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domingo, 20 de abril de 2014

As Novelas de Torquemada - Benito Pérez Galdós

Editora: Paz e Terra
ISBN: 999-90-035-7542-8
Tradução: Cláudia Schilling
Opinião: ★★★★★
Páginas: 504
Sinopse: Considerado o “Honoré de Balzac” da literatura espanhola por sua obra monumental que, à maneira de Comédia Humana, retrata a vida na Espanha moderna e contemporânea através das 46 novelas dos Episodios Nacionales, Benito Peráz Galdós é praticamente desconhecido no Brasil.
Em As novelas de Torquemada, o personagem principal distancia-se pelo menos quatro séculos daquele terrível inquisidor geral da Espanha, que no século XV deportou milhares de judeus e mandou para a fogueira outros tantos hereges. Usurário, agiota e pequeno burguês, o D. Francisco Torquemada destas páginas é até pior que o primeiro. Metaforicamente ele usa e abusa dos métodos e da mesma falta de escrúpulos. Em nome da vertiginosa ascensão social, D. Francisco converte-se em marquês, aristocrata e senador por meio de especulações financeiras, podendo para isso ‘queimar’ e arruinar qualquer um que se coloque em seu caminho.



“Nunca é tarde para fazer o bem.”


“Ah misericórdia! Lindo anzol sem isca para ser engolido pelos tontos.”


“A vida é muito curta. A gente morre quando pensa que ainda está nascendo. Deveriam dar-nos tempo para emendar nossos erros...”


“Estou pensando que a morte é um bem, porquê se vivêssemos sempre e não houvesse enterros nem funerais, que comeriam os ministros do Senhor?”


“Mas o bom Donoso também começara a gemer sob o jugo de um destino adverso. Não tinha filhos, mas sim esposa, que era sem dúvida alguma a mulher mais doente da criação. No longo inventário de doenças que afligem a mísera Humanidade, não se conhece nenhuma que não a tenha atacado, sendo o seu corpo um caso patológico digno de estudo da parte de todos os facultativos do mundo. Mais do que doente, a boa senhora era uma escola de Medicina. Os nervos, o estômago, a cabeça, as extremidades, o coração, o fígado, os olhos, o couro cabeludo, tudo naquela infeliz mártir estava revolucionado. Com tantos achaques sofridos por tempo indefinido sem que se vissem sinais de remédio, a senhora de Donoso chegou a formar um caráter especial de pessoa soberanamente enferma, orgulhosa de sua péssima saúde. De tal modo que acreditava exercer o monopólio do sofrimento físico, que protestava quando lhe diziam que poderia existir alguém tão doente quanto ela. E se se falava de alguma pessoa que padecia de tal dor ou mal, não querendo ser menos que ninguém, ela se declarava atacada da mesma coisa, porém em grau superior. Falar de suas enfermidades, descrevê-las com morosa prolixidade, como se se deleitasse com seu próprio sofrimento, era para ela um desabafo facilmente perdoado por todos que tinham a infelicidade de ouvi-la; e os da família davam corda para que se abrisse, com aquele vago traço de volúpia que punha no relato de suas fisgadas, angústias, náuseas, insônias, câimbras e dores de barriga. Seu marido, que a amava profundamente e que há quarenta anos tinha em sua casa aquela recopilação de toda a Patologia interna, desde os tempos de Galeno até nossos dias, terminou por assimilar o orgulho hipocrático de sua doente metade, e não achava nenhuma graça em que se falasse de padecimentos não conhecidos por sua Justa, ou que nem remotamente fossem parecidos com os de Justa.”


