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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Shantaram – Gregory David Roberts

Editora: Landscape
ISBN: 978-85-8057-097-7
Tradução: Rosana Telles
Opinião: ★★★★★
Páginas: 820
Sinopse: Shantaram é um romance baseado na vida do autor, Gregory David Roberts. Em 1978, por causa de seu vício em heroína, Roberts cometeu uma série de roubos e foi condenado a dezenove anos de prisão. Em julho de 1980, em plena luz do dia, ele conseguiu escapar pelo muro da frente da prisão de segurança máxima em Victoria, vindo a ser, nos próximos dez anos, o homem mais procurado da Austrália.
Sua jornada levou-o a Nova Zelândia, Ásia, África e Europa, mas passou a maior parte do tempo em Bombaim – onde montou uma clínica de atendimento médico gratuito para moradores de favela e trabalhou como traficante de armas, falsificador, contrabandista e membro de um dos mais carismáticos ramos da máfia de Bombaim.



“Um longo tempo e viver em boa parte do mundo foram necessários para aprender o que sei sobre o amor, o destino e as escolhas que fazemos, mas a percepção essencial me veio numa fração de segundo, quando eu estava acorrentado a uma parede, sendo torturado. De alguma maneira, percebi, nos gritos que ecoavam em minha mente, que mesmo naquele desamparo agrilhoado e maldito, eu ainda era livre: livre para odiar os homens que me torturavam, ou para perdoá-los. Isto pode não parecer muita coisa, eu sei. Mas enquanto a corrente recuava e mordia a minha pele, quando isto é tudo o que se tem, esta liberdade é um universo de possibilidades. E a escolha que se faz entre o ódio e o perdão define a história de sua vida.
No meu caso, a história é longa e rica. Fui um revolucionário que perdeu seus ideais na heroína; um filósofo que perdeu a integridade no crime; um poeta que perdeu a alma numa prisão de segurança máxima. Quando fugi dessa prisão pelo muro da frente que ficava entre duas torres de vigia, tornei-me o homem mais procurado de meu país. A sorte colocou-se ao meu lado e voou comigo pelo mundo até a Índia, onde me associei à máfia de Bombaim (atual Mumbai). Trabalhei como traficante de armas de fogo, contrabandista e falsário. Fui preso em três continentes, surrado, esfaqueado e entrei em estado de inanição. Fui à guerra. Enfrentei o fogo inimigo. E sobrevivi enquanto outros ao meu redor morreram. Eram grande parte deles homens melhores do que eu. Homens melhores cujas vidas, fragmentadas em erros, foram atiradas para longe pelo átimo do ódio de alguém. Ou pelo amor e indiferença. Eu os enterrei, muitos destes homens. E trouxe suas histórias e suas vidas para o lamento da minha.”


“Eu era um fugitivo. Era um homem procurado, um homem caçado, minha cabeça tinha um preço. E ainda assim, eu estava um passo adiante deles. Eu era livre. Quando você é fugitivo, cada dia é toda a sua vida. Cada minuto livre é uma pequena história com final feliz.”


““Falando sério, Ulla”, Karla disse com carinho, “Você atrai os loucos”.
“Já, leider. O que posso fazer? Os loucos me adoram”.
“Não dê ouvidos à Karla, Ulla querida”, Didier consolou-a. “A loucura é a base de qualquer relacionamento saudável!”.
“Didier”, suspirou Ulla, pronunciando o nome dele com um sorriso extremamente doce, “eu já lhe mandei tomar no cu, hoje?”
“Não!”, riu ele, “Mas eu perdoo você pelo esquecimento. Cá entre nós, minha querida, essas coisas estão sempre subentendidas”.”


“O homem sem pressa chega a lugar nenhum rapidamente.”


““Então, me conte, Didier, o que o prende a Bombaim?”.
“Sou francês”, respondeu ele, admirando o orvalho que cobria a metade do seu copo. “Homossexual, judeu e criminoso, mais ou menos nesta ordem. Bombaim foi a única cidade que encontrei que me permite ser estas quatro coisas ao mesmo tempo”.”


“Normalmente, eu não me envolvo com as baixezas da política, ou com a arena dos grandes negócios. A única força mais sórdida e brutal que os negócios da grande política é a política dos grandes negócios.”


“Uma civilização se define muito mais na base do que é proibido do que na base do que é permitido.”


“Quando estou de baixo astral, penso que o melhor que se pode dizer é que um amigo é alguém que você não despreza.”


“A verdade é uma tirana de quem todos fingimos gostar.”


“Hoje em dia existe muita pose e pouco estilo. Sinais dos tempos. Em vez da pose se transformar em estilo, o estilo se transformou em pose.”


“Fanáticos religiosos. Todos eles têm o mesmo olhar parado e purificado. Têm o olhar típico das pessoas que nunca se masturbam, mas que passam o tempo todo pensando nisto.”


“Eu odeio a tristeza. Acho insuportável. Prefiro não ter nada a ter que enfrentar a tristeza, mesmo que seja mínima. Acho que por isto que gosto tanto de dormir, na? É impossível ficar totalmente triste quando se dorme. Você pode ficar alegre, com medo ou irritado em seus sonhos, mas precisa estar bem acordado para ficar triste, não é verdade?”


“Na verdade, vocês estão fazendo com que as coisas pareçam mais difíceis do que são, ou precisam ser. No começo, sentíamos medo de tudo – dos animais, do clima, das árvores, e do céu noturno – tudo, a não ser uns dos outros. Agora, sentimos medo uns dos outros e de quase tudo. Ninguém sabe porque os outros fazem o que fazem. Ninguém diz a verdade. Ninguém é feliz. Ninguém está seguro. Considerando tudo o que está errado no mundo, a pior coisa que se pode fazer é sobreviver. Ainda assim, você precisa sobreviver. É esse dilema que nos dá esperanças e faz com que nos agarremos à mentira de termos uma alma e de que exista um Deus para cuidar do nosso destino.”


“Quando o desejo e o medo são exatamente iguais, chamamos o sonho de pesadelo.”


“Podemos induzir os homens a serem maus, mas não podemos forçá-los a serem bons.”


“Não existe ato de fé mais belo do que a generosidade dos pobres.”


“Algumas vezes o leão precisa rugir, só para mostrar ao cavalo que ele deve sentir medo.” (ditado persa)


“Um político é alguém que promete uma ponte até onde não existe rio.”


“Talvez eu não possa odiar o amor, mas com certeza posso ficar cheia dele. Amar alguém é uma arrogância enorme e o pior é que existe muito disso por aí. Existe muito amor no mundo. Algumas vezes chego a pensar que o paraíso é um lugar onde todos são felizes porque ninguém ama ninguém, nunca.”


“O que você tem a dizer sobre o sofrimento?”
“Sei que o sofrimento é a verdade. Sei que o sofrimento é a ponta afiada de um chicote e o não sofrimento é o lado do cabo – o cabo que o patrão segura nas mãos.”


“A dor e o sofrimento estão ligados, mas não são a mesma coisa. A dor pode existir sem o sofrimento, sendo também possível sofrer sem sentir dor. A diferença entre eles é, eu acho, o que aprendemos com a dor – por exemplo, que o fogo queima e é perigoso – é sempre individual, somente para nós mesmos, mas o que aprendemos com o sofrimento é o que nos une como raça humana. Se não sofremos com a nossa dor, não teremos aprendido nada sobre nós mesmos. A dor sem sofrimento é como uma vitória sem esforço. Não somos capazes de aprender com ele o que nos faz mais fortes, melhores ou mais próximos de Deus.”


“Quando somos jovens pensamos que o sofrimento é alguma coisa que nos fazem. Quando envelhecemos – quando, de uma maneira ou de outra, as portas de aço se fecham – sabemos que o verdadeiro sofrimento é medido pelo que tiram de nós.”


