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sexta-feira, 23 de abril de 2010

Futebol ao sol e à sombra – Eduardo Galeano

Editora: L&PM
ISBN: 978-85-2541-436-6
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 240
Sinopse: Acima do futebol está a lenda. Uma estranha magia se impõe ao esporte. E o jogo se transforma em saga, desperta paixões, cria mitos, heróis, glórias e tragédias. Exaltado pelas multidões, criou em seu lado sombrio um mundo à parte, onde envolve poderosíssimos interesses políticos e financeiros.
Mas nada se sobrepõe ao encanto desta “festa pagã”. Para captar este fascinante universo de perdas e conquistas, Eduardo Galeano penetrou nas profundezas da história e das histórias que se passam dentro e fora das quatro linhas. Construiu este livro como um verdadeiro monumento à paixão. Através de sua prosa consagrada, tudo tem sabor. Pelé, Di Stéfano, Maradona, Zizinho, Didi, Garrincha, Obdúlio Varella o carrasco uruguaio de 1950, o aranha negra Yashin, Leônidas, Platini, Domingos da Guia, Friedenreich e muitos outros craques são mostrados nos seus momentos de esplendor e desgraça.
Ágil, emotivo, este livro flui prazerosamente. Não é preciso ser um apaixonado da bola para apreciar esta saga. Basta se apreciar a grande literatura.



“É raro o torcedor que diz: “Meu time joga hoje”. Sempre diz: “Nós jogamos hoje”. Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música.”


“O gol é o orgasmo do futebol. E, como o orgasmo, o gol é cada vez menos frequente na vida moderna.”


“Às vezes, raras vezes, alguma decisão do árbitro coincide com a vontade do torcedor, mas nem assim consegue provar sua inocência. Os derrotados perdem por causa dele e os vitoriosos ganham apesar dele. Álibi de todos os erros, explicação para todas as desgraças, as torcidas teriam que inventá-lo se ele não existisse. Quanto mais o odeiam, mais precisam dele.
Durante mais de um século, o árbitro vestiu-se de luto. Por quem? Por ele. Agora, disfarça com cores.”


“Antigamente, existia o treinador, e ninguém dava muita atenção a ele. O treinador morreu, de boca fechada, quando o jogo deixou de ser jogo e o futebol profissional precisou de uma tecnocracia da ordem. Então nasceu o técnico, com a missão de evitar a improvisação, controlar a liberdade e elevar ao máximo o rendimento dos jogadores, obrigados a transformar-se em atletas disciplinados.
O treinador dizia:
– Vamos jogar.
O técnico diz:
– Vamos trabalhar.
Agora se fala em números. A viagem da ousadia ao medo, história do futebol no século vinte, é um trânsito do 2-3-5 para o 5-4-1, passando pelo 4-3-3 e o 4-4-2. Qualquer leigo é capaz de traduzir isso, com um pouco de ajuda, mas depois, não há quem possa. A partir dali, o técnico desenvolve fórmulas misteriosas como a sagrada concepção de Jesus, e com elas elabora esquemas táticos mais indecifráveis que a Santíssima Trindade.
Do velho quadro-negro às telas eletrônicas: agora as jogadas magistrais são desenhadas em computadores e ensinadas em vídeos. Essas perfeições raras vezes são vistas, depois, nas partidas que a televisão transmite. A televisão se deleita exibindo o rosto crispado do técnico, e o mostra roendo as unhas ou gritando orientações que mudariam o curso de uma partida se alguém pudesse entendê-las.
Os jornalistas o sufocam de perguntas nas entrevistas, quando o jogo termina. O técnico jamais conta o segredo de suas vitórias, embora formule explicações admiráveis para suas derrotas:
– As instruções eram claras, mas não foram seguidas – diz, quando a equipe perde de goleada para um timinho qualquer. (...)
A engrenagem do espetáculo tritura tudo, tudo dura pouco e o técnico é tão descartável como qualquer outro produto da sociedade de consumo. Hoje o público grita para ele:
– Não morra nunca!
e, no domingo que vem, quer matá-lo.
Ele acredita que o futebol é uma ciência e o campo um laboratório, mas os dirigentes e a torcida não apenas exigem a genialidade de Einstein e a sutileza de Freud, mas também a capacidade milagrosa de Nossa Senhora de Lourdes e a paciência de Gandhi.”


