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terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Contraponto – Aldous Huxley

Editora: Globo
ISBN: 978-85-2500-241-9
Tradução: Erico Verissimo e Leonel Vallandro
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 472
Sinopse: Retrato de uma Inglaterra cínica e anárquica, concebido na frívola efervescência dos anos 20, Contraponto é um dos romances mais ambiciosos de Aldous Huxley. Suas personagens – entre as quais aparecem levemente disfarçados, mas prontamente reconhecíveis os escritores ingleses D. H. Lawrence e Katherine Mansfield, além do próprio Huxley – representam uma sociedade em busca de novos rumos mas sem coragem de romper com os valores decadentes que vigoravam antes do término da Primeira Guerra.



“– Não devemos tomar a arte muito ao pé da letra. E especialmente no que diz respeito ao amor.
– Nem mesmo quando é verdadeira? – perguntara ele.
– A poesia pode ser demasiadamente verdadeira. Pura como água destilada. Quando a verdade não é nada senão a verdade, ela é antinatural; uma abstração que com nada se parece do mundo real. Na natureza há sempre tantas coisas estranhas misturadas à verdade essencial! Eis porque a arte nos comove: precisamente porque está depurada de todas as impurezas da vida real. As orgias verdadeiras nunca são tão excitantes como os livros pornográficos. Num volume de Pierre Louys todas as raparigas são jovens e têm formas perfeitas; não há soluços de bebedeira, nem mau hálito, nem fadiga, nem tédio, nem lembranças súbitas de contas a pagar ou de cartas comerciais a responder; nada disso para interromper os arrebatamentos. A arte nos dá a sensação, o pensamento, o sentimento absolutamente puros – isto é: quimicamente puros. E acrescentara, com uma risada: – Não moralmente.”


“Os silenciosos nunca depõem contra si mesmos.”


“‘Devemos ser leais para com nossos instintos’. Não, não para com todos, não para com os maus: era preciso resistir a estes últimos. Mas eles não se deixavam vencer com facilidade.”


“Marjorie gostava da ideia do amor o que não gostava era dos amantes – exceto à distância e em imaginação.”


“– Eu só queria saber o que Walter poderia ter achado nela, se a mulher é tão deplorável como tu a descreves.
– Mas que é que a gente pode achar em outra pessoa? – John Bidlake falava num tom de voz melancólico. – Nestes assuntos, – acrescentou – todos somos igualmente loucos.”


“Quantos mais somos, mais alegres ficamos.”


“– Mas é lógico – falou Rampion – que se produzam revoluções internas não menos que externas. No Estado, são os pobres contra os ricos. No indivíduo, é o corpo e os instintos oprimidos contra o intelecto. O intelecto foi exaltado, como as classes superiores, no domínio do espírito; as classes inferiores no mesmo domínio se revoltam.”


“O relógio bateu uma hora e, como um cuco libertado pela badalada, Simmons apareceu na biblioteca trazendo uma bandeja. Simmons era um homem maduro e tinha aquela dignidade ministerial de postura que a necessidade de refrear a língua e de manter a calma, de nunca dizer o que verdadeiramente se pensa e de guardar as aparências tende sempre a produzir nos diplomatas, nas personagens reais, nos altos funcionários públicos e nos mordomos.”


“A morte de alguém é uma horrível advertência do futuro.”


“– É jovem ainda. – Foi assim que Spandrell comentou a noite. – Jovem e um pouco insípida. As noites são como seres humanos: só começam a interessar depois que ficam adultas. Lá pela meia-noite elas atingem a puberdade. Um pouco depois da 1 hora chegam à maioridade. A sua plenitude está entre duas e duas e meia. Uma hora mais tarde elas vão ficando cada vez mais desesperadas, como essas mulheres devoradoras de homens e esses homens maduros em declínio que andam por aí a saltitar num pé só mais violentamente do que nunca, na esperança de se convencerem a si mesmos de que não são velhos. Depois das quatro horas, as noites entram em plena decomposição. E a sua morte é horrível. Verdadeiramente horrível, ao nascer do sol, quando as garrafas estão vazias, as pessoas têm um aspecto de cadáveres e o desejo se desfaz em desgosto. Tenho um fraco pelas cenas de leito de morte, confesso – ajuntou Spandrell.”


