Editora: Ediouro
ISBN: 978-85-0001-759-9
Tradução: Daniel Pellizzari
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 244
Sinopse: Intriga,
mistério e sensualidade na cosmopolita e poliglota cidade de Alexandria no
tempo da Segunda Guerra Mundial. Os quatro romances que compõem O Quarteto
de Alexandria – Justine, Balthazar, Mountolive e Clea – exploram a sociedade daquela cidade poliglota e cosmopolita, repleta
de intrigas, mistério e sensualidade, retomando genericamente uma mesma
história sob diferentes pontos de vista, acrescentando e refazendo pormenores e
situações.
O regresso do escritor – Darley – é o fio condutor de Clea,
o último volume desta série exuberante.
““Reformular a realidade”, escrevi
anteriormente; palavras temerárias e presunçosas, sem dúvida – pois é a
realidade que nos formula e reformula no decorrer de sua marcha lenta.”
“Não escrevo para quem nunca se perguntou em
que ponto se inicia a vida real.”
“Aprenda: se uma garota não gosta de dançar
ou nadar, nunca será capaz de fazer amor.”
“Aquela guerra havia chegado de mansinho até
nós, cruzando o oceano; gradualmente, como nuvens que se amontoam silenciosas
até encobrirem todo o horizonte. Ainda não estourara, porém. Era apenas um
rumor, envolvendo corações com esperanças e medos conflitantes. De início,
parecia anunciar o suposto fim do mundo civilizado, mas essa esperança logo se
mostrou vã. Não. Como sempre, seria apenas o final da gentileza, da segurança e
da moderação; o fim das esperanças dos artistas, da tranquilidade, da alegria.
Afora isso, todas as outras características humanas seriam confirmadas,
enfatizadas; talvez até mesmo alguma verdade despontasse por trás das
aparências, pois a morte amplia todas as tensões e impede que continuemos
usando as mesmas desculpas para continuar vivendo.”
“– Darley, você mudou bastante. – Não
consegui discernir se o tom era de reprovação ou elogio. Sim, ele tinha razão:
sorri ao enxergar o arco em ruínas, lembrando-me de um beijo pré-histórico em
meus dedos. Lembrei-me da ligeira hesitação naqueles olhos negros enquanto ela
dizia a verdade corajosa e triste: “Nada aprendemos com quem corresponde ao nosso
amor.” Palavras que arderam como álcool cirúrgico sobre uma ferida aberta, mas
que, como todas as verdades, tinha propriedades antissépticas.”
“Crescer demora uma vida inteira.”
“– Como você pode não sentir rancor algum?
Perdoar uma traição como essa tão facilmente. Ora, parece falta de hombridade.
Odiar um vampiro seria natural! Tampouco poderia entender minha humilhação como
amante por não ser capaz de regalá-lo, sim, regalá-lo, querido, com os
tesouros de minha intimidade. E sim, admito que na verdade gostei de enganá-lo,
não vou negar. Mas também sentia remorso ao oferecer-lhe apenas o simulacro
patético de um amor (rá! essa palavra novamente), um amor minado por mentiras.
Imagino que isso traia a infinita vaidade feminina: desejar o pior de dois
mundos, de ambas as palavras: amor e mentira. E ainda assim é estranho, pois
agora que você sabe a verdade e estou livre para oferecer meu afeto, tudo o que
sinto é um desdém ainda maior por mim mesma. Talvez eu seja mulher o bastante
para sentir que o verdadeiro pecado contra o Espírito Santo é a desonestidade
no amor. Que tolice pretensiosa. Por sua própria natureza, o amor não comporta
honestidade alguma.”
“– Afinal de contas, somos totalmente
ignorantes daqueles que nos rodeiam, tudo o que exibimos uns aos outros não
passam de seletas ficções! Suponho que todos se veem assim, à luz da mais
completa ignorância.”
““Por mais difícil que seja o caminho, ao
final, todos são obrigados a ajustar as contas com a verdade”, escreveu
Pursewarden. Sim, mas de uma forma inesperada eu descobria que a verdade podia
me nutrir – uma onda gelada que me carregava cada vez mais para perto da
plenitude. Agora percebia que minha Justine havia sido realmente a criação de
um ilusionista, sustentada por uma estrutura defeituosa composta de palavras,
ações e gestos mal interpretados. Ninguém era culpado; o verdadeiro responsável
era meu amor, que inventara uma imagem da qual se alimentar. Também não era uma
questão de desonestidade, pois a pintura ganhou suas cores de acordo com as
necessidades desse amor. Amantes são como médicos, disfarçam o amargor de um
remédio para torná-lo mais palatável! Não, aquilo não poderia ter sido
diferente, isso estava claro.
