na orelha do livro.
Ao narrar um dos crimes mais reveladores do século,
Padura realiza uma ambiciosa e fascinante investigação sobre as contradições
das utopias libertárias que moveram o século XX. Três processos mitológicos – a
Revolução Espanhola, a Revolução Russa e a Revolução Cubana – são vistos com
lupa neste romance, que combina perfeitamente o rigor histórico com o talento
ficcional. O autor retrata os conflitos no stalinismo e a luta entre o
socialismo e o fascismo, apresentando ainda uma perspectiva honesta da vida cubana
nas últimas três décadas. ‘Este romance é como um espelho retrovisor que
permite ao leitor mirar, com olhos críticos, as contradições do socialismo e
por que a morte de Trotski, decidida por Joseph Stalin, contribuiu para
favorecer a queda do Muro de Berlim e o desaparecimento da União Soviética’,
conclui Frei Betto.
“A dor e a miséria figuram entre aquelas
poucas coisas que, quando repartidas, tornam-se sempre maiores.”
“O ódio é uma doença incontrolável.”
“O olhar de Liev Davidovitch, no entanto,
tentava ver para lá dos edifícios, das igrejas pontiagudas, das mesquitas
arredondadas: tentava ver a si próprio naquela cidade (turca) onde não tinha um
único amigo, um único seguidor de confiança. E não se encontrou. Sentiu que, naquele
preciso instante, começava o seu exílio: verdadeiro, total, sem ter onde se
agarrar. Para além da família e de alguns poucos amigos que lhe tinham
reiterado a sua solidariedade, era um homem aflitivamente só. Seus únicos
aliados úteis numa luta que devia iniciar (como?, por onde?) continuavam
isolados em campos de trabalho ou já tinham claudicado, mas permaneciam todos
dentro das fronteiras da União Soviética, e a relação com eles ia se apagando
com a distância, a repressão e o medo.
Ao evocar aquela manhã de aspecto tão
agradável, Liev Davidovitch recordaria sempre da urgência que experimentara de
apertar a mão de Natália Sedova para sentir algum calor humano ao seu lado,
para não asfixiar de tanta angústia diante da sensação de abandono que o acossava.
Mas recordaria também que nesse momento tinha fortalecido a sua decisão de que,
embora só, o seu dever seria lutar. Se a Revolução pela qual tinha combatido se
prostituía na ditadura de um czar vestido de bolchevique, seria necessário
nesse caso arrancá-la com raiz e tudo e semeá-la de novo, porque o mundo
precisava de revoluções verdadeiras. Aquela decisão, estava ciente, o
aproximaria ainda mais da morte que já o vigiava das torres do Kremlin. A
morte, no entanto, podia ser considerada apenas uma contingência inevitável:
Liev Davidovitch sempre pensara que as vidas de um, de dez, de cem, de mil
homens podem e até devem ser devoradas se o turbilhão social assim o exigir
para atingir seus fins transformadores, pois o sacrifício individual é muitas
vezes a lenha que se queima na pira da revolução. Por isso lhe dava vontade de
rir quando certos jornais insistiam em mencionar a sua “tragédia pessoal”. De
que tragédia falavam?, escreveria. No processo sobre-humano da revolução não
tinha cabimento pensar em tragédias pessoais. Sua tragédia, quando muito, era
saber que para se lançar na luta não tinha à mão correligionários forjados no
forno da revolução, nem meios econômicos e muito menos um partido. Mas
restava-lhe aquela que sempre fora a sua melhor arma: a pena, a mesma que
difundira as suas ideias nas colaborações entregues ao Iskra e que, já no seu primeiro desterro, o conduzira ao coração da
luta, desde aquela noite de 1901 em que recebera a mensagem capaz de situar a
sua vida de lutador no vórtice da história; a pena fora convocada para a sede
do Iskra, em Londres, onde o esperava
Vladimir Ilitch Ulianov, já conhecido como Lenin.”
