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quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Formação do Brasil Contemporâneo (Parte I) – Caio Prado Jr.

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-3591-962-2
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 464
Sinopse: Em Formação do Brasil contemporâneo, Caio Prado Jr. volta ao passado colonial da sociedade brasileira para entender os impasses do presente, e acaba por concluir que aquele permanecia vivo em alguns de seus traços fundamentais. A formação da nação é interpretada como parte do sistema colonial, modo de pertencimento ao capitalismo mercantil que teria conferido unidade, ainda que problemática, à vida social que veio se formando desde a colônia.
O autor afirma que o processo de colonização acabou por permitir que se esboçasse no Brasil uma nacionalidade diferente daquela de modelo europeu, e até relativamente nova em termos sociais e culturais, sem que isso significasse autonomia para a sociedade nascente, mesmo depois da independência política.
Apresentando nossa formação em longa duração e como parte de um todo maior, a abordagem historiográfica inovadora de Formação do Brasil contemporâneo conferiu ao livro o posto de um dos poucos clássicos incontestes da historiografia brasileira no século XX.



“Em suma e no essencial, todos os grandes acontecimentos desta era, que se convencionou com razão chamar dos “descobrimentos”, articulam-se num conjunto que não é senão um capítulo da história do comércio europeu. Tudo que se passa são incidentes da imensa empresa comercial a que se dedicam os países da Europa a partir do século XV, e que lhes alargará o horizonte pelo oceano afora. Não têm outro caráter a exploração da costa africana e o descobrimento e colonização das ilhas pelos portugueses, o roteiro das Índias, o descobrimento da América, a exploração e ocupação de seus vários setores. É esse último o capítulo que mais nos interessa aqui; mas não será, em sua essência, diferente dos outros. É sempre como traficantes que os vários povos da Europa abordarão cada uma daquelas empresas que lhes proporcionarão sua iniciativa, seus esforços, o acaso e as circunstâncias do momento em que se achavam. Os portugueses traficarão na costa africana com marfim, ouro, escravos; na Índia irão buscar especiarias. Para concorrer com eles, os espanhóis, seguidos de perto pelos ingleses, franceses e demais, procurarão outro caminho para o Oriente; a América, com que toparam nessa pesquisa, não foi para eles, a princípio, senão um obstáculo oposto à realização de seus planos e que devia ser contornado. Todos os esforços se orientam então no sentido de encontrar uma passagem, cuja existência se admitiu a priori.
Tudo isso lança muita luz sobre o espírito com que os povos da Europa abordam a América. A ideia de povoar não ocorre inicialmente a nenhum. É o comércio que os interessa, e daí o relativo desprezo por este território primitivo e vazio que é a América; e inversamente, o prestígio do Oriente, onde não faltava objeto para atividades mercantis. A ideia de ocupar, não como se fizera até então em terras estranhas, apenas como agentes comerciais, funcionários e militares para a defesa, organizados em simples feitorias destinadas a mercadejar com os nativos e servir de articulação entre as rotas marítimas e os territórios ocupados; mas ocupar com povoamento efetivo, isso só surgiu como contingência, necessidade imposta por circunstâncias novas e imprevistas. Aliás, nenhum povo da Europa estava em condições naquele momento de suportar sangrias na sua população, que no século XVI ainda não se refizera de todo das tremendas devastações da peste que assolou o continente nos dois séculos precedentes. Na falta de censos precisos, as melhores probabilidades indicam que em 1500 a população da Europa ocidental não ultrapassava a do milênio anterior.
Nessas condições, “colonização” ainda era entendida como aquilo que dantes se praticava; fala-se em colonização, mas o que o termo envolve não é mais que o estabelecimento de feitorias comerciais, como os italianos vinham de longa data praticando no Mediterrâneo, a Liga Hanseática no Báltico, mais recentemente os ingleses, holandeses e outros no extremo Norte da Europa e no Levante; como os portugueses fizeram na África e na Índia. Na América a situação se apresenta de forma inteiramente diversa: um território primitivo habitado por rala população indígena incapaz de fornecer qualquer coisa de realmente aproveitável. Para os fins mercantis que se tinham em vista, a ocupação não se podia fazer como nas simples feitorias, com um reduzido pessoal incumbido apenas do negócio, sua administração e defesa armada; era preciso ampliar essas bases, criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que se fundassem e organizar a produção dos gêneros que interessassem ao seu comércio. A ideia de povoar surge daí, e só daí.”


“É a situação interna da Europa, em particular da Inglaterra, as suas lutas político-religiosas, que desviam para a América as atenções de populações que não se sentem à vontade e vão procurar ali abrigo e paz para suas convicções. Isso durará muito tempo; pode-se mesmo assimilar o fato, idêntico no fundo, a um processo que se prolongará, embora com intensidade variável, até os tempos modernos, o século passado. Virão para a América puritanos e quacres da Inglaterra, huguenotes da França, mais tarde moráviosschwenkfelders, inspiracionalistas e menonitas da Alemanha meridional e Suíça. Durante mais de dois séculos despejar-se-á na América todo resíduo das lutas político-religiosas da Europa. É certo que se espalhará por todas as colônias; até no Brasil, tão afastado e por isso tanto mais ignorado, procurarão refugiar-se huguenotes franceses (França Antártica, no Rio de Janeiro). Mas se concentrará quase inteiramente nas da zona temperada, de condições naturais mais afins às da Europa, e por isso preferida para quem não buscava “fazer a América”, mas unicamente abrigar-se dos vendavais políticos que varriam a Europa, e reconstruir um lar desfeito ou ameaçado.
São assim circunstâncias especiais, que não têm relação direta com ambições de traficantes ou aventureiros, que promoverão a ocupação intensiva e o povoamento em larga escala da zona temperada da América. Circunstâncias, aliás, que surgem posteriormente ao descobrimento do novo continente, e que não se filiam à ordem geral e primitiva de acontecimentos que impelem os povos da Europa para o ultramar. Daí derivará um novo tipo de colonização — será o único em que os portugueses não serão os pioneiros —, que tomará um caráter inteiramente apartado dos objetivos comerciais até então dominantes neste gênero de empresas. O que os colonos dessa categoria têm em vista é construir um novo mundo, uma sociedade que lhes ofereça garantias que no continente de origem já não lhes são mais dadas. Seja por motivos religiosos ou meramente econômicos (esses impulsos, aliás, se entrelaçam e sobrepõem), a sua subsistência se tornara lá impossível ou muito difícil. Procuram então uma terra ao abrigo das agitações e transformações da Europa, de que são vítimas, para refazerem nela sua existência ameaçada. O que resultará desse povoamento, realizado com tal espírito e num meio físico muito aproximado do da Europa, será naturalmente uma sociedade que, embora com caracteres próprios, terá semelhança pronunciada à do continente de onde se origina. Será pouco mais que simples prolongamento dele.