E algo mais, igualmente estimulante: percebi
também que amante e amado, observador e observado, irradiam campos um sobre o
outro (“A percepção tem a forma de um abraço – e com ele penetra o veneno”,
como escreveu Pursewarden). Então deduzem as proporções de seu amor, fazendo
cálculos a partir desse campo estreito com margens imensas de incógnitas (“a
refração”), recorrendo em seguida a um conceito generalizado, constante em suas
qualidades e universal em sua operação. Que lição valiosa, tanto para a vida
quanto para a arte! Em tudo o que eu havia escrito, meramente atestara o poder
de uma imagem criada involuntariamente pela mera visão de
Justine. Não questionava se era verdadeira ou falsa. Ninfa? Deusa? Vampira?
Sim, ela era todas e nada disso. Como toda mulher, era tudo que a mente de um
homem (vamos definir “homem” como um poeta em eterna conspiração contra si
mesmo) – que a mente do homem pudesse imaginar. Estivera sempre ali e nunca
havia existido! Sob todas essas máscaras existia apenas outra mulher, todas as
mulheres, um manequim desnudo à espera de ser vestido pelo poeta que lhe
insuflaria o alento. Compreendendo tudo isso pela primeira vez, percebi
admirado o enorme poder reflexivo da mulher – a passividade fecunda que, como a
lua, toma emprestado o brilho do sol masculino. Como eu poderia sentir outra
coisa além de gratidão por informações tão vitais? Que importavam as mentiras,
os enganos, as loucuras, quando comparadas àquela verdade?”
“Um artista que carrega uma mulher nas costas
é como um cão com uma pulga na orelha; coça, sangra, não tem descanso.”
“Caminhando de novo pelas ruas da capital de
verão, caminhando à luz da primavera, ao longo de um mar azul sob céu sem
nuvens – dormindo acordado –, sentia-me como o Adão das lendas medievais: um
homem cujo corpo é feito do mundo, tendo o solo como carne, as pedras como
ossos, a água como sangue, a relva como cabelo, a luz do sol como visão, a
brisa como alento e nuvens como pensamentos. Sem peso, como após uma longa
doença, flutuava nas águas rasas do Maerotis com suas velhas marcas de apetites
e desejos restituídos à história do lugar: uma cidade antiga, de crueldades
intactas, erigida entre um deserto e um lago. Caminhando por ruas nunca
esquecidas, que se irradiam como os braços de uma estrela-do-mar a partir da
tumba do fundador. Pegadas ecoando nas memórias, cenas e conversas esquecidas
ressurgindo furtivas de muros, mesas de cafés, quartos de colinas cerradas,
tetos cobertos de rachaduras. Alexandria, princesa e meretriz. Cidade real
e anus mundi. Jamais mudará enquanto as raças nela continuarem a
fervilhar como mosto num barril; enquanto as ruas e praças seguirem borbulhando
com a fermentação de paixões e rancores diversos, fúrias e serenidades
inesperadas. Um deserto fecundo de amores humanos, coberto pelos ossos brancos
dos desterrados. Palmeiras altas e minaretes em conjunção celeste. Colmeias de
mansões brancas flanqueando ruas estreitas e abandonadas, sem pavimentação,
onde todas as noites ouvem-se a música árabe e os gritos das jovens que com
tanta facilidade entregam o fardo de seus corpos (seu tormento) e oferecem à
noite beijos apaixonados cujo sabor nem o dinheiro é capaz de arruinar. A
tristeza e a beatitude dessa combinação humana que se perpetua rumo à
eternidade, num ciclo interminável de renascimentos e aniquilações capaz de
ensinar e reabilitar com seu poder destrutivo. (“Fazemos amor apenas para
confirmar nossa solidão”, disse Pursewarden, e certa vez Justine completou:
“Uma mulher sempre escreve suas melhores cartas de amor ao homem que está
traindo”).”
“A música foi inventada para confirmar a
solidão humana.”