“O verdadeiro revolucionário começa a sê-lo
quando subordina sua ambição pessoal a um ideal. Os revolucionários podem ser cultos
ou ignorantes, inteligentes ou limitados, mas não podem existir sem vontade,
sem devoção, sem espírito de sacrifício.” (L. D. Trotski)
“Em Prínkipo, a presença de Trotski não
provocava sobressaltos, e essa evidência o fez compreender que, se seu nome
ainda gerava confusões na Europa, não se devia ao que ele pudesse originar mas
àquilo que seus inimigos exigiam que lhe fosse entregue em pagamento dos seus
atos: hostilidade, repressão, rejeição. O ódio de Stalin, transformado em razão
de Estado, tinha posto em marcha a mais potente engrenagem de marginalização
jamais dirigida contra um indivíduo solitário. Mais ainda, tinha se entronizado
como estratégia universal do comunismo, controlado a partir de Moscou, e até
como política editorial de dezenas de jornais. Por isso, engolindo os vestígios
do seu orgulho, teve de admitir que, enquanto no Kremlin não decidissem quando
a sua vida deixaria de ser útil, manteriam-no preso num ostracismo inflexível
justamente até se decretar a queda do pano e o fim da palhaçada. E, pela
primeira vez, atreveu-se a pensar em sua vida em termos de tragédia: a
clássica, a grega, sem oportunidade para apelações.”
“Olha, Ramón, entre as muitas coisas que você
tem de aprender estão a ter paciência e a saber que não se atacam os inimigos
quando estão de pé, mas quando estão de joelhos. E atacam-se sem piedade,
caralho!”
“A morte é tão definitiva e irreversível que
quase não deixa margem para outros temores.”
“Aquela jogada sórdida permitiu que Liev
Davidovitch percebesse uma coisa que lhe escapara durante os julgamentos
anteriores: Stalin também se propusera a transformar as poucas figuras do
passado que ainda o acompanhavam já não em comparsas submissos de suas
mentiras, mas em cúmplices diretos de sua fúria criminosa. Quem não fosse
vítima seria cúmplice e, mais ainda, carrasco. O terror e a repressão
estabeleciam-se como política de um governo que adotava a perseguição e a
mentira como recursos de Estado e estilo de vida para o conjunto da sociedade.”
“A primeira conclusão de Trotski foi que, de
acordo com o governo stalinista, todos os membros do bureau político que
levaram a revolução ao triunfo, que acompanharam Lenin nos dias mais difíceis
da guerra e da fome e colocaram o país em marcha, homens que sofreram a cadeia,
o desterro e inúmeras repressões, na realidade tinham sido desde sempre
traidores dos seus ideais e, mais ainda, agentes a serviço de potências
estrangeiras desejosas de destruir o que eles próprios tinham construído. Não
seria um paradoxo os líderes de Outubro, todos eles, acabarem sendo traidores?
Será que o traidor não era um só e se chamava Stalin?”
“Há várias semanas, um grupo de escritores e
ativistas políticos que se diziam próximos das posições do velho revolucionário
tinham se obstinado, no calor dos vinte anos de Outubro, em procurar os
defeitos do sistema bolchevique que proporcionaram a entronização do
stalinismo. Para isso, quiseram desenterrar, com particular insistência, a
repressão sangrenta da revolta dos marinheiros de Kronstadt e, invocando a
pureza da verdade histórica, decidiram tornar pública a responsabilidade do
exilado nos acontecimentos. O argumento mais utilizado fora de que aquela
repressão podia ser considerada o primeiro ato do “terror stalinista” inerente
ao bolchevismo no poder, e equiparavam a resposta militar e o fuzilamento de
reféns aos expurgos de Stalin. Devido à sua responsabilidade à frente do
exército, consideravam o então comissário da Guerra o progenitor daqueles
métodos de repressão e de terror.
Fora doloroso para Liev Davidovitch saber que
homens como Eastman, Victor Serge ou Souvarine sustentavam aquelas opiniões
acerca de uma responsabilidade que o acossava há anos, mas incomodava-o,
sobretudo, que tivessem retirado do seu contexto um motim militar, verificado
no tempo da guerra civil, e o tivessem colocado ao lado de processos fabricados
e fuzilamentos sumários de civis em tempos de paz.
