(Não tendo Sócrates deixado nenhum
escrito, além da de uma resumida Biografia
elaborada por José A. M. Pessanha constam nesta obra, além de uma
biografia resumida, os principais testemunhos de sua vida: Defesa de Sócrates de Platão, Ditos
e feitos memoráveis de Sócrates e Apologia
de Sócrates de Xenofonte; e As nuvens
de Aristófanes.)
“Mas o fato que
teria marcado, de forma decisiva, o resto de sua existência foi, segundo ele
mesmo afirma na Apologia, a
declaração, pelo oráculo de Delfos a seu amigo Querefonte, de que ele era o
mais sábio dos homens. Logo ele, sem nenhuma especialização, ele que estava
ciente de sua ignorância? Logo ele, numa cidade repleta de artistas, oradores,
políticos, artesãos? Sócrates parece ter meditado bastante tempo, buscando o
significado das palavras da pitonisa. Afinal concluiu que sua sabedoria só poderia
ser aquela de saber que nada sabia, essa consciência da ignorância sobre coisas
que era sinal e começo da autoconsciência. E viu nas palavras oraculares a
indicação de uma missão a cumprir. “Desde então”, conta em seu julgamento, “de
acordo com a vontade do deus, não deixei de examinar os meus concidadãos e os
estrangeiros que considero sábios e, se me parecerem que não o são, vou em
auxílio do deus revelando-lhes sua ignorância”.”
(José A. M. Pessanha - Biografia)
“Para Sócrates, a
meta seria não o assunto em discussão, mas a própria alma do interlocutor, que,
por meio do debate, seria levada a tomar consciência de sua real situação,
depois que se reconhecesse povoada de conceitos mal formulados e obscuros.”
(José A. M. Pessanha – Biografia)
“Em Sócrates a razão
seria tão mais forte e exigente quanto não teria apenas em si mesmo o motivo de
sua autoconfiança. A sabedoria oracular – que já havia marcado o pensamento e a
linguagem de Heráclito de Éfeso (540-480 a.C.) – parece constituir para
Sócrates o absoluto em que se apoia a razão. Ao tentar decifrá-lo, a razão não
se contrai, antes se expande, e, porque o absoluto é sua meta e seu ponto de
referência, ela pode e deve traçar um que não conhece limites.
No cumprimento da missão
de que se sente encarregado, Sócrates dialoga. Geralmente o interlocutor, tido
como autoridade em algum ramo de conhecimento ou de atividade, decepciona-o.
Apenas nos artífices encontra alguma consciência daquilo que fazem. Mas esses
revelam um conhecimento restrito a suas especializações e embaraçam-se quando
levados a opinar sobre outros assuntos, embora de geral interesse para os
homens. Isso parece confirmar a Sócrates o sentido da superioridade que lhe
fora atribuída pelo oráculo: o reencontro consigo mesmo só pode partir da
consciência da própria ignorância. Mas essa ignorância, que é um atributo de
Sócrates, não é geralmente assumida pelas outras pessoas, que se julgam na
posse de “verdades”. Torna-se necessário, portanto, levá-las, de saída, a despojar-se
dessas pseudoverdades – única forma de torná-las aptas a caminharem em direção
ao conhecimento de si mesmas. A demolição das falsas ideias que fundamentam a
falsa imagem que as pessoas têm delas próprias é o que pretende a ironia: momento do diálogo em que
Sócrates, reafirmando nada saber, força o interlocutor a expor suas opiniões,
para, com habilidade, emaranhá-lo na teia obscura de suas próprias afirmativas
e acabar reconhecendo a ignorância a respeito do que antes julgava ter certeza.
A ironia socrática tem, assim, a função de propiciar uma catarse: uma
purificação da alma por via da expulsão das ideias turvas, das ilusões e dos
equívocos que distanciavam a alma de si mesma.
Orientado por seu
“demônio*” (daimon), espécie de voz
interior que às vezes lhe freava as iniciativas e impedia-o de dialogar com
determinadas pessoas, Sócrates escolhia aqueles com os quais a conversa poderia
assumir caráter de reconstrução, após o exorcismo propiciado pela ironia. Nessa
outra fase do método socrático, o interlocutor – transformado em discípulo – é
levado, progressivamente, pela habilidade das questões propostas, a tentar
elaborar ele mesmo suas próprias ideias. Não mais a repetição automática de
fórmulas consagradas ou chavões herdados, embora ocos de sentido. Agora, de
início timidamente, o interlocutor-discípulo é conduzido ao risco de tentar ser
ele mesmo, de ele mesmo conceber ideias. E de ser ele mesmo sua própria alma.
