Editora: Record
ISBN: 978-8501-0717-50
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 952
Sinopse: Fascinante
história de uma africana idosa, cega e à beira da morte, que viaja da África
para o Brasil em busca do filho perdido há décadas. Ao longo da travessia, ela
vai contando sua vida, marcada por mortes, estupros, violência e escravidão.
Inserido em um contexto histórico importante na formação do povo brasileiro e
narrado de uma maneira original e pungente, na qual os fatos históricos estão
imersos no cotidiano e na vida dos personagens. Um Defeito de Cor, de
Ana Maria Gonçalves, é um belo romance histórico, de leitura voraz, que prende
a atenção do leitor da primeira à última página. Uma saga brasileira que
poderia ser comparada ao clássico norte-americano sobre a escravidão, Raízes.
(Provérbios africanos)
“Uma chama não perde nada ao acender outra
chama.”
“A borboleta que esbarra em espinhos rasga as
próprias asas.”
“O Hoje é o irmão mais velho do Amanhã, e a
Garoa é a irmã mais velha da Chuva.”
“Aquele que tenta sacudir o tronco de uma
árvore sacode somente a si mesmo.”
“Só quando uma árvore cai alcançamos todos os
seus galhos.”
“Se alguém corre através de um espinheiro, ou
persegue uma cobra ou foge dela”.
“A sola do pé conhece toda a sujeira da
estrada.”
“A espada não poupa o próprio ferreiro.”
“Quando não souberes para onde ir, olha para
trás e saiba pelo menos de onde vens.”
“Mesmo o leito seco de um rio ainda guarda o
seu nome.”
“Exu matou um pássaro ontem com a pedra que
jogou hoje.”
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“Amigo é como um vizinho quando Deus está
distraído.”
“A Policarpa me contou muitas histórias sobre
Oxum, Oxum Docô, cultuada em sua terra e que é amiga da Iyàmí-Ajé, a “minha Mãe
Feiticeira” e senhora dos pássaros, sobre quem eu já tinha ouvido a minha avó
falar. A Policarpa disse que quando os orixás chegaram à terra, eles se reuniam
para resolver todos os problemas, mas nunca convidavam as mulheres para as assembleias.
Oxum se aborreceu quando ficou sabendo disso e começou a tramar vingança contra
os homens. Como ela é o orixá da fertilidade e da prosperidade, fez com que
todas as mulheres ficassem estéreis e todos os projetos dos homens dessem
errado. Quando perceberam o que estava acontecendo, eles se desesperaram e
foram consultar Olodumaré, que logo perguntou se Oxum estava sendo convidada
para as assembleias. Eles responderam que não, e então Olodumaré disse que,
enquanto ela não frequentasse as reuniões, as coisas continuariam dando errado.
Convidada, Oxum só aceitou depois de muito insistirem. Implorarem talvez seja a
palavra certa, e então todas as mulheres voltaram a ser fecundas e todos os
planos frutificaram. É por isso que Oxum é muito importante, porque ela, rainha
das águas doces, fertiliza a terra e o ventre das mulheres, fazendo com que
brotem todas as riquezas.”