Durante semanas, Liev Davidovitch se
embrenharia naquela disputa histórica. Para começar a rebatê-los, o exilado
teve de aceitar a responsabilidade que lhe correspondia como membro do
Politburo, por ter aprovado, ele também, a repressão daquela estranha
sublevação, mas recusou-se a aceitar a acusação de que ele pessoalmente
favorecera a repressão e incentivara a crueldade com que tinha se manifestado.
“Estou disposto a considerar que a guerra civil não é precisamente uma escola de
conduta humanitária e que, de um lado e de outro, se cometem excessos
imperdoáveis”, escreveu. “É verdade que em Kronstadt houve vítimas inocentes, e
o pior excesso foi o fuzilamento de um grupo de reféns. Mas, mesmo tendo
morrido inocentes, o que é inadmissível em qualquer tempo e lugar, e mesmo
tendo sido eu, como chefe do exército, o derradeiro responsável pelo que
aconteceu ali, não posso admitir uma equiparação entre o esmagamento de uma
rebelião armada contra um governo frágil e em guerra com 21 exércitos inimigos
e o assassinato frio e premeditado de camaradas cujo único crime foi pensar e,
quando muito, dizer que Stalin não era a única nem a melhor opção para a
revolução proletária.”
Mas Liev Davidovitch sabia que Kronstadt
ficaria eternamente marcado como um capítulo negro da Revolução e que ele
próprio, cheio de vergonha e de dor, carregaria para sempre essa culpa. Também
sabia que, se em Kronstadt os bolcheviques (e incluía-se a si próprio e a
Lenin) não tivessem reprimido sem piedade a rebelião, talvez tivessem aberto as
portas à restauração. Assim, simples, terrível e cruel, podem ser a revolução e
suas opções, pensou nessa altura e continuaria a pensar até o fim, sem que nada
o fizesse mudar de opinião.”
“A jogada de mestre da procuradoria era
acusar Iagoda de ter agido como um instrumento das agressões trotskistas. Em
consequência disso, durante os dez anos em que perseguira, prendera e torturara
os camaradas de Liev Davidovitch e confinara milhares de pessoas aos campos da
morte, seus excessos criminosos deviam-se a ordens contrarrevolucionárias
justamente de Trotski, e não a disposições de Stalin…
Sentindo como aquela agressão à verdade lhe
devolvia as forças, o exilado escreveu que Stalin, o Coveiro da Revolução,
conseguia superar toda a sua experiência anterior, além de ultrapassar os
receptáculos da credulidade mais militante. A irracionalidade das acusações era
tanta que lhe era quase impossível conceber um contra-ataque, embora
inicialmente tenha decidido responder usando a ironia: é tamanho o meu poder,
escreveu, que por ordens minhas, dadas a partir da França, da Noruega ou do
México, dezenas de funcionários e de embaixadores com quem nunca falei se
transformam em agentes de potências estrangeiras e me enviam dinheiro, muito
dinheiro, para apoiar minha organização terrorista; chefes de indústrias
tornam-se sabotadores; médicos respeitáveis dedicam-se a envenenar seus
pacientes. O único problema, comentaria, era aqueles homens terem sido
dirigentes escolhidos pelo próprio Stalin, pois há muitos anos ele não nomeava
ninguém na União Soviética.
As confissões inacreditáveis ouvidas durante
os dez dias que durou o processo e a forma como foram obrigados a humilhar-se
homens repletos de história como Bukharin e Rikov não surpreenderam Liev Davidovitch.
Mas provocou-lhe uma enorme tristeza, pelo contrário, ler as autoincriminações
de um lutador como o radical Rakovski (tão perto da morte que lhe fora
permitido prestar declarações sentado), que reconheceu ter se deixado levar
pelas aventureiras teorias trotskistas, apesar de Trotski ter lhe confessado em
1926 sua condição de agente britânico. A que extremos teriam chegado as
pressões para quebrar a dignidade de um homem que resistira a anos de
deportações e de prisão sem renunciar às suas convicções e que sabia, além
disso, estar no fim da vida? Será que algum deles acreditava que, com a sua
confissão, prestava um serviço à União Soviética, como eram obrigados a
repetir? Liev Davidovitch teve de reconhecer ser incapaz de compreender aquelas
exibições de submissão e covardia.
