Editora: Boitempo
ISBN: 978-857-559-333-2
Tradução: Rubens Enderle e Leonardo de Deus
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 176
Sinopse: Publicado
originalmente em 1843, a Crítica da filosofia do direito de Hegel é um
divisor de águas na obra marxiana: marca a transição da chamada fase “juvenil”
para a fase adulta e a consolidação dos pressupostos que irão orientar a
produção do seu pensamento até sua maturidade. Ao investigar Hegel, Marx
associaria definitivamente a compreensão das relações jurídicas na sociedade
com as suas condições materiais; o pensar em função do ser e a alienação do
povo; o “Estado real” em relação ao Estado moderno que o segrega e o
burocratiza na qualidade de “sociedade civil”.
O autor também repensa o papel da teoria crítica,
estabelecendo que esta não se completa apenas no campo teórico das filosofias
da religião e da ciência, mas tem um indispensável campo prático na política.
Se por um lado visava superar os fundamentos estabelecidos por Hegel para o
Estado alemão, por outro visava, através da associação entre a reflexão e a
prática, ir além do trabalho teórico de crítica da religião de Feuerbach, uma
forte influência neste trabalho.
Marx provoca um salto sobre os debates da época em torno
da obra de Hegel, para uma visão mais ampla dos fundamentos do direito na
Alemanha, seu anacronismo que não permite concessões, suas relações com as
classes sociais e com o estágio de desenvolvimento nacional. Uma defesa radical
da verdadeira democracia, da máxima generalização do Estado, com a participação
de cada cidadão para superar a divisão entre política e sociedade.
No seu próximo trabalho, nos Anais franco-alemães, Marx
identificaria a origem da alienação na propriedade privada. Como escreve
Enderle na apresentação: “A gênese da alienação política será detectada no seio
da sociedade civil, nas relações materiais fundadas na propriedade privada.
Consequentemente, não se tratará mais de buscar uma resolução política para
além da esfera do Estado abstrato, mas sim uma resolução social para além da
esfera abstrata da política.
Na Crítica, Marx encontrou seu objeto. Faltava
desvendar sua “anatomia”.
§ 262. A Ideia real, o Espírito, que se
divide ele mesmo nas duas esferas ideais de seu conceito, a família e a
sociedade civil, como em sua finitude,
para ser, a partir da idealidade delas, Espírito real e infinito para si, divide, por conseguinte, nessas esferas, a
matéria dessa sua realidade, os indivíduos como a multidão, de maneira que, no singular, essa divisão aparece mediada pelas circunstâncias, pelo
arbítrio e pela escolha própria de sua determinação.
Racionalmente, as sentenças de Hegel significam apenas
que:
A família e a sociedade civil são partes do
Estado. Nelas, a matéria do Estado é dividida “pelas circunstâncias, pelo
arbítrio e pela escolha própria da determinação”. Os cidadãos do Estado são
membros da família e membros da sociedade civil.
“A Ideia real, o Espírito, que se divide ele mesmo nas duas esferas ideais
de seu conceito, a família e a sociedade civil, como em sua finitude” (portanto: a divisão do Estado em família e sociedade
civil é ideal, isto é, necessária,
pertence à essência do Estado; família e sociedade civil são partes reais do
Estado, existências espirituais reais da vontade; elas são modos de existência
do Estado; família e sociedade civil se fazem, a si mesmas, Estado. Elas são a força motriz. Segundo Hegel, ao
contrário, elas são produzidas pela
Ideia real. Não é seu próprio curso de vida que as une ao Estado, mas é o curso
de vida da Ideia que as discerniu de si; e, com efeito, elas são a finitude
dessa Ideia; elas devem a sua existência a um outro espírito que não é o delas
próprio; elas são determinações postas por um terceiro, não autodeterminações;
por isso, são também determinadas como “finitude”, como a finitude própria da “Ideia real”. A finalidade de sua existência
não é essa existência mesma, mas a Ideia segrega de si esses pressupostos “para
ser, a partir da idealidade delas, espírito real e infinito para si”, quer
dizer, o Estado político não pode ser sem a base natural da família e a base
artificial da sociedade civil; elas são, para ele, conditio sine qua non. Mas a condição torna-se o condicionado, o
determinante torna-se o determinado, o produtor é posto como o produto de seu
produto. A Ideia real só se degrada, rebaixa-se à “finitude” da família e da
sociedade civil, para, por meio da suprassunção destas, produzir e gozar sua
infinitude); ela divide, por conseguinte