“Há atores insuperáveis na arte de ganhar tempo: o jogador coloca a máscara do mártir que acaba de ser crucificado, e então rola em agonia, agarrando o joelho ou a cabeça, e fica estendido na grama. Passam os minutos. Em ritmo de tartaruga chega o massagista, o mão-santa, gordo suado, cheirando a linimento, com a toalha no pescoço, o cantil numa mão e na outra alguma poção infalível. E passam as horas e os anos, até que o juiz manda tirar aquele cadáver do campo. E então, subitamente, o jogador dá um pulo, e ocorre o milagre da ressurreição.”


“Depois os locutores tomam a palavra. Os da televisão acompanham as imagens, mas sabem muito bem que não podem competir com elas. Os do rádio, ao contrário, não são recomendados para cardíacos: esses mestres do suspense correm mais que os jogadores e mais que a própria bola, e em ritmo de vertigem narram uma partida que pode não ter muita relação com o que se está olhando. Nessa catarata de palavras, passa roçando o travessão o disparo que se vê roçando o mais alto céu, e corre iminente perigo de gol a meta onde uma aranha tece sua teia, de trave a trave, enquanto o goleiro boceja.
Quando conclui a vibrante jornada no colosso de cimento, chega a vez dos comentaristas. Antes os comentaristas interromperam várias vezes a transmissão da partida, para indicar aos jogadores o que deviam fazer, mas eles não puderam escutá-los porque estavam ocupados em errar.”


“Na sua forma moderna, o futebol provém de um acordo de cavalheiros que doze clubes ingleses selaram no outono de 1863, numa taverna de Londres. Os clubes assumiram as regras estabelecidas em 1846 pela Universidade de Cambridge. Em Cambridge, o futebol se havia divorciado do rugby: era proibido conduzir a bola com as mãos, embora fosse permitido tocá-la e era proibido chutar os adversários. “Os pontapés só devem ser dirigidos para a bola”, advertia uma das regras: um século e meio depois, ainda há jogadores que confundem a bola com o crânio do rival, por sua forma parecida.”


“Abdón Porte defendeu a camisa do Nacional do Uruguai durante mais de duzentas partidas, ao longo de quatro anos, sempre aplaudido, às vezes ovacionado, até que sua boa estrela apagou.
Então foi tirado da equipe titular. Esperou, pediu para voltar, voltou. Mas não tinha jeito, a má fase continuava, as pessoas o vaiavam: na defesa, até as tartarugas conseguiam fugir dele; no ataque, não faturava uma.
No final do verão de 1918, no estádio do Nacional, Abdón Porte se matou. À meia-noite, com um tiro, no centro do campo onde tinha sido querido. Todas as luzes estavam apagadas. Ninguém escutou o tiro.
Foi encontrado ao amanhecer. Numa mão tinha o revólver e na outra, uma carta.”


“Em 1919, o Brasil venceu o Uruguai por 1 a 0 e se sagrou campeão sul-americano. O povo se lançou às ruas do Rio de Janeiro. Presidia os festejos, levantada como um estandarte, uma barrenta chuteira, com um cartazinho que proclamava: O glorioso pé de Friedenreich. No dia seguinte, aquela chuteira que tinha feito o gol da vitória foi parar na vitrina de uma joalheria, no centro da cidade.
Artur Friedenreich, filho de um alemão e de uma lavadeira negra, jogou na primeira divisão durante vinte e seis anos, e nunca recebeu um centavo. Ninguém fez mais gols que ele na história do futebol. Fez mais gols que outro grande artilheiro, Pelé, também brasileiro, que foi o maior goleador do futebol profissional. Friedenreich somou 1.329 gols. Pelé, 1.279.
Este mulato de olhos verdes fundou o modo brasileiro de jogar. Rompeu com os manuais ingleses: ele, ou o diabo que se metia pela planta de seu pé. Friedenreich levou ao solene estádio dos brancos a irreverência dos rapazes de cor de café que se divertiam disputando uma bola de trapos nos subúrbios.
Assim nasceu um estilo, aberto a fantasia, que prefere o prazer ao resultado. De Friedenreich em diante, o futebol brasileiro que é brasileiro de verdade não tem ângulos retos, do mesmo jeito que as montanhas do Rio de Janeiro e os edifícios de Oscar Niemeyer.”


