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domingo, 30 de junho de 2013

1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil (Parte I) – Laurentino Gomes

Editora: Planeta

ISBN: 978-85-7665-320-2

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Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 368

Sinopse: O propósito deste livro, resultado de dez anos de investigação jornalística, é resgatar e contar a história da corte lusitana no Brasil e tentar devolver seus protagonistas à dimensão mais correta possível dos papéis que desempenharam duzentos anos atrás. 1808 – Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil é o relato sobre um dos principais momentos históricos brasileiros.



“Em 1807, o imperador francês era o senhor absoluto da Europa. Seus exércitos haviam colocado de joelhos todos os reis e rainhas do continente, numa sucessão de vitórias surpreendentes e brilhantes. Só não haviam conseguido subjugar a Inglaterra. Protegidos pelo Canal da Mancha, os ingleses tinham evitado o confronto direto em terra com as forças de Napoleão. (...) Fazia três anos que tinha se autodeclarado imperador dos franceses. “Eu não sou herdeiro de Luís XIV”, escreveu ao seu ministro das Relações Exteriores, Charles Maurice de Talleyrand, em maio de 1806. “Sou herdeiro de Carlos Magno.” A comparação é reveladora de suas pretensões. Luís XIV foi um dos mais poderosos reis da França. Carlos Magno, o fundador do Sacro Império Romano, cujos domínios abrangiam a maior parte do continente europeu. Ou seja, para Napoleão não bastava governar a França. Seu plano era ser o imperador de toda a Europa. Na prática, esse título já lhe pertencia. Um ano mais tarde, em 1808, com a virtual anexação da Espanha e de Portugal, ele praticamente dobrou o tamanho do território original da França. Seus domínios agora incluíam a Bélgica, a Holanda, a Alemanha e a Itália.

Ao longo de uma década, Napoleão travou inúmeras batalhas contra os mais poderosos exércitos da Europa sem conhecer nenhuma derrota. Uma dinastia de reis até então considerada imbatível, a dos Habsburgos do Império Austro-Húngaro, fora batida repetidas vezes nos campos de batalha. Russos e alemães tinham sido subjugados em Austerlitz e Jena, duas das mais memoráveis batalhas das chamadas guerras napoleônicas. Reis, rainhas, príncipes, duques e nobres foram expulsos de seus tronos e substituídos por membros da própria família Bonaparte.

“Se lançarmos os olhos para a Europa de 1807, veremos um extraordinário espetáculo”, escreveu o historiador pernambucano Manoel de Oliveira Lima. “O rei da Espanha mendigando em solo francês a proteção de Napoleão; o rei da Prússia foragido de sua capital ocupada pelos soldados franceses; o [...] quase rei da Holanda, refugiado em Londres; o rei das Duas Sicílias exilado de sua linda Nápoles; as dinastias da Toscana e Parma, errantes; [...] o czar em Petersburgo; a Escandinávia prestes a implorar um herdeiro dentro dos marechais de Bonaparte; o imperador do Sacro Império e o próprio Pontífice Romano obrigados de quando em vez a desamparar seus tronos que se diziam eternos e intangíveis”.

Nos últimos duzentos anos, mais livros foram escritos sobre Napoleão do que sobre qualquer outra pessoa na História, com exceção apenas de Jesus Cristo. Mais de 600 obras fazem referência direta ou indireta a ele. Homem de ambição e vaidade desmedidas, inversamente proporcionais a sua baixa estatura, de 1,67 metro, Napoleão gostava de chamar a si mesmo de “Filho da Revolução”. Era um gênio militar por natureza, mas foi a Revolução que lhe deu a oportunidade de demonstrar seus talentos nos campos de batalha. Era, portanto, o homem certo, no lugar certo e na hora certa. Nascera em 1769, filho de uma família da pequena nobreza da Córsega. Aos dezesseis anos, ainda na adolescência, já era tenente do exército francês. Na escola militar ganhou reputação como republicano e estabeleceu ligações com as futuras lideranças revolucionárias.