Muito diversa é a história da área tropical e subtropical da América. Aqui a ocupação e o povoamento tomarão outro rumo. Em primeiro lugar, as condições naturais, tão diferentes do habitat de origem dos povos colonizadores, repelem o colono que vem como simples povoador, da categoria daquele que procura a zona temperada. (...) São trópicos brutos e indevassados que se apresentam, uma natureza hostil e amesquinhadora do homem, semeada de obstáculos imprevisíveis sem conta para que o colono europeu não estava preparado e contra que não contava com nenhuma defesa. Aliás, a dificuldade do estabelecimento de europeus civilizados nestas terras americanas, entregues ainda ao livre jogo da natureza, é comum também à zona temperada. (...)
A diversidade de condições naturais, em comparação com a Europa, que acabamos de ver como um empecilho ao povoamento, se revelaria por outro lado um forte estímulo. É que tais condições proporcionarão aos países da Europa a possibilidade da obtenção de gêneros que lá fazem falta. E gêneros de particular atrativo. Coloquemo-nos naquela Europa anterior ao século XVI, isolada dos trópicos, só indireta e longinquamente acessíveis, e imaginemo-la, como de fato estava, privada quase inteiramente de produtos que, se hoje, pela sua banalidade, parecem secundários, eram então prezados como requintes de luxo. Tome-se o caso do açúcar, que embora se cultivasse em pequena escala na Sicília era artigo de grande raridade e muita procura; até nos enxovais de rainhas ele chegou a figurar como dote precioso e altamente prezado. A pimenta, importada do Oriente, constituiu durante séculos o principal ramo do comércio das repúblicas mercadoras italianas, e a grande e árdua rota das Índias não serviu muito tempo para outra coisa mais que abastecer dela a Europa. O tabaco, originário da América e por isso ignorado antes do descobrimento, não teria, depois de conhecido, menor importância. E não será este também, mais tarde, o caso do anil, do arroz, do algodão e de tantos outros gêneros tropicais?
Isso nos dá a medida do que representariam os trópicos como atrativo para a fria Europa, situada tão longe deles. A América lhe poria à disposição, em tratos imensos, territórios que só esperavam a iniciativa e o esforço do homem. É isso que estimulará a ocupação dos trópicos americanos. Mas trazendo esse agudo interesse, o colono europeu não traria com ele a disposição de pôr-lhe a serviço, neste meio tão difícil e estranho, a energia do seu trabalho físico. Viria como dirigente da produção de gêneros de grande valor comercial, como empresário de um negócio rendoso; mas só a contragosto como trabalhador. Outros trabalhariam para ele.”


“Nas demais colônias tropicais, inclusive o Brasil, não se chegou nem a ensaiar o trabalhador branco. Isso porque nem na Espanha, nem em Portugal, a que pertencia a maioria delas, havia, como na Inglaterra, braços disponíveis, e dispostos a emigrar a qualquer preço. Em Portugal, a população era tão insuficiente que a maior parte do território se achava ainda, em meados do século XVI, inculta e abandonada; faltavam braços por toda parte, e empregava-se em escala crescente mão de obra escrava, primeiro dos mouros, tanto dos que tinham sobrado da antiga dominação árabe como dos aprisionados nas guerras que Portugal levou desde princípios do século XV para seus domínios do norte da África; como depois, de negros africanos, que começam a afluir para o reino desde meados daquele século. Lá por volta de 1550, cerca de 10% da população de Lisboa era constituída de escravos negros. Nada havia portanto que provocasse no reino um êxodo da população; e é sabido como as expedições do Oriente depauperaram o país, datando de então, e atribuível em grande parte a essa causa, a precoce decadência lusitana.”


“Como se vê, as colônias tropicais tomaram um rumo inteiramente diverso do de suas irmãs da zona temperada. Enquanto nestas se constituirão colônias propriamente de povoamento (o nome ficou consagrado depois do trabalho clássico de Leroy-Beaulieu, De la colonisation chez les peuples modernes), escoadouro para excessos demográficos da Europa que reconstituem no Novo Mundo uma organização e uma sociedade à semelhança do seu modelo e origem europeus, nos trópicos, pelo contrário, surgirá um tipo de sociedade inteiramente original. Não será a simples feitoria comercial, que já vimos irrealizável na América. Mas conservará no entanto um acentuado caráter mercantil; será a empresa do colono branco, que reúne à natureza, pródiga em recursos aproveitáveis para a produção de gêneros de grande valor comercial, o trabalho recrutado entre raças inferiores que domina: indígenas ou negros africanos importados. Há um ajustamento entre os tradicionais objetivos mercantis que assinalam o início da expansão ultramarina da Europa, e que são conservados, e as novas condições em que se realizará a empresa. Aqueles objetivos, que vemos passar para o segundo plano nas colônias temperadas, se manterão aqui, e marcarão profundamente a feição das colônias do nosso tipo, ditando-lhes o destino. No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É esse o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos americanos. (...)
Mas um tal caráter mais estável, permanente, orgânico, de uma sociedade própria e definida, só se revelará aos poucos, dominado e abafado que é pelo que o precede, e que continuará mantendo a primazia e ditando os traços essenciais da nossa evolução colonial. Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isso. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. Virá o branco europeu para especular, realizar um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará a mão de obra de que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora, industrial, se constituirá a colônia brasileira. Esse início, cujo caráter se manterá dominante através dos três séculos que vão até o momento em que ora abordamos a história brasileira, se gravará profunda e totalmente nas feições e na vida do país. Haverá resultantes secundárias que tendem para algo de mais elevado; mas elas ainda mal se fazem notar. O sentido da evolução brasileira, que é o que estamos aqui indagando, ainda se afirma por aquele caráter inicial da colonização.”