O segundo descobrimento da América
Para Pedro Asripe, a pátria não significava nada. A pátria era o lugar onde ele tinha nascido, e dava na mesma, porque ninguém o tinha consultado, e era o lugar onde ele se arrebentava trabalhando como peão para um frigorífico, e também dava na mesma ter um ou outro patrão em qualquer outra geografia. Mas quando o futebol uruguaio ganhou a olimpíada de 1924 na França, Arispe era um dos jogadores triunfantes; e enquanto olhava a bandeira nacional que se levantava lentamente no mastro de honra, com o sol em cima e as quatro barras celestes, no centro de todas as bandeiras e mais alta que todas, Arispe sentiu que seu peito estufava.
Quatro anos depois, o Uruguai ganhou a olimpíada da Holanda. E um dirigente uruguaio, Atílio Narancio, que em 24 tinha hipotecado sua casa para pagar as passagens dos jogadores, comentou:
– Agora já não somos mais aquele pequeno ponto no mapa do mundo.
A camisa celeste era a prova da existência da nação, o Uruguai não era um erro: o futebol havia arrancado aquele minúsculo país das sombras do anonimato universal.
Os autores daqueles milagres de 1924 e 1928 eram operários e boêmios que só recebiam do futebol a pura felicidade de jogar, Pedro Arispe era operário de frigorífico. José Nasazzi cortava pedras de mármore. Perucho Petrone era verdureiro. Pedro Crea, entregador de gelo. Jose Leandro Andrade, compositor de carnaval e engraxate. Todos tinham vinte anos, ou pouco mais, embora nas fotos pareçam tão senhores, e curavam as pancadas recebidas com água e sal, panos molhados com vinagre e alguns copos de vinho.
Em 1924, chegaram à Europa com passagens de terceira classe e lá viajaram de favor em vagões de segunda, dormindo em assentos de madeira e obrigados a disputar uma partida depois da outra em troca de teto e comida. A caminho da Olimpíada de Paris, disputaram nove partidas na Espanha e ganharam as nove.
Era a primeira vez que uma equipe latino-americana jogava na Europa. O Uruguai enfrentava a Iugoslávia na partida inicial. Os iugoslavos mandaram espiões ao treino. Os uruguaios perceberam, e treinaram dando chutes no chão, jogando a bola para as nuvens, tropeçando a cada passe e chocando-se entre si. Os espiões informaram:
– Dão pena esses pobres rapazes, que vieram de tão longe...
Apenas duas mil pessoas assistiram àquela primeira partida. A bandeira uruguaia foi içada ao contrário, com o sol para baixo, e em lugar do hino nacional escutou-se uma marcha brasileira. Naquela tarde, o Uruguai derrotou a Iugoslávia por 7 a 0.
E então aconteceu algo como a segunda descoberta da América. Uma partida após a outra, a multidão se aglomerava para ver aqueles homens escorregadios como esquilos, que jogavam o xadrez com a bola. A escola inglesa tinha imposto o passe longo e a bola alta, mas esses filhos desconhecidos, gerados na remota América, não repetiam o pai. Preferiam inventar um futebol de bola curtinha e no pé, com relampejantes mudanças de ritmos e fintas na corrida. Henri de Montherlant, escritor aristocrático, publicou seu entusiasmo: “Uma revelação! Eis aqui o verdadeiro futebol. O que nós conhecíamos, o que nós jogávamos, não era, comparado com isto, mais que um passatempo de escolares”.