“Você não se torna um bom homem até que, de forma livre e desimpedida, dê amor a uma criança. E você não se torna um bom homem até que receba, também de forma livre e desimpedida, o amor de uma criança.” (ditado pashto)


“Um rei é um mau inimigo, um amigo ainda pior e uma relação familiar fatal.”


“As pessoas dizem que o dinheiro é a raiz de todo o mal. Acho que é o contrário. O mal é que é a raiz de todo o dinheiro.”


“Karla certa vez me disse que os homens revelam o que pensam quando desviam o olhar e o que sentem quando hesitam. Com as mulheres, disse ela, funciona ao contrário.”


“Se todos nós aprendêssemos o que deveríamos aprender da primeira vez, não haveria necessidade de amor.”


Jihad”, disse Ahmed, com sorriso sinistro e quase amedrontado.      “Guerra Santa – este é nosso dever sagrado: resistir aos invasores russos e libertar a terra muçulmana”.
“Não dê corda a ele, Lin”, Khaled piscou. “Ahmed é comunista. A próxima coisa que fará será golpeá-lo com Mao e Lênin”.
“Você não se sente um pouco... comprometido?, perguntei, provocando o destino. “Lutando contra o exército socialista?”.
“Que socialistas?”, retorquiu ele furiosamente, apertando os olhos. “Que comunistas? Por favor, não me compreenda mal – os russos fizeram algumas coisas boas no Afeganistão...”
“Ele tem razão”, Khaled o interrompeu. “Eles construíram muitas pontes, todas as principais rodovias, e muitas escolas e faculdades”.
“E represas para gerar água fresca e estações de energia – muitas coisas boas. E eu os apoiei, quando fizeram essas coisas para ajudar o povo. Mas quando eles invadiram o Afeganistão para mudar o país pela força, jogaram fora todos os princípios nos quais deveriam acreditar. Eles não são marxistas verdadeiros, nem leninistas. Os russos são imperialistas e eu luto contra ele em nome de Marx, Lênin, Mao...”
“E Alá”, sorriu Khaled.
“Sim, e Alá”, concordou Ahmed, mostrando seus dentes brancos num sorriso e batendo no banco com a palma da mão.
“Por que eles fizeram isso”, perguntei-lhe.
“O Afeganistão é um prêmio”, começou Khaled. “Lá não existem grandes reservas de petróleo, ouro, ou qualquer coisa que possa interessar as pessoas, mas continua sendo um grande prêmio. Os russos (soviéticos) querem tomar o país porque faz divisa com eles. Tentaram controlá-lo de maneira diplomática, com pacotes de ajuda e programas de assistência. Depois, colocaram seus homens no poder de um governo que não passava de um fantoche. Os americanos odiaram o fato por causa da guerra fria e de toda a merda de manipulação política envolvida, então resolveram desestabilizar o lugar e passaram a dar apoio aos únicos caras que ficaram realmente putos com os fantoches russos – os mestres da lei religiosa muçulmana. Aqueles caras de barba comprida perderam a cabeça com a maneira como os russos estavam mudando o país – permitindo que as mulheres trabalhassem, frequentassem as universidades e se mostrassem em público sem a burca. Quando os americanos lhes ofereceram dinheiro, armas e bombas para atacarem os russos, eles não recusaram. Depois de algum tempo, os russos decidiram parar de fingir e efetivamente invadiram o país. Agora estamos em guerra”.”


“Os afegãos, desde Mazer-i-Sharif até Kandahar sabiam que se os americanos lhes fornecessem mísseis Stinger durante a deflagração da guerra, os mujaheddin venceriam o inimigo em questão de meses. Com Stingers, os odiados e mortalmente eficazes helicópteros russos poderiam ser esmagados nos ares. Até os formidáveis caças Mig eram vulneráveis aos mísseis de mão Stinger. Sem a insuperável vantagem aérea, os russos e os soldados do exército afegão seriam forçados a lutar em terra contra a resistência mujaheddin – uma guerra que nunca ganhariam por terra.
Os mais cínicos entre os afegãos acreditavam que, durante os sete primeiros anos de conflito, os americanos se recusaram a fornecer-lhes Stingers porque eles queriam que a Rússia se tornasse vitoriosa o bastante para tomarem a dianteira do comprometimento. Assim, quando os Stingers finalmente chegasse, todo o Império Soviético poderia entrar em colapso por causa das perdas consideráveis de homens e recursos impostas aos russos.
Independente de os cínicos estarem certos ou não, o jogo mortal desenrolou-se exatamente assim. Quando finalmente foram introduzidos, alguns meses depois de nossa viagem ao Afeganistão, os mísseis Stingers realmente mudaram o curso do conflito. Os russos ficaram tão enfraquecidos pelas guerrilhas de resistência, montadas pelos aldeões afegãos e milhares de pessoas como eles, que seu império monstruoso desfez-se em pedaços. A vitória sobre os russos teve um preço alto; custou um milhão de vida afegãs. Causou a evasão de um terço da população, que abandonou suas terras. Causou um dos maiores fluxos de imigração forçada da história humana – três milhões e meio de refugiados passando pela passagem de Kyber com destino a Peshawar, e mais um milhão de exilados que se dirigiram ao Irã, à Índia e às repúblicas muçulmanas da União Soviética. Teve um custo de cinquenta mil homens, mulheres e crianças com um ou mais membros amputados por causa das explosões de minas terrestres. Custou o coração e a alma do Afeganistão.”


“Khader me explicou como o elaborado ritual de matrimônio afegão já vinha se desenrolando há meses antes da nossa chegada. As visitas de cerimônia entre as famílias do noivo e da noiva já haviam acontecido. Em ambos os casos, pequenos presentes como lenços de mão ou docinhos perfumados foram trocados, e gentilezas específicas observadas. O extravagante dote da noiva – tecidos ricamente bordados, sedas importadas, perfumes e joias –, já de posse da família do noivo, fora publicamente exibido para que todos pudessem admirá-lo. Em segredo, o noivo já havia visitado sua futura esposa, ofertando-lhe presentes pessoais enquanto falava com ela. De acordo com o costume, era estritamente proibido que, durante a visita, ele fosse visto pelos homens da família da noiva, mas a tradição exigia que fosse ajudado pela mãe dela. Khader me assegurara que, enquanto os noivos se falavam pela primeira vez, a mãe zelosa permanecera ao lado da filha. Depois de tudo isso, o casal estava pronto para a culminância do matrimônio propriamente dito, que deveria durar três dias.”