“Vários fatores determinaram a dispersão do povoamento (no território brasileiro). O primeiro é a extensão da costa que coube a Portugal na partilha de Tordesilhas, o que obrigou, para uma ocupação e defesa eficientes, encetar a colonização simultaneamente em vários pontos dela. Foi tal o objetivo da divisão do território em capitanias, o que de fato, apesar do fracasso do sistema, permitiu garantir à Coroa portuguesa a posse efetiva do longo litoral.
Concorrem em seguida, para a expansão interior, dois fatores essenciais: o bandeirismo preador de índios e prospector de metais e pedras preciosas, que abriu caminho, explorou a terra e repeliu as vanguardas da colonização espanhola concorrente; mais tarde, a exploração das minas, descobertas sucessivamente a partir dos últimos anos do século XVII, e que fixou núcleos estáveis e definitivos no coração do continente (Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso). No extremo Norte, na bacia amazônica, intervém outro fator, de caráter local: são as missões católicas catequizadoras do gentio, sobretudo os padres da Companhia de Jesus; seguidas de perto pela colonização leiga, provocada e animada pela política da metrópole, tão ativa neste setor, e sustentada pela exploração dos produtos naturais da floresta amazônica: o cacau, a salsaparrilha e outros.
Um outro fator, também local, atua no sertão do Nordeste, nesta hinterlândia dos maiores centros agrícolas do litoral da colônia, Bahia e Pernambuco, consumidores de carne que viria dos rebanhos que avançam por aquele sertão e o vão ocupando.
Todos esses fatores são condicionados, em grande parte, por outro negativo, que é a inércia castelhana. Fixaram-se os espanhóis, sobretudo, nos altiplanos andinos, onde a presença dos metais preciosos, mola mestra da sua colonização, bem como de populações indígenas densas, sedentárias e aptas para o fornecimento de mão de obra abundante e fácil — circunstâncias essas que não ocorreram no litoral do Atlântico, ocupado pelos portugueses —, escusaram aventuras exploradoras e internação pelo coração do continente. Os obstáculos físicos também não são de desprezar: o interior do continente sul-americano abre-se para o Atlântico; não para o Pacífico, de que o separam o grande acidente dos Andes e a densa floresta intransponível que reveste as fraldas orientais da cordilheira. A colonização portuguesa não encontrou por isso pela frente, de castelhano, senão os inermes jesuítas e suas reduções indígenas. Os padres, que procuravam outra coisa que riquezas minerais, tinham-se adiantado a seus compatriotas espanhóis; deixando aos colonos as minas do planalto andino e sua densa população indígena, a matéria-prima e o trabalho que aqueles queriam, foram se estabelecer lá onde não chegava a cobiça do conquistador e onde esperavam não ser perturbados na sua conquista espiritual, prelúdio do domínio temporal a que aspiravam; e vão se fixar na vertente oriental e baixada subjacente dos Andes. Daí essa linha ininterrupta de missões jesuíticas espanholas, estabelecidas no correr dos séculos XVI e XVII, e que se traça de sul a norte, do Prata ao Amazonas, pelo interior do continente: missões do Uruguai, do Paraguai; a efêmera Guaíra; dos Chiquitos e dos Moxos, na Bolívia; missões do padre Samuel Fritz no Alto Amazonas.
Não contavam os jesuítas com este outro adversário que lhes viria pelo oriente: os portugueses. E fracamente apoiados pelo seu rei, abandonados às suas próprias forças no mais das vezes, achando mesmo no soberano de sua pátria terrena um adversário que faz causa comum com seus inimigos — como se deu na execução do tratado de 1750, em que as forças castelhanas se unem às portuguesas para arrancar-lhes os Sete Povos do Uruguai —, os missionários são repelidos e fracassa o seu plano grandioso. Não seria deles o interior do continente sul-americano, como quiseram num belo sonho que durou dois séculos; mas não seria também, na sua maior parte, de seus legítimos senhores, os espanhóis. Caberia aos conquistadores e ocupantes efetivos dele, os portugueses e seus sucessores brasileiros, tão avantajados pela geografia.
Fixou-se assim, e, como vimos, desde meados do século XVIII, o território que constituiria o Brasil.”


“Saint-Hilaire, viajando pelo Brasil em princípio do século passado, notará, com a acuidade da sua visão, a extrema mobilidade da população brasileira. A preocupação dominante das zonas novas já existia então: emigrava-se às vezes por nada, e com simples e vagas esperanças de outras perspectivas. Todo mundo imaginava sempre que havia um ponto qualquer em que se estaria melhor que no presente. Pensamento arraigado e universal que nada destruía, nem experiências e fracassos sucessivos. Isso que impressionava o viajante francês, habituado a um continente em que havia séculos o povoamento se estabilizara, é a feição natural de todo território semivirgem da presença humana, onde a maior parte da área ainda está por ocupar e onde as formas de atividade mais convenientes para o homem ainda não foram encontradas; onde, numa palavra, o indivíduo não se ajustou bem a seu meio, compreendendo-o e o dominando. Os deslocamentos correspondem aí a ensaios, tentativas, novas experiências, a procura incansável do melhor sistema de vida. No Brasil, esse fato é particularmente sensível pelo caráter que tomara a colonização, aproveitamento aleatório em cada um de seus momentos, como veremos ao analisar a nossa economia, de uma conjuntura passageiramente favorável. Cultiva-se a cana como se extrai o ouro, como mais tarde se plantará algodão ou café: simples oportunidade do momento, com vistas para um mercado exterior e longínquo, um comércio instável e precário sempre. A colonização não se orienta no sentido de constituir uma base econômica sólida e orgânica, isto é, a exploração racional e coerente dos recursos do território para a satisfação das necessidades materiais da população que nela habita. Daí a sua instabilidade, com seus reflexos no povoamento, determinando nele uma mobilidade superior ainda à normal dos países novos.”