“Um dos uruguaios campeões do mundo, Perucho Petrone, foi para a Itália. Estreou em 1931, no Fiorentina: nessa tarde, Petrone fez onze gols.
Na Itália, durou pouco. Foi o goleador do campeonato italiano, e o Fiorentina lhe ofereceu o que quisesse; mas Petrone se cansou muito depressa das fanfarras do fascismo em ascensão. O tédio e a saudade o devolveram a Montevidéu, onde continuou fazendo seus gols de terra arrasada durante um tempinho. Ainda não tinha feito trinta anos quando teve de deixar o futebol. A FIFA obrigou-o, porque não tinha cumprido seu contrato com o Fiorentina.
Dizem que Petrone era capaz de derrubar uma parede com uma bolada. Quem sabe? Está comprovado, isso sim, que desmaiava os arqueiros e perfurava as redes.”


Deus e o Diabo no Rio de Janeiro
Certa noite de muita chuva, enquanto morria o ano de 1937, um torcedor inimigo enterrou um sapo no campo do Vasco da Gama e lançou sua maldição:
– Que o Vasco não seja campeão por doze anos! Se existir um Deus no céu, que o Vasco não seja campeão!
O nome deste torcedor de um time humilde, que o Vasco da Gama tinha goleado por 12 a 0, era Arubinha. Escondendo um sapo de boca costurada nas terras do vencedor, Arubinha estava castigando o abuso.
Durante anos, torcedores e dirigentes procuraram o sapo no campo e em seus arredores. Nunca o encontraram. Crivado de buracos, aquilo era uma paisagem lunar. O Vasco da Gama contratava os melhores jogadores do Brasil, organizava as equipes mais poderosas, mas continuava condenado a perder.
Finalmente, em 1945, o time ganhou o troféu do Rio e quebrou a maldição. Tinha sido campeão, pela última vez, em 1934. Onze anos de seca.
– Deus nos fez um descontinho – declarou o presidente.
Tempos depois, em 1953, quem estava com problemas era o Flamengo, o time mais popular do Rio de Janeiro e de todo o Brasil, o único que, onde jogar, joga sempre como o time da casa. O Flamengo estava há nove anos sem ganhar o campeonato. A torcida, a mais numerosa e fervorosa do mundo, morria de fome. Então um sacerdote católico, o padre Goes, garantiu a vitória, em troca de que os jogadores assistissem sua missa antes de cada partida, e rezassem o rosário de joelhos perante o altar.
Assim, o Flamengo conquistou o campeonato três anos seguidos. Os times rivais protestaram ao cardeal Jaime Câmara: o Flamengo estava usando armas proibidas. O padre Goes se defendeu alegando que não fazia mais que iluminar o caminho do Senhor, e continuou rezando junto com os jogadores seu rosário de contas vermelhas e pretas, que são as cores do Flamengo e de uma divindade africana que encarna ao mesmo tempo Jesus e Satanás. Mas no quarto ano, o Flamengo perdeu o campeonato. Os jogadores deixaram de ir à missa e nunca mais rezaram o rosário. O padre Goes pediu ajuda ao papa, que nunca respondeu.
O padre Romualdo, em troca, obteve permissão do Papa para se tornar sócio do Fluminense. O padre assistia a todos os treinos. Os jogadores não gostavam nem um pouco. Fazia doze anos que o fluminense não ganhava o campeonato do Rio e era de mau agouro aquele passarinhão de plumagem negra ali de pé, na beira do campo. Os jogadores o insultavam, ignorando que o padre Romualdo era surdo de nascença.
Um belo dia, o Fluminense começou a ganhar. Conquistou um campeonato, e outro, e outro. Os jogadores já não podiam treinar a não ser à sombra do padre Romualdo. Depois de cada gol, beijavam sua batina. Nos finais de semana, o padre assistia às partidas da tribuna de honra e murmurava-se sabe-se lá o que contra o juiz e os adversários.