“A história do universo é a história do movimento”, começou Khader, ainda olhando os barcos que se batiam uns contra os outros como cavalos atrelados. “O universo, como o conhecemos nesta, entre suas muitas vidas, começou numa expansão tão rápida e gigantesca que, apesar de podermos falar sobre isto, não existe maneira de verdadeiramente entendermos ou imaginarmos tal coisa. Os cientistas chamam esta grande expansão de Big Bang, mesmo que não tenha havido explosão real no sentido de uma bomba ou coisa do tipo. Os primeiros momentos após esta expansão, nas primeiras frações de segundo, o universo era como uma rica sopa feita de pedacinhos de coisas simples. Estes pedacinhos eram tão simples que ainda nem eram átomos. À medida em que o universo se expandiu e esfriou, esses pedacinhos se uniram para formar as partículas. Depois, as partículas se fundiram para formar os primeiros átomos. E os átomos se juntaram para formar as moléculas. As moléculas, unidas, formaram as primeiras estrelas. Essas estrelas cumpriram seu ciclo de vida e explodiram numa chuva de novos átomos que, uma vez novamente unidos, criaram mais estrelas e planetas. Todos nós somos feitos da matéria dessas estrelas agonizantes. Somos feitos de estrelas, você e eu.
Nenhuma dessas coisas, nenhum desses processos ou movimentos de união podem ser considerados eventos aleatórios. O universo tem natureza própria, algo parecido com a natureza humana, se você preferir, e sua natureza é combinar, construir e se tornar mais complexo. É sempre assim que funciona. Se as circunstâncias forem apropriadas, pedacinhos de matéria sempre se juntam para formar arranjos mais complexos. Essa maneira pela qual o universo trabalha, esse movimento em direção à ordem e às novas combinações dessas coisas ordenadas tem um nome. Na ciência ocidental, é chamada de tendência para a complexidade, ou seja, a maneira pela qual o universo trabalha.
O universo, como o conhecemos e com tudo o que ainda podemos aprender sobre ele, tem se tornado, desde o início, cada vez mais complexo. Isto é parte de sua natureza. A tendência para a complexidade levou o universo e sua simplicidade quase perfeita à complexidade que hoje vemos à nossa volta. O universo faz isto incessantemente. Está sempre se movendo do simples para o complexo. Começou com sua simplicidade quase absoluta e nos últimos quinze bilhões de anos tem se tornado cada vez mais complexo. Dentro de um milhão de anos, ficará ainda mais complexo. Em cinco, dez milhões de anos – mais e mais complexo. Está se movendo a direção a alguma coisa... Está se movendo em direção a uma complexidade final, definitiva. Pode ser que nós não cheguemos lá. Um átomo de hidrogênio pode não chegar lá. Uma folha, um homem, e mesmo o planeta pode não alcançar esta complexidade final. Mas estamos todos indo em direção a ela – tudo no universo caminha para isso.
E a complexidade final, para onde nos dirigimos, é o que eu chamo de Deus. Se você não gosta da palavra Deus, pode substituí-la por Complexidade Final. Seja qual for o nome, todo o universo está indo para lá.”
“Será que o universo não é bem mais aleatório do que isso?” perguntei, percebendo o rumo que tomava a conversa e tentando desviá-lo. “E os grandes asteroides e coisas do tipo? Nós, quer dizer, nosso planeta, podemos ser esmagados pelos fragmentos de um asteroide gigante. Na verdade, existe uma probabilidade estatística de que irão ocorrer impactos maiores. E se nosso sol estiver morrendo – e um dia morrerá – isto não seria o oposto da complexidade? Como isto se encaixa com o movimento de complexidade, se o nosso sol morrer e todo o planeta complexo for reduzido a átomos?”
“Boa pergunta. Pode ser que o nosso planeta seja esmagado, é verdade, e um dia nosso belo sol morrerá. E de acordo com o que conhecemos, somos, na pequena porção de universo que ocupamos, a mais desenvolvida expressão da complexidade. Seria uma grande perda, caso fôssemos aniquilados. Uma perda terrível para o desenvolvimento. Mas o processo, esse continuaria, e nós somos a expressão deste processo. Nossos corpos são filhos de todos os sóis e estrelas que morreram antes de nós, formando os átomos dos quais somos feitos. Se formos destruídos por um asteroide ou por nossas próprias mãos, bem, em algum outro lugar no universo, nosso nível de complexidade, este nível de complexidade, com uma consciência capaz de entender o processo, seria duplicado. Eu não me refiro a pessoas exatamente como nós. O que quero dizer é que seres pensantes, tão complexos quanto nós se desenvolveriam em outro universo. Nós deixaríamos de existir, mas o processo continuaria. Pode ser que, enquanto estamos aqui, isto esteja acontecendo em outros mundos. Na verdade, é bastante provável que esteja acontecendo, por todo o universo, porque é isso o que o universo faz.”
“Tudo bem, tudo bem. E você quer dizer – deixe-me adivinhar – que tudo o que contribua para que isto aconteça é caracterizado como bem, e tudo o que leve à direção contrária caracteriza o malna?
“Em essência, você está certo. Qualquer coisa que aumente, promova, ou acelere esse movimento em direção à Complexidade Final é bem. Qualquer coisa que iniba, impeça, ou atrase esse movimento em direção à Complexidade Final, pode ser considerado mal. O mais fantástico sobre essa definição de bem e de mal é que é tanto objetiva quanto universalmente aceita.”
“Como você decide como alguma coisa pode ser definida como bem ou mal?”
“Primeiro você precisa responder a minha pergunta. Por que matar é errado?”
“Bem, eu não acho que seja sempre errado.”
“Bem, devo dizer-lhe que é sempre errado. Em nossa discussão, isto ficará claro, mais cedo ou mais tarde. Por enquanto, vamos nos concentrar no tipo de assassinato que você considera errado e na razão porque considera errado.”
“Bem, é contra a lei tirar a vida de alguém.”
“Contra a lei de quem?”
“A lei da sociedade. A lei da terra”, arrisquei, sentindo que o sentido filosófico me escapava.
“Quem faz essa lei?” perguntou Khader com delicadeza.
“Os políticos. As leis criminais foram herdadas da civilização. As leis contra os assassinatos existem desde – talvez desde os homens das cavernas.”
“E por que matar era considerado errado por eles?”
“Eu diria... que é porque existe apenas uma vida. Cada um de nós tem apenas uma vida, e tirá-la de alguém é uma coisa terrível.”
“Uma tempestade de raios também é uma coisa terrível. E será que isto a torna uma coisa errada ou má?”
“Não, claro que não. Veja, eu não sei porque você precisa saber o que está por trás das leis contra o assassinato. Nós temos apenas uma vida e se você a tirar sem uma boa razão, estará fazendo algo errado”.
“Sim, mas por que é errado?”
“Porque sim”.
“Este é um ponto ao qual todos chegamos”, concluiu Khader, mais sério. Se você perguntar às pessoas por que o assassinato, ou qualquer tipo de crime está errado, elas lhe dirão que é porque contrariam a lei, a Bíblia, o Upanixade, o Alcorão, ou os oito caminhos de Buda, ou seus pais, ou qualquer outra autoridade. Mas não sabem porque está errado. O que elas dizem pode ser verdade, mas  sabem porque é verdade.
Para que possamos saber sobre qualquer ato, intenção ou consequência precisamos, primeiro, fazer duas perguntas. Uma, o que aconteceria se todos cometessem tal ato? Duas, isso ajudaria ou impediria o movimento em direção à complexidade? No caso do assassinato, o que aconteceria se todos matassem as pessoas? Isso ajudaria ou impediria? Diga-me”.
“Obviamente, se todos matassem, nós nos dizimaríamos. Então... isso não ajudaria.”
“Sim. Nós, seres humanos somos o mais complexo arranjo de matérias que conhecemos, mas não somos a última conquista do universo. Nós também vamos nos desenvolver e mudar com o resto do universo. Mas se matarmos indiscriminadamente, não chegaremos lá. Aniquilaremos nossa espécie e todo o desenvolvimento que alcançamos através de milhões de anos – bilhões de anos – será perdido. O mesmo pode ser dito em relação ao roubo. O que aconteceria se todos roubassem? Isso nos ajudaria ou impediria nosso desenvolvimento?”
“Sim, entendo. Se todos roubassem de todos, ficaríamos tão paranoicos e desperdiçaríamos tanto tempo e dinheiro que nos tornaríamos mais lentos, e nunca conseguiríamos...”
“Chegar à complexidade final”, ele completou meu pensamento. “É por isso que não é certo matar e roubar – não porque um livro nos diz que não é certo, ou uma lei, ou guia espiritual, mas porque se todos praticassem tais ações, não avançaríamos, com o resto do universo, em direção à complexidade final que é Deus. O oposto disso também é verdade. Por que o amor é bom? Bem, o que aconteceria se todos amassem a todos? Será que isso nos ajudaria ou atrapalharia?”
“Ajudaria”, concordei, sorrindo de dentro da armadilha que ele armara para mim.
“Sim. Na verdade, esse amor universal aceleraria bastante o movimento em direção a Deus. O amor é bom. A amizade é boa. A lealdade, a liberdade e a honestidade também. Nós sabíamos que essas coisas eram boas antes – sempre soubemos, em nossos corações e todos os grandes ensinamentos sempre nos disseram isto – mas agora, com a definição de bem e de mal, podemos ver porque eles são bons. Do mesmo modo, como podemos ver, porque roubar, mentir e matar constituem o mal.”
“Mas, algumas vezes...”, protestei, “você sabe, e com relação à defesa pessoal? E se tivéssemos que matar para nos proteger?”
“Bem lembrado, Lin. Quero que imagine uma cena para mim. Você está numa sala, de pé em frente a uma escrivaninha. Sua mãe está do outro lado da sala. Um homem perverso segura uma faca na garganta da sua mãe. Ele vai matá-la. Na mesa à sua frente existe um botão. Se você pressioná-lo, o homem morrerá. Se não pressioná-lo, ele matará sua mãe. Essas são as únicas possibilidades. Se você não fizer nada, sua mãe morre. Se apertar o botão ele morre e sua mãe se salva. O que você faria?”
“O cara já virou história”, respondi, sem hesitar.
“Correto”, suspirou ele, talvez desejando que eu tivesse passado por um período maior de indecisão, antes de apertar o botão. “E se você fizesse isso, se salvasse sua mãe do assassino perverso, você estaria agindo certo ou errado?”
“Certo”, respondi, também rapidamente.
“Não, Lin, acho que não”, ele franziu o cenho. “Acabamos de ver que, em termos desta nova e objetiva definição de bem e de mal, matar está sempre errado porque, se alguém fizer isso, seremos impedidos de nos mover em direção a Deus, a complexidade final, com o resto do universo. Então, matar é errado. Mas seus motivos são válidos. Então, a verdade dessa decisão é que você fez a coisa errada pelos motivos certos. Algumas vezes é necessário fazer a coisa errada pelo motivo certo. O mais importante é ter certeza de que os nossos motivos estejam certos e que admitamos estar fazendo a coisa errada – que não tenhamos que mentir para nós mesmos, convencendo-nos de que fazemos a coisa certa”.
(...)
“Posso fazer uma pergunta? Existem coisas no mundo, como as pedras, que não têm vida e coisas vivas como árvores, peixes e pessoas. Sua cosmologia não explica de onde vêm a vida e a consciência. Se as pedras são feitas da mesma matéria que as pessoas, como é possível que elas não tenham vida e as pessoas sim? Afinal, de onde vem a vida?”
“Você conhece o filósofo inglês, Bertrand Russel? Já leu algum dos seus livros? Nem sempre eu concordo com suas conclusões, mas gosto da maneira como chega a elas. Enfim, disse ele, tudo o que pode ser colocado na casca de uma noz deve permanecer ali. E eu concordo com ele. Agora, a resposta para a sua pergunta é: a vida é uma característica de todas as coisas. Cada átomo do universo tem uma característica de vida. Quanto mais complexa a maneira como os átomos se agrupam, mais complexa a expressão da característica devida. A pedra é constituída de um arranjo muito simples de átomos, o que faz com que a vida na pedra seja tão simples que não podemos vê-la. Um gato é um arranjo muito complexo de átomos, o que torna a vida no gato bastante óbvia. Mas existe vida em tudo, mesmo numa pedra e mesmo quando não somos capazes de vê-la”.
“De onde você tirou essa ideia? Do Alcorão?”
“Na verdade, é um conceito que, de um modo ou de outro, aparece em todas as religiões. Fiz algumas pequenas alterações para adaptá-lo ao que temos aprendido sobre o mundo, nos últimos séculos. Mas é o Alcorão sagrado que me dá inspiração para realizar este tipo de estudo porque o Alcorão ordena que devemos estudar e aprender tudo, para melhor servirmos Alá.”
“Mas de onde vem essa característica da vida?, insisti, certo de, pelo menos tê-lo encurralado num beco sem saída reducionista.”
“No início dos tempos, como a conhecemos, a vida e todas as características de todas as coisas do universo, como a consciência, o livre-arbítrio, a tendência rumo à complexidade e até mesmo o amor, foram dados ao universo pela luz”.
“Durante o Big Bang? É isto o que está dizendo?”
“Sim. A expansão do Big Bang aconteceu de um ponto chamado singularidade, que tem densidade e calor quase infinitos e, ainda assim, não ocupam espaço ou tempo, como os conhecemos. O ponto é um caldeirão em ebulição de energia de luz. Alguma coisa fez com que se expandisse – ainda não sabemos o que – e todos os átomos e partículas vieram a existir da luz, assim como do espaço, do tempo e de todas as forças que conhecemos. Assim, no início do universo a luz deu a cada pequena partícula um conjunto de características e à medida que essas partículas se combinam de maneiras mais complexas, as características se mostram também de modo mais complexo.
O que acabei de lhe dizer trata do relacionamento entre a consciência e a matéria. Você sabe muito bem que isto é um tipo de teste. Você deve aplicá-lo em todos os homens que lhe disserem conhecer o sentido da vida. Todos os gurus e professores, todos os profetas e filósofos que encontrar devem responder-lhe estas duas perguntas: Qual é a definição objetiva, universalmente aceita, para o bem e o mal? E, qual é a relação entre a consciência e a matéria? Se eles não tiverem, como eu tive, uma resposta para essas duas perguntas, não terão passado no teste”.
“Como você aprendeu tanto sobre física? Tudo o que sabe sobre partículas, singularidade e Big Bangs?”
“Existe um ditado – quando o aluno está pronto, o professor aparece”.