Um primeiro contratempo do processo revelou
as costuras da sua montagem. Foi protagonizado por Krestinski, que, durante uma
tarde inteira, se atreveu a afirmar que suas confissões, feitas à polícia
secreta, eram falsas e se declarou inocente de todas as acusações. Mas, na
manhã seguinte, quando subiu ao estrado, Krestinski admitiu serem verdadeiras
as acusações anteriores, além de mais algumas, certamente elaboradas a toda a
pressa. Com que argumentos teriam quebrado um homem já convencido de que ia ser
fuzilado? A nova GPU estava desenvolvendo métodos que apavorariam o mundo no
dia em que fossem conhecidos, métodos graças aos quais se verificou a revelação
mais espetacular do processo, quando Iagoda, depois de se declarar inocente e
de receber o mesmo tratamento que Krestinski, confessou ter preparado o
assassinato de Kirov por ordens de Rikov, uma vez que este invejava a ascensão
meteórica do jovem.
Mas a estrela do julgamento, como seria de se
esperar, foi Nicolai Bukharin, que, depois de um ano de estada nos porões da
Lubianka, parecia pronto para cometer o último ato de sua autodestruição
política e humana. Embora negasse ser responsável pelas atividades de
terrorismo e de espionagem mais assustadoras, Liev Davidovitch julgou compreender
que sua tática era aceitar o inaceitável com uma convicção e uma ênfase com que
pretendia demonstrar aos observadores mais perspicazes a falsidade da instrução
criminal. O velho revolucionário, no entanto, percebeu o erro de perspectiva
cometido por Bukharin ao tentar lançar um grito de alarme aos alarmados, para
quem (apesar do silêncio que mantinham) todas aquelas acusações seriam tão
pouco críveis como as dos julgamentos anteriores. Mas a grande massa, aquela
que em Moscou e no mundo seguia o decorrer dos processos, tinha tirado de suas
palavras uma única conclusão que validava as acusações e destruía a estratégia
do réu: Bukharin confessou, disseram, e isso era o mais importante. Fora para
acabar ajoelhado e choroso, admitindo crimes fictícios, que Bukharin preferira
voltar a Moscou?, Liev Davidovitch se perguntaria, recordando a carta dramática
que Fiodor Dan lhe remetera há três anos.
Parecia evidente a Liev Davidovitch que, nos
processos, Stalin exigia dos acusados, mais que uma verdade, a sua
autodestruição humana e política. Quando executara os condenados dos
julgamentos anteriores, obrigara-os a morrer com a consciência de que não só
tinham escarnecido de si próprios, como, além disso, tinham condenado muitos
inocentes. Por isso se admirava de que Bukharin, que sem dúvida aprendera a
lição dos bolcheviques que o antecederam naquela situação, conservasse a
esperança vã de salvar a vida. Numa das muitas cartas que escreveu a Stalin dos
porões da Lubianka e que o Coveiro se encarregava de fazer circular em algumas
esferas, Bukharin chegou a dizer-lhe que só sentia por ele, pelo Partido e pela
causa, um amor grandioso e infinito, e despedia-se abraçando-o em pensamentos…
Liev Davidovitch podia imaginar a satisfação de Stalin ao receber mensagens como
aquela, que o transformavam num dos poucos carrascos da história a obter a
veneração de suas vítimas enquanto as empurrava para a morte… Em 11 de março,
os autos tinham sido conclusos para a sentença. Quatro dias depois, os
condenados à morte foram executados, garantia o Pravda…
Desde que aquela encenação começou a ser
exibida, Liev Davidovitch manteve-se no seu quarto porque lhe era doloroso
tentar responder às perguntas que lhe colocavam jornalistas, correligionários,
secretários e guarda-costas, todos à procura de uma lógica existente para além
do ódio, da obsessão conspiratória e da insanidade criminosa do homem que
governava um sexto da Terra e a mente de milhões de pessoas em todo o mundo.