Gol de Atílio
Foi em 1939. O Nacional de Montevidéu e o Boca Juniors de Buenos Aires estavam empatados em dois gols, e a partida estava chegando ao fim. Os do Nacional atacavam; os do Boca, recuados, aguentavam. Então Atílio García recebeu a bola, enfrentou uma selva de pernas, abriu espaço pela direita e engoliu o campo comendo adversários.
Atílio estava acostumado às machadadas. Batiam nele de tudo que é jeito, suas pernas eram um mapa de cicatrizes. Naquela tarde, a caminho do gol, recebeu entradas duras de Angeletti e Suárez, e deu-se ao luxo de esquivá-los duas vezes. Valussi rasgou sua camisa, agarrou-o pelo braço e lhe deu um pontapé e o corpulento Ibáñez plantou-se na sua frente em plena corrida, mas a bola fazia parte do corpo de Atílio e ninguém podia parar aquele redemoinho que derrubava jogadores como se fossem bonecos de trapo, até que no fim Atílio desprendeu-se da bola e seu tiro tremendo sacudiu a rede.
O ar cheirava a pólvora. Os jogadores do Boca cercaram o juiz: exigiam que anulasse o gol pelas faltas que eles tinham cometido. Como o árbitro não lhes deu atenção, os jogadores se retiraram, indignados, do campo.


“Enrique Pichon-Rivière passou a vida penetrando nos mistérios da tristeza humana e ajudando a abrir as cadeias da incomunicação.
No futebol, encontrou um aliado eficaz. Lá pelos anos quarenta, Pichon-Rivière organizou uma equipe de futebol com seus pacientes do manicômio. Os loucos, imbatíveis nas canchas do litoral argentino, praticavam, jogando, a melhor terapia de socialização.
– A estratégia da equipe de futebol é minha tarefa prioritária – dizia o psiquiatra, que também era treinador e artilheiro do time.
Meio século depois, nós seres urbanos estamos mais ou menos loucos, embora quase todos vivamos, por razões de espaço, fora do manicômio. Desalojado pelos automóveis, encurralados pela violência, condenados ao isolamento, estamos cada vez mais amontoados e cada vez mais sozinhos e temos cada vez menos espaços de encontro e menos tempo para nos encontrarmos.”


Gol de Zizinho
Foi no mundial de 50. Na partida contra a Iugoslávia, Zizinho fez um gol bis.
Este senhor da graça do futebol tinha feito um gol legítimo, que o juiz anulou injustamente. Então, ele repetiu igualzinho, passo a passo. Zizinho entrou na área pelo mesmo lugar, esquivou-se do mesmo beque iugoslavo, com a mesma delicadeza, escapando pela esquerda como tinha feito antes, e cravou a bola exatamente no mesmo ângulo. Depois chutou-a com fúria, várias vezes, contra a rede.
O árbitro compreendeu que Zizinho era capaz de repetir aquele gol dez vezes mais, e não teve outro remédio senão aceitá-lo.


Gol de Garrincha
Foi em 1958, na Itália. A seleção do Brasil jogava contra o Fiorentina, a caminho do Mundial da Suécia.
Garrincha invadiu a área, deixou um beque sentado e se livrou de outro, e de outro. Quando já tinha enganado até o goleiro, descobriu que havia um jogador na linha do gol: Garrincha fez que sim, fez que não, fez de conta que chutava no ângulo e o pobre coitado bateu com o nariz na trave. Então, o arqueiro tornou a incomodar. Garrincha meteu-lhe a bola entre as pernas e entrou no arco.
Depois, com a bola debaixo do braço, voltou lentamente ao campo. Caminhava olhando para o chão, Chaplin em câmera lenta, como que pedindo desculpas por aquele gol, que levantou a cidade de Florença inteira.


“No mundial de 70, o Brasil jogou um futebol digno do gosto pela festa e da vontade de beleza de sua gente. Já se impusera no mundo a mediocridade do futebol defensivo, com o time inteiro atrás, armando a retranca, e lá na frente um ou dois homens jogando na maior solidão; já tinham sido proibidos o risco e a espontaneidade criadora. E aquele Brasil foi um assombro: apresentou uma seleção lançada na ofensiva, que jogava com quatro atacantes, Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivelino, que às vezes eram cinco e até seis, quando Gérson e Carlos Alberto chegavam de trás. Na final, esse trator pulverizou a Itália.
Um quarto de século depois, semelhante audácia seria considerada um suicídio. No mundial de 94, o Brasil ganhou outra final contra a Itália. Ganhou na cobrança de pênaltis, depois de cento e vinte minutos sem gols. Não fosse pelos pênaltis, as metas teriam continuado invictas por toda a eternidade.”


