Editora: Global
ISBN: 978-85-2600-709-3
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 400
Sinopse: Lobisomem,
Saci-Pererê, Mula sem Cabeça e muitos outros seres fantásticos, que povoam a
imaginação do brasileiro, são os grandes personagens da Geografia dos mitos
brasileiros, de Luís da Câmara Cascudo. Para muita gente, perdida pelos
grotões e roças do país, eles são criaturas tão vivas quanto o vizinho ou o
leitor. Não é para menos. Alguns costumam se intrometer na vida humana, como
perturbadores ou entidades benéficas, exigindo doações (o fumo de rolo que o
caboclo deixa na encruzilhada para o Saci) ou atendendo pedidos, como o
Negrinho do Pastoreio. Ou até engravidando moças, função exercida com muita
competência pelo boto. Esses mitos, ainda palpitantes de vida entre a sociedade
rural, estão presentes em todas as regiões do país, como assinala o
levantamento de Mestre Cascudo, estado a estado, mas cada vez mais ameaçados
pela penetração do rádio e da televisão. Como em todo fato social, há os mais
populares (que Cascudo classifica como “mitos primitivos e gerais”), nos quais
se incluem ainda as entidades que formam os ciclos “da angústia infantil” e “dos
monstros”. No primeiro, figuras aterradoras para as crianças, como a coca, as
bruxas e o Mão de Cabelo, de Minas Gerais, que corta a “minhoquinha” dos
meninos que não querem dormir. Entre os mitos de menor abrangência geográfica,
que Cascudo classifica como “secundários e locais”, há alguns que ultrapassaram
a sua região e hoje são conhecidos em todo o país, graças à literatura (a
Cobra-Norato, motivo do poema de Raul Bopp) e o Matita Pereira, da música de
Antonio Carlos Jobim. Com a sua erudição sem pedantismo, sempre com o dom de
interessar o leitor, Mestre Cascudo prova que a companhia dos monstros, muitas
vezes, em vez de pesadelo, pode ser uma viagem “legitimamente maravilhosa”.
“Naturalmente o Negro, susceptível, crédulo,
impressionável, é a melhor e mais ativa caixa de ressonância que pode existir
para os mitos assombrosos, os pavores noturnos, os animais da fábula. A todos
descreve com as tintas sensíveis de um medo sem fim. É um retocador magnífico,
magistral, insubstituível. Demais, pela voz sonolenta das “Mães pretas”,
recebemos o condão de ver e saber da existência terrível de todos os monstros,
fadas, príncipes e encantos.
A influência negra é, em parte, devida a sua
inevitável solidariedade com os pavores que evoca. Ele narra com a “escapação
aberta”, em pleno rumor, enchendo de barulho misterioso, de explicações
sinistras, de justificações maravilhosas, os episódios mais simples, claros e
naturais.
Um fato dirá da profundeza dessa crença
vertical, inamolgável, maciça. Um chofer de praça, em Recife, dizia-me, anos
passados, que o bandido Virgolino Ferreira, o “Lampião”, era invulnerável por
ter recebido um “patuá” da mão de um feiticeiro baiano. “Não há bala que não
derreta como manteiga e faca se dobra como arame ao chegar em sua pele”,
afirmava o negro motorista, sisudo e convencido. Quando Lampião morreu,
casualmente encontrei meu informante e inquiri das virtudes miríficas do “patuá”.
Não se perturbou.
Lampião morreu porque deixara o “patuá” (oração-forte, amuleto, etc.) na
barraca, quando fora tomar banho pela manhã. Não tivera tempo de recolocá-lo ao
pescoço. Por isso morreu...
Como obteve essas informações precisas?
Ninguém lhe dissera. Ele sabia. E a fé continuava límpida, sem uma nódoa que
empanasse o prestígio dos “patuás”. Esse chofer é, entretanto, um conhecedor
habilíssimo dos motores de explosão, sabendo seu ofício como raros. A cultura
profissional não lhe alterou em coisa alguma a mentalidade. E como ele, vivem
milhares.”