“Custa tanto escrever um mau livro como um bom; sai com a mesma sinceridade da alma do autor. Mas, sendo a alma do mau autor, pelo menos artisticamente, de qualidade inferior, suas sinceridades serão, senão sempre intrinsecamente desinteressantes, pelo menos desinteressantemente exprimidas, e o trabalho dispensado nessa expressão será malbaratado. A natureza é monstruosamente injusta. Não há  substituto para o talento. A indústria e todas as virtudes são de nenhum proveito.”


“Desconfiai de todos os testemunhos, mesmo dos vossos próprios.”


“Quando refletimos sobre os processos de evolução, sobre a paciência e sobre o gênio humanos, sobre a organização social, sobre tudo que se tornou possível para nós o estar aqui, e os foguistas que se expõem a um ataque de apoplexia em nosso beneficio, e as turbinas de vapor que fazem cinco mil revoluções por minuto, e o mar que é azul, e os raios luminosos que não contornam os obstáculos para que haja sombra, e o sol que nos fornece todo o tempo e energia para viver e pensar – quando pensamos em tudo isso e num milhão de outras coisas, chegamos à conclusão de que nada pode ser mais estranho e que nenhuma descrição, por mais singular que seja, poder fazer justiça aos fatos.”


“– Vocês, jornalistas, são todos os mesmos. Nada de solavancos. A segurança antes de tudo. Literatura sem dor. Nada de preconceitos extraídos a frio ou de ideias pregadas a martelo: é preciso um anestésico. Os leitores devem ser mantidos permanentemente num estado de sono crepuscular. Vocês todos são um caso perdido.”


“– Sabes lá se por acaso a terra não é o inferno de algum outro planeta?”