(para alcançar sua finalidade), nessas esferas, a matéria dessa sua realidade
finita (dessa qual? Essas esferas são, de fato, a “sua realidade finita”, sua “matéria”?),
os “indivíduos como a multidão” (“os indivíduos, a multidão” são aqui matéria
do Estado, “deles provém o Estado”, essa sua procedência se expressa como um
ato da Ideia, como uma “distribuição” que a Ideia leva a cabo com sua própria
matéria. O fato é que o Estado se
produz a partir da multidão, tal como ela existe na forma dos membros da
família e dos membros da sociedade civil. A especulação enuncia esse fato como um ato da Ideia, não como a
ideia da multidão, senão como o ato de uma ideia subjetiva e do próprio fato diferenciada), “de maneira que essa
divisão, no singular (antes, o discurso era apenas o da divisão dos singulares
nas esferas da família e da sociedade civil), pelas circunstâncias, pelo
arbítrio etc. aparece mediada”. A realidade empírica é, portanto, tomada tal
como é; ela é, também, enunciada como racional; porém, ela não é racional
devido à sua própria razão, mas sim porque o fato empírico, em sua existência
empírica, possui um outro significado diferente dele mesmo. O fato, saído da
existência empírica, não é apreendido como tal, mas como resultado místico. O
real torna-se fenômeno; porém, a Ideia não tem outro conteúdo a não ser esse
fenômeno. Também não possui a Ideia outra finalidade a não ser a finalidade
lógica: “ser espírito real para si infinito”. Nesse parágrafo, encontra-se
resumido todo o mistério da filosofia do direito e da filosofia hegeliana em
geral.”
“O importante é que Hegel, por toda parte,
faz da Ideia o sujeito e do sujeito propriamente dito, assim como da “disposição
política”, faz o predicado.”
“A democracia é a verdade da monarquia, a
monarquia não é a verdade da democracia. A monarquia é necessariamente
democracia como inconsequência contra si mesma, o momento monárquico não é uma
inconsequência na democracia. Ao contrário da monarquia, a democracia pode ser
explicada a partir de si mesma. Na democracia nenhum momento recebe uma
significação diferente daquela que lhe cabe. Cada momento é, realmente, apenas
momento do dêmos inteiro. Na monarquia, uma parte determina o caráter do todo.
A constituição inteira tem de se modificar segundo um ponto fixo. A democracia
é o gênero da constituição. A monarquia é uma espécie e, definitivamente, uma
má espécie. A democracia é conteúdo e forma. A monarquia deve ser apenas forma, mas ela falsifica o conteúdo.
Na monarquia o todo, o povo, é subsumido a um
de seus modos de existência, a constituição política; na democracia, a constituição mesma aparece somente como
uma determinação e, de fato, como
autodeterminação do povo. Na monarquia temos o povo da constituição; na
democracia, a constituição do povo. A democracia é o enigma resolvido de todas as constituições. Aqui, a constituição
não é somente em si, segundo a
essência, mas segundo a existência,
segundo a realidade, em seu fundamento real, o homem real, o povo real,
e posta como a obra própria deste
último. A constituição aparece como o que ela é, o produto livre do homem;
poder-se-ia dizer que, em um certo sentido, isso vale também para a monarquia
constitucional, mas a diferença específica
da democracia é que, aqui, a constituição
em geral é apenas um momento da
existência do povo e que a constituição
política não forma por si mesma o Estado.
Hegel parte do Estado e faz do homem o Estado
subjetivado; a democracia parte do homem e faz do Estado o homem objetivado. Do
mesmo modo que a religião não cria o homem, mas o homem cria a religião, assim
também não é a constituição que cria o povo, mas o povo a constituição. A
democracia, em um certo sentido, esta para as outras formas de Estado como o
cristianismo para as outras religiões. O cristianismo é a religião χατ’ εξοχην (preferencialmente), a essência da religião, o homem deificado como uma
religião particular. A democracia é,
assim, a essência de toda constituição
política, o homem socializado como uma constituição particular; ela se relaciona com as demais constituições como o
gênero com suas espécies, mas o próprio gênero aparece, aqui, como existência
e, com isso, como uma espécie particular
em face das existências que não contradizem a essência. A democracia
relaciona-se com todas as outras formas de Estado como com seu velho
testamento. O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do
homem, é a existência humana,
enquanto nas outras formas de Estado o homem é a existência legal. Tal é a diferença fundamental da democracia.
