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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Factótum – Charles Bukowski

Editora: L&PM
ISBN: 978-85-254-1192-1
Tradução: Pedro Gonzaga
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 184
Sinopse: Em Factótum, segundo romance de Charles Bukowski, publicado em 1975, encontramos mais uma vez Henry Chinaski, alter ego do autor, protagonista de vários dos seus livros e um dos mais célebres anti-heróis da literatura americana. Durante a Segunda Guerra Mundial, o loser Henry (que reaparece mais tarde em Misto-quente) é considerado “inapto para o serviço militar” e não consegue entrar para o exército. Assim, enquanto os Estados Unidos se unem em torno da guerra e os homens alistados são vistos como heróis, Chinaski, sem emprego, sem profissão nem perspectiva, cruza o país, arranjando bicos e trampos, fazendo de tudo um pouco – daí o nome do livro –, na tentativa de subsistir com empregos que não se interponham entre ele e seu grande amor: escrever.
Em meio a tragos, perambulações por ruas marginais, tentativas de ser publicado, vivendo da mão para a boca, o autor iniciante Henry Chinaski come o pão que o diabo amassou. Tais trechos, que tratam do escritor em formação, estão entre os mais pungentes e interessantes do livro. Na sua versão do artista quando jovem, Bukowski vê tudo através da lente da desmistificação – desmistifica a imagem do artista romântico e o milagre americano – e faz desse olhar cínico a sua profissão de fé.
  


“O problema, naqueles dias de guerra, eram as horas extras. Aqueles que estavam no comando sempre preferiam sobrecarregar uns poucos homens de modo contínuo a contratar mais pessoas para que todos pudessem trabalhar um pouco menos. Você dava a seu chefe oito horas, e ele sempre pedia por mais. Ele nunca lhe mandava para casa depois de seis horas, por exemplo. Isso daria tempo a você para que pensasse.”


“Isto era tudo de que um homem necessitava: esperança. Era a falta de esperança que desencorajava um homem. Lembrei de meus dias em Nova Orleans, vivendo de duas barras de caramelo de cinco centavos por dia, ao longo de várias semanas, para ter tempo livre para escrever. Mas passar fome, infelizmente, não melhora a arte. Apenas a obstrui. A alma de um homem está profundamente enraizada em seu estômago. Um homem pode escrever muito melhor após comer um belo pedaço de filé acompanhado de uma dose de uísque do que depois de uma barra de caramelo de um níquel. O mito do artista faminto é um embuste. Uma vez que você percebe que tudo é um embuste, você fica esperto e passa a sangrar e queimar seus semelhantes. Eu ergueria um império sobre as carcaças e vidas destroçadas de homens, mulheres e crianças indefesos – eu os atropelaria. Eu lhes daria uma bela lição!