“No cadinho das florestas e das águas
tropicais, o Olharapos se tornava Mapinguari. O Bicho-Homem era o Capelobo. As
cobras encantadas convergiam para o reino das mboiaçú e das boiunas. Angústias
noturnas amalgamavam-se em chibambas, negras velhas, mãos-de-cabelo, de palha e
de fogo. Koboldes caprípedes apostavam velocidade com os Curupiras de cabeleira
rubra, olhos verdes e pés ao avesso como seus irmãos clássicos, citados em Aulo
Gelo. As lendas ornitomórficas floriam. Não mais em Filomelas românticas, mas
na revoada dos Sacis de carapuça vermelha, unípedes e travessos como lutinos.
Todas as águas-vivas, ardentes e eternas do Medo, do Pavor sem contorno e da
Imaginação, desceram, por três boqueirões raciais, para a vertente de onde
sairia o brasileiro...
O português, batendo todo o Brasil com seus
sapatões de bandeirante, carregava, em maior percentagem, seus mitos, herança
inarredável e perpétua. Os mitos verdadeiramente “gerais”, que se mantêm com as
linhas mestras, são de origem peninsular. Nenhum Saci-pererê, ignorado no norte
e nordeste, nenhum Caapora, pouco definido em São Paulo e Minas Gerais, pode
aceitar o desafio de medir-se com o Lobisomem que trota, cada sexta-feira, por
todos os Estados do Brasil. O Mboi-tatá, verdade seja, acende seu clarão pelas
cidades, vilas e caminhos, mas aceito normas europeias dos feux-follets, do Sant’Elmo, tendo estórias desencontradas, não se
desenha, não se fixa, não se materializa. Os mitos portugueses, ou por eles
trazidos, têm direito às prerrogativas do domínio.
Seguem-se as de origem indígena. Os
Tupi-guaranis deram a parte preponderante. Estavam em situação social e
geográfica capaz de lutar, aliar-se, combater e fundir-se com o português.
Subindo do sul para o norte, empurrando os Gês para leste, batizando quase dois
terços da terra brasileira, foram os primeiros homens para o contato.
Assistiram à primeira missa, testemunhas inconscientes do auto de posse, tropas
auxiliares que ajudaram a destruição de si mesmos. Bateram, arrolados nas “bandeiras”,
sul e norte, matando e morrendo. O idioma tupi era a língua de entendimento, o
nhengatu, a língua-boa, plástica e musical, codificada nas gramáticas, gabada
nos púlpitos, recitada nos autos festivos, nas orações milagrosas, nos bailes
tradicionais. Foram até o labirinto amazônico, escorregando pelas margens,
deixando as pegadas nas madeiras que dariam nome ao rio, em quase todas as
orlas, rumando as cabeceiras, num impulso constante e cego, procurando uma
terra onde não se morria e que era perto do céu. Ensina Teodoro Sampaio:
Até o começo do século XVIII, a proporção entre as duas línguas faladas
na colônia, era mais ou menos de três para um, do tupi para o português.
O padre Antônio Vieira notava, no século
XVII, que se falava o tupi comumente, naturalmente. O português estudava-se
como elemento cultura, necessário, indispensável, mas secundário ao nhengatu,
sonoro e dúctil. Aires do Casal informa que a língua portuguesa “começou a ser
geral ou, para melhor dizer, a ter uso em 1755”. E disto se dava no Maranhão,
lugar privilegiado.”
“Nos mitos indígenas, Tupis, melhormente
estudados, a influência portuguesa não consegue deformar por inteiro, mas os
populariza velozmente. Os portugueses aceitaram os duendes das florestas tupis
como seres normais e capazes de façanhas idênticas às dos seus trasgos e olhapins.
A teogonia tupi alargou o âmbito de seus adeptos. Nas noites escuras o pavor
passava das malocas indígenas para as casas-grandes, onde os colonos abriam os
olhos espavoridos para a treva cheia de Curupiras e Lobisomens.
O negro escravo veio com sua humilhação e seu
amor infinito. A força dos seus mitos era religiosa, pedindo cerimonial, ritos,
danças, comidas protocolares, indumentária. Um culto que seria clandestino,
incompleto pela impossibilidade duma exata observância aos processos
religiosos. Ainda hoje quando se estuda o negro brasileiro depara-se com a
festa religiosa, com seus orixás e bailados, seus dias de preceitos, a crônica
aventureira e valente dos deuses africanos, vencedores dos raios e das
mulheres.