Todas as demais formas estatais são uma forma
de Estado precisa, determinada, particular.
Na democracia, o princípio formal é,
ao mesmo tempo, o princípio material.
Por isso ela é, primeiramente, a verdadeira unidade do universal e do
particular. Na monarquia, por exemplo, na república como uma forma de Estado
particular, o homem político tem sua existência particular ao lado do homem não
político, do homem privado. A propriedade, o contrato, o matrimônio, a
sociedade civil aparecem, aqui (Hegel desenvolve de modo bastante correto estas
formas abstratas de Estado, mas ele crê desenvolver a ideia de Estado), como
modos de existência particulares ao
lado do Estado político, como o conteúdo com o qual o Estado político se relaciona como forma
organizadora, como entendimento que determina, limita, ora afirma, ora
nega, sem ter em si mesmo nenhum conteúdo. Na democracia, o Estado político na
medida em que ele se encontra ao lado desse conteúdo e dele se diferencia, é
ele mesmo um conteúdo particular,
como uma forma de existência particular
do povo. Na monarquia, por exemplo, este fato particular, a constituição
política, tem a significação do universal
que domina e determina todo o particular. Na democracia o Estado, como
particular, é apenas particular, como
universal é o universal real, ou seja, não é uma determinidade em contraste com
os outros conteúdos. Os franceses modernos concluíram, daí, que na verdadeira
democracia o Estado político desaparece.
O que está correto, considerando-se que o Estado político, como constituição,
deixa de valer pelo todo.
Em todos os Estados que diferem da democracia
o que domina é o Estado, a lei, a constituição, sem que ele domine realmente, quer dizer, sem que ele
penetre materialmente o conteúdo das restantes esferas não políticas. Na
democracia, a constituição, a lei, o próprio Estado é apenas uma autodeter
minação e um conteúdo particular do povo, na medida em que esse conteúdo é
constituição política.
Ademais, é evidente que todas as formas de
Estado têm como sua verdade a democracia e, por isso, não são verdadeiras se
não são a democracia.
Nos Estados antigos o Estado político
constituiu o conteúdo estatal por exclusão das outras esferas; o Estado moderno
é um compromisso entre o Estado político e o não político.
Na democracia o Estado abstrato deixou de ser o momento preponderante. A luta entre
monarquia e república é, ela mesma, ainda, uma luta no interior do Estado
abstrato. A república política é a
democracia no interior da forma de Estado abstrata. A forma de Estado abstrata
da democracia é, por isso, a república; porém, aqui, ela deixa de ser a
constituição simplesmente política.
A propriedade etc., em suma, todo o conteúdo
do direito e do Estado é, com poucas modificações, o mesmo na América do Norte
assim como na Prússia. Lá, a república
é, portanto, uma simples forma de
Estado, como o é aqui a monarquia. O conteúdo do Estado se encontra fora dessas
constituições. Por isso Hegel tem razão, quando diz: O Estado político é a
constituição; quer dizer, o Estado material não é político. Tem-se, aqui,
apenas uma identidade exterior, uma determinação recíproca. Dentre os diversos
momentos da vida do povo, foi o Estado político, a constituição, o mais difícil
de ser engendrado. A constituição se desenvolveu como a razão universal
contraposta às outras esferas, como algo além delas. A tarefa histórica
consistiu, assim, em sua reivindicação, mas as esferas particulares não têm a
consciência de que seu ser privado coincide com o ser transcendente da
constituição ou do Estado político e de que a existência transcendente do
Estado não é outra coisa senão a afirmação de sua própria alienação. A constituição política foi reduzida à esfera religiosa, à religião da vida do povo, o céu de sua universalidade em
contraposição à existência terrena de
sua realidade. A esfera política foi a única esfera estatal no Estado, a única
esfera na qual o conteúdo, assim como a forma, foi o conteúdo genérico, o
verdadeiro universal, mas ao mesmo tempo de modo que, como esta esfera se
contrapôs às demais, também seu conteúdo se tornou formal e particular. A vida política, em sentido moderno, é o escolasticismo da vida do povo. A monarquia é a expressão acabada dessa
alienação. A república é a negação da
alienação no interior de sua própria esfera. Entende-se que a constituição como
tal só é desenvolvida onde as esferas privadas atingiram uma existência
independente. Onde o comércio e a propriedade fundiária ainda não são livres
nem independentes, também não o é a constituição política. A Idade Média foi a democracia da não liberdade.