“– Mas isso é tão tolo, todas estas disputas políticas – disse Rampion, com a voz esganiçada pela exasperação, – tão supinamente tolo! Bolcheviques e fascistas, radicais e conservadores, comunistas e Ingleses Livres – por que diabos estão se batendo eles? Eu lhes digo. Estão lutando para decidir se nós vamos para o inferno pelo trem expresso comunista, ou pelo auto de corrida dos capitalistas, ou pelo ônibus dos individualistas ou pelo bonde coletivista que rola sobre os trilhos do controle do Estado. O destino é o mesmo em qualquer dos casos. Todos eles vão direito ao inferno, precipitam-se todos no mesmo impasse psicológico e no colapso social que resulta do colapso psicológico. O único ponto em que eles diferem é neste: “Como chegarmos até lá?”. É simplesmente impossível a um homem de bom senso interessar-se por semelhantes disputas. Para o homem sensato a coisa importante é o inferno, e não o meio de transporte que deve ser empregado para chegar até lá. A questão que se depara ao homem sensato é: “Queremos ou não queremos ir para o inferno?”. E a resposta é: “Não, não queremos.” E se a resposta é esta, então esse homem não dará ouvidos a políticos de espécie alguma. Porque eles, no fim de contas, nos querem levar para o abismo. Todos, sem exceção. Lenine e Mussolini, Mac Donald e Baldwin. Estão todos igualmente ansiosos por nos levarem para o abismo, e discutem apenas a respeito dos meios de nos carregarem...
– Alguns deles nos poderão levar um pouco mais devagar do que os outros – sugeriu Philip.
Rampion deu de ombros.
– Mas tão pouco mais devagar que não faria nenhuma diferença apreciável. Eles acreditam todos no industrialismo sob uma forma ou outra, acreditam todos na americanização. Pense no ideal bolchevista. É a América fortemente exagerada. A América com serviços governamentais em lugar de trustes, e funcionários em lugar de ricos. E depois o ideal do resto da Europa! É a mesma coisa, apenas ali os ricos são conservados. Dum lado, o maquinismo e os funcionários. Do outro, o maquinismo e Alfred Mond ou Henry Ford. O maquinismo para nos levar à perdição; os ricos ou os funcionários, para dirigi-lo. Pensas que algum desses grupos poderá dirigir mais prudentemente do que os outros? Talvez tenhas razão. Mas não vejo nada a escolher entre eles. Estão todos igualmente apressados. Em nome da ciência, do progresso e da felicidade humana! Amém – e pé no acelerador!
Philip fez um sinal de assentimento com a cabeça.
– E aceleram mesmo! – disse. – A coisa marcha. É o progresso. Mas, como dizes, marcha provavelmente na direção do abismo...
– É o único assunto que os reformadores acham para comentar é a forma, a cor e o mecanismo de direção do veículo. Esses imbecis não veem então que é o rumo tomado o que importa, que estamos absolutamente no caminho errado e que seria preciso fazer meia volta, de preferência a pé, sem essa máquina fedorenta?
– Talvez tenhas razão – disse Philip. – Mas o mal é que, dado o nosso mundo tal como existe, não se pode fazer meia volta, não se pode parar a máquina. Não é possível isso, a menos que estejamos dispostos a exterminar mais ou menos a metade da raça humana. O industrialismo permitiu duplicar a população mundial em cem anos. Se quisermos desembaraçar-nos do industrialismo, é preciso voltar ao ponto de partida. Quer isto dizer que é necessário matar a metade do número existente de homens e de mulheres. O que, sub specie ceternitatis, ou simplesmente historice, seria talvez uma excelente coisa. Mas dificilmente seria uma questão de política prática.
– Por enquanto não é – concordou Rampion. – Mas a próxima guerra e a próxima revolução hão de fazer que a questão se torne bastante prática.
– É possível. Mas não devemos contar com as guerras e as revoluções. Porque, se contamos com elas, elas hão de vir na certa.
– Virão, contemos ou não com elas. O progresso industrial significa superprodução, significa a necessidade de conseguir novos mercados, significa a rivalidade internacional, significa a guerra. E o progresso mecânico significa mais especialização e padronização do trabalho, significa divertimentos despersonalizados, feitos para todo mundo, significa uma queda da iniciativa e das faculdades criadoras, significa mais intelectualismo, e uma atrofia progressiva de todos os elementos vitais e fundamentais da natureza humana, significa mais tédio e agitação, significa enfim uma espécie de loucura individual que não pode ter outro resultado senão a revolução social. Contemos ou não com elas, as revoluções e as guerras são inevitáveis, se permitirmos que as coisas continuem o seu curso atual.
– De sorte que o problema se resolverá por si mesmo...
– Mas somente por sua própria destruição. Quando a humanidade for destruída, está claro que não haverá mais problema. Mas isso me parece uma triste solução... Acredito que possa existir outra, mesmo no quadro do sistema atual. Uma solução provisória, enquanto o sistema fosse sendo modificado na direção duma solução permanente. A raiz do mal está na psicologia individual; de maneira que é por aí, pela psicologia individual, que seria preciso começar. O primeiro passo seria fazer que as pessoas vivessem duma maneira dupla, em dois compartimentos. Num dos compartimentos, como trabalhadores industrializados, no outro, como seres humanos. Como idiotas, como máquinas, durante oito horas dentro das vinte e quatro; e como verdadeiros seres humanos o resto do tempo.
– Elas já não fazem isso?
– Está claro que não. Os homens vivem como idiotas, como máquinas, todo o tempo, tanto nas horas de trabalho como nas horas de folga. Corno idiotas e como máquinas, mas imaginando que vivem como seres humanos civilizados, mesmo como deuses. O primeiro passo a dar é fazê-los reconhecer que eles são idiotas e máquinas durante as horas de trabalho. “Sendo a nossa civilização o que é”, eis o que será preciso dizer-lhes, “vocês devem passar oito horas das vinte e quatro como uma espécie de intermediário entre um imbecil e uma máquina de coser. É muito desagradável, eu sei. É humilhante, é repugnante. Mas aí está... Vocês têm de fazer isso; de outra maneira, toda a estrutura do mundo se fará em pedaços e nós morreremos de fome. Eis por que é preciso que vocês façam esse trabalho bestamente e mecanicamente; e que passem as horas de lazer como homens ou como mulheres verdadeiros e completos. Não misturem as duas vidas; mantenham os compartimentos bem estanques entre elas. O que importa acima de tudo é a vida autenticamente humana das horas de folga. O resto não passa de uma necessidade sórdida que é preciso satisfazer. E não esqueçam nunca que ela é efetivamente sórdida e – a não ser por permitir que vocês se alimentem e conservem intata a sociedade – absolutamente sem importância, sem a menor relação com a verdadeira vida humana. Não se deixem enganar pelos patifes cheios de unção que falam da santidade do trabalho e do serviço cristão que os homens de negócios prestam aos seus semelhantes. Tudo isso são mentiras. O trabalho de vocês não passa duma tarefa repugnante e desagradável, mas que infelizmente é necessária por causa da loucura de nossos antepassados. Eles acumularam uma montanha de lixo, e é preciso que vocês fiquem a trabalhar dia e noite com suas pás procurando remover o monturo, de medo que o fedor dele os envenene e mate; é preciso que vocês trabalhem para respirar, maldizendo a memória daqueles insensatos que lhes deixaram todo esse trabalho ignóbil por fazer. Mas não procurem entregar-se-lhe de coração, fingindo que esse sujo trabalho mecânico é uma necessidade nobre. Não é verdade; e o único resultado que vocês obterão dizendo isso e crendo nisso será abaixar a nossa humanidade ao nível dessa necessidade infecta. Se vocês acreditam nos negócios, como no serviço e na santidade do trabalho, vocês se transformarão simplesmente em idiotas mecanizados durante vinte e quatro horas, das vinte e quatro que tem um dia. Reconheçam que é um trabalho infecto, tapem o nariz, dediquem-se a ele durante oito horas e depois concentrem-se em si mesmos para ser, nas horas de folga, entes humanos verdadeiros. Seres humanos verdadeiros e completos. Não leitores de jornais, nem amadores de jazz, nem maníacos da radiofonia. Os industriais que fornecem às massas divertimentos padronizados e fabricados em serie fazem o possível para torná-los, nas horas de lazer, os mesmo imbecis mecânicos que vocês são durante as horas de trabalho. Mas não permitam isso. É preciso fazer o esforço necessário para ser humano.” Aqui está o que se deve dizer as gentes: eis a lição que devemos ensinar aos moços. É necessário convencer toda a gente de que toda essa magnífica civilização industrial não passa dum mau cheiro, e de que a vida verdadeira, a que significa alguma coisa, não pode ser vivida senão fora dela. Será preciso muito, muito tempo para que uma vida decente e o cheiro industrial se possam conciliar. Talvez sejam mesmo inconciliáveis. É o que ainda está para se ver... Seja como for, por ora é necessário atacar as imundícies de rijo, suportar o cheiro estoicamente, e, nos intervalos, tratar de levar uma vida verdadeiramente humana.
– É um bom programa. Mas não te vejo ganhando muitos votos com ele nas próximas eleições.
– Eis a dificuldade. – Rampion franziu a testa. – Teríamos todos contra nós. Porque a única coisa a cujo respeito todos estão de acordo – conservadores, liberais, socialistas, bolcheviques – é a excelência intrínseca do fedor industrial e a necessidade de suprimir, pela padronização e pela especialização, todo traço de virilidade ou de feminilidade na raça humana. E querem que a gente se interesse pela política! Ora, ora...”