“O índio foi o problema mais complexo que a colonização teve de enfrentar. Tornou-se tal — e é nisso que se distingue do caso norte-americano tão citado em paralelo com o nosso — pelo objetivo que se teve em vista: aproveitar o indígena na obra da colonização. Nos atuais Estados Unidos, como no Canadá, a situação é outra. Lá nunca se pensou em incorporar o índio, fosse a que título, na obra colonizadora do branco; as tentativas de aproveitamento do trabalho indígena não passaram aí de ensaios logo abandonados. E afora o comércio de peles, fornecidas por eles em troca de mercadorias europeias, para nada mais utilizaram-nos os colonos. Ou antes, eles tiveram um papel, mas de aliados de um ou outro partido, nas lutas que franceses e ingleses sustentaram entre si durante dois séculos nas colônias setentrionais da América. Daí o empenho em atrair as simpatias dos nativos, os processos em princípio amigáveis de que tanto franceses como ingleses lançaram mão no seu trato. Processos que chegaram a despertar a atenção da administração portuguesa, que, sem atender à diferença de situações, os recomendava como exemplo aos seus delegados no Brasil. Mas aquelas relações entre colonos e índios nunca foram além de uma simples aliança de igual para igual; não se tratava em absoluto de incorporar os indígenas na colonização. Tanto que mais tarde, quando eliminados os franceses, os ingleses ou seus sucessores norte-americanos ficaram sós em campo, o problema do índio ficou reduzido simplesmente ao da expulsão deles de territórios necessários à expansão colonizadora (note-se que até hoje, como sempre foi no passado, as relações com os índios são nos Estados Unidos de poder soberano para poder soberano, e são fixadas em tratados. Daí aliás a competência do governo federal para tratar de assuntos relativos aos índios, com exclusão dos Estados, como tem sido invariavelmente decidido pela Suprema Corte. Os índios localizados em determinados territórios não são americanos, mas juridicamente constituem uma forma de nação autônoma).
O caso da colonização lusitana foi outro. Aqui no Brasil tratou-se desde o início de aproveitar o índio, não apenas para obtenção dele, pelo tráfico mercantil, de produtos nativos, ou simplesmente como aliado, mas sim como elemento participante da colonização. Os colonos viam nele um trabalhador aproveitável; a metrópole, um povoador para a área imensa que tinha de ocupar, muito além de sua capacidade demográfica. Um terceiro fator entrará em jogo e vem complicar os dados do problema: as missões religiosas. Estas, e particularmente as dos jesuítas, que tanto pelo vulto que tomaram, como pela consciência e tenacidade que demonstraram na luta por seus objetivos, se destacam nitidamente nesta questão, as missões religiosas não intervêm como simples instrumentos da colonização, procurando abrir e preparar caminho para esta no seio da população indígena. Elas têm objetivos próprios: a propagação da fé, os interesses da Igreja ou das ordens respectivas, não importa; mas objetivos que, pelo menos nos métodos adotados pelos padres, forçados a isso pelas circunstâncias ou não, se afastam e até muitas vezes contradizem os objetivos da colonização leiga. Não indaguemos dos motivos que teve a Companhia de Jesus (fiquemos nela que mais interessa) ao adotar tais normas de conduta. Essa indagação nos levaria longe, e sobretudo nos embrenharia numa disputa que não caberia suscitar aqui. Mas o fato é que nas suas atividades, na ação que desenvolveu junto ao índio, no regime e educação a que o submeteu, o jesuíta agia muitas vezes em contradição manifesta não só com os interesses particulares e imediatos dos colonos, o que é matéria pacífica, mas com os da própria metrópole e de sua política colonial. O que Portugal podia pretender, e de fato pretendeu como nação colonizadora de um território imenso para o que não lhe sobrava população suficiente, era utilizar todos os elementos disponíveis; e o índio não podia ser desprezado na consecução de tal fim. Tratava-se portanto de incorporá-lo à comunhão luso-brasileira, arrancá-lo das selvas para fazer dele um participante integrado na vida colonial; um colono como os demais. Esse objetivo da colonização portuguesa no Brasil — e não podia ser outro — aparece bem claro ao longo de toda nossa história colonial. Mais ou menos acentuado pelas leis e outros atos oficiais que se sucedem por três séculos de evolução, revelando-se às vezes numa ação firme e persistente, resvalando mais frequentemente para hesitações e dubiedades, fruto do choque de interesses poderosos em jogo, a política lusitana com relação ao índio dirige-se no entanto para aquele fim.
As atividades da Companhia de Jesus vão evidentemente, consideradas em conjunto e não apenas neste ou naquele ato particular, contra tais objetivos. O regime adotado nas “reduções” (é como se denominavam as aglomerações indígenas sob a autoridade dos padres) e o sistema de organização delas não eram evidentemente os mais indicados para fazer dos índios elementos ativos e integrados na ordem colonial. A segregação em que viviam nas aldeias jesuíticas, e que ia até a ignorância do português que não lhes era ensinado para evitar contatos com os colonos brancos; o regime disciplinar, quase de caserna, a que eram submetidos, e que fazia deles verdadeiros autômatos impelidos pela voz incontrastável, e o que é mais grave, insubstituível de seus mestres e chefes, os padres, coisa que os integrava de tal forma na vida e rotina das reduções que fora delas o índio se tornava incapaz de aproveitar os ensinamentos da civilização que lhe tinham sido ministrados; tudo isso não era de molde a formar membros da comunhão colonial, mas sim coletividades enquistadas nela e visceralmente dependentes de seus organizadores. Se nem sempre os jesuítas realizaram plenamente esse sistema, foi porque não lhes deram tempo e liberdade suficiente de movimentos. Mas lá onde contaram com tais fatores, o resultado foi flagrante: assim na Amazônia, e ainda mais nitidamente nas famosas missões do Uruguai. E isso para não sairmos do Brasil; porque o problema foi semelhante em toda a América, e poderíamos citar ainda, entre outras, as missões da Califórnia, do Orenoco, dos Moxos e Chiquitos da Bolívia, do Paraguai. Sem discutir aqui se a efetivação de sua obra teria sido mais favorável aos índios; admitindo mesmo, para ser debatida, a hipótese de realizações quiçá mais elevadas, moral e materialmente, que as atingidas pela colonização luso-espanhola; resultados superiores, no plano da civilização e cultura humanas, que as coletividades ibero-americanas que saíram daquela colonização; sem irmos tão longe, o fato é que no terreno mais restrito e modesto em que aqui nos colocamos, a obra dos jesuítas não estava contribuindo, nos seus fins últimos e essenciais, para a colonização portuguesa aqui, ou espanhola nas demais colônias; e do sucesso de sua empresa teria certamente resultado uma organização, nação, civilização, ou deem-lhe o nome que quiserem, muito diversa daquilo que Portugal ou a Espanha pretendiam realizar e realizaram nas suas possessões.