“Os homens fazem guerra por lucro ou por princípios, mas lutam nelas por terra e por mulheres. Mais cedo ou mais tarde, os outros motivos e razões se afogam em sangue e perdem seu significado. Mais cedo ou mais tarde, a sobrevivência torna-se a única lógica, e a morte a única voz e a única visão. Depois, quando nossos melhores amigos morrem aos gritos, e os homens bons enlouquecem por causa da dor e da fúria perdendo a sanidade em poços de sangue, quando toda a integridade, justiça e beleza do mundo explodem com os braços, pernas e cabeças de irmãos, filhos e pais, então, o que impele um homem a continuar lutando, a morrer, e a continuar morrendo, ano após ano, é a vontade de proteger sua terra e suas mulheres.
Você sabe que isto é verdadeiro quando ouve a conversa deles nas horas que antecedem a batalha. Eles falam de suas casas e das mulheres que amam. E você sabe que é verdade quando os vê morrer. Caso se encontre próximo à terra em seus momentos finais, um homem moribundo estende a mão e pega um punhado de terra. Se possível, ele levantará a cabeça para olhar uma montanha, um vale ou uma planície. Se estiver longe do lar, pensará e falará nele. Falará sobre sua aldeia, sua cidade natal, ou a cidade onde cresceu. No fim, a terra é sempre importante. No momento final, ele não defenderá causa alguma. No momento final, ele murmurará ou gritará o nome de uma irmã, filha, mãe ou amante, mesmo que pronuncie o nome de Deus. O fim derradeiro espelha o início. No final, sobram apenas uma mulher e uma cidade.”


“Eu tinha certeza que, de alguma maneira, teria de existir uma recompensa, pela qual fiquei esperando. Naquele tempo eu não sabia, como sei agora, que o amor é uma via de mão única. O amor, como o respeito, não é algo que se consiga; é algo que se dá.”


“O fim sempre chega adiantado.”


“Não se apresse, Lin”, suspirou Didier, agarrando minha cintura com força. “A melhor vingança, como o melhor sexo, deve ser realizada devagar e com os olhos bem abertos”.


