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segunda-feira, 30 de maio de 2016

A violoncelista, de Michael Krüger

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-3590-241-9

Tradução: Sergio Tellaroli

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 216

Sinopse: Aos cinquenta anos de idade, um músico erudito alemão tem um grande projeto: escrever uma ópera baseada na obra do poeta russo Ossip Mandelstam (1891-1938). Dinheiro não é problema, pois há tempos ele se dedica também a compor trilhas sonoras para seriados policiais de televisão. A música erudita contemporânea não lhe trouxe reconhecimento de público ou crítica, mas os seriados de TV garantiram-lhe fama, fortuna e estabilidade.

A calmaria de sua vida, porém, está prestes a ser abalada. Judit, a filha de 23 anos de Maria, uma ex-namorada húngara, bate à sua porta em Munique, onde pretende concluir os estudos de violoncelo.

Seduzido pela réplica perfeita de Maria, o músico é atormentado pelo desdém que ela demonstra por sua obra e pelas novas regras cotidianas impostas pela garota. Um ciúme doentio de Judit toma conta do seu dia-a-dia. É em torno desse estranho triângulo amoroso que se desenvolve a história contada em A violoncelista.

Michael Krüger explora com maestria o lado cômico desse imbróglio, ao mesmo tempo em que o emprega como pretexto para passar em revista os ideais políticos e artísticos da conturbada segunda metade do século XX.




“Começara a suar, pois era-me embaraçoso importunar homem tão importante, e tão completamente exausto da longa viagem, com meus farrapos de uma língua que apenas de longe, e somente pela melodia, lembrava o italiano, mas o escritor pareceu-me tão absorto no planejamento das horas restantes até o recital que não teve tempo de dedicar atenção àquele meu embaraço. Curiosa criatura. Ao contrário dos colegas alemães e do próprio Günter – de quem eu obtivera todos os detalhes sobre a vida do italiano –, ele parecia não se preocupar muito com sua obra. Odiava aparições, odiava recitais, jamais comparecia a homenagens se demandavam dele algum discurso, e recusava premiações. Tinha mais de sessenta anos e morava ainda com a mãe numa casa atrás do panteão. Ela cerzia suas meias, punha suas cartas no correio e atendia o telefone, lamentando que o filho – de pé e trêmulo ao seu lado – não estivesse em casa. Dormiam em quartos separados, mas sempre de porta aberta. Eu o considerava um grande humorista, um Gogol italiano; ele se via como um grande autor trágico, o que, afinal, prolongando as duas linhas o bastante, dava no mesmo.”

 

 

“Muitas vidas são consumidas para que uma dê certo, disse-me ele: aqui na Hungria, cem para uma.”

 

 

“Enquanto pensava numa boa razão para partir pela quarta vez à procura do edifício, um cão se juntou a mim, jovem e sarnento; as orelhas, apartadas de um modo singular, pareciam ter sido parafusadas dos dois lados da cabeça; um cão que evidentemente desejava tomar parte de meu destino. É certo que ele mantinha um olho na cestinha contendo o jantar, por entre cujas malhas largas entrevia-se o papel pardo de embrulho que envolvia não apenas o peixe e os legumes, mas também a linguiça que eu comprara para o ulterior café da manhã; mas seu outro olho, ou assim acreditei, apreendera meu problema: sua escura amizade dirigia-se apenas a mim, o soturno ascético. Como estivéssemos defronte à casa de Lukács, chamei-o György, o que pareceu tê-lo agradado, pois ele se pôs de imediato a abanar amistoso as orelhas estropiadas. Enquanto eu o alimentava com pedacinhos de linguiças que, apoiados nas patas traseiras e feito um aluno aplicado, ele deglutia sem fazer nenhum movimento reconhecível de mastigação, György contou-me sua terrível história, que, a despeito de todo o exagero de que somente um cão vadio é capaz, me agradou de tal maneira que não me restou alternativa senão lançar-lhe ainda goela abaixo a última pontinha de linguiça. Você está exagerando, György, disse eu, depois de ele haver afirmado conhecer cada gato-pingado daquele nobre bairro. Todo cachorro húngaro exagera, na hora decisiva da linguiça, mas seus exageros são desmedidos.”

 

 

“E, quando eu tentava me concentrar para, depois de todos os desaforos daquela noite, encontrar o sono, ali estava ela, sentada na beirada da cama, como que trazida pelo vento.

Você já está dormindo?, perguntou.

Não, respondi, estou pensando.

E no que pensa um homem à meia-noite?

Em nada.

Você é budista, para conseguir não pensar em nada?

Não, rebati, sou um cristão apaixonado pelo cansaço, perguntando-se que pecados cometeu para que a filha de vinte e dois anos de uma amiga húngara o atormente desta maneira.

Eu apenas disse a verdade, respondeu ela. E Maria concorda comigo. Disse que eu tenho de ficar de olho em você, do contrário você se arruína sozinho. Você precisa compor.

E como é que eu posso compor, Judit, se, de manhã até a tarde, tenho de ficar cavando jardim, pintando janelas, construindo poço e me deixando insultar?

Em Munique, você já não compunha. Ficava o dia inteiro sentado entre os livros, fazendo nada – essa é a verdade.

A verdade não existe, disse eu: pelo menos é o que dizem os inúteis dos livros!

Se seus livros dizem um absurdo desses, melhor não lê-los. É claro que existe a verdade da arte!

Muito bem, respondi cansado, mas ela se esconde atrás de muitas máscaras, e ninguém sabe quais.

Então, é seu dever atraí-la para fora. Com sua música.”

 

 

“Não era desagradável estar sozinho de novo. Desaparecem os afazeres que surgem quando duas ou mais pessoas vivem juntas, silenciam os chamados em voz alta, o ruído de passos, as eternas perguntas e admoestações. Eu trabalhava, alimentava os animais, saía para passear. Quando alguém é obrigado a providenciar seus próprios passatempos, ocorre-lhe coisas que não vêm à tona em meio a um grupo de pessoas. Muitos preferem buscar companhia, outros suportam bem a vida de cônjuge, e outros, ainda, encontram prazer em sentar-se ao lado das demais pessoas em jogos de futebol ou apresentações teatrais. Há aqueles que acham perfeitamente natural exercer seu domínio sobre os outros. E há aqueles que precisam ajudar os outros o tempo todo. Somente poucos, porém, são capazes de ficar sozinhos de fato. E, sendo eles tão poucos, são alvos de suspeita.”

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