Os mitos, na acepção folclórica do vocábulo,
independendo de ritual, de religiosidade inata, são raros. Ninguém os vence no
domínio do cerimonial, da religião hierática, severa, com dogmas, roupas,
cores, passos, tradições. Frobenius ensinava que o africano só podia ser
compreendido através da sua crença. A religião para ele não era um caminho, um
liame, como o vocábulo significa, mas a razão, o “estado” do espírito, a
própria duração da vida material. E como todas as coisas derredor participavam
desse pathos, não é possível isolar
do clima religioso negro um mito como os vemos saídos de europeus e indígenas.
No Folclore brasileiro a influência negra se
positiva nas danças, nas diversões de conjunto, em certos autos populares, numa
parte musical, em determinadas danças de roda para homens, especialmente as de
parelhas soltas ou coletivas, nas estórias e na parte infantil. Nesse mundo dos
meninos, o Negro é todo-poderoso. Contou estórias, ressuscitou animais
monstruosos, explicou tesouros, mostrou as estrelas, casamento de astros,
pavores noturnos, recalques que ficam vivendo na recordação da meninice.
Bem rara será a figura do ciclo da angústia
infantil que não tenha muito dos negros. Nenhum mito geral, porém, resistiu aos
anos nem foi registado, partindo dos velhos escravos. O próprio Quibungo é o
negro-velho preador de crianças, gênero universal. Nas estórias em que o
Quibungo não assombra crianças e aparece como um antropófago, creio já ter sido
sua ação modificada por um outro mito, o de um gigante ou homem devorador de
carne humana, cujo nome se perdeu. Mesmo assim não há originalidade nessa
inusitada ação faminta. Todo o ciclo dos monstros é antropófago.
Se o Negro é onipotente nas almas infantis,
não o é nos espíritos maduros, afora a sedução dos ritos religiosos. Devemos
sempre recordar que o Quibungo foi “justificado” pelos estudiosos brasileiros.
Peça por peça, armaram-no no Brasil, com deduções, pesquisas, rastejando
documentos, interpretando vocabulários. Em livro que nos tenha vindo da África,
através de ingleses, portugueses, norte-americanos ou franceses, não se avista
o vulto do Quibungo... Nenhuma aparição negra tem a extensão prestigiosa do
Lobisomem, do Caipora, do Saci, da Mula-sem-cabeça, sabidos em todos os lábios
brasileiros. O Quibungo surge na Bahia, centro de densidade africana, mas não
emigra. As regiões vizinhas não conhecem. A faixa da sua influência é limitada
e para que a transponha é preciso mudar aspecto e técnicas, ingressando no
ciclo de outros pavores.”
“Uma característica dos mitos e das tradições
fabulosas no Brasil é o fáceis ambulatório, infixo, irregular. Nenhum
mito-de-presença, sedentário, com atribuições determinadas, inamovíveis. Se
esta peculiaridade aparece nos mitos secundários, e os chamo “regionais”,
dando-lhes assim um foro jurídico para demandá-los em matéria de Folclore,
analise-se que nenhum mito regional guarda traços que o vinculem ao local de
sua atuação. O sinal distintivo é apenas a exigência de meios físicos, águas,
árvores, terras ou ares. Nunca solicitam a um determinado lugar a razão de sua
existência miraculosa. Os nossos são mitos de movimentos, de ambulação, porque
recordam os velhos períodos dos caminhos, dos rios, das bandeiras, de todos os
processos humanos de penetração e vitória sobre a distância. Quase sempre são
mitos cuja atividade é apavorar “quando passam” ou “correm”. Curupiras,
Caiporas, Mapinguaris, Sacis, Lobisomens seriam ineficazes em atitude hirta,
como uma parada de monstros. Mesmo nos rios, lagoas e mar, os seres assombrosos
não têm pouso fixo. Nadam para aqui e para além. A Loreley não deixa seu
rochedo no Reno. A nossa Iara é campeã de distância a nado livre...”