Sócrates – dando um exemplo que a pedagogia moderna frequentemente tenta reviver
– reserva-se nessa fase, chamada maiêutica
ou parturição das ideias, um papel semelhante ao de sua mãe, Fenareta (que era
parteira). Ela ajudava as mulheres a darem à luz seus filhos; Sócrates, que se
dizia ele mesmo estéril – pois só sabia que nada sabia –, procurava auxiliar as
pessoas noutra forma de concepção, a das ideias próprias: forma de se ir ao
encontro de si mesmo – como prescrevia a inscrição do templo de Delfos – e de
fazer de si mesmo seu próprio ponto de partida. Em algumas afirmativas que lhe
são atribuídas, Sócrates compara-se aos médicos: como estes, ele submetia,
quando necessário, o interlocutor-paciente à purgação da ironia, condição
preliminar para a recuperação da saúde da alma, que seria o conhecimento de si
mesma. E, na verdade, o sentido da filosofia – que ele identificava com sua
sagrada missão – era o de conduzir o indivíduo a pensar como quem se cura:
pensando palavras como quem pensa feridas.”
* Demônio: gênio bom ou divindade, e não o sentido posterior de gênio
do mal.
(José A. M. Pessanha - Biografia)
“Sócrates reage ao
relativismo sofístico. Ao que tudo indica, alicerçado em pressupostos
religiosos órfico-pitagóricos, não concebe o conhecimento humano como apenas a
sucessão de impressões sensíveis – fugazes e intransferíveis – ou a criação, a
partir delas, dos sinais convencionais que constituiriam a linguagem. Se as
palavras são geralmente um terreno instável e uma expressão de opinião relativa
e insegura, é porque, segundo ele, não estariam acompanhadas da consciência de
seu significado. Mas esse significado, por sua vez, deveria emanar da própria
alma do indivíduo, que constitui uma unidade subjacente às mutáveis impressões
dos sentidos.
Na verdade, Sócrates
criou uma nova concepção de alma (psique),
que passou a dominar a tradição ocidental. Antes, como em Homero, a psique era o “duplo” que podia se
desprender provisoriamente durante o sono ou definitivamente, com a morte, mas
que nada tinha a ver com a vida mental ou as “faculdades” da pessoa. Nos
órficos, era o princípio superior, que se reencarnava sucessivamente,
atravessando o processo purificador que a reconduziria às estrelas e a
reintegraria na harmonia universal; mas, enquanto ligada ao corpo, só se
manifestava em situações excepcionais – sonhos, visões, transes. Nos pensadores
jônicos do século VI a. C, a psique
era apenas uma parte do todo: porção do pneuma
(ar) infinito que habitava o corpo, vivificando-o provisoriamente até escapar,
como último alento, na hora da morte – como em Anaxímenes de Mileto; ou porção
de fogo a aquecer e animar o corpo até que afinal retornasse à unidade do
Fogo-Razão, o Logos universal “eternamente vivo, que se acende com medida e se
apaga com medida” – como em Heráclito de Éfeso. É a partir de Sócrates – ou
pelo menos é na literatura referente a ele e que se seguiu à sua morte – que
surge a concepção de alma como sede da consciência normal e do caráter, a alma
que no cotidiano de cada um é aquela realidade interior que se manifesta
mediante palavras e ações, podendo ter conhecimento ou ignorância, bondade ou
maldade. E que, por isso, deveria ser o objeto principal da preocupação e dos
cuidados do homem.
Essa concepção de
alma torna compreensível a tese socrática de que virtude é conhecimento e que,
por conseguinte, ninguém erra deliberadamente. Só que aquele conhecimento nada
teria a ver com as opiniões flutuantes e geralmente infundadas. O conhecimento
que Sócrates identifica à aretê é a episteme (ciência), não a doxa (opinião). E essa episteme – que não pode ser ensinada –
não constitui uma ciência sobre coisas ou informações voltadas para a obtenção
de prestígio ou de riquezas: é o conhecimento de si mesmo, a autoconsciência
despertada e mantida em permanente vigília. Bom é, assim, o homem autoconstruído
a partir de seu próprio centro e que age de acordo com as exigências de sua
alma-consciência: seu oráculo interior finalmente decifrado.”
(José A. M. Pessanha - Biografia)
“Ficai, porém,
certos de que é verdade o que eu dizia há pouco, que muita gente me ficou
querendo muito mal. O que me vai condenar, se eu for condenado, não é Meleto,
nem Ânito, mas a calúnia e o rancor de tanta gente; é o que perdeu muitos
outros homens de bem e ainda os há de perder, pois não é de esperar que pare em
mim.”