Liev Davidovitch sabia que o único objetivo possível de Stalin nesses processos
era desacreditar e eliminar adversários reais e potenciais e transferir para
eles as culpas por cada um de seus fracassos. O que lhes escapava era aquele
descrédito ser dirigido para o interior da sociedade soviética, que, numa porcentagem
sem dúvida notável, devia acreditar em tudo o que era divulgado, por mais
difícil que fosse sua assimilação. Outro grande objetivo era tornar o medo
extensivo e onipresente, sobretudo o medo dos que tinham alguma coisa a perder.
Por isso os primeiros destinatários daqueles expurgos tinham sido, na
realidade, os burocratas: seguindo essa estratégia, Stalin atingia dezenas dos
seus acólitos, incluindo vários membros do Politburo e secretários do Partido
nas repúblicas, stalinistas que, de um dia para o outro, tinham sido
qualificados como traidores, espiões ou ineptos. Se os oposicionistas de outros
tempos foram desonrados publicamente, os stalinistas, pelo contrário,
costumavam ser destruídos em silêncio, sem processos abertos, da mesma forma
que tinham sido dizimados os comunistas de diversos países refugiados na União
Soviética, contra quem Stalin, depois de usá-los, parecia ter se encarniçado.
O mais preocupante era saber que aquelas
limpezas tinham afetado toda a sociedade soviética. Como era de se esperar, num
Estado de terror vertical e horizontal, a participação das massas na depuração
contribuíra para sua difusão geométrica, porque não era possível desencadear
uma caçada como aquela que se vivia na União Soviética sem exacerbar os
instintos mais baixos das pessoas e, sobretudo, sem que cada uma delas sofresse
do terror de cair em suas redes, por qualquer motivo que fosse – ou mesmo sem
motivos. O terror gerara o efeito de estimular a inveja e a vingança, além de
ter criado um ambiente de histeria coletiva e, pior ainda, de indiferença pelo
destino dos outros. A depuração alimentava-se de si própria e, uma vez
desencadeada, libertava forças infernais que a obrigavam a seguir em frente e a
crescer…
Semanas antes, Liev Davidovitch constatara
dramaticamente o horror vivido por seus compatriotas quando uma velha amiga,
fugida milagrosamente para a Finlândia, lhe escrevera: “É terrível verificar
que um sistema nascido para resgatar a dignidade humana tenha recorrido à
recompensa, à glorificação, ao estímulo da denúncia, e que se apoie em tudo o
que é humanamente vil. A náusea sobe-me pela garganta quando ouço as pessoas
dizerem: fuzilaram M., fuzilaram P., fuzilaram, fuzilaram, fuzilaram. As
palavras, de tanto as ouvirmos, perdem seu sentido. As pessoas repetem-nas com
a maior tranquilidade, como se estivessem dizendo: vamos ao teatro. Eu, que
vivi esses anos no medo e senti a compulsão de denunciar (confesso com pavor,
mas sem sentimento de culpa), deixei de sentir na minha mente a brutalidade
semântica do verbo fuzilar… Sinto que chegamos ao fim da justiça na Terra, ao
limite da indignidade humana. Que morreram demasiadas pessoas em nome daquela
que, prometeram-nos, seria uma sociedade melhor”…”
“Para a arte, a liberdade é sagrada, é a sua
única salvação. Para a arte, tudo tem de ser tudo”. (Trotski)
“Para indignação de poucos e para confirmação
popular de suas boas intenções, o Grande Capitão tinha criticado os executores
do expurgo, que fora acompanhado, as palavras eram suas, de “mais erros que os
esperados”. Nesse caso, tudo teria corrido bem se só tivessem sido cometidos os
erros esperados? Quantas pessoas podiam ser fuziladas por engano?