“Quando voltei para Los Angeles, encontrei um hotel barato nas imediações da Hoover Street e fiquei na cama e bebi. Bebi por algum tempo, três ou quatro dias. Não conseguia achar disposição para ler os classificados. A ideia de me sentar diante de um homem e sua mesa e lhe dizer que eu queria um trabalho, que eu tinha as qualificações necessárias, era demais para mim. Francamente, eu estava horrorizado diante da vida, o que um homem precisava fazer para comer, dormir, manter-se vestido. Então fiquei na cama enchendo a cara. Quando você bebia, o mundo continuava lá fora, mas por um momento era como se ele não o trouxesse preso pela garganta.
Certa noite, saí da cama, me vesti e saí a caminhar pela cidade. Quando dei por mim, estava na Alvarado Street. Segui até chegar a um bar que me pareceu convidativo e entrei. Estava cheio. Havia apenas um lugar vago. Sentei. Pedi um scotch com água. À minha direita, estava uma loira quase castanha, um pouquinho gorda, o pescoço e as bochechas um tanto flácidas, na certa uma bêbada. Havia, no entanto, em seus traços um resquício ainda de sua beleza, e seu corpo continuava parecendo rijo, jovem e bem-proporcionado. De fato, suas pernas eram longas e adoráveis. Quando ela terminou seu drinque, perguntei se aceitaria outro. Ela disse sim. Paguei-lhe um.
– Mas que bando de idiotas vem aqui – ela disse.
– Estão em todo lugar, mas especialmente aqui – eu disse.
Paguei-lhe mais três ou quatro rodadas. Não nos dissemos nada. Então lhe comuniquei:
– Este foi o último. Estou quebrado.
– Sério?
– Sim.
– Tem algum lugar pra ficar?
– Um apartamento, com mais duas ou três diárias pagas.
– E você não tem mais nenhuma grana? Nem nada pra beber?
– Não.
– Vem comigo.
Segui-a para fora do bar. Percebi que ela tinha um traseiro e tanto. Fui junto com ela até a loja de bebidas mais próxima. Ela disse ao atendente o que queria: duas garrafas de uísque Grandad, um farnel com seis cervejas, dois maços de cigarros, algumas batatas chips, uns aperitivos, uns alka-seltzers, um bom charuto. O atendente fechou a conta.
– Para onde estamos indo com tudo isso?
– Para a sua casa. Você tem carro?
Levei-a até meu carro. Eu o havia comprado em um lote em Compton por trinta e cinco dólares. As molas estavam estouradas e o radiador vazava, mas ainda se podia rodar com ele. Chegamos à minha casa e eu coloquei as compras na geladeira, servi dois drinques, levei-os comigo, sentei e acendi um cigarro. Ela se sentou no sofá à minha frente, as pernas cruzadas. Usava brincos verdes.
– O máximo – ela disse.
– O quê?
– Você se considera o máximo, se acha muito fodão.
– Não.
– Sim, você se acha. Posso dizer pelo modo como se comporta. Mas ainda gosto de você. Gosto do seu jeito.
– Suba um pouco o vestido.
– É ligado em pernas?
– Sim. Suba mais o vestido.
Ela obedeceu. 
– Oh, Jesus, agora suba mais, muito mais!
– Escute, você não é algum tipo de maluco, é? Há um cara molestando as garotas. Leva elas pro apartamento dele e depois tira as roupas delas e, com uma navalha, marca os corpos delas com palavras cruzadas.
– Não sou ele.
– Tem uns caras também que comem você e depois fazem mil pedacinhos do seu corpo. Aí vão encontrar uma parte do seu cu entalada num cano de esgoto em Playa del Rey e o seu peito esquerdo numa lata de lixo em Oceanside...
– Parei de fazer isso anos atrás. Suba mais a saia. – Ela deu uma bela erguida na saia. Era como se a vida e a alegria começassem agora, estava ali o verdadeiro sol. Me aproximei, sentei-me ao seu lado no sofá e lhe dei um beijo. Então me levantei, servi mais dois drinques e sintonizei o rádio na KFAC. Pegamos o início de alguma coisa de Debussy.
– Você gosta desse tipo de música? – ela perguntou.
A certa altura daquela noite, enquanto conversávamos, despenquei do sofá. Caí no chão e fiquei olhando aquelas pernas maravilhosas.
– Baby – eu disse –, sou um gênio, mas ninguém além de mim sabe disso.
Ela me olhou, baixando a vista. 
– Levante do chão, seu retardado, e me traga um drinque. 
Trouxe-lhe a bebida e me encolhi perto dela. Sentia-me um idiota. Mais tarde fomos para a cama. As luzes estavam apagadas e fui por cima dela. Dei uma ou duas metidas, parei. 
– Qual seu nome mesmo? 
– Qual é a diferença, caralho? – ela respondeu.”


“– O que você faz? – perguntou Wilbur. 
– Ele é escritor – disse Laura. – As revistas têm publicado coisas dele. 
– Preciso de um escritor. Você é um dos bons? 
– Todo escritor pensa que é um dos bons.”