Foram essas conexões que o puseram à frente da artilharia na Batalha de Toulon, cidade rebelde defendida pelos ingleses, em 1793. Sua participação foi tão decisiva que nas oito semanas seguintes seria promovido de capitão a general. Tinha só 24 anos. Três anos mais tarde, era comandante do exército na Itália, onde se destacou pela bravura e pela ousadia das manobras militares. Mais três anos, era o primeiro cônsul da França, cargo que lhe dava poderes irrestritos. Em 1804, se autoproclamou imperador, aos 35 anos de idade.

Napoleão promoveu uma transformação na arte da guerra. Seus exércitos se moviam com mais rapidez e agilidade do que qualquer outro. Sempre tomavam a ofensiva e assumiam as posições mais vantajosas no campo de batalha, surpreendendo o inimigo que, muitas vezes, se retirava ou se rendia sem trocar um só tiro. Em dezembro de 1805, na véspera da Batalha de Austerlitz, a mais memorável de suas vitórias, parte das tropas que comandou percorreu mais de cem quilômetros em apenas dois dias – isso numa época em que não havia caminhões, tanques motorizados, aviões ou helicópteros para transportar homens e equipamentos. A grande mobilidade de homens, cavalos e canhões permitia que seus exércitos surpreendessem o inimigo com manobras inesperadas em batalhas que, às vezes, já pareciam perdidas. Essas táticas inesperadas foram devastadoras para os inimigos, habituados a manobras lentas e convencionais.” (...)

Napoleão gabava-se de conseguir repor as perdas nos campos de batalha ao ritmo de 30.000 soldados por mês. Em 1794, a França contava com 750.000 homens treinados, equipados e altamente motivados para a defesa das ideias difundidas pela Revolução. Isso lhe deu um exército em escala nunca vista desde o Império Romano. O imperador era um general prático, frio e metódico. O que importava para ele era o resultado do conjunto de suas forças e não o destino individual do soldados que tombavam pelo caminho. Suas batalhas eram planejadas de forma meticulosa. Não dividia o comando com ninguém. “Na guerra, um general ruim é melhor do que dois bons”, dizia. Era carismático e capaz de inflar rapidamente o ânimo de seus oficiais e soldados. “O moral e a opinião do exército são meia batalha ganha”, afirmava. (...)

No auge do seu poder, Napoleão despertava medo e admiração tanto nos seus inimigos quanto nos seus admiradores. Lord Wellington, que em 1815 o derrotou definitivamente em Waterloo, dizia que, no campo de batalha, Napoleão sozinho valia por 50.000 soldados. O escritor François René de Chateaubriand, que era seu adversário, o definiu como “o mais poderoso sopro de vida humana que já tinha passado pela face da Terra”.

Foi esse homem que o indeciso e medroso D. João, príncipe regente de Portugal, teve de enfrentar em 1807.”

 

 

“‘Na guerra entre a França e a Inglaterra, Portugal fazia o papel do marisco na luta entre o rochedo e o mar’ assinalou o historiador brasileiro Tobias Monteiro.”

 

 

“No dia 6 de novembro, a esquadra inglesa apareceu na foz do Rio Tejo, em território português, com uma força de 7000 homens. Seu comandante, o almirante Sir Sidney Smith (o mesmo oficial que havia bombardeado Copenhague dois meses antes), tinha duas ordens, aparentemente contraditórias. A primeira, e prioritária, era proteger o embarque da família real portuguesa e escoltá-la até o Brasil. A segunda, caso a primeira não acontecesse, era bombardear Lisboa.”