“Finalmente cedi porque, como diz muito bem diz nosso bom amigo Donoso, viver é ceder. Aceitei um pouquinho do que era proposto, e a senhora cedia um ápice, ou dois ápices nas suas pretensões... O justo médio, vulgo prudência. As senhoras Águilas não poderão dizer que não tentei fazer-lhes o gosto, desmentindo-me, como se diz. Para contentar minha querida esposa e a senhora, privo-me de comer em mangas de camisa, o que era muito do meu gosto em dias de calor. Empenharam-se depois em trazer-me uma cozinheira de doze duros. Que barbaridade! Nem que fôssemos arcebispos! Pois cedi em admitir a que temos, oito durões, que embora realmente faça primores estaria bem paga com 100 reais. Para que minha senhora e a irmã de minha senhora não se alvorocem, deixei de comer salpicão na última hora da noite, antes de me deitar, porquê, reconheço, não fica bem que o cheiro de cebola me preceda, abrindo-me caminho como um batedor. E reassumindo: cedi também com o lacaiozinho, esse para recados e limpar minha roupa, embora, a bem da verdade, para evitar reprimendas ao pobre rapaz, alguns dias limpe não só minha roupa mas também a dele. Mas enfim, tudo corre bem com o garoto, que se não me engano, não presta serviços em consonância com o que consome. Eu observo tudo, minha senhora; costumo dar uma volta pela cozinha enquanto a servidão, vulgo criados, está comendo, e vi que esse anjo de Deus engole a ração de sete, além de prejudicar a família ao cortejar as criadas da casa e de toda a vizinhança. Enfim, vocês o querem, que assim seja. Agora adoto esta atitude para que não me digam que sou a intransigência personificada, e para ser capaz de negar-me agora, como me nego, a derrubar tabiques, etecetera..., que isso de estragar a propriedade vai contra a lógica, contra o bom senso e contra a conveniência de próprios e estranhos.”