“Lettie uma vez me disse que, ouvir-me descrever criminosos, assassinos e mafiosos como se fossem homens de honra era estranho e incongruente. Sinceramente acho que a confusão era dela, não minha. Ela confundia honra com virtude. A virtude está relacionada com o que fazemos e a honra com a maneira como fazemos. É possível lutar uma guerra de modo honrado – a convenção de Genebra existe exatamente por esta razão – e é possível reforçar a paz sem qualquer tipo de honra. Em sua essência, a honra é a arte de ser humilde. E os gângsteres, como os tiras, políticos, soldados e homens santos, só serão bons no que fazem se puderem manter-se humildes.”


“Simplesmente havia muito dinheiro envolvido. E dinheiro, quando a quantidade é muito grande, acaba sendo como uma grande festa política: causa tanto dano quanto benefício, coloca muito poder em poucas mãos e, quanto mais você se aproxima dele, mais se suja.”


“O destino sempre proporciona duas escolhas: a que você deve escolher e a que acaba escolhendo.”


“O manto do passado é feito de retalhos de sentimentos costurados por meio de associação de ideias, como se fossem fios de rébus. Na maior parte das vezes, tudo que podemos fazer é enrolá-lo no corpo em busca de conforto, ou arrastá-lo atrás de nós enquanto tentamos prosseguir. Mas tudo tem sua causa e seu significado. Cada vida, cada amor, ação, sentimento ou pensamento tem sua razão ou significado: seu início e a parte que desempenha no final. Algumas vezes, nós enxergamos. Algumas vezes enxergamos o passado com clareza e conseguimos entender a lenda de suas partes com tanta precisão que cada ponto do tempo revela seu propósito e um tipo de mensagem intrínseca. Em qualquer vida, bem ou mal vivida, nada é mais sábio que o fracasso, ou mais claro que o sofrimento. E na pequena e preciosa sabedoria que nos proporcionam, até mesmo aqueles inimigos temidos e odiados, o sofrimento e o fracasso, têm sua razão e seu direito de existir.”


“Sorte é o que acontece com você quando o destino se cansa de esperar.”


“É sempre um erro ficar sozinho com alguém que você não deveria amar.”

domingo, 13 de outubro de 2013

Bem-vindo ao deserto do real!, de Slavoj Žižek

Editora: Boitempo

Tradução: Paulo Cezar Castanheira

ISBN: 978-85-7559-035-5

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 192

Sinopse: Bem-vindo ao deserto do real! é uma coletânea de cinco ensaios de Slavoj Žižek, onde o autor aborda os acontecimentos de 11 de Setembro e suas consequências.

O filósofo esloveno firmou-se como um importante interlocutor nos debates sobre o destino do pensamento político de esquerda, ao mesmo tempo em que se transformou em figura de destaque dos cultural studies norte-americanos, ao fornecer uma outra via de abordagem da cultura contemporânea.

Em Bem- vindo ao deserto do real!, Slavoj Žižek usa a provocativa frase ‘Com essa esquerda, quem precisa de direita?’ para comentar a atuação da esquerda no período posterior aos atentados de 2001. Atuação essa que permitiu que a ideologia hegemônica se apropriasse da tragédia e impusesse sua mensagem de que é preciso escolher um lado na ‘guerra contra o terrorismo’.

Para o autor, a tentação de escolher um dos lados deve ser evitada. Segundo Žižek, quando as escolhas parecem muito claras, a ideologia se encontra em seu estado mais puro, obscurecendo as verdadeiras opções. A ‘democracia liberal’ não é a alternativa ao ‘fundamentalismo’ muçulmano, coloca.

Publicado pela Boitempo dentro da coleção Estado de Sítio, Bem-vindo ao deserto do Real! não é apenas mais um livro sobre os desafios políticos impostos pelo 11 de Setembro. Movendo-se no interior de um terreno para onde convergem a crítica da cultura, a psicanálise, a teoria social, a análise cinematográfica e a política, Žižek sabe diagnosticar os sintomas da sociabilidade contemporânea e desvendar articulações onde menos se espera.

Suas conclusões ultrapassam a análise circunstancial de um fato e levam o leitor ao cerne dos impasses do nosso tempo. Um tempo em que a busca pela realidade objetiva que há por trás das aparências é falsa, funcionando como ‘o estratagema definitivo para evitar o confronto com o Real’.



“A especificidade da Revolução Cubana é mais bem expressa pela dualidade entre Fidel e Che Guevara: Fidel, o verdadeiro líder, autoridade suprema do Estado, versus Che, o eterno rebelde revolucionário que não se resignou a apenas governar um Estado. Não seria parecido com a União Soviética onde Trotsky não fosse rejeitado como o arquitraidor? Imaginemos que, em meados da década de 1920, Trotsky tivesse emigrado e renunciado à cidadania soviética para trabalhar pela revolução permanente no mundo, e pouco depois morresse – depois de sua morte, Stalin o teria elevado à condição de culto... É evidente que tal devoção à Causa (“Socialismo o muerte!”), uma vez que a Causa está corporificada no Líder, pode facilmente degenerar em o Líder decidir sacrificar, não a si próprio em prol do país, mas o país em prol de si mesmo, da sua Causa. (Da mesma forma, a prova da verdadeira fidelidade ao Líder não é o fato de se estar disposto a receber uma bala atirada contra ele; acima disso, é necessário estar pronto a receber uma bala atirada por ele – aceitar ser abandonado ou até sacrificado por ele em nome de objetivos mais altos).”

 

 

“Hoje encontramos no mercado uma série de produtos desprovidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem álcool... E a lista não tem fim: o que dizer do sexo virtual, o sexo sem sexo; da doutrina de Colin Powell da guerra sem baixas (do nosso lado, é claro), uma guerra sem guerra; da redefinição contemporânea da política como a arte da administração competente, ou seja, a política sem política; ou mesmo do multiculturalismo tolerante de nossos dias, a experiência do Outro sem sua Alteridade (o Outro idealizado que tem danças fascinantes e uma abordagem holística ecologicamente sadia da realidade, enquanto práticas como o espancamento das mulheres ficam ocultas...)? A Realidade Virtual simplesmente generaliza esse processo de oferecer um produto esvaziado de sua substância: oferece a própria realidade esvaziada de sua substância, do núcleo duro e resistente do Real – assim como o café descafeinado tem o aroma e o gosto do café de verdade sem ser o café de verdade, a Realidade Virtual é sentida como a realidade sem o ser. Mas o que acontece no final desse processo de virtualização é que começamos a sentir a própria “realidade real” como uma entidade virtual. Para a grande maioria do público, as explosões do WTC aconteceram na tela dos televisores, e a imagem exaustivamente repetida das pessoas correndo aterrorizadas em direção às câmeras seguidas pela nuvem de poeira da torre derrubada foi enquadrada de forma a lembrar as tomadas espetaculares dos filmes de catástrofe, um efeito especial que superou todos os outros, pois – como bem sabia Jeremy Bentham – a realidade é a melhor aparência de si mesma.”

 

 

“E a mesma desrealização do horror continuou depois do colapso do WTC: apesar de se repetir constantemente o número de vítimas – 3.000 –, o que impressiona é ser tão pequena a quantidade de carnificina exibida – não se veem corpos desmembrados, não há sangue, nem os rostos desesperados de pessoas agonizantes, num claro contraste com as catástrofes do Terceiro Mundo, em que se faz questão de mostrar a imagem de algum detalhe mórbido: somalis morrendo de inanição, mulheres bósnias violentadas, homens com a garganta cortada. Essas imagens são sempre precedidas por um aviso de que “as imagens mostradas a seguir são extremamente chocantes e podem afetar crianças” – uma advertência que não se viu nas reportagens sobre a destruição do WTC. Não seria isso prova adicional de como, mesmo nesse momento trágico, persiste a distância que nos separa deles, da realidade deles: o verdadeiro horror acontece lá, não aqui.”