 

 

“A riqueza de Portugal era resultado do dinheiro fácil, como os ganhos de herança, cassinos e loterias, que não exigem sacrifício, esforço de criatividade e inovação, nem investimento de longo prazo em educação e criação de leis e instituições duradouras. Numa época em que a Revolução Industrial britânica começava a redefinir as relações econômicas e o futuro das nações, os portugueses ainda estavam presos ao sistema extrativista e mercantilista, sobre o qual tinham construído sua efêmera prosperidade três séculos antes. Baseava-se na exploração pura e simples das colônias, sem que nelas fosse necessário investir em infraestrutura, educação ou melhoria de qualquer espécie. “Era uma riqueza que não gerava riqueza”, escreveu a historiadora Lilia Schwarcz. “Portugal se contentava em sugar suas colônias de maneira bastante parasitária.” Sérgio Buarque de Holanda, autor do clássico Raízes do Brasil, mostrou que no Brasil colônia se tinha aversão ao trabalho. Segundo ele, o objetivo da aventura extrativista era explorar rapidamente toda a riqueza disponível com o menor esforço e sem nenhum compromisso com o futuro: “O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho”.

A dependência da economia extrativista fez com que a manufatura nunca se desenvolvesse em Portugal. Tudo era comprado de fora. “A tendência de a abundância de riquezas naturais enfraquecer as instituições e solapar o desenvolvimento sustentado das nações é quase uma maldição”, apontou a economista Eliana Cardoso, Ph.D. pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e professora visitante da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. “Os países cuja economia se assenta principalmente sobre o comércio de produtos naturais são levados [...] a cometer uma série de erros e desmazelos que impedem a modernização da sociedade.”

 

 

“(No meio da fuga desesperada da corte de Portugal), apareceu a rainha Maria I, de 73 anos. Para o povo português aglomerado no cais para assistir à partida, a presença da rainha era uma grande novidade. Devido aos seus acessos de loucura, fazia dezesseis anos que D. Maria I vivia reclusa no Palácio de Queluz e não era vista nas ruas de Lisboa. Enquanto seu coche se aproximava do porto em disparada, ela teria gritado ao cocheiro: “Mais devagar. Vão pensar que estamos fugindo!”.”

 

 

“A população da colônia era analfabeta, pobre e carente de tudo. Na cidade de São Paulo de 1818, já no governo de D. João VI, apenas 2,5% dos homens livres em idade escolar eram alfabetizados. A saúde era absurdamente precária. “Mesmo nos centros mais importantes da costa era impossível encontrar um médico que tivesse feito um curso regular”, conta Oliveira Lima, baseando-se nos relatos do comerciante inglês John Luccock, que a partir de 1808 viveu dez anos no Rio de Janeiro. “As operações mais fáceis costumavam ser praticadas pelos barbeiros sangradores e para as mais difíceis recorria-se a indivíduos mais presunçosos, porém no geral igualmente ignorantes de anatomia e patologia.” A autorização para fazer cirurgia e clinicar era dada mediante um exame perante o juiz comissário, ele próprio um ignorante da ciência da Medicina. Os candidatos eram admitidos nessa prova se comprovassem um mínimo de quatro anos de prática numa farmácia ou hospital. Ou seja, primeiro se praticava a Medicina e depois se obtinha a autorização para exercê-la.(...)

O pesquisador carioca Nireu Cavalcanti encontrou no Arquivo Nacional documentos que ajudam a dar uma noção do que era a saúde e a medicina no Rio de Janeiro na época de D. João VI. São inventários post-mortem de dois médicos, que relacionam os bens deixados pelos falecidos. Um deles, do cirurgião-mor Antônio José Pinto, falecido em 1798, inclui esta assustadora relação de “instrumentos cirúrgicos”: um serrote grande, um serrote pequeno, uma chave de dentes, duas facas retas, duas tenazes, uma unha de águia, dois torniquetes uma chave inglesa e uma tesoura grande. O outro inventário do boticário Antônio Pereira Ferreira, morto também em 1798, serve para dar uma ideia de como era o sortimento de uma farmácia da época. A lista inclui cascas, emplastos, fungos, minerais, óleos, raízes, sementes e um item chamado “animais e suas partes”, com ”óleo humano”, “lixa de lagarto”, “olhos de caranguejos brutos”, “raspas de ponta de veado” e “dentes de javali”.”