“Jan era uma excelente foda. Era mãe de duas filhas, mas trepava maravilhosamente bem. Havíamos nos conhecido num restaurante ao ar livre – eu gastava meus últimos cinquenta centavos num hambúrguer gorduroso – e iniciamos uma conversa. Ela me pagou uma cerveja, deu-me seu telefone, e três dias mais tarde eu me mudei para o seu apartamento.
Tinha uma buceta estreita e recebia cada golpe do meu pau como se estivesse sendo esfaqueada. Ela me lembrava uma pequena leitoa. Havia torpeza e hostilidade suficientes nela para me fazer sentir que a cada estocada eu lhe dava uma espécie de corretivo por seu gênio ruim. Ela havia removido um dos ovários e alegava que não podia mais engravidar; para quem tinha um ovário só, ela respondia generosamente.
Jan se parecia bastante com Laura – com a diferença de que ela era mais magra e mais bonita, cabelos loiros na altura dos ombros e olhos azuis. Ela era estranha; estava sempre com tesão pela manhã, apesar das ressacas. Eu não sentia esse tesão com as minhas. Eu era um homem noturno. Mas à noite ela estava sempre gritando e jogando coisas em mim: telefones, guias telefônicos, garrafas, copos (cheios e vazios), rádios, bolsas, violões, cinzeiros, dicionários, pulseiras de relógio arrebentadas, despertadores... Ela era uma mulher incomum. Mas uma coisa era certa: pela manhã, ela sempre queria trepar, e muito. E eu tinha meu emprego no depósito de bicicletas.
Olhando para o relógio, numa típica manhã, eu lhe dava a primeira, contendo o vômito, regurgitando um pouco, tentando esconder o fato; depois conseguia me esquentar, gozava, saía de cima. 
– Bem, é isso – eu dizia –, vou chegar quinze minutos atrasado.
E ela então seguia para o banheiro, feliz como um passarinho, lavava-se, cagava, olhava para os pelos debaixo do braço, olhava-se no espelho, preocupava-se mais em envelhecer do que com a morte, retornava e se metia debaixo das cobertas enquanto eu erguia minhas calças manchadas, pronto para me lançar no tráfego da Third Street, em direção a leste.”


“– Você é a casado, Manny?
– Sem chance. 
– Mulheres? 
– Às vezes. Mas nunca dura. 
– Qual é o problema? 
– Uma mulher é um emprego de turno integral. É preciso escolher sua profissão. 
– Acredito que há um esgotamento emocional. 
– E físico também. Elas querem trepar dia e noite. 
– Consiga uma que você goste de comer. 
– Sim, mas se você bebe ou joga elas pensam que isso deprecia o amor que elas sentem por você. 
– Arrume uma que goste de beber, jogar e foder.
 – Quem quer uma mulher assim?”


“– A Bíblia diz: “Amai ao próximo”.
– Isso poderia significar algo como “deixe-o em paz”.


“Como, diabos, pode um homem gostar de ser acordado às 6h30 da manhã por um despertador, sair da cama, vestir-se, alimentar-se à força, cagar, mijar, escovar os dentes e os cabelos, enfrentar o tráfego para chegar a um lugar onde essencialmente o que fará é encher de dinheiro os bolsos de outro sujeito e ainda por cima ser obrigado a mostrar gratidão por receber essa oportunidade?”


“Encontrei um emprego nos classificados do jornal. Fui contratado por uma loja de roupas, mas não em Miami, e sim em Miami Beach, e a cada manhã eu tinha que enfrentar uma travessia aquática junto com a minha ressaca. O ônibus corria por uma faixa muito estreita de cimento e ficava junto à água sem qualquer forma de guard-rail, nenhuma proteção. Só havia a pista. O motorista se recostava, e nós seguíamos sobre essa faixa estreita de cimento completamente cercada pela água, e todos a bordo, as vinte e cinco ou trinta pessoas confiavam nele, mas eu jamais. Às vezes, era um motorista novo, e eu pensava, como eles selecionam esses filhos da puta? Havia água profunda nos dois lados, e um erro de julgamento mataria a todos nós. Isso era ridículo. Suponha que ele tenha brigado com sua mulher naquela manhã? Ou que tenha câncer? Ou que tenha visões de Deus? Um dente podre? Qualquer coisa. Seria o suficiente para ele. Lá estaríamos nós no fundo do mar. Sei que, se eu estivesse dirigindo, consideraria a possibilidade ou o desejo de afogar todo mundo. E algumas vezes, depois de ter feito essa consideração, a possibilidade passaria à ação. Para cada Joana d’Arc há um Hitler suspenso do outro lado da balança. A velha história do bem e do mal. Mas nenhum dos motoristas jamais nos lançou no mar. Por suas cabeças não passava mais do que prestações do carro, resultados do beisebol, cortes de cabelo, férias, enemas, visitas familiares. Não havia um homem de verdade entre toda aquela merda. Eu sempre chegava enjoado no trabalho, ainda que em segurança.”

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