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terça-feira, 28 de outubro de 2008

As pequenas memórias – José Saramago

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-3590-929-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 144
Sinopse: Em As pequenas memórias, José Saramago põe em prática o antigo projeto de compor um relato autobiográfico. São histórias familiares, ora alegres ora dilacerantes, sobre os primeiros quinze anos de vida do escritor.

“Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se nascer eu onde nasci tivesse sido consequência de um equívoco do acaso, de uma casual distracção do destino, que ainda estivesse nas suas mãos emendar. Não foi assim. Sem que ninguém de tal se tivesse apercebido, a criança já havia estendido gavinhas e raízes, a frágil semente que então eu era havia tido tempo de pisar o barro do chão com seus minúsculos e mal seguros pés, para receber dele, indelevelmente, a marca original da terra, esse fundo movediço do imenso oceano do ar, esse lodo ora seco, ora húmido, composto de restos de vegetais e animais, de detritos de tudo e de todos, de rochas moídas, pulverizadas, de múltiplas e caleidoscópicas substâncias que passaram pela vida e à vida retornaram, tal como vêm retornando os sóis e as luas, as cheias e as secas, os frios e os calores, os ventos e as calmas, as dores e as alegrias, os seres e os nadas. Só eu sabia, sem consciência de que o sabia, que nos ilegíveis fólios do destino e nos cegos meandros do acaso havia sido escrito que ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer.”


“Então digo à minha avó: “Avó, vou dar por aí uma volta.” Ela diz “Vai, vai”, mas não me recomenda que tenha cuidado, nesse tempo os adultos tinham mais confiança nos pequenos a quem educavam. Meto um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforje, pego num pau para o caso de ter de me defender de um mau encontro canino, e saio para o campo.”


“Quem pela primeira vez me visita (vendo os vários adereços equinos de enfeite) pergunta-me quase sempre se sou cavaleiro, quando a única verdade é andar eu a sofrer dos efeitos da queda de um cavalo que nunca montei (porque não me deixaram montá-los). Por fora não se nota, mas a alma anda-me a coxear há setenta anos.”


“... chamava-se António, usava bigode e estava casado com uma Conceição por causa de quem, anos mais tarde, terá havido problemas, pois minha mãe suspeitou, ou teve prova suficiente, de certas intimidades entre o meu pai e ela, exageradas à luz de qualquer critério de apreciação, incluindo os mais tolerantes.”


“Suponho que terá sido por causa desta recordação que não suporto as fumigações de pauzinhos do Oriente com que hoje é costume empestarem-nos as casas, julgando que assim as espiritualizam...”


“Meu avô era um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto.”


“Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.” Assim mesmo. Eu estava lá.”

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