“Na chegada à casa, a banda continuou tocando
do lado de fora, para que o espírito do moribundo acreditasse que havia um
concerto de anjos tocando para ele, fazendo com que as portas do céu se
abrissem para bem recebê-lo. Os padres acreditavam que assim a alma ia embora
mais depressa, aliviando o sofrimento do doente. Depois dessa negociação com a
alma aconteceu a salvação e a encomendação, e, no caso do sinhô José Carlos, a
defesa. Sobre a salvação e a encomendação, a Esméria contou que, primeiro, o
moribundo beijava a Santa Cruz e reconhecia Deus como seu único Senhor e
Salvador, e em nome dele se arrependia de todos os pecados dos quais se
lembrava. Os que tinha esquecido, ou mesmo os que não sabia serem pecados, eram
purificados com o ato de passar os santos óleos sobre a boca, o nariz, os
olhos, as orelhas e as mãos do moribundo, já que é por intermédio dessas partes
do corpo que uma pessoa pode pecar. E só então, livre de todos os pecados, o
moribundo pode receber a hóstia, para que a alma suba aos céus acompanhada do
corpo e do sangue do Cristo dos brancos. Isso tudo foi a Esméria que me contou
naquele dia; sobre a defesa, para que a alma fosse logo descansar no reino dos
céus, eu aprendi mais tarde, quando trabalhei na casa do padre Heinz, um
estrangeiro que tinha muitos livros e, entre eles, um chamado método de ajudar
a bem morrer. Esse livro explica que a hora da morte, para um católico, é a
hora na qual acontece uma grande guerra e a alma precisa ser defendida como se
estivesse em um tribunal. Os padres são os instrutores militares e os
advogados, capazes de salvar almas que tinham pecado uma vida inteira, ou
então, caso não fossem bons defensores, de arruinar o futuro de almas que
podiam ser consideradas quase santas na Terra. São os padres que orientam as
almas, dizendo como elas devem agir para vencer as forças do mal que, na hora
da morte, tentam levá-las para o inferno. As mais poderosas armas do cristão,
segundo o livro, são os sacramentos, que fortalecem e deixam a alma mais
esperta que o mais cruel dos inimigos, o mais ardiloso deles, o mais demoníaco.
Só bem preparada e fortalecida, a alma pronta para desencarnar pode vencer esse
inimigo, protegida por um poderoso e invencível exército de anjos comandado
pelo arcanjo Gabriel. Como instrutor militar, o padre se vale dos sacramentos,
e como advogado usa as palavras, porque não basta afastar o demônio, também é
preciso fazer com que a alma seja aceita por Deus. Como na maioria das vezes o
doente não está em condições de fazer a própria defesa, é o padre quem deve
falar de suas boas ações e aos seus bons sentimentos. Eu nunca soube quem teve
a difícil tarefa de interceder pelo sinhô José Carlos, mas não deve ter sido
fácil sem o uso de omissões e mentiras frente Àquele que tudo vê.”
“À noite, sozinha com o meu filho, a Esméria
me orientava a colocá-lo no peito, mesmo que não saísse nada. E foi assim que
fiz, sendo que certo dia o leite brotou. Ainda me lembro daquele momento
mágico, pois nada no mundo se compara a dar algo de nós para um filho.”
“Quem tem amigos tem todo o resto que merece
ter.”
“Se cada pessoa cuidasse com devoção das que
estão próximas a ela, tudo seria melhor.”
“Depois do enterro do meu filho primogênito,
voltei para casa com a sensação de ter deixado uma parte muito importante de
mim em algum lugar de onde eu nunca mais conseguiria recuperá-la.”
“Muitos africanos, principalmente os iorubás,
veem a morte, do jeito que a Mãezinha me contou naquele dia. O corpo, esse que
a gente toca e vê, é chamado de ara, e quando morremos ele volta a se fundir
com a natureza. Mas há também o corpo que não vemos, dividido em quatro partes.
A primeira é o emi, o sopro vital que é criado por Oxalá e que depois de
abandonar nosso corpo volta para as forças controladas por ele, para depois ser
usado em outro corpo. A segunda parte é o orí, a cabeça, onde está nosso
destino e que morre junto com o ara, porque cada pessoa tem um destino, ninguém
herda o destino do outro. A terceira parte é o orixá, a nossa identidade, que
define os nossos defeitos e as nossas origens, qualidades, forças e fraquezas,
e que é uma parte muito pequenina do orixá geral, para quem retorna depois da
morte do nosso corpo. E por último existe o egum, que é como se fosse a nossa
memória de passagem pelo ayê, pela terra, o nosso espírito que volta para o Orum
e que depois pode retornar, nascendo geralmente dentro da mesma família, por
muitas e muitas gerações. São esses espíritos que, de certa maneira, podemos
comparar ao que a minha avó chamava de vodum, e que, por serem espíritos
importantes para uma família ou um povo, devem ser sempre lembrados e
cultuados. Eu já sabia um pouco de tudo isso, mas foi bom a Mãezinha explicar
desde o início, porque ficou mais fácil entender o que viria em seguida.