A abstração do Estado como tal pertence somente aos tempos modernos porque a
abstração da vida privada pertence somente aos tempos modernos. A abstração do Estado político é um produto moderno.
Na Idade Média havia servos, propriedade
feudal, corporações de ofício, corporações de sábios, etc.; ou seja, na Idade
Média a propriedade, o comércio, a sociedade, o homem são políticos; o conteúdo material do Estado é colocado por intermédio
de sua forma; cada esfera privada tem um caráter político ou é uma esfera
política; ou a política é, também, o caráter das esferas privadas. Na Idade
Média, a constituição política é a constituição da propriedade privada, mas
somente porque a constituição da propriedade privada é a constituição política.
Na Idade Média, a vida do povo e a vida política são idênticas. O homem é o
princípio real do Estado, mas o homem não
livre. É, portanto, a democracia da
não-liberdade, da alienação realizada. A oposição abstrata e refletida
pertence somente ao mundo moderno. A Idade Média é o dualismo real, a modernidade é o dualismo abstrato.”
“O momento
objetivo para a sua destinação àquelas tarefas (a saber, as tarefas do
Estado) é o conhecimento (o arbítrio subjetivo carece deste momento) e a demonstração
de sua aptidão – demonstração que assegura ao Estado aquilo de que ele
necessita e, como única condição, assegura simultaneamente, a cada cidadão, a possibilidade de se dedicar ao estamento universal.
Essa possibilidade
de cada cidadão se tornar servidor público é, portanto, a segunda relação
afirmativa entre sociedade civil e Estado, a segunda identidade. Ela é
de natureza muito superficial e dualística. Todo católico tem a possibilidade
de se tornar padre (isto é, de separar-se dos leigos, do mundo). Com isso, o
clero, como potência externa, opõe-se menos ao católico? Que cada um tenha a
possibilidade de adquirir o direito de uma outra
esfera, demonstra apenas que sua própria
esfera não é a realidade desse direito.”
“Não se deve condenar Hegel porque ele
descreve a essência do Estado moderno como ela é, mas porque ele toma aquilo
que é pela essência do Estado. Que o
racional é real, isso se revela precisamente em contradição com a realidade
irracional, que, por toda parte, é o contrário do que afirma ser e afirma
ser o contrário do que é.”
“O mais profundo em Hegel é que ele percebe a
separação da sociedade civil e da sociedade política como uma contradição. Mas o que há de falso é que
ele se contenta com a aparência dessa
solução e a faz passar pela coisa mesma, enquanto as “tais teorias”, por ele
desprezadas, exigem a “separação”
entre estamentos sociais e políticos, e com razão, pois elas exprimem uma consequência da sociedade moderna:
nesta, o elemento político-estamental
não é, precisamente, outra coisa senão a expressão fática da relação real de
Estado e sociedade civil, a sua separação.”
“A constituição
estamental, quando não é uma tradição da Idade Média, é a tentativa de
lançar, em parte, o homem, dentro da própria esfera política, na limitação de
sua esfera privada; de fazer da sua particularidade a sua cons ciência
substancial e, como a distinção estamental existe politicamente, de também
fazê-la novamente uma distinção social.
O homem
real é o homem privado da atual
constituição do Estado.
O estamento
tem, geralmente, o significado de que a distinção,
a separação, é a existência do indivíduo. O modo de vida, atividade etc. deste
último, em lugar de fazer dele um membro, uma função da sociedade, faz dele uma
exceção da sociedade, é o seu
privilégio. Que essa distinção não
seja apenas uma distinção individual,
mas se concretize como comunidade,
estamento, corporação, isso não apenas não suprime a sua natureza exclusiva,
como é, antes, somente sua expressão. Em vez de ser função da sociedade, a
função individual se converte em uma sociedade para si.