Daí o conflito, o choque, cujas peripécias não vêm ao caso analisar aqui, mas que têm esta grande consequência que precisa ser lembrada, e que foi de colocar o problema indígena no terreno das discussões e lutas intermináveis e apaixonadas. Tornou-se assim, desde logo, difícil, se não impossível, uma solução satisfatória. À escravidão sumária e exploração brutal do índio pelo colono o jesuíta opôs a segregação, o isolamento dele. E na luta que se acendeu em torno desses extremos inconciliáveis, ambos contrários aos interesses gerais e superiores da colonização, e que cada vez mais se afirmavam nos seus excessos, fruto natural das paixões desencadeadas, não sobrou margem para outras soluções intermédias que teriam possivelmente resolvido o caso.
A metrópole, envolvida nesta luta que se desenrolava sob suas vistas, não soube, ela também, colocar-se fora dos debates e traçar com independência sua linha de conduta. Prendeu-se aos extremos em luta, oscilando ora num, ora noutro sentido, incapaz de se livrar ao mesmo tempo de ambos e marchar decididamente para os objetivos fundamentais de sua verdadeira política, de que tinha, se não plena consciência, pelo menos uma intuição que faz honra ao bom senso português, e que, no desastre geral que constitui a norma da administração lusitana no Brasil, foi muitas vezes o que a livrou de maiores e funestos acidentes.
Isso durou dois séculos. Chegou afinal o tardio momento em que Portugal enfrenta definitivamente a situação, e desembaraçado dos partidos em choque, impõe a “sua” política, o interesse geral da colonização portuguesa no Brasil acima dos interesses particulares em oposição. Foi essa a obra de Pombal.
A legislação pombalina relativamente aos índios é uma síntese daquelas tendências opostas referidas. Aceitou a tese jesuítica da liberdade dos índios, da necessidade de educá-los e os preparar para a vida civilizada, e não fazer deles simplesmente instrumentos de trabalho nas mãos ávidas e brutais dos colonos, de que já resultara o extermínio de boa parte da população indígena do país. Adotou mesmo as linhas mestras da organização jesuítica: concentração dos índios em povoações sujeitas a um administrador que devia zelar pela sua educação e pelos seus interesses; bem como medidas de resguardo contra os colonos. Mas doutro lado, não os separou da comunhão colonial, e não só impunha o emprego da língua portuguesa e permitia a utilização do índio como trabalhador assalariado (tese dos colonos), mas ainda permitia e fomentava mesmo o maior intercâmbio possível entre as duas categorias da população. Procurava-se assim preparar o índio para a vida civilizada. Completavam-se essas medidas com outras que tinham por fim multiplicar os casamentos mistos. Era a solução pelo cruzamento das raças, que aliás presidiu sempre, mesmo sem o auxílio de disposições legais, a todo o grande e complexo problema da interassimilação das três etnias que concorreram para a formação brasileira.
A suspensão do poder temporal dos eclesiásticos sobre os índios, o grande pomo de discórdia que seria uma das causas mediatas da expulsão dos jesuítas, não é senão um corolário daquelas medidas. Não era possível conservar aquele poder sem comprometer todos os fins que se tinham em vista. Não seria isso harmonizar e resolver a pendência secular entre colonos e padres, mas sim resolvê-la em benefício de uma das partes. O mínimo que um poder soberano como a Coroa portuguesa podia exigir era naturalmente estender normalmente a sua soberania sobre todos os seus súditos. Os índios estavam no número destes; era pelo menos o que se queria, e a autoridade e prestígio dos padres formavam uma parede estanque além da qual se anulava o poder real. Não podia por isso deixar de ser demolida. É impossível assimilar os eclesiásticos, sobretudo quando de uma organização com visos de soberania política, como é o caso dos jesuítas, a simples administradores sujeitos ao poder régio. A função deles não devia e não podia ir além das clericais que propriamente lhes competiam. Conceder-lhes o poder temporal, a experiência o demonstrara, era dar-lhes um poder político soberano (Note-se que é somente o poder temporal que se aboliu. De acordo aliás com os estatutos da Igreja. Os padres, fossem carmelitas, capuchos, mercenários ou jesuítas, continuariam nas suas aldeias, como seus diretores espirituais. E foi aliás o que se deu. É só em 1759, quatro anos depois do alvará de 7 de junho de 1755, que os jesuítas são expulsos de Portugal e seus domínios, abandonando as aldeias do Brasil. Até então, permaneceram nelas, não sem uma sabotagem sistemática da nova legislação. E terá sido esta uma das causas de sua expulsão. Quanto às demais ordens, elas se conservaram nos seus lugares, e continuaram como dantes a obra missionária. — A legislação pombalina relativa aos índios é a seguinte: o alvará de 14 de abril de 1755, que fomenta os casamentos mistos, equipara os índios e seus descendentes aos demais colonos quanto a empregos e honradas, e proíbe que sejam tratados pejorativamente; a lei de 6 de junho do mesmo ano decreta a liberdade absoluta e sem exceção dos índios, dá várias providências sobre as relações deles com os colonos e dispõe sobre a organização de povoações (vilas e lugares) em que se deveriam reunir; o alvará de 7 de junho, ainda do mesmo ano, suprime o poder temporal dos eclesiásticos sobre os índios, cujas aldeias seriam administradas por seus principais (esta lei, bem como a anterior, aplicava-se só ao Pará e ao Maranhão; o alvará de 8 de maio de 1758 estendeu a sua aplicação para todo o Brasil). Além destas leis, há o Diretório dos índios do Grão-Pará e Maranhão, de 3 de maio de 1757, regulamento organizado pelo governador daquelas capitanias, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão de Pombal, que longa e minuciosamente regimenta a legislação vigente sobre os índios. Este Diretório foi aprovado pelo alvará de 17 de agosto de 1758, que estendeu sua aplicação para todo o Brasil).