“No Brasil, pelo que sabemos, o culto
indígena mais espalhado e seguido, o verdadeiro culto nacional, era o de
Jurupari. A catequese religiosa foi obrigada a transformá-lo em Demônio. Não
era possível converter-se Jurupari porque os pajés seriam alistados na classe
sacerdotal. Achado o Princípio do Mal, havia a necessidade do Princípio do Bem,
o Deus-bondade e Criador, uma égide indígena onde a concepção do Iavé hebreu e
do Deus-Pai católico pudesse caber e ser entendida. O indígena assimilaria a
religião nova se esta viesse por intermédio de formas suas conhecidas. Em todos
os processos divulgatórios a adaptação é o primeiro e maior fator de vitória.
Quando o missionário enfrentou o africano, explicou que Olurum (o céu), forma
dúbia e vaga que não possuía liturgia, era Deus que ele vinha anunciar. Elegbá,
o nume carnal, protetor da junção amorosa, anteriormente tido como uma força,
um deus invisível, depois manifestado pelas festas fálicas, foi identificado,
sendo devasso e lascivo, no próprio Diabo.
Muito mais vago que o Olurum dos negros
nagôs, era o Tupã dos ameríndios brasileiros.
Era como o Sita dos árias, o Ma dos egípcios,
o Tau dos chineses, o Morai dos gregos, entidade acima das contingências
humanas, inacessível às súplicas, indiferente aos destinos terrenos. Não tinha
a manifestação inicial dos cultos primitivos, que é a lenda explicativa, o
conto etiológico. Não fazia milagres nem tinha forma.
Era Tupã o que os folcloristas ingleses
chamam Nature God, personificação
abstrata de forças cósmicas, com atuação meteórica, sem interferência na vida
sublunar. Pertencia à fase inicial das religiões. Era um elemento que Durkheim
dizia préanimiste. Lévy-Bruhl escreve
que, nas sociedades primitivas, todas as funções de relação são funções de
presença de seres sobrenaturais. E como toda participação tende a ser
representada nos fenômenos meteorológicos, que deviam impressionar maiormente
aos indígenas, era natural que certos seres fossem apontados como dirigindo o
trovão, o raio, o relâmpago e a chuva. Antes, esses fenômenos seriam deificados
intrinsecamente. Na fase atual é que a diversificação se completa.”
“Quem tenha estudado detalhadamente os mitos
indígenas do Brasil, ouvido o silvícola, deduzidas as tradições de sua história
complexa, terá a conclusão de que eles foram quase sempre observados através da
lua europeia, da alma europeia e da mentalidade branca. Nós, inconscientemente,
fazemos da nossa moral e costumes, dos nossos dogmas religiosos e padrões
estéticos, outros tantos pontos de referência para ajuizarmos o nosso irmão da
mata. O resultado é conseguirmos um ser deturpado, misto de malícia e pavor, de
bestialidade feroz e de ingenuidade encantadora. Creio que é erro. O índio não
é problema desde que o olhamos com os olhos indígenas.
Um desvio inicial que retarda tanto a
compreensão da psiquê ameríndia é sua teogonia que julgamos complexa e pueril.
Nós começamos a orar, venerar, temer e amar,
a sabermos a origem da espécie e do mundo, dirigindo-nos continuamente a um
Pai, Deus-Pai. O primeiro Ser, o Supremo Ser, o Que-sempre-foi-e-será, é um
Homem.
Com os índios é isso mesmo às avessas. É um
ser feminino, a Mãe, Ci. Acreditavam os índios que tudo no mundo, vegetal,
animal, mineral, possui sua criadora, protetora e guiadora eterna. Têm a Mãe do
vento, das pedras, dos frutos, de cada tipo de peixe, de insetos, de aves,
árvores, estrelas, vermes, cobras, fantasmas. Há a mãe da mandioca como há a
mãe da coceira. Tudo tem Mãe e esta gerou seus filhos sem a necessidade do
elemento viril. Todos os indígenas sabem de cor a Mãe disto e daquilo, mas
ninguém sabe o nome do Pai. O Pai é um detalhe inútil. Ci sempre desconheceu o
segredo da reprodução sexuada.