(Platão - Defesa de Sócrates)
“Ficai certos, Atenienses: se há muito eu
me tivesse votado à política, há muito estaria morto e não teria sido nada útil
a vós nem a mim mesmo. Por favor, não vos doam as verdades que digo; ninguém se
pode salvar quando se opõe bravamente a vós ou a outra multidão qualquer para
evitar que aconteçam na cidade tantas injustiças e ilegalidades; quem se bate
deveras pela justiça deve necessariamente, para estar a salvo embora por pouco
tempo, atuar em particular e não em público.”
(Platão - Defesa de Sócrates)
“É impossível
aprender com mestre que não nos agrade.”
(Xenofonte - Ditos e feitos memoráveis de Sócrates)
“Não há mais belo
caminho para a glória que um homem de bem ser o que realmente deseja parecer.”
(Xenofonte - Ditos e feitos memoráveis de Sócrates)
“Mas os que
trabalham para ter bons amigos ou para triunfar dos inimigos, para robustecer o
corpo e a alma e assim bem gerir sua casa, fazer bem aos amigos, prestar
serviços à pátria, como não crer que com tais alvos diante dos olhos suportem
com prazer todas as fadigas e vivam felizes, contentes de si próprios, louvados
e invejados dos outros homens? Mais: os hábitos de indolência e os prazeres
fáceis não podem, no dizer dos ginastas, dar boa compleição ao corpo nem fazer
penetrar no espírito nenhum conhecimento apreciável. Ao invés, os exercícios
que querem constância nos conduzem à prática de belas e boas ações, como dizem
os grandes homens. Disse algures Hesíodo: O
vício é sedutor e fácil, seu caminho lhano e breve. Antes da virtude, porém,
colocaram os deuses o suor, e a vereda que leva ao cimo é áspera, fragosa e
árdua: ganhando-se o alto, todavia, aplaina-se o caminho.
O mesmo testemunho
presta Epicarmo neste verso: A felicidade
é um bem que nos vendem os deuses. Diz ainda alhures: Malvado, foge à indolência ou teme a dor.
As mesmas ideias
exprime o sábio Pródico sobre a virtude em sua obra sobre Hércules, de que fez
diversas leituras públicas. Eis, ao que me lembra, pouco mais ou menos o que
diz. Conta que Hércules, apenas dobrara a infância, nessa idade em que os
jovens, já senhores de si, deixam ver se entrarão na vida pelo caminho da
virtude ou do vício, retirou-se para a solidão e sentiu-se incerto quanto à via
a escolher. Duas mulheres de avantajada estatura apresentaram-se-lhe ao olhar:
uma decente e nobre, o corpo ornado de sua natural pureza, os olhos grávidos de
pudor, o exterior modesto, as vestes brancas; a outra toda nediez e moleza, a
pele caiada a fim de aparentar cores mais brancas e mais vermelhas, procurando,
na postura, parecer mais esbelta do que naturalmente o era, os olhos
escancelados; um adereço estudado para realçar seus encantos, mirando-se sem
cessar, observando se a contemplavam e a todo momento voltando a cabeça para
admirar a própria sombra. Aproximando-se de Hércules, enquanto a primeira
conservava o mesmo andar, a segunda, querendo antecedê-la, correu para o jovem
herói e disse-lhe:
“Vejo-te, Hércules,
incerto do caminho a seguir na vida. Se me quiseres tomar por amiga,
conduzir-te-ei pela estrada mais agradável e fácil, provarás todos os prazeres
e viverás livre de pena. Primeiro não te ocuparás de guerras nem negócios, mas
não cessarás de examinar que iguarias e que bebidas melhor te sabem ao paladar,
os objetos que possam deleitar-te os olhos e os ouvidos, acariciar-te o olfato
ou o tato, que afeição terá mais encantos para ti, como dormirás mais
docemente, como poderás procurar todos estes prazeres com o menor esforço. Se
receias venha a faltar-te o necessário para te dares tais doçuras, não temas
que eu te obrigue a trabalhar e a penar de corpo e espírito para os adquirires;
aproveitarás do trabalho alheio e não te absterás do que quer que possa
proporcionar-te ganho: porque dou aos que me seguem a faculdade de em toda
parte obter vantagens”.
Hércules, após ouvir
estas palavras, indagou-lhe:
“Mulher, qual é teu
nome?”
“Meus amigos –
respondeu ela – chamam-me a Felicidade, e meus inimigos, para dar-me nome
odioso, chamam-me a Perversidade”.