 

 

“Observada do mar, enquanto os navios se aproximavam do porto, o Rio de Janeiro era uma cidadezinha tranquila, de aparência bucólica, perfeitamente integrada ao esplendor da natureza que a cercava. De perto, a impressão mudava rapidamente. Os problemas eram a umidade, a sujeira e a falta de bons modos dos moradores. “Vistas de fora, as casas têm a mesma aparência de limpeza que observamos nas residências dos melhores vilarejos da Inglaterra”, relatou em 1803 o oficial da Marinha britânica James Tuckey. “A boa impressão, contudo, desvanece à medida que nos aproximamos. Logo que se metem os pés para dentro, constata-se que a limpeza não passa de um efeito da cal que reveste as paredes exteriores e que, nos interiores, habitam a sujeira e a preguiça. As ruas, apesar de retas e regulares, são sujas e estreitas, ao ponto de o balcão de uma casa quase se encontrar com o da casa em frente.

“A limpeza da cidade estava toda confiada aos urubus”, escreveu o historiador Oliveira Lima. Alexander Caldcleugh, um estrangeiro que viajou pelo Brasil entre 1819 e 1821, ficou impressionado com o número de ratos que infestavam a cidade e seus arredores. “Muitas das melhores casas estão de tal forma repletas deles que durante um jantar não é incomum vê-los passeando pela sala”, afirmou. Devido à pouca profundidade do lençol freático, a construção de fossas sanitárias era proibida. A urina e as fezes dos moradores, recolhidas durante a noite, eram transportadas de manhã para serem despejadas no mar por escravos que carregavam grandes tonéis de esgoto nas costas. Durante o percurso, parte do conteúdo desses tonéis, repleto de amônia e ureia, caía sobre a pele e, com o passar do tempo, deixava listras brancas sobre suas costas negras. Por isso, esses escravos eram conhecidos como “tigres”. Devido à falta de um sistema de coleta de esgotos, os “tigres” continuaram em atividade no Rio de Janeiro até 1860 e no Recife até 1882. O sociólogo Gilberto Freyre diz que a facilidade de dispor de ”tigres” e seu baixo custo retardou a criação das redes de saneamento nas cidades litorâneas brasileiras.” (...)

Convidado para um desses jantares na casa de uma família rica, Luccock surpreendeu-se ao descobrir que cada pessoa deveria comparecer com a própria faca, “em geral larga, pontiaguda e com cabo de prata”. À mesa, observou que “os dedos são usados com tanta frequência quanto o próprio garfo”. Mais do que isso, era comum uma pessoa se servir do prato do vizinho com as mãos. “Considera-se como prova incontestável de amizade alguém servir-se do prato de seu vizinho; e, assim, não é raro que os dedos de ambos se vejam simultaneamente mergulhados num só prato”, anotou. A refeição era acompanhada “de uma espécie de vinho fraco”, que era bebido em copos, em vez de taças. Devido ao efeito do álcool, ao final todos os convivas se tornavam barulhentos. “Exagera-se a gesticulação [...] e desfecham punhadas no ar, de faca ou garfo, de tal maneira que um estrangeiro pasma que olhos, narizes e faces escapem ilesos”, observou o inglês. “Quando facas e garfos se acham em repouso, ficam em cada uma das mãos, em posição vertical e descansando sobre a extremidade do cabo. Quando dela não se tem mais necessidade, limpa-se ostensivamente a faca na toalha de mesa e devolve-se à bainha por detrás das costas”.”