A legislação pombalina pôs termo a uma disputa que durava desde o início da colonização, e regularizou definitivamente o problema indígena. Os seus resultados práticos poderão ser interpretados diversamente, e assim o foram; mas não quero abordar aqui uma discussão ampla do assunto, o que exigiria tratamento especial. O certo é que, com todos os defeitos e algumas consequências lamentáveis, ela encaminhou a solução do problema índio, preparando, dentro das possibilidades existentes, que dados os caracteres étnicos e psicológicos do índio, eram evidentemente limitadas, a absorção da massa indígena pela colonização. Desaparece com ela a escravização do índio, embora reapareça, mas já atenuada — efeito de meio século de liberdade —, em princípios do século XIX, quando aliás o Diretório já fora abolido (Carta Régia de 12 de maio de 1798), e se voltara, com a lei de 13 de maio de 1808 e outras subsequentes, ao velho sistema de guerras ofensivas contra os índios e do cativeiro dos prisioneiros. Acabaram-se também com as expedições de resgate de índios prisioneiros de outras tribos, os bárbaros “descimentos” de cativos. Também estes se reencetam em princípios do século XIX, particularmente na Amazônia. O incremento do tráfico africano, que é fomentado depois das leis pombalinas, particularmente para as capitanias cuja mão de obra fora até então constituída quase exclusivamente de índios (Pará e Maranhão), torna os colonos menos dependentes destes últimos. Terão assim mais tranquilidade.
Com tudo isso, porém, não se pode evidentemente sobrestimar a sorte dos índios sob o novo regime. Continuaram, apesar das leis que procuravam equipará-los aos demais colonos, uma raça bastarda; e como tal, alvo do descaso e prepotência da raça dominadora. A proteção que lhes outorgava a lei na pessoa dos diretores de suas aldeias, apontados para zelar pelos interesses deles e os conduzir, não raro se frustrou pelo mau e mesmo inescrupuloso desempenho dessas funções. Responsável por isso em grande parte, e talvez a falha maior do sistema adotado pelo Diretório, foi o meio escolhido para a remuneração dos administradores dos índios; fixou-se na sexta parte da produção de seus administrados e a ser deduzida dela. Isso fazia do funcionário encarregado de zelar pela sorte deles um beneficiário direto do seu trabalho, induzindo-o portanto a ver neles não o que deviam ser, tutelados sob sua guarda, mas uma fonte de proveitos (No Maranhão substitui-se quase inteiramente o trabalho do índio pelo do negro).
Com todos os seus defeitos, é certo que a legislação pombalina contribuiu muito para os objetivos essenciais que tinha em vista, e que representam sem dúvida os interesses fundamentais da colonização, isto é, a incorporação do índio na massa geral da população. Que isto se deu, pelo menos com os indígenas já aldeados — para os selvagens as leis de Pombal nada preveem —, basta para comprová-lo observar o que se passou no Pará e no Maranhão, onde seu número era considerável e representa a grande maioria dos índios catequizados da colônia. Constituindo-se a maior parte da sua população de índios, com um reduzidíssimo número de colonos brancos, entre os quais sobressaíam os missionários, verdadeiros dirigentes aí da colonização, conservam aquelas capitanias, até a data das leis de Pombal, caracteres próprios que não as diferenciavam nítida e profundamente do resto da colônia, mas as isolavam dele. Não se tratava do mesmo país. E a diferença se aprofundava cada vez mais. Salvo nos centros mais importantes e num raio insignificante, a administração oficial não tinha quase voz ativa; os colonos, em pequeno número, necessitados de braços, tinham de ir solicitá-los quase sempre aos padres; obtinham-nos, embora nem sempre, e com restrições consideráveis. Os índios, o que quer dizer a quase totalidade da população, viviam segregados dos colonos e sob a jurisdição exclusiva das missões. E é evidente que o que se formava naquelas capitanias não tinha relação alguma com o resto do país. Alguns sintomas bem aparentes indicavam a diferenciação que se estava realizando. É assim o caso da linguagem empregada: salvo nas relações oficiais e no círculo reduzido dos colonos brancos, não se falava o português, que era desconhecido. A verdadeira língua era o tupi, universal e exclusivamente utilizada. Era de se esperar que, sem a providência das leis pombalinas, aquele setor do Brasil se integrasse no corpo da colônia? Parece mais provável que evoluiria numa direção inteiramente diversa, e não chegaria nunca a fazer parte do país.
É a isso que a legislação pombalina obviou. Por efeito dela e do contato mais íntimo que estabelece entre a massa indígena e o elemento branco, aquela massa vai aos poucos, embora através de crises dolorosas, integrando-se na população geral, e confundindo-se com ela. Não atribuamos isso exclusivamente às medidas decretadas por Pombal; mas concedamo-lhes a devida parte que lhes cabe nessa obra de absorção do índio na colonização e mais tarde na nação brasileira.
Porém, mais que qualquer lei ou sistema de civilização, contribuiu para a absorção da população indígena que habitava o território brasileiro antes da vinda do colono branco, ou pelo menos de parte dela que não foi pequena, o cruzamento das raças. E também, mais que qualquer providência oficial, agiu para esse fim, como no caso paralelo e análogo do negro, o impulso fisiológico dos indivíduos de uma raça de instinto sexual tão aguçado como a portuguesa. A licença de costumes, que sempre foi a norma do Brasil colônia, e que é assinalada e deplorada por todos quantos nos legaram suas observações, fossem autoridades, missionários, cronistas ou simples observadores ocasionais de dentro ou estrangeiros que nos visitaram, teve ao menos essa contribuição positiva para a formação da nacionalidade brasileira: é graças a ela que foi possível amalgamar e unificar raças tão profundamente diversas, tanto nos seus caracteres étnicos como na posição relativa que ocupavam na organização social da colônia.
A mestiçagem, que é o signo sob o qual se forma a nação brasileira, e que constitui sem dúvida o seu traço característico mais profundo e notável, foi a verdadeira solução encontrada pela colonização portuguesa para o problema indígena.