Eguns e egunguns
Com palavras muito bem escolhidas e voz
tranquila, a Mãezinha parecia receber inspiração especial ao falar de uma força
que nós, mulheres, temos à disposição e devemos aprender a usar. Ela contou
que, quando o mundo foi criado, Olodumaré, o Deus Supremo, mandou três
divindades à terra: Ogum, o senhor do ferro, Obarixá, o senhor da criação dos
homens, e Oduá, a única mulher e a única que não tinha poderes. Por causa
disso, Oduá foi se queixar a Olodumaré e recebeu dele o poder do pássaro
contido em uma cabaça, o que fez dela uma lyá Won, a nossa mãe suprema, a mãe
de todas as coisas e para toda a eternidade, a que dá continuidade a tudo que
existe ou venha a existir. Olodumaré disse a Oduá que, a partir de então, o
homem nunca mais poderia fazer nada sem a colaboração da mulher. Com o poder
dos pássaros, as mulheres receberam de graça e de nascimento o axé, que é uma
energia que os homens têm que cativar. Não me lembro direito da explicação para
este poder estar desde sempre com as mulheres, mas acho que está relacionado ao
ninho, representado pela cabaça, ou ao ovo, gerado pelo pássaro. Só sei que,
por meio dele, as mulheres passaram a ser as que geram, as que fertilizam, as
donas da barriga, que é por onde circula toda a energia e a vida do corpo,
através do sangue. É por isso que as mulheres têm as regras, porque o grande
poder feminino segue o rastro do sangue. Olodumaré também alertou Oduá que esse
era um poder muito grande, maior do que qualquer outro, e que por isso deveria
ser usado com cuidado. Mas Oduá abusou, o que fez com que Obarixá fosse se
queixar a Olodumaré, preocupado e humilhado com o poder concedido às mulheres.
Olodumaré fez o jogo do Ifá para Obarixá e o ensinou a conquistar e vencer
Oduá, usando a astúcia e fazendo sacrifícios e oferendas. Ele seguiu os
conselhos e conseguiu se casar com Oduá depois de tê-la enganado, fazendo com
que comesse uma de suas quizilas (Quizila: Tabu que os orixás têm em relação a
certos alimentos). Com o passar do tempo, Obarixá conquistou a confiança de
Oduá e descobriu de onde vinha grande parte do seu poder, o culto aos eguns.
Ela também mostrou a roupa especial dos eguns e deixou que ele, em segredo,
participasse dos cultos. O que Oduá não sabia era que tudo isso fazia parte dos
planos de Obarixá, que aproveitou um dia em que ela saiu de casa para modificar
e vestir a roupa de egum, chamado então de egungum, e foi assim vestido para a
cidade. Quando viu a roupa de egungum andando e falando, Oduá percebeu que
tinha sido enganada e reconheceu que merecia ser castigada pelo descuido. Ela
então prestou homenagem à esperteza de Obarixá e mandou que o pássaro pousasse
sobre ele, para que ele tivesse o poder de transformar em realidade tudo o que
dissessem as suas palavras. Depois disso, Oduá nunca mais participou do culto
aos egunguns, permitido somente para homens, e ficou com o culto às íydmis. Os
eguns masculinos são os egunguns e os femininos são as lyámis. Os egunguns são
cultuados separadamente, e somente pelos homens, como um castigo ao abuso e ao
descuido de Oduá. Mas, como uma homenagem às mulheres, os homens vestem roupas
de mulher. Toda íydmi, ou íydmi agbd, (ydmi agbd: minha mãe ancestral) é
cultuada na pessoa de íydmi òsòròngd, que também é chamada de iyãnla, (Iyãnla:
A Grande Mãe), e para isso as mulheres se unem nas sociedades gelédés. A
Mãezinha fazia parte de uma delas, ali mesmo na ilha. Íydmi Òsòròngd também
pode ser chamada de Íyemònjd-Òdud, a dona dos mares, a dona das águas que
nutrem e fecundam a terra, o grande útero do mundo. Você sabia que Xangô é
também um egungum? Acho que só no Brasil ele é tratado como orixá, mas na
verdade é um grande ancestral do povo iorubá, um dos mais importantes reis de
que já se ouviu falar em toda a África. Naquele baú, a Mãezinha guardava também
bonitas máscaras feitas de madeira e enfeitadas com entalhes de penas ou penas