Eis por que na teogonia tupi todos os grandes
deuses são femininos. O Sol é Goaraci, Mãe deste Dia, mãe dos viventes. A Lua é
Mãe-nossa, mãe dos vegetais. A tradição das virgens-mães é contínua na América
como na África e Ásia. O fecundador desses Ci é um ser que ainda não preocupou
a inteligência selvagem. Indicar o aéreo Tupã para esse mister é apenas uma
hipótese sem a mais longínqua documentação lendária ou erudita.
Devia haver, abstrata e vaga, a noção de um
Ser Supremo. Mas, como Olurum vive através dos seus “orixás”, bem podia esse
Criador atuar por um de seus atributos, o sol, o trovão, a luz, a chuva.
Infelizmente nenhum Pajé acedeu em conceder uma entrevista detalhada. Tido como
ministro de Satanás, aderiu, fugiu ou morreu, levando seu segredo para o
silêncio perpétuo. Devia haver o Ser Supremo, mas este pertenceria a uma classe
minoritária, restrita, de eleitos, capazes do entendimento, velhos iniciados
nos meandros do suprarreal. Tupã, deus longínquo e sem a indispensável moldura
do sacerdócio, só teve as honras das oblatas quando os abaúnas desceram das
naus e plantaram, no solo vermelho da Pindorama, a cruz de Cristo.
Tupã era primitivamente o trovão e depois o
ente que o governava. Na teogonia brasileira não era citado e quando aparecia
era em lugar secundário. Não encontraram mais sua história nem suas aventuras,
além das burlescas e trágicas de Brandão de Amorim. Não tinha Pajé, nem dança,
nem festa, nem cerimônia, nem crentes, nem tradições. Foi aproveitado pela
inteligência catequista, como noutros países o fizeram, para antepor-se à
religião local e dominante. Os elementos colonizadores e posteriormente o
curiboca, além da população aborígine cristianizada, aceitaram e propagaram o
mito artificial de Tupã e ele foi o único a ser tolerado e prestigiado.
Popularizado nas orações feitas pelos jesuítas, passou para a literatura como o
Deus dos Índios Brasileiros.
O Sr. Gabriel Gravier, Presidente da
Sociedade Normanda de Geografia, publicou um Étude ser le Sauvage du Brésil (Paris, 1881). À p. 47 escreve:
Tupã é um Deus grande, poderoso e terrível, Ele se manifesta como o
Senhor de Israel, por trovões e relâmpagos. Ele está em toda parte, ele fez
tudo. Seu nome significa quem é. Este é o Deus latino desconhecido*.
Essa foi a mentalidade que divulgou Tupã para
os eruditos da Europa. Findo o impulso cristianizador o movimento não se deteve
e Tupã continuou, deformado e canhestro, no seu trono inexpressivo. Nunca
merecera do indígena um gesto espontâneo de pavor ou respeito. Isto basta. Não
há Deus sem liturgia.”
*: tradução livre
“O Diabo estava em toda a parte. Aconselhava,
dirigia, trabalhava como servo, ajudava. Sabiam até fazer um demoniozinho e alimentá-lo de sangue humano, sugado pelo
dedo mínimo, ou sustentá-lo com azeite doce. As judias e ciganas tinham o
monopólio desse fabrico assombroso. As bruxas podiam tanto quanto os bispos e
os ricos mercadores. Com as trevas da noite as cidades coloniais eram sacudidas
pelos uivos dos bichos assombrosos, nascidos pela vontade dos feitiços, no
fundo do mistério.
Para ter-se uma visão da mentalidade, basta a
leitura das atas e depoimentos de Visitação do Santo Ofício na cidade do
Salvador e Pernambuco. Paulo Prado publicou dois tomos e a Sociedade Capistrano
de Abreu um outro. São “instantâneos” sem retoque da época e dos meandros por
onde escorria uma fé detalhista, sinuosa, pragmática e hirta. Fernão Cardim,
ex-provincial, jesuíta culto, inteligente, cronista delicioso e claro, reitor
do Colégio da Companhia de Jesus, denunciou Jorge Martins pelo crime de ter
dito que Deus tinha mão direita. O vigário de Tassuapina, padre João Fernandes,
denunciou a João Batista por este ter dito que justo só Deus, esquecido que a
Virgem Maria, São João Evangelista foram justos e o são assim como o velho
Simeão é tido pela Igreja como vir justus
et timoratus. A feiticeira Maria Gonçalves, conhecida por “Arde-lhe o rabo”,
estava convencidíssima de conversar todas as noites com os diabos. Toda a
Europa tremia com medo do Senhor das Trevas. Ainda na primeira metade do século
XVIII, dom João V de Portugal e o cardeal da Mota, secretário de Estado,
mandavam as negras da Guiné fazer amuletos contra o mau-olhado.”