“Pode-se perdoar tudo, menos a ausência.”


“Tenho vagamente a ideia de ir a Madri na semana próxima. Lá há de fazer um calor formidável, é claro. Mas adoro o calor. Desabrocho nos fornos. (Talvez aqui esteja uma indicação significativa do que me reserva a imortalidade...).”


“O ódio, como a bebida, é um estimulante.”


“Desde o instante em que permitimos que a verdade especulativa tomasse, como guia da vida, o lugar da verdade instintivamente sentida, condenamos todas as coisas à ruína. (...) Não permitas que o teu conhecimento teórico influencie a tua vida prática. Duma maneira abstrata sabes que a música existe, e que é bela; mas não partas daí para fingir, ao escutar Mozart, que estas num arrebatamento que não sentes. Se procedes assim, transformas-te num desses esnobes musicais idiotas que se encontram na casa de Lady Edward Tantamount. Incapazes de distinguir Bach de Wagner, mas babando-se de êxtase quando os violinos se fazem ouvir. O mesmo se passa exatamente com Deus. O mundo está cheio de esnobes religiosos perfeitamente ridículos. Pessoas que não estão verdadeiramente vivas, que nunca praticaram um ato verdadeiramente vital, que não têm relação viva com coisa alguma; criaturas que não têm o menor conhecimento pessoal ou prático do que é Deus. Mas andam pelas igrejas, rosnam as suas orações, pervertem e destroem a totalidade de sua existência sem brilho, agindo de acordo com a vontade duma abstração arbitrariamente imaginada a que resolveram dar o nome de Deus. Estes são tão grotescos e desprezíveis como os esnobes musicais da casa de Lady Edward. Mas ninguém tem o bom senso de lhes dizer isso. Os esnobes de Deus são admirados porque são tão bons, tão piedosos, tão cristãos... No entanto, não passam de criaturas mortas, simplesmente mortas. Mereciam levar uns bons pontapés no traseiro e uns puxões de orelhas, para se alertarem e voltarem à vida.”


“– Não há razão para te zangares...
– Pelo contrário, não há quase nada que não possa dar motivo à cólera. Se nos contemos é porque a metade do tempo vivemos de olhos fechados, meio adormecidos. Se estivéssemos sempre acordados, meu Deus! Não ficaria muita louça intacta!”

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