Na realidade, a mais dramática das certezas
históricas que o Congresso revelara foi a de que o secretário-geral tinha
chegado finalmente aonde desejava em sua ascensão ao céu do poder. O terror
daqueles últimos anos tinha lhe permitido tirar de cena, de uma maneira ou de
outra, dezoito dos vinte e sete membros do Politburo eleitos no último
congresso presidido por Lenin, e poupar a cabeça de apenas um quinto dos
membros do Comitê Central eleitos em 1934, quando a situação, pela última vez,
esteve prestes a fugir-lhe das mãos. Stalin tinha demonstrado ser um verdadeiro
gênio da trapaça: sua bem-sucedida eliminação de qualquer oposição no interior
do Partido (apoiando-se no acordo sobre a ilegalidade das facções promovido por
Lenin) transformou-se em sua arma política mais eficaz para acabar com a
democracia e, mais tarde, instaurar o terror e levar a cabo os expurgos que lhe
deram o poder absoluto. Talvez o primeiro erro do bolchevismo, deve ter pensado
Liev Davidovitch, tenha sido a eliminação radical das tendências políticas que
se lhe opunham. Quando essa política passou do exterior da sociedade para o
interior do Partido, começou o fim da utopia. Se a liberdade de expressão fosse
permitida na sociedade e dentro do Partido, o terror não teria conseguido se
implantar. Por isso Stalin empreendera a depuração política e intelectual, para
que ficasse tudo sob a alçada de um Estado devorado pelo Partido, de um Partido
devorado pelo secretário-geral. Exatamente como Liev Davidovitch, antes da
abortada revolução de 1905, disse a Lenin que aconteceria.”
“O que mais o encorajava Trotski a dedicar-se
à escrita daquela desoladora biografia de Stalin, era a convicção de que, tal
como acontecera ao também deificado Nero, depois de sua morte as estátuas de
Stalin seriam derrubadas e seu nome apagado de toda a parte, porque a vingança
da história costuma ser mais terrível do que a do mais poderoso imperador que
alguma vez existiu.”
“Minha fama de boa pessoa, mais que a de
veterinário eficiente, espalhou-se pela zona e as pessoas iam me ver com
animais tão magros como elas (conseguem imaginar uma serpente magra?) e, por absurdo
que pareça naqueles dias de escuridão, ofereciam-me medicamentos, linha para
suturas, ataduras que por alguma razão haviam sobrado, numa prática fervorosa
da solidariedade entre os fodidos, que é a única verdadeira.”
“Embora ainda não tivesse começado a
acompanhar Ana à igreja, Dany, Frank e os outros poucos amigos que via diziam
que eu parecia estar trabalhando para minha candidatura à beatificação e minha
ascensão incorpórea aos céus. A verdade era que, lendo e escrevendo sobre como
a maior utopia que alguma vez os homens tiveram ao alcance da mão fora
pervertida, mergulhando nas catacumbas de uma história que mais parecia um
castigo divino que obra de homens ébrios de poder, de ânsias de controle e de
pretensões de transcendência histórica, tinha aprendido que a verdadeira
grandeza humana está na prática da bondade incondicional, na capacidade de dar
aos que nada têm não o que nos sobra, mas uma parte do pouco que temos. Dar até
doer, e não fazer política nem pretender prerrogativas com essa ação, muito
menos praticar a enganosa filosofia de obrigar os outros a aceitar nossos
conceitos do bem e da verdade por (acreditarmos) serem os únicos possíveis e
por, além disso, deverem estar agradecidos pelo que lhes demos, mesmo que não o
tivessem pedido. E, embora soubesse que a minha cosmogonia era de todo
impraticável (e que merda fazemos com a economia, com o dinheiro, com a
propriedade, para que tudo isso funcione? e que porra fazemos com os espíritos
predestinados e com os filhos da puta de nascença?), satisfazia-me pensar que
talvez um dia o ser humano pudesse cultivar essa filosofia, que me parecia tão
elementar, sem sofrer as dores de um parto ou os traumas da obrigatoriedade,
por pura e livre escolha, por necessidade ética de ser solidário e democrático.
Masturbações mentais minhas…”
“Com aquele impulso, que ele sabia ser um
epílogo, Trotski pôs-se a dar forma às suas últimas vontades. “Durante 43 anos
da minha vida consciente fui um revolucionário”, escreveu, “e durante 42 lutei
sob a bandeira do marxismo. Se tivesse de começar outra vez, tentaria evitar
este ou aquele erro, mas o decurso geral da minha vida permaneceria inalterado.