O estamento
não só se baseia, como lei geral, na separação
da sociedade, como também separa o homem de seu ser universal, faz dele um
animal que coincide imediatamente com sua determinidade. A Idade Média é a história animal da humanidade, sua
zoologia.
A era moderna, a civilização, comete o erro inverso. Ela separa do homem o seu ser objetivo, como um ser apenas exterior, material. Ela não toma o
conteúdo do homem como sua verdadeira realidade.”
“Hegel, que tudo inverte, faz do poder
governamental o representante, a emanação do príncipe. Porque, na Ideia, cuja
existência tem de ser o príncipe, Hegel vê não a ideia real do poder
governamental, não o poder governamental na sua idealidade, mas sim o sujeito
que é a Ideia absoluta, que existe corporeamente
no príncipe; então o poder governamental se torna um prolongamento místico da alma existente em seu corpo – no corpo do príncipe.
O príncipe deveria, por conseguinte,
fazer-se, no poder legislativo, de termo médio entre o poder governamental e o
elemento estamental; porém, o poder governamental é justamente o termo médio
entre ele e a sociedade estamental, e esta é o termo médio entre ele e a
sociedade civil! Como deveria ele mediar aqueles de quem ele tem necessidade,
como seu termo médio, para não ser um extremo unilateral?
Aqui se evidencia todo o absurdo desses
extremos, que desempenham alternadamente ora o papel de extremos, ora o de
termo médio. São cabeças de Jano, que ora se mostram de frente, ora de costas,
e que de frente têm um caráter diverso do de costas. Aquilo que se determina primeiramente
como termo médio entre dois extremos comporta-se, então, ele mesmo, como
extremo, e um dos dois extremos, que através daquele era mediado com o outro,
mostra-se, agora, como extremo (porque em sua
distinção com o outro extremo) entre
o seu extremo e o seu termo médio. É uma complementação recíproca. Tal como um
homem que se encontra entre dois litigantes e, então, um destes, por sua vez,
coloca-se entre o intermediário e o outro litigante. É a história do homem e da
mulher que brigavam e do médico que queria servir de conciliador entre eles,
com o que, então, a mulher devia se colocar entre o médico e o marido e, este,
entre a mulher e o médico. Tal como o leão no Sonho de uma noite de verão, que exclama: “Eu sou um leão e não sou
um leão, eu sou Marmelo”. Assim, cada extremo é, aqui, ora o leão da oposição,
ora o Marmelo da mediação. Quando um extremo grita: “agora eu sou o meio”, os
outros dois não podem tocar nele, mas apenas golpear aquele que, antes, era o
extremo. Trata-se de uma sociedade belicosa em seu âmago, mas que tem muito
medo das manchas roxas para se bater realmente, e os dois, que querem brigar,
se ajustam de tal modo que o terceiro, que se encontra entre eles, deva receber
as pancadas; mas, então, um dos dois apresenta-se novamente como o terceiro, e,
diante de tamanha precaução, eles não chegam a qualquer decisão. Esse sistema
também é feito de tal forma que o mesmo homem que quer espancar seu oponente
deve, por outro lado, protegê-lo das pancadas do outro oponente, e, nessa dupla
ocupação, não atinge a realização de sua tarefa. É notável que Hegel, que reduz
esse absurdo da mediação à sua expressão abstrata, lógica, por isso não
falseada, intransigível, o designe, ao mesmo tempo, como o mistério especulativo da lógica, como a relação racional, como o
silogismo racional. Extremos reais não podem ser mediados um pelo outro,
precisamente porque são extremos reais. Mas eles não precisam, também, de
qualquer mediação, pois eles são seres opostos. Não têm nada em comum entre si,
não demandam um ao outro, não se completam. Um não tem em seu seio a nostalgia,
a necessidade, a antecipação do outro. (Mas quando Hegel trata a universalidade
e a singularidade, os momentos abstratos do silogismo, como opostos reais, é
esse precisamente o dualismo fundamental da sua lógica. O resto sobre isso
pertence à crítica da lógica hegeliana.)”