verdadeiras. Algumas delas tinham só a parte da frente e outras cobriam toda a
cabeça, como um saco que se enfiava até o pescoço, e eram bastante pesadas. Não
experimentei, mas dava para perceber que não era nada confortável vestir
aquilo. Enquanto me mostrava as máscaras, a Mãezinha contou que as mulheres das
sociedades gelédés são chamadas de feiticeiras, por causa das sete lyámis que
foram enviadas ao ayê por Olodumaré. Essas iydmis têm a capacidade de se
transformar em pássaros, e o som emitido por um desses pássaros é que dá nome à
sociedade: òsòrongà. Quando as sete feiticeiras foram mandadas à terra,
pousaram sobre seis árvores, sendo que três escolheram árvores do bem e três
escolheram árvores do mal. Restou apenas uma, que ficava voando de um lado para
o outro, entre o bem e o mal. Devemos estar sempre de bem com elas, prestando
homenagens, para que não nos queiram mal, pois o feitiço das iydmis é
extremamente poderoso, ninguém pode com elas. A minha avó conhecia o poder
desses pássaros, porque naquela tarde, sob o iroco, ela se referiu às sombras
deles, dizendo que eram de mau agouro. A Mãezinha confirmou que a sombra das
lyámis é fatal, e que se uma delas passar sobre a nossa cabeça, pode ser que
ainda nos salvemos, e somente a força das mulheres pode amenizar o poder das
iydmis, porque somente as mulheres têm o axé natural, que vem do nosso ventre,
dos nossos seios e das nossas regras. Mas se por acaso, alguma das iydmis
pousar sobre a nossa cabeça, não há salvação, pois nenhum axé é tão poderoso
quanto a força delas. Quando se fala no nome delas, quem está de pé tem que
fazer uma reverência, e quem não está tem que se levantar imediatamente, para
não correr o risco de elas se vingarem pela falta de respeito. A Mãezinha disse
que em São Salvador havia um lugar sagrado para o culto gelédé, e me lembrei de
já ter visto algumas pessoas caminharem por lá com as mãos sobre as cabeças,
provavelmente com medo das sombras. É um lugar chamado Dendezeiros do Bonfim,
onde provavelmente ainda existe um grande iroco, sob o qual as pessoas evitavam
passar durante a noite, principalmente à meia-noite, quando é ainda mais forte
o poder das iydmis, assim como ao meio-dia. Quando ela soube que eu era do
Daomé, disse que muitas pessoas da minha terra se reuniam em um lugar chamado
Bogum, que provavelmente era um jeito de dizer "vodum". Eu sabia que
ficava na Federação e era frequentado sobretudo pelos mais velhos como eu, que
cultuavam o vodum Zogbo.”
“As crianças esquecem com facilidade, têm a
vida toda para repovoar a memória com lembranças boas, e por isso não têm muita
necessidade de lamentar as más recordações.”
“Acho que essa é até uma palavra melhor que
tristeza, a palavra conformismo, porque é uma palavra que acaba com os sonhos
das pessoas.”
(...) “Ele dizia que um verdadeiro artista
precisava saber contemplar, que a natureza era a dona de toda a arte, apenas
emprestada aos homens.”
“Duas ou três semanas antes da partida eu já
tinha começado a chorar escondida pela casa, à noite, quando todos estavam
dormindo e eu me levantava para olhar os ibêjis (gêmeos) em suas camas. Eu não
sabia por quanto tempo meus filhos ficariam fora, e o padre Borghero calculava
cinco anos, no mínimo. Durante todos esses anos eles não voltariam para casa,
por causa da distância e do tempo que perderiam indo de um lado para outro, e
eu tinha certeza de que voltariam muito diferentes. Não apenas na aparência, mas
voltariam adultos, e me tratariam como adultos. Eu achava que isso era bom,
gostava da ideia de eles se tornarem adultos independentes, mas tinha medo de
que mudassem a ponto de eu não reconhecê-los. Sempre mudamos, mas quando
estamos perto de alguém, a pessoa vai se acostumando com a gente, com o que
estamos nos tornando, e aprendendo a gostar daquela nova pessoa. De longe isso
não acontece.”
Interessante os trechos.
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