“Na luta da catequese os jesuítas se
convenceram de que a argúcia dos Pajés e seus conhecimentos médicos,
meteorológicos e topográficos, deviam vir do Demônio, padroeiro dos
irreligiosos. O indígena não tinha oração nem tributo pessoal para a divindade.
Tudo se fazia coletivamente e sob a direção do Pajé decrépito. A campanha
catequizadora orientou-se contra o Pajé como para uma vertente lógica por onde
todas as águas malsãs escoavam envenenando os ares limpos. Não conheciam Deus.
Era o depoimento unânime dos cronistas. Nem uma fé têm, nem adoram a deus algum
(frei Vicente do Salvador). Esta gentilidade nenhuma coisa adora, nem conhecem
Deus (padre Manuel da Nóbrega). Além de não revelarem conhecimento nenhum do
verdadeiro Deus, não adoram nem confessam deuses falsos, celestiais ou
terrestres (Jean de Léry). Nenhuma criatura adoram por Deus (padre Anchieta).
Este gentio não tem conhecimento algum de seu Criador, nem de coisa do céu
(padre Fernão Cardim). Não adoram coisa alguma (Pero de Magalhães Gandavo). Não
tinham espécie alguma de religião (Cláudio d’Abbeville). Sem fé, sem lei, sem
religião (André Thevet).”
“Retina de civilizado deforma ao mirar as
histórias incompreensíveis.”
“A superstição brasileira referente aos
mortos da família era vasta e profunda. Estavam os indígenas sempre dispostos a
ouvir-lhes a voz longínqua, trazida pelas aves de agouro. O indígena teme
imensamente, como o nosso matuto, a mbai-aib, a coisa má, a visagem, o
fantasma, e para não vê-lo é capaz de todos os sacrifícios.” (avaliar)
“Os deuses da teogonia tupi são andróginos.
Têm em si os órgãos de fecundação e da reprodução. Independem da divisão dos
sexos. Goaraci, o Sol, e Jaci, a Lua, deuses superiores, são ambos femininos e
criaram tudo que existe na terra. Todos os indígenas falam na Mãe-do-rio, mãe
das aves, dos peixes, das pedras, das rãs, das flores, das moléstias etc. Mas
não falam no progenitor. Parece mesmo que houve um período longo de matriarcado
porque Jurupari, o reformador, retirou o governo das mãos das mulheres e entregou-o
aos homens. Não seria coisa invulgar a concepção sem a pesquisa da paternidade
subsequente. Depois é que não se pôde admitir o fruto sem o semeador.
Existia no Brasil o Ipupiara, informe e mau. Mães-d’Água, Iaras, botos dom-juan são
somas de estórias da Europa e África convergidas para objetos que despertaram a
curiosidade pela anormalidade dos costumes. O Ipupiara passou a Mãe-d’Água. O Boto recebeu a herança erudita do
golfinho páfio, egresso dos cultos dos portos gregos, onde abrolhou Vênus,
citérea ou páfia. A Iara é europeia. O índio não a conheceu outrora. Hoje é
natural que a diga velhíssima, uma vez que, há três séculos, a lenda escorre
pela sua memória. Impossível aceitar na íntegra toda documentação dos
estudiosos. Hartt registra um episódio em que uma Uiara toma a forma de uma veada para seduzir um caçador na serra do
Ererê. Evidentemente essa veada é um despautério para um mito fluvial. Trata-se
de Anhanga... mas isto é outra estória, but
that is another story, como diria Kiplin.”
“Onde vai o Homem, com ele viajam seus
pavores.”
Bem legal, parece um livro interessante.
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