“A falsa
identidade, a identidade fragmentária,
parcial, entre natureza e espírito,
corpo e alma, aparece como encarnação.
Como o nascimento só dá ao homem a existência individual e o põe, em primeiro lugar, apenas como indivíduo natural e, todavia, já que as
determinações do Estado, como o poder legislativo,
etc. são produtos sociais, nascidos
da sociedade e não do indivíduo natural, então o chocante, o milagre é precisamente a identidade
imediata, a coincidência imediata entre o nascimento
individual e o indivíduo como individuação
de uma determinada posição e função sociais, etc. Nesse sistema, a natureza
faz, imediatamente, reis, ela faz,
imediatamente, pares, etc., assim
como faz olhos e narizes. O chocante
é ver como produto imediato do gênero físico o que é somente produto do gênero
autoconsciente. Eu sou humano por nascimento, sem o consentimento da sociedade;
mas é apenas por meio do consentimento geral que esse nascimento determinado se
torna nascimento de um par ou de um rei. Somente o consentimento faz do
nascimento dessa pessoa o nascimento de um rei; assim, é o consenso e não o
nascimento que faz o rei. Se é o nascimento, diferentemente das outras
determinações, que dá imediatamente ao homem uma posição, então é seu corpo que faz dele este funcionário social determinado. Seu corpo é seu direito social.
Nesse sistema, a dignidade corporal do
homem ou a dignidade do corpo humano
(o que pode, em pormenor, ser assim concebido: a dignidade do elemento natural,
físico, do Estado) aparece de modo que as dignidades determinadas e, em
verdade, as mais altas dignidades
sociais, são as dignidades de corpos
determinados, predestinados por nascimento. Por isso, é natural, na
nobreza, o orgulho do sangue, da ascendência, em suma, da biografia de seu corpo; e é naturalmente essa concepção zoológica que tem na heráldica a sua ciência correspondente.
O segredo da nobreza é a zoologia.”
“Na Alemanha, a crítica da religião esta, no
essencial, terminada; e a crítica da
religião é o pressuposto de toda a crítica.
O homem, que na realidade fantástica do céu,
onde procurava um super-homem, encontrou apenas o reflexo de si mesmo, já não será tentado a encontrar apenas a aparência de si, o inumano, lá onde
procura e tem de procurar sua autêntica realidade.
Este é o fundamento da crítica irreligiosa: o
homem faz a religião, a religião não
faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o autossentimento do
homem, que ou ainda não conquistou a si mesmo ou já se perdeu novamente. Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado
fora do mundo. O homem é o mundo do homem,
o Estado, a sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque
eles são um mundo invertido.
A miséria religiosa
constitui ao mesmo tempo a expressão
da miséria real e o protesto contra a
miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo
sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo.
A supressão da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua
felicidade real. A exigência de que
abandonem as ilusões acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma
condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, pois, em germe, a crítica do vale de lágrimas, cuja auréola é a religião.
A crítica arrancou as flores imaginárias dos
grilhões, não para que o homem suporte grilhões desprovidos de fantasias ou
consolo, mas para que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche. A crítica
da religião desengana o homem a fim de que ele pense, aja, configure a sua
realidade como um homem desenganado, que chegou à razão, a fim de que ele gire
em torno de si mesmo, em torno de seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol
ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não gira em torno de si mesmo.
Portanto, a tarefa da história,
depois de desaparecido o além da verdade,
é estabelecer a verdade do aquém. A tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é, depois de
desmascarada a forma sagrada da autoalienação humana, desmascarar a
autoalienação nas suas formas não
sagradas. A crítica do céu transforma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do direito, a crítica da teologia, na crítica da política.”
“O moderno ancien régime alemão é apenas o comediante de uma ordem mundial
cujos heróis reais estão mortos. A
história é sólida e passa por muitas fases ao conduzir uma forma antiga ao
sepulcro. A última fase de uma forma histórico-mundial é sua comédia. Os deuses da Grécia, já
mortalmente feridos na tragédia Prometeu
acorrentado, de Ésquilo, tiveram de morrer uma vez mais, comicamente, nos
diálogos de Luciano. Por que a história assume tal curso? A fim de que a
humanidade se separe alegremente do
seu passado.”