Este contingente índio, bastante numeroso (o barão do Rio Branco lhe atribui, em 1817, 259.400 indivíduos; não cita contudo a fonte em que se informou. Henry Hill, cônsul inglês na Bahia, avaliando a população brasileira em fins do século XVIII, lhe concede 100 mil, o que parece pouco), se pode considerar definitivamente incorporado à população da colônia. Fora este o resultado principal das leis de Pombal. Ele participa da mesma vida, e embora sofrendo as contingências da sua raça bastarda e as dificuldades de adaptação a um meio estranho, vai-se integrando nela paulatinamente. Em grande parte pelo cruzamento que já não encontra os obstáculos que lhes opunham os antigos diretores eclesiásticos. Mas além dos cruzamentos que vão diluindo o seu sangue, o índio é aos poucos eliminado por outras causas. As moléstias contribuem para isso grandemente, as bexigas em particular, e também as moléstias venéreas. Elas produzem verdadeiras hecatombes nessas populações ainda não imunizadas. Depauperam-nos os vícios que a civilização lhes traz: a embriaguez é o mais ativo deles. A aguardente se revelara o melhor estímulo para levar o índio ao trabalho: a colonização se aproveitará largamente dela (Sabe-se que algumas nações indígenas, no seu estado nativo, empregam bebidas alcoólicas e se embriagam. Mas isto é excepcional, só por ocasião das festas e cerimônias. É quase um rito que se repete de largo em largo. A colonização tornou a embriaguez do índio um estado permanente). A isso acrescem os maus-tratos, um regime de vida estranho... A população indígena, em contato com os brancos, vai sendo progressivamente eliminada e repetindo mais uma vez um fato que sempre ocorreu em todos os lugares e em todos os tempos em que se verificou a presença, uma ao lado da outra, de raças de níveis culturais muito apartados: a inferior é dominada desaparece. E não fosse o cruzamento, praticado em larga escala entre nós e que permitiu a perpetuação do sangue indígena, este estaria fatalmente condenado à extinção total.”


“O caráter mais saliente da formação étnica do Brasil é a mestiçagem profunda das três raças (brancos, negros e índios) que entram na sua composição. Juntas e mesclando-se sem limite, numa orgia de sexualismo desenfreado que faria da população brasileira um dos mais variegados conjuntos étnicos que a humanidade jamais conheceu.
A mestiçagem, signo sob o qual se formou a etnia brasileira, resulta da excepcional capacidade do português em se cruzar com outras raças. É a uma tal aptidão que o Brasil deveu a sua unidade, a sua própria existência com os característicos que são os seus. Graças a ela, o número relativamente pequeno de colonos brancos que veio povoar o território pôde absorver as massas consideráveis de negros e índios que para ele afluíram ou nele já se encontravam; pôde impor seus padrões e cultura à colônia, que mais tarde, embora separada da mãe pátria, conservará os caracteres essenciais da sua civilização.
Teria contribuído para aquela aptidão o trato imemorial que as populações ocupantes do território lusitano tiveram com raças de compleição mais escura. Essa extremidade da Europa foi sempre, desde os tempos pré-históricos, um ponto de contato entre as raças brancas desse continente e aquelas outras cujo centro de gravidade estava na África. A invasão árabe mais tarde, senhoreando o território lusitano durante séculos; a expansão colonial do século XV que prolongou o contato dos portugueses com os mouros, e os estabelece com as populações negras da África; tudo isso veio naturalmente favorecer a plasticidade do português em presença de raças exóticas.
É provável que tal predisposição tivesse contribuído a preparar o português para esse novo horizonte de contatos raciais que se lhe deparou na América. Muito mais importante contudo, entre os fatores da mestiçagem brasileira, foi o modo com que se processou a emigração portuguesa para a colônia. O colono português emigra para o Brasil, em regra, individualmente. A emigração para cá, sobretudo na fase mais ativa dela em que responde ao apelo das minas, tem um caráter aventuroso em que — é a regra geral em casos desta natureza — o homem emigra só. Daí a falta de mulheres brancas. Mesmo quando o colono pretende trazer família, ele deixa isso para mais tarde, para quando pisar em terreno firme e já puder prover com segurança à subsistência dela. Na incerteza do desconhecido, ele começa partindo só.
A falta de mulheres brancas sempre foi um problema de toda colonização europeia em territórios ultramarinos, mesmo naqueles em que ela se processou em moldes mais regulares e menos aventurosos que entre nós. Nos atuais Estados Unidos, onde por circunstâncias particulares que não ocorrem no Brasil, a imigração por grupos familiares é numerosa, e em certos momentos e áreas até a regra geral, recorreu-se muitas vezes ao transporte de grandes levas de mulheres recrutadas na Inglaterra entre órfãs ou raparigas sem dote, até entre criminosas e prostitutas, que partiram em levas para as colônias do Novo Mundo a fim de satisfazer os apelos que de lá vinham. Os franceses, no Canadá e na Luisiana, agiram da mesma forma; e, mais recentemente, seguiu-se o exemplo na colonização da Austrália e da Nova Zelândia.
Tal providência faltou no Brasil. E daí verem-se os colonos destituídos de mulheres brancas. Isso, e mais a facilidade dos cruzamentos com mulheres de outras raças, de posição social inferior e portanto submissas, estimulou fortemente e mesmo forçou o colono a ir procurar aí a satisfação de suas necessidades sexuais. Aliás, particularmente no caso da índia, é notória a facilidade com que se entregava, e a indiferença e passividade com que se submetia ao ato sexual. A impetuosidade característica do português e a ausência total de freios morais completam o quadro: as uniões mistas se tornaram a regra. E embora quase sempre à margem do casamento — contra as uniões legais com pretas ou índias, sobretudo com as primeiras, havia fortes preconceitos —, tais uniões irregulares, de tão frequentes que eram, passaram à categoria de situações perfeitamente admitidas e aprovadas sem restrições pela moral dominante. E os rebentos ilegítimos que delas resultassem não sofriam com essa origem nenhuma diminuição.
Não é de admirar portanto o vulto que tivesse tomado a mestiçagem brasileira. Escusado procurar dados estatísticos: mesmo quando existem, o que é excepcional, eles são por natureza inteiramente falhos, e não se prestam nem a serem tomados em consideração. Se assim ainda é hoje, o que não seria num tempo em que os preconceitos são muito mais rigorosos e arraigados? “Uma gota de sangue branco faz do brasileiro um branco, ao contrário do americano, em que uma gota de sangue negro faz dele um negro”, boutade que tem seu fundo de verdade. A classificação étnica do indivíduo se faz no Brasil muito mais pela sua posição social; e a raça, pelo menos nas classes superiores, é mais função daquela posição que dos caracteres somáticos. É conhecida a anedota de Koster, que chamando a atenção de um seu empregado, aliás, mulato, para a cor carregada e mais que suspeita de um capitão-mor, obteve a singular resposta: “Era (mulato), porém já não o é”. E ao espanto do inglês, acrescentava o empregado: “Pois, senhor, capitão-mor pode lá ser mulato?”.