 

 

“Príncipe regente e, depois de 1816, rei do Brasil e de Portugal, D. João tinha medo de siris, caranguejos e trovoadas. Durante as frequentes tempestades tropicais do Rio de Janeiro, refugiava-se em seus aposentos na companhia do roupeiro predileto, Matias Antônio Lobato. Ali, com uma vela acesa, ambos faziam orações a santa Bárbara e são Jerônimo até que cessassem os trovões. Certa vez, foi picado por um carrapato na fazenda de Santa Cruz, onde passava o verão. O ferimento inflamou e causou febre. Os médicos recomendaram-lhe banho de mar. Como temia ser atacado por crustáceos, mandou construir uma caixa de madeira, dentro da qual era mergulhado nas águas da Praia do Caju, nas proximidades do Palácio de São Cristóvão. A caixa era uma banheira portátil com dois varões transversais e furos laterais por onde a água do mar podia entrar. O rei permanecia ali dentro por alguns minutos, com a caixa imersa e sustentada por escravos, para que o iodo marinho ajudasse a cicatrizar a ferida.

Esses mergulhos improvisados na Praia do Caju, a conselho médico, são a única notícia que se tem de um banho de D. João nos treze anos em que permaneceu no Brasil. Quase todos os historiadores o descrevem como um homem desleixado com a higiene pessoal e avesso ao banho. “Era muito sujo, vício de resto comum a toda a família, a toda a nação”, afirmou Oliveira Martins. “Nem ele, nem D. Carlota, apesar de se odiarem, discrepavam na regra de não se lavarem.” A relutância da corte portuguesa em tomar banho contrastava com os costumes da colônia brasileira, onde o cuidado com o asseio pessoal chamava a atenção de quase todos os viajantes que por aqui passaram nessa época. “Apesar de certos hábitos que aproximam da vida selvagem os brasileiros da classe baixa, qualquer que seja a sua raça, é para notar que todos eles são notavelmente cuidadosos com a limpeza do corpo”, escreveu o inglês Henry Koster, que morou no Recife entre 1809 e 1820.”

 

 

“Os dois mundos que se encontraram no Rio de Janeiro em 1808 tinham vantagens e carências que se complementavam. De um lado, havia uma corte que se julgava no direito divino de mandar, governar, distribuir favores e privilégios, com a desvantagem de não ter dinheiro. De outro, uma colônia que já era mais rica do que a metrópole, mas ainda não tinha educação, refinamento ou qualquer traço de nobreza. (...)

D. João precisava do apoio financeiro e político dessa elite rica em dinheiro porém destituída de prestígio e refinamento. Para cativá-la, iniciou uma pródiga distribuição de honrarias e títulos de nobreza que se prolongaria até seu retorno a Portugal, em 1821. Apenas nos seus oito primeiros anos no Brasil, D. João outorgou mais títulos de nobreza do que em todos os trezentos anos anteriores da história da monarquia portuguesa. Desde sua independência, no século XII, até o final do século XVIII, Portugal tinha computado dezesseis marqueses, 26 condes, oito viscondes e quatro barões. Ao chegar ao Brasil, D. João criou 28 marqueses, oito condes, dezesseis viscondes e quatro barões. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, além desses títulos de nobreza, D. João distribuiu 4048 insígnias de cavaleiros, comendadores e grã-cruzes da Ordem de Cristo, 1422 comendas da Ordem de São Bento de Avis e 590 comendas da Ordem de São Tiago. “Em Portugal, para fazer-se um conde se pediam quinhentos anos; no Brasil, quinhentos contos”, escreveu Pedro Calmon. “Indivíduos que nunca usaram esporas foram crismados cavaleiros, enquanto outros que ignoravam as doutrinas mais triviais do Evangelho foram transformados em comendadores da Ordem de Cristo”, acrescentou John Armitage.”