 

 

“O grande sucesso dos irmãos Wachowski, Matrix (1999), levou essa lógica ao seu clímax: a realidade material que todos sentimos e vemos à nossa volta é virtual, gerada e coordenada por um gigantesco megacomputador a que estamos todos ligados; quando acorda na “realidade real”, o herói, interpretado por Keanu Reeves, se vê numa paisagem desolada cheia de ruínas carbonizadas – o que sobrou de Chicago depois de uma guerra global. O líder da resistência, Morpheus, lança-lhe uma estranha saudação: “Bem-vindo ao deserto do real”. Esse resumo não é semelhante ao que sucedeu em Nova Iorque no dia 11 de setembro? Seus cidadãos foram então apresentados ao “deserto do real” – para nós, corrompidos por Hollywood, as imagens da queda das torres só poderiam ser uma reprodução das cenas mais emocionantes das grandes produções sobre catástrofes”.

 

 

“O ridículo do ataque americano contra o Afeganistão é um exemplo: se a maior potência do mundo bombardeia um dos países mais pobres, onde os camponeses mal conseguem sobreviver em montanhas estéreis, não estamos diante de um exemplo definitivo de acting out impotente? O Afeganistão, por outro lado, é o alvo ideal: um país já reduzido a ruínas, sem infraestrutura, repetidamente destruído pela guerra ao longo das duas últimas décadas... Não podemos deixar de pensar que a escolha do Afeganistão também foi determinada por considerações econômicas: não é melhor manifestar a própria raiva contra um país para o qual ninguém dá importância e onde não há mais nada a destruir? Infelizmente, a escolha do Afeganistão traz à memória a história do louco que procura uma chave perto do poste de luz; quando lhe perguntam por que procurar ali, se ele tinha perdido a chave num canto escuro, ele responde: “Mas é mais fácil procurar onde está claro!”. Não é a ironia definitiva o fato de, já antes do bombardeio americano, Kabul já estar igual ao sul de Manhattan depois do 11 de Setembro? A “guerra contra o terrorismo” funciona então como um ato cujo verdadeiro objetivo é nos acalmar, na falsamente segura convicção de que nada mudou realmente.”

 

 

“Estamos entrando numa nova era de guerra paranoica em que a principal tarefa será identificar o inimigo e suas armas. Nessa nova guerra, os agentes vão cada vez menos assumir publicamente os seus atos: não somente os próprios “terroristas” terão menos interesse em assumir a responsabilidade por seus atos (nem mesmo a notória Al-Qaeda assumiu explicitamente os ataques de 11 de setembro, para não mencionar o mistério com relação às cartas com antraz); as medidas “antiterroristas” do Estado também são ocultas por um manto de segredo – e tudo isso forma o caldo de cultura ideal para teorias conspiratórias e paranoia social generalizada.

Com o pânico gerado pelo antraz em outubro de 2001, o Ocidente teve o primeiro gosto dessa nova guerra “invisível” em que – um aspecto que se deve ter sempre em mente – nós, cidadãos comuns, ficamos totalmente dependentes das autoridades para saber o que está ocorrendo: nada vemos nem ouvimos; tudo o que sabemos nos chega da mídia oficial. Uma superpotência bombardeia um deserto desolado e, ao mesmo tempo, é refém de uma bactéria invisível – é essa, não a explosão do WTC, a primeira imagem da guerra do século XXI. Em vez de um rápido acting out, deveremos enfrentar algumas perguntas difíceis: qual será o significado de “guerra” no século XXI? Quem serão “eles”, se eles não são claramente nem Estados nem gangues criminosas? Aqui, não resisto à tentação de relembrar a oposição freudiana entre o direito público e seu supereu obsceno: da mesma forma, não seriam as “organizações terroristas internacionais” o lado obsceno de uma grande empresa multinacional – a máquina rizomática definitiva, onipresente, mas sem base territorial definida? Não são elas a forma em que os “fundamentalismos” nacionalistas e/ou religiosos se acomodaram ao capitalismo global? Não corporificam a contradição última, com seu conteúdo particular ou exclusivo e funcionamento dinâmico global?”.

 

 

“Sob a oposição entre sociedades “liberais” e “fundamentalistas”, “McWorld versus Jihad”, oculta-se um embaraçoso terceiro termo: países como a Arábia Saudita e Kuwait, monarquias profundamente conservadoras, mas aliados econômicos dos americanos, completamente integrados ao capitalismo ocidental. Nesse caso, os Estados Unidos têm um interesse muito preciso e simples: para poder contar com as  reservas de petróleo desses países, estes devem continuar sendo não democráticos (a noção subjacente é evidentemente a de que qualquer despertar democrático poderia dar ensejo a atitudes antiamericanas). É uma velha história, cujo infame primeiro capítulo, depois da Segunda Guerra Mundial, foi o coup d’état orquestrado pela CIA contra o governo democraticamente eleito do primeiro-ministro Muhammad Mossadegh, em 1953 – ali não havia “fundamentalismo”, nem mesmo uma “ameaça soviética”, apenas um despertar democrático, baseado na ideia de que o país deveria assumir o controle de suas reservas de petróleo e quebrar o monopólio das companhias ocidentais. Durante a Guerra do Golfo, em 1990, descobriu-se até onde os Estados Unidos estão dispostos a chegar a fim de manter esse pacto, quando soldados judeus americanos aquartelados na Arábia Saudita tiveram de ser transportados por helicóptero até os porta-aviões no Golfo para orar, pois os ritos não-maometanos são proibidos em solo saudita.

A posição “pervertida” dos verdadeiros “fundamentalistas” dos regimes árabes conservadores é a chave das charadas (geralmente cômicas) da política americana no Oriente Médio: eles representam o ponto em que os EUA são forçados a reconhecer explicitamente a primazia da economia sobre a democracia – ou seja, o caráter secundário e manipulativo das intervenções internacionais legitimadoras – quando afirmam proteger a democracia e os direitos humanos. O que não se pode deixar de ter em mente acerca do Afeganistão é que, até a década de 1970 – ou seja, antes da época em que o país se envolveu na luta das superpotências –, ele era uma das sociedades maometanas mais tolerantes, com uma tradição secular: Kabul era conhecida como uma cidade de vibrante vida cultural e política. O paradoxo, portanto, é que a ascensão do Talibã, essa aparente “regressão” ao ultrafundamentalismo, longe de expressar uma profunda tendência “tradicionalista”, foi o resultado de o país ter caído no vórtice da política internacional – foi não somente uma reação a ela, mas também resultado direto do apoio das potências estrangeiras (Paquistão, Arábia Saudita e os próprios EUA).

Quanto ao “choque de civilizações”, é bom lembrar a carta de uma menina americana de sete anos cujo pai era piloto na guerra do Afeganistão: ela escreveu que – embora amasse muito seu pai, estava pronta a deixá-lo morrer, a sacrificá-lo por seu país. Quando o presidente Bush citou suas palavras, elas foram entendidas como manifestação “normal” de patriotismo americano; vamos conduzir uma experiência mental simples, e imaginar uma menina árabe maometana pateticamente lendo para as câmeras as mesmas palavras a respeito do pai que lutava pelo Talibã – não é necessário pensar muito sobre qual teria sido a nossa reação: mórbido fundamentalismo islâmico que não rejeita nem mesmo a cruel manipulação e exploração das crianças... Toda característica atribuída ao Outro já está presente no coração mesmo dos EUA. (...) George W. Bush foi forçado a reconhecer que os prováveis autores dos ataques com antraz não eram terroristas maometanos, mas fundamentalistas cristãos da extrema direita americana – mais uma vez, o fato de atos antes atribuídos a um inimigo externo poderem na verdade ser perpetrados dentro da própria Amérique profonde não nos ofereceria uma confirmação inesperada da tese de que o verdadeiro choque é o choque no interior de cada civilização?”