É graças a essa espécie de convenção tácita que se harmonizava o preconceito de cor, paradoxalmente forte nesse país de mestiçagem generalizada, com o fato, etnicamente incontestável, da presença de sangue negro ou índio nas pessoas melhor qualificadas da colônia.
Mas na falta de dados quantitativos, podemos contudo fazer certas apreciações gerais bastante seguras. Das três combinações possíveis de sangue — branco-negro, branco-índio, negro-índio —, é a primeira que prepondera. E já notei acima que para isso contribui tanto o maior volume de negros como sua maior resistência e contato mais íntimo com o branco. A terceira variante, que dá os cafuzos, é relativamente escassa. Não é difícil explicá-lo. A mestiçagem brasileira é antes de tudo uma resultante do problema sexual da raça dominante, e por centro o colono branco. Nesse cenário em que três raças, uma dominadora e duas dominadas, estão em contato, tudo naturalmente se dispõe ao sabor da primeira, no terreno econômico e no social, e, em consequência, no das relações sexuais também. Não há na colônia, nem na distribuição geográfica, nem sobretudo na disposição social das três raças, um terreno comum em que as dominadas entrassem entre si em contato íntimo e duradouro. O negro nas senzalas ou nos serviços domésticos do branco; o índio, que se aproxima da colonização quase unicamente nas suas relações de trabalho ou para satisfazer de outra forma o colono branco; aquele, concentrado nas regiões economicamente mais prósperas, donde o outro é excluído: eis a posição relativa das duas raças. Resulta que muito pequena foi a mistura delas entre si; e isso apesar da atração, muitas vezes notada, que sobre a índia exerce o negro.
Na mestiçagem do branco, muito mais numerosa, repito, com o negro, podemos observar um fato que conduz a uma regra bastante geral. Difundida por toda a população, ela se atenua à medida que ascendemos a escala social. Passamos nessa ascensão, desde os primeiros degraus, onde encontramos o negro escravo e o índio de posição social muito semelhante, apesar das leis, à daquele, por um alvejamento sucessivo que nas classes superiores se torna quase completo. Mesmo contudo nas camadas mais altas, o sangue mestiço não falta, e apesar de todas as precauções aí adotadas para ocultá-lo, observa Martius que a pureza de raças, embora muito apregoada, “dificilmente poderá ser admitida pelo julgamento imparcial do estrangeiro”. O contingente branco verdadeiramente puro compõe-se em regra quase exclusivamente da imigração portuguesa mais recente, da que não tivera tempo ainda de se mesclar com os naturais da colônia. Entre esses últimos, poucos, muito poucos seriam os rigorosamente puros; o que aliás, em particular nas classes superiores, não tinha importância social, porque a pequena dosagem do seu sangue mestiço e a posição que ocupavam na sociedade eram o suficiente para fazer esquecer ou desprezar a sua origem. Para todos os efeitos eram brancos puros, como aquele capitão-mor de Koster.
O paralelismo das escalas cromáticas e social faz do branco e da pureza de raça um ideal que exerce importante função na evolução étnica brasileira; ao lado das circunstâncias assinaladas mais acima, ele tem um grande papel na orientação dos cruzamentos, reforçando a posição preponderante e o prestígio de procriador do branco. Dirige assim a seleção sexual no sentido do branqueamento. Um fato bem sintomático de um tal estado de coisas é a preocupação generalizada de “limpar o sangue”, como se chamava aquela acentuação do influxo branco. Martius refere que muitos aventureiros europeus passavam no Brasil uma vida descuidada de cidadãos abonados graças aos casamentos realizados em famílias que estavam procurando apurar o seu sangue. Até um empregado do naturalista recebeu propostas nesse sentido no alto sertão do Piauí. Koster faz a mesma observação e refere fatos semelhantes. E mais tarde, Hércules Florence, o relator da expedição Langsdorff, notará a mesma coisa em Mato Grosso.
Podemos resumir aqui o panorama étnico do Brasil em princípios do século passado: um fundo preponderante de mestiços, mais ou menos carregados conforme o nível social a que pertencem os indivíduos, e em que domina em geral o cruzamento branco-preto. Sobre esse fundo dispõem-se grupos puros das três raças, alimentados continuamente pelo influxo de novos contingentes. Esses são pequenos no caso dos índios, e por isso o seu grupo se reduz e vai desaparecendo; consideráveis no do negro, sobretudo a partir do momento que ora nos ocupa. A afluência de brancos se avoluma depois da abertura dos portos em 1808, quando, a par dos portugueses, começam a chegar também outras nacionalidades. Mas ficará, até a extinção do tráfico africano em 1850, sempre muito aquém da de negros. Compensa-se a deficiência, em parte, com a multiplicação mais rápida do elemento branco, graças às condições de sua imigração, mais regular do ponto de vista da organização familiar, e em que as mulheres são proporcionalmente mais numerosas.
Esses novos contingentes, brancos, pretos ou índios, não contribuem porém para transformar fundamentalmente a feição étnica predominante. Modificarão as dosagens, que penderão para o negro, o maior contribuinte. Mas não alterarão o aspecto mestiçado do conjunto. Os elementos puros vão sendo rapidamente eliminados pelo cruzamento. Também não alterarão o paralelismo cromático e social que constitui o outro caráter essencial da etnia brasileira. Isso porque os novos contingentes se distribuem na sociedade respeitando a situação existente. O preto e o índio afluirão para as camadas inferiores; o branco, para as mais elevadas; se não sempre de início, quando chegam desprovidos de recursos, pelo menos mais tarde. A tendência para subir é contudo geral; o que não se verifica no caso do negro ou do índio.
Reforça-se assim continuamente o aspecto étnico da sociedade brasileira referido acima. Só muito mais tarde, e em áreas restritas do país, começará o imigrante branco a afluir em grandes levas para as camadas inferiores da população e nelas permanecer.”

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