 

 

“Numa outra decisão pitoresca, D. João VI declarou guerra contra os índios botocudos que infernizavam a vida de fazendeiros e colonos na Província do Espírito Santo. Segundo o relato do inglês John Mawe, “o príncipe regente publicou uma proclamação na qual convida os índios a habitar nas aldeias, a se fazerem cristãos, prometendo-lhes, se viverem em boa inteligência com os portugueses, que seus direitos serão reconhecidos e, como os outros vassalos, gozarão da proteção do Estado; mas, se persistirem em sua vida bárbara e feroz, os soldados do príncipe terão ordem de lhes fazer guerra de extermínio”. De Londres, Hipólito da Costa ironizou a medida num editorial do Correio Braziliense: “Há muito tempo não leio um documento tão célebre; e o publicarei quando receber a resposta de Sua Excelência o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra da Nação dos Botocudos”.”

 

 

“Quando a corte portuguesa chegou ao Brasil, navios negreiros vindos da costa da África despejavam no Mercado do Valongo entre 18.000 e 22.000 homens, mulheres e crianças por ano. Permaneciam em quarentena, para serem engordados e tratados das doenças. Quando adquiriam uma aparência mais saudável, eram comercializados da mesma maneira como hoje boiadeiros e pecuaristas negociam animais de corte no interior do Brasil. A diferença é que, em 1808, a “mercadoria” destinava-se a alimentar as minas de ouro e diamante, os engenhos de cana-de-açúcar e as lavouras de algodão, café, tabaco e outras culturas que sustentavam a economia brasileira.

O desembarque, a compra e a venda de escravos faziam parte da rotina da colônia brasileira havia quase três séculos. Para os estrangeiros que, pela primeira vez, foram autorizados a visitar o Brasil depois da chegada da corte, era sempre uma visão constrangedora.

O cônsul inglês James Henderson, descreveu assim o desembarque dos escravos no porto do Rio de Janeiro:

Os navios negreiros que chegam ao Brasil apresentam um retrato terrível das misérias humanas. O convés é abarrotado por criaturas, apertadas umas às outras tanto quanto possível. Suas faces melancólicas e seus corpos nus e esquálidos são o suficiente para encher de horror qualquer pessoa não habituada a esse tipo de cena. Muitos deles, enquanto caminham dos navios até os depósitos onde ficarão expostos para venda, mais se parecem com esqueleto ambulantes, em especial as crianças. A pele, que de tão frágil parece ser incapaz de manter os ossos juntos, é coberta por uma doença repulsiva, que os portugueses chamam de sarna.

 

Um terceiro relato é o do diplomata inglês Henr Chamberlain. Ele conta como era a compra de um escravo no Valongo:

Quando uma pessoa quer comprar um escravo, ela visita os diferentes depósitos, indo de uma casa a outra, até encontrar aquele que lhe agrada. Ao ser chamado, o escravo é apalpado em várias partes do corpo, exatamente como se faz quando se compra um boi no mercado. Ele é obrigado a andar, a correr, a esticar seus braços e pernas bruscamente, a falar, a mostrar a língua e os dentes. Esta é a forma considerada correta para avaliar a idade e julgar o estado de saúde do escravo.”

 

 

“Na África, cerca de 40% dos negros escravizados morriam no percurso entre as zonas de captura e o litoral. Outros 15% morreriam na travessia do Atlântico, devido às péssimas condições sanitárias nos porões dos navios negreiros. As perdas eram maiores nas cargas que vinham de Moçambique e outras regiões da África oriental. Da costa atlântica, uma viagem até o Brasil durava entre 33 e 43 dias. De Moçambique, no Oceano Índico, até 76 dias. Por fim, ao chegar ao Rio de Janeiro, entre 10% e 12% dos desembarcados pereciam em depósitos, como os do Mercado do Valongo, antes de serem vendidos. Em resumo, de cada cem negros capturados na África, só 45 chegavam ao destino final. Significa que, de dez milhões de escravos vendidos nas Américas, quase outro tanto teria morrido no percurso, num dos maiores genocídios da história da humanidade.”

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