“A arma da crítica não pode, é claro,
substituir a crítica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder
material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das
massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas tão logo demonstra ad hominem, e demonstra ad hominem tão logo se torna radical.
Ser radical é agarrar a coisa pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio
homem. A prova evidente do radicalismo da teoria alemã, portanto, de sua
energia prática, é o fato de ela partir da superação positiva da religião. A crítica da religião tem seu fim com a
doutrina de que o homem é o ser supremo
para o homem, portanto, com o imperativo
categórico de subverter todas as relações em que o homem é um ser
humilhado, escravizado, abandonado, desprezível. Relações que não podem ser
mais bem retratadas do que pela exclamação de um francês acerca de um projeto
de imposto sobre cães: “Pobres cães! Querem vos tratar como homens!”.”
“Sem dúvida, Lutero venceu a servidão por devoção
porque pôs no seu lugar a servidão por convicção.
Quebrou a fé na autoridade porque restaurou a autoridade da fé. Transformou os
padres em leigos, transformando os leigos em padres. Libertou o homem da
religiosidade exterior, fazendo da religiosidade o homem interior. Libertou o
corpo dos grilhões, prendendo com grilhões o coração.”
“A teoria só é efetivada num povo na medida
em que é a efetivação de suas necessidades.”
“O sonho utópico da Alemanha não é a
revolução radical, a emancipação humana universal, mas a revolução
parcial, meramente política, a revolução que deixa de pé os pilares do
edifício. Em que se baseia uma revolução parcial, meramente política? No fato de que uma parte da sociedade civil se emancipa e alcança o domínio universal; que uma determinada classe, a
partir da sua situação particular,
realiza a emancipação universal da sociedade. Tal classe liberta a sociedade inteira,
mas apenas sob o pressuposto de que toda a sociedade se encontre na situação de
sua classe, portanto, por exemplo, de que ela possua ou possa facilmente
adquirir dinheiro e cultura.
Nenhuma classe da sociedade civil pode
desempenhar esse papel sem despertar, em si e nas massas, um momento de
entusiasmo em que ela se confraternize e misture com a sociedade em geral,
confunda-se com ela, seja sentida e reconhecida como sua representante universal; um momento em que suas exigências e
direitos sejam, na verdade, exigências e direitos da sociedade, em que ela seja
efetivamente o cérebro e o coração sociais. Só em nome dos interesses
universais da sociedade é que uma classe particular pode reivindicar o domínio
universal. Para alcançar essa posição emancipatória e, com isso, a exploração
política de todas as esferas da sociedade no interesse de sua própria esfera,
não bastam energia revolucionária e autossentimento espiritual. Para que a revolução de um povo e a emancipação de uma classe particular da
sociedade civil coincidam, para que um
estamento se afirme como um estamento de toda a sociedade, é necessário que,
inversamente, todos os defeitos da sociedade sejam concentrados numa outra
classe, que um determinado estamento seja o do escândalo universal, a
incorporação das barreiras universais; é necessário que uma esfera social
particular se afirme como o crime notório
de toda a sociedade, de modo que a libertação dessa esfera apareça como uma
autolibertação universal. Para que um
estamento seja par excellence o
estamento da libertação é necessário, inversamente, que um outro estamento seja
o estamento inequívoco da opressão. O significado negativo-universal da nobreza
e do clero francês condicionou o significado positivo-universal da classe burguesa, que se situava imediatamente
ao lado deles e os confrontava.
Na Alemanha, porém, faltam a todas as classes
particulares não apenas a consistência, a penetração, a coragem e a
intransigência que delas fariam o representante negativo da sociedade. A todos
os estamentos faltam, ainda, aquela grandeza de alma que, mesmo que por um
momento apenas, identifica-se com a alma popular, aquela genialidade que anima
a força material a tornar-se poder político, aquela audácia revolucionária que
lança ao adversário a frase desafiadora: não
sou nada e teria de ser tudo. A cepa principal da moralidade e da honradez
alemãs, não apenas das classes como dos indivíduos, é formada por aquele modesto egoísmo que afirma sua
estreiteza e deixa que ela seja afirmada contra si mesmo. A relação entre as
diferentes esferas da sociedade alemã não é, portanto, dramática, mas épica.