Aí a outra mulher,
adiantando-se, disse-lhe:
“Eu também venho a
ti, Hércules; conheço os que te deram à luz e desde tua infância penetrei-te o
caráter. Assim espero que se tomares o caminho que traz a mim, serás um dia
autor ilustre de belos e gloriosos feitos e eu própria me verei mais honrada e
considerada dos homens virtuosos. Não te iludirei com promessas de prazeres:
expor-te-ei o que existe com verdade e tal qual o dispuseram os deuses. Do que
há realmente honesto e belo, nada concedem os deuses aos homens sem sacrifício
e diligência. Queres que os deuses te sejam propícios? Preiteia-os. Ambicionas
a estima de teus amigos? Beneficia-os. Desejas que uma nação te honre? Serve-a.
Queres que a Grécia inteira admire teu valor? Procura ser-lhe útil. Desejas que
a terra te prodigalize seus frutos? Cultiva-a. Preferes enriquecer com
rebanhos? Apascenta-os. Aspiras a fazer-te grande pela guerra? Queres tornar
livres teus amigos e triunfar sobre teus inimigos? Aprende a arte da guerra com
aqueles que a conhecem, exercita-te em pôr-lhes em prática as lições. Desejas
adquirir força física? Habitua o corpo ao império da inteligência e tempera-o
no trabalho e no suor”.
Aí a Perversidade retomando,
no dizer de Pródico:
“Compreendes,
Hércules – disse-lhe – quão penoso e longo é o caminho da felicidade que te
propõe essa mulher? Enquanto eu, é por estrada fácil e breve que te conduzirei
à ventura”.
Então a Virtude:
“Mísera! – exclamou –
que bens possuis? Que prazeres podes conhecer, tu que nada queres fazer para
comprá-los? Sequer deixas nascer o desejo: farta de tudo antes de ter desejado
coisa alguma, comes antes da fome, bebes antes da sede. Para comer com prazer,
vives à caça de cozinheiros. Para beber com prazer, procuras beber vinhos
caríssimos e no verão corres a toda parte em busca de neve. Para dormir
agradavelmente, procuras cobertas macias e leitos flexíveis. Porque não é o
cansaço e sim a ociosidade que te faz desejar o sono. Em amor, provocas a
necessidade antes de senti-la, usas de mil artifícios e te serves tanto de
homens como de mulheres. Assim é, em verdade, que formas teus amigos. À noite
os degradas e de dia os adormeces durante os instantes mais preciosos. Imortal,
foste rechaçada pelos deuses e os homens de bem te desprezam. Nunca te
acariciou os ouvidos o mais adulador dos sons, o de um louvor, nem jamais
contemplaste uma boa ação praticada por ti. Quem daria fé a tuas palavras? Quem
te socorreria na precisão? Qual o homem de bom senso que ousaria misturar-se a
teu bulhento cortejo? Os que te seguem, se jovens, são impotentes de corpo;
velhos, têm a alma embrutecida. Nédios na juventude, por via da ociosidade,
emagrecem ao peso de trabalhosa velhice. Envergonhados do que fizeram,
atormentados do que têm de fazer, borboletearam na primavera da vida de prazer
em prazer e diferiram as penas para o outono da existência. Eu, ao contrário,
estou com os deuses, estou com os homens de bem: entre os deuses como entre os
mortais nenhuma bela ação se faz sem mim. Mais que ninguém, recebo eu dos
deuses e dos homens legítimas honras, companheira querida que sou do trabalho
do artesão, guardiã fiel da casa do senhor, protetora benévola do servidor,
gentil associada nos trabalhos da paz, aliada constante nas labutas da guerra,
intermediária devotada da amizade. Meus amigos saboreiam com prazer e sem
confeição alimentos e bebidas, porque esperam o desejo para comer e beber. O
sono lhes é mais agradável que aos ociosos; interrompem-no sem pesar e não lhe
sacrificam seus negócios. Jovens, sentem-se felizes dos elogios dos anciãos.
Velhos, recebem ditosos os respeitos da juventude. Recordam com deleite as
ações pretéritas e realizam prazerosos o que lhes resta fazer. Por virtude
minha, são amados dos deuses, caros aos amigos, honrados da pátria. Ao soar a
hora fatal, não dormem em olvido sem honra, mas sua memória esplende celebrada
de evo em evo. Aí está, Hércules, filho de pais virtuosos, como, trabalhando,
podes alcançar a suma felicidade”.
Eis pouco mais ou
menos como narra Pródico a lição dada a Hércules pela Virtude, conquanto
ornasse seus pensamentos de expressões mais nobres que as por mim usadas neste
momento.”
(Xenofonte - Ditos e feitos memoráveis de Sócrates)
“Em todas as
ocasiões os homens consentem em sujeitar-se aos que reputam superiores.”