 

 

“Em 11 de setembro os EUA tiveram a oportunidade de entender a espécie de mundo de que eles fazem parte. Poderiam ter aproveitado a oportunidade – mas não o fizeram; pelo contrário, optaram por reafirmar seus compromissos ideológicos tradicionais: abaixo os sentimentos de responsabilidade e culpa com relação à miséria do Terceiro Mundo, agora nós somos as vítimas! Assim, quando Timothy Garton Ash afirma pateticamente com relação ao Tribunal de Haia: “Nenhum Führer, nem Duce, nem Pinochet, nem Idi Amin, nem Pol Pot poderão mais se proteger da intervenção da justiça do povo atrás dos portões dos palácios da soberania”, é bom notar quem está ausente dessa série de nomes que, à parte os nomes consagrados de Hitler e Mussolini, contêm três ditadores do Terceiro Mundo: onde está pelo menos um nome dos Sete Grandes – alguém como Kissinger, por exemplo?”

 

 

“Não sabemos ainda quais serão as consequências desse acontecimento para a economia, a ideologia, a política e a guerra, mas uma coisa é certa: os EUA, que até hoje achavam que eram uma ilha protegida desse tipo de violência, vendo-a apenas da distância segura da tela do televisor, estão agora diretamente envolvidos. Assim, a alternativa é: decidirão os EUA fortificar ainda mais a sua “esfera”, ou se arriscarão a sair dela? Ou persistem – e até reforçam – a atitude profundamente imoral de perguntar: “Por que isso teve de acontecer conosco? Esse tipo de coisa não acontece aqui!”, levando a mais agressividade contra o ameaçador Exterior – em suma: um paranoico acting out. Ou os EUA finalmente se arriscam a ultrapassar a tela fantasmática que os separa do Mundo Exterior, e aceitam sua chegada no mundo real, fazendo um movimento já muito retardado: o de, em vez de dizer que “esse tipo de coisa não deveria acontecer aqui!”, passar a dizer que “esse tipo de coisa não deveria acontecer em lugar nenhum!”. É esta a verdadeira lição dos ataques: a única forma de assegurar que isso não vai acontecer aqui é evitar que aconteça em qualquer lugar. Resumindo, a América deve aprender humildemente a aceitar sua própria vulnerabilidade enquanto parte deste mundo, impondo a punição aos responsáveis como um dever triste, não como uma excitante retaliação – mas o que está acontecendo é a reafirmação do papel excepcional dos EUA como a polícia do mundo, como se a causa do ressentimento contra os EUA não fosse o excesso, e sim a falta, de poder.”

 

 

“Com essa “esquerda” (que temos hoje), quem precisa de direita?”

 

 

“Ao longo do século XX, percebe-se o mesmo padrão: para esmagar seu verdadeiro inimigo, o capitalismo começou a brincar com fogo, e mobilizou seu excesso obsceno disfarçado de fascismo; mas esse excesso assumiu vida própria, e se tornou tão forte que o capitalismo “liberal” foi forçado a unir forças com seu verdadeiro inimigo (o comunismo) para derrotá-lo. Significativamente, a guerra entre o capitalismo e o comunismo foi uma guerra fria, ao passo que a grande guerra quente foi lutada contra o fascismo. E o caso do Talibã não seria idêntico? Depois de criar um fantasma para combater o comunismo, eles o transformaram em seu principal inimigo. Consequentemente, mesmo que o terrorismo nos mate a todos, a guerra americana contra o terrorismo não é a nossa luta, mas uma luta interna do universo capitalista. O primeiro dever de um intelectual progressista (se é que esse termo tem ainda hoje algum significado) não é lutar as lutas de seu inimigo por ele.”

 

 

“As “férias da história” dos EUA foram uma farsa: a paz americana foi comprada com catástrofes que aconteciam por toda parte. Nos dias de hoje, a imagem dominante é a de um olhar inocente que confronta o Mal indizível que atacou do Exterior – e mais uma vez, com relação a esse olhar, é preciso reunir forças para aplicar a ele o conhecido dito hegeliano de que o Mal reside (também) no olhar inocente que percebe o Mal em tudo.”

 

 

“Na velha República Democrática Alemã era impossível uma pessoa combinar três características: convicção (fé na ideologia oficial), inteligência e honestidade. Quem acreditava e era inteligente, não era honesto; quem era inteligente e honesto, não acreditava; quem acreditava e era honesto não podia ser inteligente. O mesmo não se aplica à ideologia da democracia liberal? Quem finge levar a sério a ideologia liberal hegemônica não pode ser ao mesmo tempo inteligente e honesto: ou é estúpido ou um cínico corrompido. Portanto, se me permitem uma alusão de mau gosto ao Homo sacer de Agamben, quero afirmar que o modo liberal dominante de subjetividade hoje é o Homo otarius: ao tentar manipular e explorar os outros, acaba sendo ele o verdadeiro explorado.”

 

 

“Homens que começam lutando contra a Igreja em nome da liberdade e humanidade acabam por abrir mão da liberdade e da humanidade para poder lutar contra a Igreja”, diz Chesterton. A primeira coisa a acrescentar hoje a esta passagem é que o mesmo vale para os advogados da religião: quantos defensores fanáticos da religião começaram pelo ataque feroz à cultura secular e terminaram por abandonar a própria religião (perdendo toda experiência religiosa significativa)? E não é verdade que, de forma exatamente homóloga, os guerreiros liberais ficam tão ávidos para lutar contra o fundamentalismo antidemocrático que terminam por eliminar a liberdade e a democracia, se isto for necessário para lutar contra o terrorismo? Têm tamanha paixão por demonstrar que o fundamentalismo não cristão é a maior ameaça à liberdade que estão prontos a recair na posição de que é preciso limitar nossa própria liberdade aqui e agora, nas nossas sociedades supostamente cristãs. Se os “terroristas” estão prontos a destruir este mundo por amor ao próximo, nossos guerreiros contra o terrorismo estão prontos a destruir seu próprio mundo democrático por ódio ao outro muçulmano. Alter e Dershowitz amam tanto a dignidade humana que estão prontos a legalizar a tortura – a degradação última da dignidade humana – para defendê-la.”

 

 

“A principal imagem do tratamento das “populações locais” como Homo sacer talvez seja a do avião de guerra voando sobre o Afeganistão: nunca se sabe se ele vai lançar bombas ou pacotes de alimentos.”

 

 

“O inesperado precursor dessa “biopolítica” paralegal em que as medidas administrativas substituem gradualmente o domínio do Direito foi o regime autoritário de direita de Alfredo Stroessner no Paraguai durante as décadas de 1960 e 70, que trouxe a lógica do estado de exceção ao mais extremo absurdo. Sob Stroessner, o Paraguai era – em termos da ordem constitucional – uma democracia parlamentar “normal” com a garantia de todas as liberdades; como, entretanto, conforme a alegação de Stroessner, vivemos todos em estado de emergência por causa da luta mundial entre a liberdade e o comunismo, a implementação total da Constituição era sempre adiada e proclamado um permanente estado de emergência. Esse estado de emergência só era suspenso por um dia a cada quatro anos para que houvesse as eleições que legitimavam o governo do Partido Colorado de Stroessner com uma maioria de 90 por cento – digna dos adversários comunistas... O paradoxo é que esse estado de emergência era o estado normal, ao passo que a liberdade democrática “normal” era uma exceção de curtíssima duração.”