Cada uma delas começa a conhecer a si mesma e a se estabelecer ao lado das
outras com suas reivindicações particulares, não a partir do momento em que é
oprimida, mas desde o momento em que as condições da época, sem qualquer ação
de sua parte, criam um novo substrato social que ela pode, por sua vez,
oprimir. Até mesmo o autossentimento
moral da classe média alemã assenta apenas sobre a consciência de ser o
representante universal da mediocridade filistina de todas as outras classes.
Por conseguinte, não são apenas os reis alemães que sobem ao trono
inoportunamente; cada esfera da sociedade civil sofre uma derrota antes de
alcançar sua vitória, cria suas próprias barreiras antes de ter superado as
barreiras que ante ela se erguem, manifesta sua essência mesquinha antes que
sua essência generosa tenha conseguido se manifestar e, assim, a oportunidade
de desempenhar um papel importante desaparece antes mesmo de ter existido, de
modo que cada classe, tão logo inicia a luta contra a classe que lhe é
superior, enreda-se numa luta contra a classe inferior. Por isso, o principado
entra em luta contra a realeza, o burocrata contra o nobre, o burguês contra
todos eles, enquanto o proletário já começa a entrar em luta contra os
burgueses. A classe média dificilmente ousa conceber a ideia da emancipação a
partir de seu próprio ponto de vista, e o desenvolvimento das condições
sociais, assim como o progresso da teoria política, já declaram esse ponto de
vista como antiquado ou, no mínimo, problemático.”
“Onde se encontra, então, a possibilidade positiva de emancipação alemã? Eis a
nossa resposta: na formação de uma classe com grilhões radicais, de uma classe da sociedade civil que não seja
uma classe da sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução de todos
os estamentos, de uma esfera que possua um caráter universal mediante seus
sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito particular porque contra ela não se comete uma injustiça particular, mas a injustiça por excelência, que já não
possa exigir um título histórico, mas
apenas o título humano, que não se
encontre numa oposição unilateral às consequências, mas numa oposição
abrangente aos pressupostos do sistema político alemão; uma esfera, por fim,
que não pode se emancipar sem se emancipar de todas as outras esferas da
sociedade e, com isso, sem emancipar todas essas esferas – uma esfera que é,
numa palavra, a perda total da
humanidade e que, portanto, só pode ganhar a si mesma por um reganho total do homem. Tal dissolução
da sociedade, como um estamento particular, é o proletariado.”
O que constitui o proletariado não é a
pobreza naturalmente existente, mas a
pobreza produzida artificialmente,
não a massa humana mecanicamente oprimida pelo peso da sociedade, mas a massa
que provém da dissolução aguda da
sociedade e, acima de tudo, da dissolução da classe média.
Quando o proletariado anuncia a dissolução da ordem mundial até então
existente, ele apenas revela o mistério
de sua própria existência, uma vez que ele é a dissolução fática
dessa ordem mundial. Quando o proletariado exige a negação da propriedade privada, ele apenas eleva a princípio da sociedade o que a sociedade
elevara a princípio do proletariado,
aquilo que nele já está
involuntariamente incorporado como resultado negativo da sociedade. Assim, o
proletário possui em relação ao mundo que está a surgir o mesmo direito que o rei alemão possui em relação ao mundo já
existente, quando este chama o povo de seu
povo ou o cavalo de seu cavalo.
Declarando o povo como sua propriedade privada, o rei expressa, tão somente,
que o proprietário privado é rei.
Assim como a filosofia encontra suas armas materiais no proletariado, o proletariado
encontra na filosofia suas armas espirituais,
e tão logo o relâmpago do pensamento tenha penetrado profundamente nesse
ingênuo solo do povo, a emancipação dos alemães
em homens se completará.”
Para melhor compreensão e contextualização da presente obra, recomendo fortemente – antes da leitura – as palestras:
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=rGHPolphKIg e/ou https://www.youtube.com/watch?v=7bM4y9hsJS4
*
Os trechos da obra de Hegel à qual Marx responde, podem ser vistos aqui:
http://listadelivros-doney.blogspot.com.br/2016/09/principios-da-filosofia-do-direito.html
Trechos densos.
ResponderExcluir