Os cânticos do desprezo
Não figura nos mapas, mas existe. É invisível, mas existe. Há uma parede que ridiculariza a memória do Muro de Berlim: levantada para separar os que têm dos que necessitam, ela divide o mundo inteiro em norte e sul, e também traça fronteiras dentro de cada país e dentro de cada cidade. Quando o sul do mundo comete a ousadia de saltar esse muro e se mete onde não deve, o norte lhe recorda, a pauladas, qual é o seu lugar. E o mesmo acontece com as invasões de cada país e de cada cidade a partir das zonas malditas.
O futebol, espelho de tudo, reflete essa realidade. Em meados dos anos oitenta, quando o Nápoles começou a jogar o melhor futebol da Itália, graças ao influxo mágico de Maradona, o público do norte do país reagiu desembainhando as velhas armas do desprezo. Os napolitanos, usurpadores da glória proibida, estavam arrebatando seus troféus aos poderosos de sempre, e eles castigaram aquela insolência da ralé intrusa, vinda do sul. Das arquibancadas dos estádios de Milão ou de Turim, os cartazes insultavam: Napolitanos, bem-vindos à Itália, ou exerciam a crueldade: Vesúvio, contamos contigo.
E com mais força do que nunca ressoaram os cânticos filhos do medo e netos do racismo:

Que mau cheiro
até os cães fogem,
os napolitanos estão chegando.
Oh coléricos, terremotados,
com sabão nunca lavados.
Nápoles merda, Nápoles cólera,
és a vergonha de toda a Itália.

Na Argentina, acontece o mesmo com o Boca Juniors. O Boca é o time preferido pela pobreza de cabelo eriçado e pele morena que invadiu a senhorial cidade de Buenos Aires, em rajadas vindas dos macegais do interior e dos países vizinhos. As torcidas inimigas exorcizam o temido demônio:

Já todos sabem que o Boca está de luto,
são todos negros, são todos putos.
Deve-se matar os bostas,
são todos putos, todos caipiras,
que precisam ser jogados no Riachuelo.

XXXXXXXXXXXXXXX

“Uma jornalista perguntou à teóloga alemã Dorothee Solle:
– Como a senhora explicaria a um menino o que é a felicidade?
– Não explicaria – respondeu. – Daria uma bola para que jogasse.”


Fervores
Em abril de 97, tombaram crivados de balas os guerrilheiros que ocupavam a embaixada do Japão na cidade de Lima. Quando os comandos irromperam, e num relâmpago executaram a espetacular carnificina, os guerrilheiros estavam jogando futebol. O chefe, Néstor Cerpa Cartolini, morreu vestindo as cores do Alianza, o clube de seus amores.
Poucas coisas ocorrem na América Latina, que não tenham alguma relação, direta ou indireta, com o futebol. Festa compartilhada ou compartilhado naufrágio, o futebol ocupa um lugar importante na realidade latino-americana, às vezes o lugar mais importante, ainda que ignorem os ideólogos que amam a humanidade e desprezam as pessoas.”


“Obediência, velocidade, força – e nada de firulas: este é o molde que a globalização impõe. Fabrica-se, em série, um futebol mais frio que uma geladeira. E mais implacável que uma centrífuga. Um futebol de robôs. Supõe-se que esta chateação é o progresso, mas o historiador Arnold Toynbee tinha passado por muitos passados quando comprovou: “A característica mais consistente das civilizações em decadência é a tendência à estandardização e à uniformidade”.”


“Salvo a seleção equatoriana, que jogou lindamente, ainda que não tenha ido longe, a Copa de 2006 não teve surpresas. Um espectador a resumiu assim:
– Os jogadores têm uma conduta exemplar. Não fumam, não bebem, não jogam.”

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