Morrerei sendo um revolucionário proletário, um marxista, um materialista
dialético e um ateu irreconciliável. Minha fé no futuro comunista da humanidade
não é hoje menos ardente (antes, mais firme) do que era nos dias de minha
juventude. (...) A vida é bela, os sentidos celebram sua festa… Que as gerações
futuras limpem a vida de todo o mal, de toda a opressão e violência, e
desfrutem dela com plenitude”.”
“Ramón decidira desde o princípio, mesmo
quando estava convencido de que Roquelia tinha sido enviada por seus chefes
distantes, manter a mulher à margem dos pormenores mais profundos de sua
relação com o mundo das trevas, porque, no meio dos ímpios de sempre, não saber
é a melhor maneira de estar protegido.”
“– Compreende agora que somos uns empestados?
Você consegue se dar conta de que somos o que Stalin criou de pior e, por isso,
ninguém nos quer, nem aqui na União Soviética depois de sua morte, nem no
Ocidente? Que, quando aceitamos a missão mais honrosa, estávamos nos condenando
para sempre, porque íamos executar uma vingança que o cérebro enfermo de Stalin
julgava necessária para conservar o poder?
– Stalin não era um doente. Nenhum doente
governa meio mundo durante trinta anos. Vocês mesmos diziam: Stalin sabe o que
faz…
– É verdade. Mas uma parte dele estava
doente. Dizem que matou cerca de 20 milhões de pessoas. Um milhão pode ter sido
por necessidade, os outros 19 milhões foram por doença, eu digo… Mas já lhe
disse que Stalin não era o único doente.”
“Stalin, pare de enviar assassinos para me
liquidarem. Já apanhamos cinco. Se não parar com isso, eu enviarei pessoalmente
um homem a Moscou, e não haverá necessidade de mandar outro.” (Marechal Tito,
em carta datada de 1950 encontrada nos arquivos pessoais de Stalin)
“Pensou que o fato de ter acreditado e lutado pela maior utopia jamais concebida implicava doses necessárias de sacrifícios. Ele, Ramón Mercader, tinha sido um dos arrastados pelos rios subterrâneos daquela luta desproporcional, e não valia a pena esquivar-se de responsabilidades nem tentar atribuir suas culpas a enganos e manipulações: ele encarnava um dos frutos podres que apareciam mesmo nas melhores colheitas e, ainda que fosse verdade que outros lhe tinham aberto as portas, ele atravessara, satisfeito, o umbral do inferno, convencido de que deveria existir a morada das trevas para que houvesse um mundo de luz.”
Muito bom o trecho: "A verdade era que, lendo e escrevendo sobre como a maior utopia que alguma vez os homens tiveram ao alcance da mão fora pervertida, mergulhando nas catacumbas de uma história que mais parecia um castigo divino que obra de homens ébrios de poder, de ânsias de controle e de pretensões de transcendência histórica, tinha aprendido que a verdadeira grandeza humana está na prática da bondade incondicional, na capacidade de dar aos que nada têm não o que nos sobra, mas uma parte do pouco que temos. Dar até doer, e não fazer política nem pretender prerrogativas com essa ação, muito menos praticar a enganosa filosofia de obrigar os outros a aceitar nossos conceitos do bem e da verdade por (acreditarmos) serem os únicos possíveis e por, além disso, deverem estar agradecidos pelo que lhes demos, mesmo que não o tivessem pedido. E, embora soubesse que a minha cosmogonia era de todo impraticável (e que merda fazemos com a economia, com o dinheiro, com a propriedade, para que tudo isso funcione? e que porra fazemos com os espíritos predestinados e com os filhos da puta de nascença?), satisfazia-me pensar que talvez um dia o ser humano pudesse cultivar essa filosofia, que me parecia tão elementar, sem sofrer as dores de um parto ou os traumas da obrigatoriedade, por pura e livre escolha, por necessidade ética de ser solidário e democrático. Masturbações mentais minhas…”
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