“Na hora do almoço, dom Francisco voltou da rua e surpreendeu a cunhada com os olhos brilhantes, suspirando e triste.
– O que está acontecendo? – perguntou-lhe, alarmadíssimo.
 – Isso nos faltava... Asseguro-lhe meu amigo, que Deus quer submeter-me a provas demasiado duras... Rafael está doente, muito doente.
– Mas se esta manhã estava rindo como um doido.
– Precisamente... Esse é o sintoma.
– Rir-se... Sintoma de doença! Puxa vida, cada dia a gente descobre coisas estranhas neste novo regime instituído por vocês. Sempre vi doentes chorando, ou porque sentisse dor, ou por falta de respiração, ou por não poderem extravasar por algum lugar... Mas não sabia que os doentes morriam de rir.
– O melhor – indicou Fidela ocupando seu lugar à mesa e olhando o marido com rosto sereno aprazível – seria chamar um médico especialista em doenças nervosas... E quanto antes, melhor...
– Especialista! – exclamou Torquemada, perdendo repentinamente o apetite. – Quer dizer, uma sumidade, um daqueles médicos que depois de deixar teu irmão pior do que estava, cobra uns emolumentos fantásticos.
– Não podemos consentir que essa neurose se desenvolva – disse Cruz ocupando seu lugar.
– Essa quê?... Ah!, já sei, a neurose mentirogis... Olhe, Cruz, o que meu genro não fizer não será feito por nenhum facultativo desses que se exibem roubando o gênero humano, depois de encherem de cadáveres os nossos clássicos cemitérios.
– Não chateies, querido Tor – interrompeu docemente Fidela. – É preciso chamar um especialista, dois especialistas e até mesmo três.
– Com um é suficiente – manifestou Cruz.
– Não, será melhor trazer para cá um rebanho de doutores – acrescentou dom Francisco, recuperando o apetite. – E logo que acabarem de receitar, todos nós iremos para os asilos de El Pardo.
– O senhor é o próprio exagero, meu senhor – disse-lhe Cruz festivamente.
– E a senhora, o maquiavelismo em pessoa, ou personificado... E, entre parênteses, minhas senhoras, essa cozinheira de oito duros poderá ser a oitava maravilha, mas eu não gosto. Esses rins parecem queimados.
– Mas estão deliciosos!
– Romualda os preparava melhor e vocês a despediram porque se penteava na cozinha... Enfim, resigno-me a essa ordem de coisas, e transigiremos...
– Transação – disse Fidela, passando a mão pelo ombro do marido.
– Em vez de chamar os três especialistas...
– Três, nada menos? É melhor que digas as três pragas do Faraó, e o gafanhoto médico-farmacêutico.
– Pois em vez de chamar o especialista, levaremos Rafael a Paris para ser examinado por Charcot.
– E quem é esse aproveitador? – perguntou Torquemada após engolir o pedaço de carne que, ao ouvir Charcot, tinha ficado atravessado em sua garganta, sem ir para cima nem para baixo.
– Não é um aproveitador. É o primeiro sábio da Europa em enfermidades cerebrais.
– Pois eu – afirmou o tacanho, batendo na mesa com o cabo do garfo –, eu digo ao primeiro sábio da Europa que vá plantar batatas... E que se quiser doentes ricos, que vá receitar à grande porquíssima de sua mãe.
– Homem, que coisas dizes!... – manifestou Fidela com doce severidade e carinho. – Francisco, pelo amor de deus... Olha, bobinho, com a viagem a Paris matamos dois pássaros com um só tiro.
– Mas eu não quero matar pássaros com um tiro, nem com dois.
– Levaremos Rafael para ser visto por Charcot.
– Se fosse apenas vê-lo... então mandaremos o seu retrato...
– Estou dizendo que assim curaremos Rafael e ao mesmo tempo verás Paris, que nunca viste.
– Não me faz nenhuma falta.
– Não? Não achas terrível ter de dizer, quando se fala de grandes cidades: “Pois é, senhores, só conheço Madrid... e Villafranca del Bierzo?” Não te faças de inculto, pois não o és. Paris! Se tu a visses, o círculo de tuas ideias se ampliaria.
– O círculo de minhas ideias – disse Torquemada recolhendo avidamente a frase, que lhe pareceu bonita e ficou gravada em seu arquivo de locuções – não é uma manga estreita para que alguém o alargue. Cada um em seu círculo e Deus no de todos.
– E uma vez em Paris – acrescentou a esposa, com vontade de provocar docemente o marido – não voltaríamos sem dar uma espiadinha na Bélgica ou no Reno.
– Sim, estamos para espiadinhas...
– Mas é baratíssimo... E também iríamos à Suíça.
– Sim, e às ventas de Alcorcón.
– Ou faríamos a excursão do Palatinado bávaro, de Baden até a Floresta Negra.
– Sim e até a floresta branca; e depois daríamos uma passadinha pelo Polo Norte e pela Patagônia, e voltaríamos para casa pela Ursa Maior. E ao chegar aqui eu teria de pedir um emprego nas obras da Prefeitura para sustentar a família ou ajuda à Previdência Social...
As duas damas celebraram com francas risadas este discurso e Cruz terminou com a contenda da forma mais razoável:
– Essa história da viagem é uma brincadeira da Fidela para assustar o senhor, dom Francisco. Não precisamos acudir a Charcot. Os tempos não permitem gastos de viagem e consultas com eminências europeias! O que Rafael precisa principalmente é distração, tomar muito ar, passear longe do infernal ruído destas ruas...
– Vamos, falando de dinheiro, minha senhora, isso é outra indireta para a carruagem. No fim terei de aceitar o veículo.
– Mas não falamos nada do veículo – observou Fidela, meio sério e meio risonha.
– Passear longe!... Sim, Rafael vai se curar com os sacolejos da berlinda. Tudo bem, comecem a correr, e não parem até Móstoles.
– O senhor – disse Cruz com o tom de autoridade que não admitia réplica das poucas vezes em que o utilizava, especialmente se era acompanhado pela vibração do lábio – o senhor comprará o carro, e não por nós ou por nosso irmão, senhor dom Francisco, disso pode ter certeza, mas pelo senhor mesmo. É indecoroso que ande feito um aguadeiro por essas ruas um homem do seu crédito e respeitabilidade.
– Ah!... Ah!... Minha amiga – exclamou dom Francisco em voz muito alta e em tom que tanto tinha de festivo quanto de leviano. – A senhora não me engana com esse discurso. Sejamos justos: eu sou um homem humilde, não uma entidade, como diz a senhora. Fora entidades e bíblias... Com essa lisonja, o que a senhora quer é dar pábulo aos gastos. Eu só dou pábulo à economia, e por isso tenho um pedaço de pão. Mas com a atitude das senhoras, logo teremos de pedi-lo emprestado, e olhe lá... Dívidas na minha casa!... Oh! Nunca... Se a falência, vulgo miséria, vier, a senhora, Crucita, terá a culpa... Quer dizer que carro! Pois haverá carro, não para mim, que sei ganhar a santíssima rosca andando como São Francisco, meu padroeiro, mas para as senhoras, afim de terem tudo que for compatível com sua nova entidade...
– Mas eu não pedi...
– Como não? Se tem a lábia de um frade! Se não há nenhum dia em que não me vem com indiretas! Derrubar tabiques, derrubar a metade da casa para fazer salões... E a costureira e o alfaiate e o tapeceiro e o armazeneiro e a bíblia em pasta... Pois agora, com essa história de que o irmãozinho está com vontade de rir, vou ter de chorar, e todos choraremos. Já estou vendo uma série não interrompida de caprichos, e portanto de novos gastos. É preciso distrai-lo; e como ele gosta tanto de música, teremos de trazer para cá a orquestra do Teatro Real, e aquele zangão que mostra com uma varinha o que se deve tocar – risadas. – É preciso trazer um facultativo. Pois que venha toda a São Carlos e chovam honorários... É preciso convidar Juan, Pedro e Diego, os amigões que vêm fazer-lhe companhia, uns poetas, outros dançarinos. Pois aí já vão doze ou catorze consumições e um monte de pratos extraordinários para que criem barriga antes da época esses para...
A palavra ficou pela metade, pois por ser de recente aquisição, não podia ser pronunciada sem certa precaução e estudo.
– Parasitas – disse Fidela.”