 

 

“Esses paradoxos também oferecem a chave para entender como as duas lógicas do estado de emergência se relacionam uma com a outra: a atual emergência liberal-totalitária da “guerra ao terrorismo” e o autêntico estado revolucionário de emergência, primeiramente articulado por São Paulo no que ele denominou a emergência da aproximação do “fim do tempo”. A resposta é clara: quando uma instituição estatal proclama o estado de emergência, ela o faz, por definição, como parte de uma estratégia desesperada para evitar a verdadeira emergência e “retornar ao estado normal das coisas”. Há uma característica comum a todas as proclamações reacionárias de “estado de emergência”: foram todas dirigidas contra a agitação popular (“confusão”) e apresentadas como medidas para restaurar a normalidade. Na Argentina, no Brasil, na Grécia, no Chile e na Turquia, os militares proclamaram um estado de emergência a fim de controlar o “caos” da politização generalizada. “Essa loucura tem de terminar; as pessoas devem retomar seus empregos, o trabalho tem de continuar!”. Em resumo, a proclamação reacionária do estado de emergência é uma defesa desesperada contra o verdadeiro estado de emergência.”

 

 

“Em fevereiro de 2002 foi anunciado um plano – rapidamente arquivado – de estabelecer um “Departamento de Influência Estratégica”, entre cujas tarefas incluía-se a disseminação de inverdades na mídia estrangeira para propagar a imagem dos EUA no mundo. O problema desse departamento não era apenas a admissão clara da mentira; ela ajustava-se à conhecida declaração: “Se há uma coisa pior que um homem que mente, é um homem que não está à altura de suas mentiras!”. (Essa história se refere à reação de uma mulher ao amante, que desejava toda forma de sexo que não a penetração, para não ter de mentir à esposa quando dissesse que não estava mantendo relações sexuais – ou seja, ele queria dar uma de Bill Clinton com ela. Nessas circunstâncias, a mulher tinha todo o direito de dizer que a mentira completa – a negativa de relações sexuais – teria sido mais honesta que a estratégia adotada de mentir usando meia-verdade.) É natural, então, que o plano tenha sido rapidamente abandonado: uma agência do governo anunciar abertamente que seu objetivo, entre outros, é disseminar mentiras é inviável. O que isso quer dizer, evidentemente, é que a disseminação oficial de mentiras vai continuar: a ideia de uma agência do governo dedicada à mentira foi, de certa forma, honesta demais – teve de ser abandonada precisamente para permitir a divulgação eficiente de mentiras.”

 

 

“Liberdade é a liberdade dos que pensam diferente” (Rosa Luxemburgo).

 

 

“Um acontecimento notável ocorreu em Israel em janeiro ou fevereiro de 2002: a recusa organizada de centenas de reservistas a servir nos territórios ocupados. Esses refuseniks (como são chamados) não são simplesmente “pacifistas”: em sua proclamação pública, enfatizaram que cumpririam o seu dever de lutar por Israel nas guerras contra os Estados árabes, nas quais alguns deles foram altamente condecorados. Alegavam simplesmente (e há sempre algo simples num ato ético) que não concordavam em lutar “para dominar, expulsar, reduzir à fome e humilhar todo um povo”. Essas alegações estão documentadas nas descrições detalhadas das atrocidades cometidas pela Força de Defesa de Israel (FDI), desde a matança de crianças até a destruição de propriedade palestina. É assim que Gil Nemesh relata a “realidade do pesadelo nos territórios” no website dos refuseniks (seruv.org.il):

Meus amigos – forçando um velho a se humilhar, ferindo crianças, agredindo pessoas por divertimento, e mais tarde vangloriando-se de tudo isso, rindo dessa brutalidade terrível. Não sei se ainda quero chamá-los de meus amigos. Deixaram que se perdesse a própria humanidade, não por pura maldade, mas por ser difícil demais enfrentar isto de qualquer outra forma.

Passa-se então a perceber certa realidade: a realidade de centenas de pequenas – e outras não tão pequenas assim – humilhações diárias sistemáticas a que são submetidos os palestinos – os palestinos, e até os árabes israelenses (oficialmente cidadãos de Israel, com todos os direitos de cidadania), são discriminados na alocação de água, nos negócios envolvendo patrimônio, e assim por diante. Mas, ainda mais importante, é a sistemática “micropolítica” de humilhação psicológica: os palestinos são tratados basicamente como crianças malcriadas que devem ser reeducadas para uma vida honesta por meio de disciplina e castigos. Basta considerar o ridículo da situação em que as forças de segurança palestinas são bombardeadas, e ao mesmo tempo se cobra delas a repressão aos terroristas do Hamas. Como esperar que elas retenham um mínimo de autoridade aos olhos da população palestina se são humilhadas diariamente pelos ataques que sofrem e, pior ainda, pela expectativa de que suportem caladas esses ataques – caso se defendam e ofereçam resistência serão consideradas terroristas? No final de março de 2002, essa situação atingiu seu ridículo apogeu: Arafat foi sitiado e isolado nos três cômodos de seu escritório em Ramallah, ao mesmo tempo em que se lhe cobrava o combate ao terror, como se ele tivesse poder absoluto sobre os palestinos... Resumindo, não encontramos no tratamento israelense dado à Autoridade Palestina (atacá-la militarmente, enquanto exige que ela combata os terroristas que vivem entre os palestinos) uma espécie de paradoxo pragmático em que a mensagem explícita (a ordem de combater o terrorismo) é subvertida pela mensagem implícita contida no próprio modo de transmissão da mensagem explícita? Não está escandalosamente claro que a Autoridade Palestina é, dessa forma, colocada numa posição insustentável: obrigada a perseguir seu próprio povo enquanto está sob o fogo israelense? E a verdadeira ordem implícita não seria exatamente oposta: queremos que vocês resistam para poder esmagá-los?”

 

 

“A principal notícia que chegou da China em 2002 foi a emergência de um movimento operário de grande escala que protesta contra as condições de trabalho, que são o preço pago pela China para se tornar rapidamente o principal centro de manufatura do mundo, e a forma brutal como as autoridades o dobraram – mais uma prova, se é que há necessidade de prova, de que a China é hoje o Estado capitalista ideal: liberdade para o capital, cabendo ao Estado o “trabalho sujo” de controle dos operários.”

 

 

“Esses aparelhos de Estado têm um papel crucial no obverso da globalização. Recentemente, uma decisão abominável da União Europeia passou quase sem ser notada: o plano de estabelecer uma força policial de fronteira para toda a Europa a fim de assegurar o isolamento do território da União e assim evitar a entrada de imigrantes. Esta é a verdade da globalização: a construção de novos muros isolando os europeus prósperos do fluxo de imigrantes. Tem-se a tentação de ressuscitar aqui a velha oposição “humanista” marxista entre “relações entre coisas” e “relações entre pessoas”: na celebrada livre circulação aberta pelo capitalismo global, são as “coisas” (mercadorias) que circulam livremente, ao passo que a circulação das “pessoas” é cada vez mais controlada. O novo racismo do mundo desenvolvido é, de certa forma, mais brutal que os anteriores: sua legitimação implícita não é naturalista (a superioridade natural do Ocidente desenvolvido) nem culturalista (nós, ocidentais, também queremos preservar nossa identidade cultural), mas um desavergonhado egoísmo econômico – o divisor fundamental é o que existe entre os que estão incluídos na esfera de (relativa) prosperidade econômica e os que dela estão excluídos. O que se esconde atrás dessas medidas de proteção é a mera consciência de que o modelo atual de prosperidade capitalista recente não pode ser universalizado.”

 

 

“De acordo com um antigo tópos marxista, a evocação do inimigo externo serve para deslocar o foco da verdadeira origem das tensões, o antagonismo inerente ao sistema – basta lembrar a explicação comum do antissemitismo como o deslocamento para a figura do judeu, este intruso externo no nosso corpo social, da causa dos antagonismos que ameaçam a harmonia desse corpo.”

 

 

“O verdadeiro ensinamento de Lênin – que aponta a diferença entre “liberdade formal” e “liberdade atual” – consiste em mostrar como a verdadeira escolha livre é aquela na qual eu não escolho apenas entre duas ou mais opções no interior de um conjunto prévio de coordenadas, mas escolho mudar o próprio conjunto de coordenadas.” (Vladimir Safatle – posfácio)