““Isso, claro, teve um fim; como acontece com
tudo, supostamente até mesmo com a vida! Não há mérito algum em sofrer como
sofri, mudo como um animal de carga atormentado por feridas insuportáveis que
não consegue alcançar com a língua. Foi então que me lembrei de um comentário
em seu manuscrito, a respeito da feiura de minhas mãos. Por que não cortá-las e
jogá-las no mar, como você sugeriu, tão atencioso? Foi a pergunta que surgiu em
minha mente. Vivia tão entorpecido por drogas e álcool que imaginei não ser
possível sentir alguma dor. Cheguei a tentar, mas é bem mais difícil do que
você imagina. Tanta cartilagem! Agi como os tolos que tentam cortar a garganta
e atingem o esôfago. Sempre sobrevivem. Quando desisti, tomado de dor, pensei
em outro escritor, Petrônio. (O papel da literatura em nossas vidas!)
Afundei-me numa banheira de água quente. Mas o sangue não escorria. Era como se
nada mais restasse. Consegui forçar algumas gotas, escuras como betume. Estava
pronto a experimentar outras maneiras de aliviar a dor quando Amaril apareceu.
Ficou muito irritado. Deu-me um sedativo cujo efeito durou vinte horas, durante
as quais ele deixou meu cadáver e meu quarto num estado apresentável. Então
fiquei muito doente, creio que de vergonha. Sim, sem dúvida adoeci de vergonha,
embora naturalmente estivesse muito enfraquecido por conta de todos aqueles
excessos. (...) Meus amigos foram muito gentis e sempre visitavam-me, trazendo
presentes, entabulando conversas que me davam dor de cabeça. Assim,
gradualmente, voltei à superfície com uma lentidão infinita. Disse a mim mesmo:
‘Nossa mestra é a vida. Vivemos em discordância com nosso intelecto. Aprendemos
com a resistência ao sofrimento.’ Aprendi algo, mas a que custo!”
“– Talvez a mais terna, a mais trágica das
ilusões seja acreditar que nossas ações são capazes de adicionar ou subtrair
qualquer coisa à soma de bem e mal nesse mundo.”
“Arte não é arte ao menos que ameace a sua
existência.
Toda obra de arte é uma indiscrição – mas uma
indiscrição calculada.
A morte é uma metáfora; ninguém morre para si
mesmo.
É preciso manter uma réstia de esperança se
pretendemos aproveitar plenamente nosso desespero; sim, e jamais esqueça: onde
existe fé, existe dúvida.
A arte é tão supérflua quanto as atividades
bancárias, a menos que nasça de um espírito livre – neste caso, é realmente uma
atividade bancária.”
“Não há fé, caridade ou ternura suficientes
para dotar este mundo de um único raio de esperança. Ainda assim, enquanto
soarem no mundo as dores de parto de um artista, esse grito estranho e triste,
nada estará perdido!”
“A religião não passa de arte degenerada até
se tornar irreconhecível.”
“A arte ocorre no instante em que um espírito
desperto honra uma forma qualquer com sinceridade.”
“Por séculos a fio, nossos testículos foram
espremidos pela Lei Mosaica; é a origem do ar triste e mutilado de nossos
jovens, a origem da afetação descarada de adultos condenados a uma adolescência
perpétua!”
“Quando Balthazar me repreendeu por ser
ambíguo, respondi sem nenhuma reflexão consciente: “Sendo as palavras o que
são, sendo as pessoas o que são, talvez seja melhor sempre dizer o oposto
daquilo que pensamos.”
“A melhor coisa a fazer com uma grande
verdade, como descobriu Rabelais, é enterrá-la sob uma montanha de tolices,
onde pode aguardar confortavelmente pelas pás e picaretas dos eleitos.”
“Para um artista, o suicídio é o mais
importante dos atos.”
“A memória tem tantos esconderijos.”
“Ah! Estou buscando metáforas capazes de
transmitir um pouco da felicidade avassaladora tão raramente concedida aos
amantes; mas as palavras, inventadas para combater o desespero, são cruas
demais para refletir as propriedades de algo tão sereno, tão íntegro.”
“Se deseja esconder alguma coisa, esconde-a
no centro do sol.” (Provérbio árabe)
“Uma cidade torna-se um mundo quando amamos
um de seus habitantes.”
As frases: “Para um artista, o suicídio é o mais importante dos atos”, e “Cada morte tem dentro de si o germe de uma lição a ser aprendida”, são repletas de uma ironia dolorosa ao se saber o que ocorreu com uma das filhas do autor, Sappho Jane.
ResponderExcluirSuicídio é falta de amor. Só isso!!!
ResponderExcluirSuicídio é falta de amor. Só isso!!!
ResponderExcluir