“Cruz mandava e mandaria sempre, fosse qual fosse o rebanho que apascentasse, mandava porque desde o nascimento o Céu lhe enviara energias poderosas, e porque ao lutar contra o destino durante longos anos de miséria, aquelas energias tinham se temperado e revigorado até se tornarem colossais, irresistíveis. Era o governo, a diplomacia, a administração, o dogma, a força armada e a força moral, e contra essa soma de autoridades ou princípios nada podiam os infelizes que caíam sob seu domínio.
Finalmente a senhora retirou-se do escritório de dom Francisco com ar ditatorial, e o outro permaneceu lá exercendo, com grave detrimento dos tapetes, o direito dos pontapés, desabafando com erupção de termos soezes.
– Maldita para sempre seja tua alma de mil demônios!... Recristo, a esse passo logo ficarei desnudo. Bíblia, porque me deixei trazer a este elemento e por que não rompi o cabresto quando percebi a situação!... E não podem dizer, isto nunca, que me comporto mal, que as deixo passar fome... Isso não, atenção!... Fome, nunca. Economia, sempre... Mas esta senhora, mais soberba que Napoleão, por que não deixa que eu governe a casa como eu achar melhor e segundo minha própria lógica? Maldita, e como manda e como me domina e me deixa sem vontade, meramente embruxado!... Não sei o que tem essa criatura que me deixa asfixiado; quero respirar pela defesa de meu interesse e não posso, e ela me faz virar criança!... E agora quer me engabelar com a história de que haverá sucessão! Que engraçado! Nunca duvidei disso, com mil pares de diabos! É o meu filho que está voltando, por vontade minha e decreto do santo Altíssimo, do Baixíssimo ou de quem for!... Déspota, mandona, grã-vizira e capitã-geral de todo o governo do mundo, qualquer dia eu recobro o sentido, me desenfeitiço e pego uma estaca... – puxando os cabelos. – Mas como poderei pegar uma estaca, pobre de mim, se tenho medo dela e quando vejo que o seu lábio está tremendo, vou me esconder embaixo da mesa! A estaca que eu pegar será a vara de São José, porque sou um bendito e só sirvo para combinar o algarismo e tirar dinheiro debaixo das pedras... Esse talento ninguém me tira... Mas ela me ganha no mando e em inventar razões que me deixam sem palavras... Nunca vi fêmea igual, nem creio que haja outra sob o sol... Mas com quem me casei, com Fidela ou com Cruz, ou com as duas ao mesmo tempo? Porque se uma é propriamente minha mulher... Com respeito... A outra é a minha tirana... E de tirania e mulherio, tudo junto, compõem-se essa endiabrada máquina do matrimônio... Enfim, sigamos para a frente e vivamos para ganhar o santíssimo dinheiro, que guardarei onde não possa ser farejado pelas minhas ilustres, respeitadas, aristocráticas... consortes.”


“Do sublime ao ridículo há apenas um passo.”


“Não ligo para hierarquias nem respeitabilidades, sejam as que forem, porque ante a verdade não há cabeça que não deva se humilhar.”

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